“A antropologia, segundo o meu ponto Paulo de vista, é uma investigação constante RESUMO e disciplinada das condições e O objetivo deste artigo é tecer algumas potenciais da vida humana” (Tim reflexões sobre os desafios Ingold, 2015, p. 25) metodológicos e conceituais da produção antropológica, sobretudo no O uso da @ e da # denotam diferentes que concerne aos usos de hashtags temporalidades no modo de atuar e num contexto da cultura digital. A representar o mundo na era digital que perspectiva adotada discute o fazer distinguem as pessoas nascidas antes e antropológico em um mundo depois do advento da internet e das crescentemente mediado por redes sociais (Facebook, Twitter, tecnologias digitais. Para expor a Instagram etc). As cenas descortinadas proposta serão usados três autores: pelos diversos usos e apropriações da Michel de Certeau, Michael Fischer e cultura digital e revelam, por um lado, Tim Ingold, que se debruçaram sobre a experimentações no que tange às natureza da pesquisa. Cada um à sua novas formas de socialidade, trabalho, maneira, constamos o mesmo esforço estudo, lazer, consumo e fazer política. de repensar a dimensão do trabalho Mas por outro, refletem o espectro teórico frente aos desafios atuais. Na incerto no terreno da privacidade e da proposta a hashtag é tratada tanto segurança. Em um debate do coletivo como um produto da cultura digital, SP Território Digital realizado no mês como um saber-fazer capaz de de julho em São Paulo, um dos instaurar relatos que conferem um ARTIGO
participantes pautou o fato dos sociais que reordenam as relações e
ativistas brasileiros estarem pouco enquadramentos culturais. preocupados com uma cultura de Assim, tomamos como primeiro ponto segurança sobre as ações dos da discussão o entendimento de que a movimentos. Uma outra ativista globalização e a tecnização da vida não relatou que uma ação que visava furar fazem desaparecer os legados teóricos o pato inflável da Fiesp em Brasília foi e os instrumentos disciplinares das combinada inteiramente através de um análises antropológicas. Ao que grupo do WhatsApp e o quanto isso estamos diante de um terreno da teoria poderia ser perigoso para a segurança que se pode caracterizar como dos envolvidos, ainda mais com o fronteiriço, a beira ou a margem de posterior vazamento do vídeo da ação. algo e por isso, nos força a operações Ao que em certo momento do debate, teorizantes de desbravamento. E nesse surgiram discordâncias se as ações dos sentido, pensarmos em Antropologia movimentos sociais devem ser sempre digital como lugar, tal como uma aldeia “colocadas na internet”. “Ocupar e não kabila ou uma favela carioca, da cultura dar visibilidade é como não existir” material que expõe entendimentos de (frase de uma ativista do movimento de ordem, poder, agência, entre outros, e moradia). Assim, se por um lado se faz que sempre estiveram conosco nas necessária a criação de uma cultura de nossas análises. O mundo digital é segurança, por outro, a “generación dialético. Expande o mundo no âmbito hashtag” (Feixa, 2014) consegue visual, mas sobretudo, através da mobilizar diferentes atores e visibilizar objetificação e se tornou, por isso, pautas e lutas das minorias em ações constituinte das relações sociais e no Twitter, Facebook e outros, que humanas (Miller, 2012). Isso tem a ver além de tudo, impactam as análises com situações em que a humanidade sobre poder e as formas e lógicas de está cada vez mais engajada em operação dos movimentos juvenis experiências digitais. De um ponto de (Reguillo, 2015). Tais processos, vista metodológico, “therefore, the sobretudo, desafiam os antropólogos a challenge for digital anthropology is to percorrer alguns caminhos incertos e be able to push the limits of traditional emergentes em torno de práticas ARTIGO
ethnographic investigation to práticas sociais cotidianas e ordinárias
incorporate the quantitative data com as quais lidamos estão dentro produced by the web analytics, telecom desse esquema tático. Nesse sentido, log data and traffic data” (Miller, p.140 podemos pensar as hashtags como -141). relatos que são fazer-saber, portanto, fundadoras de experiências sociais e Certeau (1994) retoma Kant, Bourdieu discursivas que não tem proprietários e e Foucault para articular seu fogem aos olhos das racionalizações. pensamento sobre teoria e as práticas Como não imaginar o peso simbólicos não discursivas. Trata-se de uma “arte que as hashtags #meuamigosecreto1 ou de pensar” que se ocupa do que ele #EuEmpregadaDoméstica2 tiveram para chamou de “resto”, daquilo que não foi seus praticantes? Como “investimentos ‘verbalizado”. Se tratarmos as hashtags simbólicos relativos a vida cotidiana” como aquilo não simbolizado na (Certeau, 1994, p. 142), tais relatos, linguagem oficial e formal, como uma como “murmúrios poéticos e trágicos linguagem-resto, talvez sejamos do dia-a-dia” (p. 142) poderiam estar capazes de estabelecer condições de no romance ou na ficção. Mas se pesquisa que fogem aos protocolos transformam em estratégias narrativas acadêmicos. Contra até uma escrita de memória que se apresentam como “correta”, visto que a hashtag é uma nova forma de expressão, na qual precedida de palavras unidas e muitas os pesquisadores, não só os das áreas vezes sem acentuação, instaura-se uma que lidam com o digital, deverão se espécie de “segredo” da forma e do atentar. Constituem narrativas que conteúdo ali posto, como uma instauram continuidades e rupturas, ‘surpresa tática” para usar um termo como saberes-fazeres que reúnem uma de Certeau. O autor então elabora uma “arte de pensar” que ele comparou com a atividade do equilibrista na 1Sobre a hashtag: //www.pragmatismopolitico.com.br/2015/ corda. Tal tal como essa atividade, o 11/meuamigosecreto-o-que-significa-a- itinerário de pesquisa tem um valor tag-que-viralizou-na-internet.html
ético, estético e prático e tal qual é a 2
Sobre a hashtag: http://www.pragmatismopolitico.com.br/2 natureza do saber-fazer cotidiano. As 016/08/os-depoimentos-mais-chocantes- do-euempregadadomestica.html ARTIGO
liberdade (moral), uma criação uma superfície heterogênea tecida a
(estética) e um ato (prático) (Certeau, partir de idas e vindas dos habitantes e 1994, p. 147) que podem renovar as a repensar a forma como moldamos possibilidades de pesquisa sobre uma nossa experiência de caminhar com gama diversa de temas caros às calçados. Já o terceiro experimento Ciências Sociais. Miller (2012) é ilustra o debate sobre técnica e enfático na proposta de uma habilidade num mundo cada vez mais Antropologia digital capaz de equilibrar estruturado pelas tecnologias. Ainda o trabalho teórico com o humanismo que Ingold não se atente dos relatos etnográficos para especificamente a cultura digital, sua compreender como a tecnologia digital abordagem considera que os avanços está integrada no cotidiano das tecnológicos não significam o fim das pessoas. habilidades, mas de que toda a técnica Ingold (2015) sugere três experimentos no mundo moderno pressupõe a para pensar questões fundamentais construção de habilidades conforme as sobre o trabalho antropológico. O novas máquinas surgem. Segundo o primeiro consiste em molhar uma autor, “a essência da habilidade, pedra e observá-la secar. O segundo é portanto, vem residir, na capacidade de andar descalço. E o terceiro é enxergar improvisação com que os profissionais através de uma prancha de madeira. são capazes de desmontar as Esses experimentos guiam o livro do construções da tecnologia, e autor e estão de acordo com uma criativamente incorporar as peças em abordagem que trata a antropologia suas próprias esferas de vida” (Ingold, como um modo de explorar as 2015, p. 110). Enfim, o que esses condições e possibilidades da vida experimentos sugerem é trazer humana no mundo. No primeiro “antropologia de volta à vida” segundo experimento a ideia é atentar para o uma tarefa de seguir o fluxo dos mundo dos objetos (a pedra como acontecimentos, aonde quer que eles objeto material) mas também para o conduzam. Tomada neste sentido, fluxo e a transformação que a água e o podemos argumentar que a hashtag se vento produzem. Andar descalço presta a esse objeto, ou até mesmo, desafia a compreender o chão como uma imagem, que possui uma ARTIGO
existência indefinida, mas seus efeitos escolas em São Paulo
se desdobram e se potencializam nas (#OcupaEstudantes e #OcupaeEscola). ações e percepções dos envolvidos, Todos esses movimentos nos fornecem sejam eles os produtores, leitores ou os infinitas possibilidades de analisar as profissionais da informática que lidam hashtags a luz de descrições com métricas e dados quantitativos. etnográficas densas com o intuito de Nesse sentido, somos inclinados a seguir os fluxos das narrativas interpretar a cultura digital como um produzidas e que constituem as tecido complexo de práticas e usos que condições de existência para si próprio são inventadas pelos seus usuários quanto para os outros, para outras (Miller, 2012) e a despeito de gerações. diferenças nacionais e efeitos Fischer (2011) explicita sobre os transnacionais, potencializam as desafios da etnografia contemporânea maneiras de morar, trabalhar, de que visam incluir experimentos, dados, caminhar pela cidade, de estudar, de tecnologias, abstrações teóricas cada agir politicamente. Nesse último ponto vez mais engajadas em sistemas de são inúmeros os exemplos, de como os conceitos e instrumentos que torne a movimentos juvenis se utilizam das analise cultural mais relacional, plural e hastags para pautar temas e valores consciente. Para esse que impõe limites e resistências às suas empreendimento, o autor coloca que é vivências. Feixa (2014) e Reguilo (2012, preciso atentar-se para as formas 2015) tem sido autores fundamentais emergentes de vida e que essas devem para tratar desses movimentos ser “etnograficamente detalhadas, estético-políticos que tomaram as filosoficamente engajadas e redes e as ruas. Além disso, a conscientes do papel dos meios de participação de ambos não está comunicação e da dimensão da colocada somente no terreno teórico, economia politica” (Fischer, 2011, p. mas é engajada. Das ocupações de 198-199). Esses propósitos abririam os praças, dos protestos contra governos caminhos para as mensagens das ilegítimos (#ForaTemer), da Primavera “antropologias vindouras” que feminista no Brasil (#primeiroassedio, necessitam novas formas de critica #meuamigosecreto), das ocupações das etnográfica e cultural. Uma das chaves ARTIGO
metodológicas para isso seria o Enfim, trata-se de considerar, conforme
reconhecimento dos mundos Ingold (2015) o trabalho antropológico tecnocientifícos contemporâneos e de tal como a vida, que consiste em um toda uma gama de ferramentas, movimento de abertura, não de códigos e dados que criam novos encerramento. E assim pensar em processos de aprendizagem e #futurosantropologicos experimentação social. Essas observações breves e que exigem Referências bibliográficas aprofundamentos remetem as dimensões diversas do trabalho CERTEAU, Michel de. A invenção do antropológico. Remetem a reflexões cotidiano: artes de fazer. Petrópolis, sobre fluxos, espaços, tempos, Vozes, 1994. movimentos que se inserem nos desafios das “antropologias vindouras”. FEIXA, Carles. De la generación@ a la A partir disso, a proposta se concentra #generación: la juventude en la era em trazer o debate sobre a cultura digital. Barcelona: Ned Ediciones, 2014. digital a partir da análise das hashtags e que possibilitam a criação de vinhetas FISCHER, Michael. Futuros etnográficas tal qual como Fisher antropológicos: redefinindo a cultura (2011) sugere. Um olhar a partir de na era tecnológica. Rio de Janeiro: algumas hashtags pode ajudar nas Zahar, 2011. abordagens sobre os sentidos cosmopolíticos das maneiras de fazer, INGOLD, Tim. Estar vivo: ensaios sobre de trabalhar, de habitar, de agir movimento, conhecimento e descrição. politicamente, de viver e que Petrópolis: Vozes, 2015. pp. 11-92. estabelecem relatos na forma de (Capítulos 1, 2 e 3) “astúcias e das surpresas táticas” (Certeau, 1994, p. 1014). Relatos que MILLER, Daniel; HORST, Heather (eds). são “ações polimórficas, achados Digital Anthropology. London/NY: Berg, alegres, poéticos e bélicos” (Certeau, 2012. 1994, p. 104). ARTIGO
REGUILLO, Rossana. “Navegaciones
errantes. De música, jóvenes y redes: de Facebook a Youtube y viceversa”. Nueva época, núm. 18, julio-diciembre, 2012, 135-171.
REGUILLO, Rossana. “#OcupalasCalles
#TomalasRedes: Disidencia, insurgencias y movimentos juveniles. Del desencanto a la imaginación política” (2015). Disponível na internet.