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MANUEL J. GANDRA
Por outro lado, o contacto com os escritos de todos os autênticos Filhos do Fogo
transmite o sentimento comungado de que a Arcana Artis é simultaneamente uma Ciência
Sagrada, uma Filosofia hermética e uma Arte Secreta.
Becher, na sua Physica Subterranea, não deixa margem para dúvidas acerca daquilo a
que aspiram todos os adeptos sinceros: “os falsos alquimistas não procuram senão fabricar
o ouro, os verdadeiros filósofos só desejam a ciência; os primeiros só fazem tinturas,
sofisticações, inépcias, os outros preocupam--se com o princípio das coisas”.
De facto, os monumentos que esta Metafísica Experimental (na feliz expressão do
Mestre de Savignies, Eugène Canseliet) nos legou, sempre figuram o Filósofo investido de
missão a um tempo demiúrgica e escatológica, destinada a reproduzir à escala
microcósmica o drama da criação e da paixão da matéria, com vista à preparação da
Parúsia, o estado de comunhão e confraternização universal.
Não constituindo, pois, a transmutação dos metais o anelo da Alquimia Tradicional visa
ela espiritualizar o corpo e corporificar o espírito, realização espiritual e material
concomitante, configurada por um processo natural, tanto na essência como nas operações.
Tal concomitância tem sido não raro negligenciada por numerosos investigadores.
Duas posturas quanto ao objecto da Alquimia e à natureza das suas operações gozam
hoje de enorme prestígio: a daqueles que se dedicam a discutir a realidade das
transmutações no intuito de exibirem a Química Hermética como uma química embrionária
e a dos que insistem no carácter meramente psicológico do seu simbolismo. Vem, porém,
desenganá-los a ambos René Alleau, enunciando o problema em termos inequívocos: “ [...]
se o verdadeiro discípulo de Hermes não se deixa cair em tentação, se resiste
vitoriosamente às provas inevitáveis num domínio intermédio e subtil onde não são visíveis
todos os perigos, então, progressivamente, a filosofia hermética pode elevá-lo do mundo
dos corpos e dos prolongamentos extracorpóreos ao mundo das almas, depois, por meio de
uma interiorização crescente, do psíquico ao espiritual, ainda que termine neste nível o
ensinamento da Arte Real. Esta realização iniciática, muito difícil de alcançar, assinala o
regresso do Adepto ao centro do estado humano. As principais consequências desta
regeneração da natureza primordial são a felicidade e a longevidade que fazem do Novo
Adão um reflexo humano de determinados atributos do Princípio e que abrem ao Eleito as
portas do Paraíso terrestre e celeste. Tal é o verdadeiro objectivo da iniciação hermética e
da elaboração da Grande Obra nos três mundos. Vê-se assim a razão por que, segundo a
ordem das referências que podem ser escolhidas, é tão correcto interpretar a simbólica
hermética no plano material e exterior como no plano psíquico e interior, sendo sempre
possível uma transposição espiritual a cada nível da experiência estudada” 4.
O fascínio que estas teorias têm exercido explica a enorme fortuna de que passaram a
disfrutar (também patente no desenvolvimento de certas noções anteriormente apenas
esboçadas) em trabalhos no âmbito da filosofia e da epistemologia da ciência - tais como
La formation de l’Esprit Scientifique (1938) e La Psychanalyse du Feu (1949) de Gaston
Bachelard -, da iconologia - neste caso o exemplo mais significativo são as obras de Van
Lennep -, ou no da antropologia cultural, domínio onde pontifica Mircea Eliade que, além
de atribuir à química hermética uma função comparável à da yoga como técnica
caracteristicamente soteriológica, evidencia no seu Forgerons et Alchimistes (1956) a
relação entre o conteúdo não racional e não erudito da Alquimia e a concepção mágica da
metalurgia entendida como obstetrícia da Terra-Mãe, no seio da qual os minerais se
sujeitam a uma gestação semelhante à dos embriões animais.
Outra crítica, agora de carácter metodológico, merece também uma referência. Baseia-se
na circunstância de Jung não se interessar, regra geral, pelos ciclos de ilustrações no seu
contexto próprio, preferindo associá-las à medida que elas lhe vão permitindo sustentar
uma determinada interpretação. Ora, a partir do momento em que tudo pode transformar-se
em material simbólico para a Alquimia, a especificidade do simbolismo alquímico esfuma-
se, conduzindo tal capricho a uma extensão exegética do sistema de simbolização assumido
pelos químicos herméticos nas suas implicações operativas e apenas nelas. E de novo se
justifica a lição de Alleau: “ [...] a alquimia repousa sobre uma base concreta e precisa, sem
a qual toda a sabedoria hermética deixaria de possuir qualquer fundamento seguro e ficaria
sujeita unicamente à fantasia humana” 6.
É que, com efeito, se entre a Espagíria e a Alquimia apenas existe uma diferença de
grau, já relativamente à química a diferença é abissal, quer quanto ao objecto quer quanto
ao método, pois a crisopeia não se aplica à natureza dos fenómenos que a química estuda.
É, por conseguinte, incorrecto pretender que a química se desenvolveu à custa da
decifração dos arcanos alquímicos. Muito pelo contrário ela teve o seu progresso retardado
pela atracção que a arte de Hermes, prolongada na teoria flogística (1650-1750), exerceu
nos espíritos sequiosos de desvelar os segredos da natureza.
No século XII, época áurea das traduções latinas de tratados islâmicos pela Escola de
Toledo (Domingos Gundissalvo e Gerardo de Cremona), está confirmada a existência na
Hispânia de uma sólida tradição de conhecimentos químicos originários do Egipto
helenístico, os quais os sábios muçulmanos tentavam harmonizar com práticas metalúrgicas
artesanais autóctones. Parece mesmo ter havido comunidades expressamente vocacionadas
para o efeito, ao ponto de terem deixado marcas palpáveis no chão peninsular. Alguma
toponimia lhes faz jus. Cerca do século X existia na Galiza uma vila denominada
Alquimitia ou Alkimitia.
José Pedro Martins Barata estava convicto que tanto os dois afluentes do Rio Sever (a
Ribeira de Avid, situada em Espanha, e a Ribeira Davide, que corre em território
português), como o topónimo Castelo de Vide, derivam da palavra Abit, pela qual era
conhecido pelos alquimistas o minério de chumbo sob a forma de carbonato, acrescentando
que se trata de nome “de importação oriental, trazido pelos Árabes ou pelos Templários”.
Seja como for, a Tabula Smaragdina (trad. Hugo de Santalla), atribuída a Hermes
Trismegisto e considerada o melhor compêndio da Arcana Artis, já era conhecida no século
X em Córdova, onde fora usada como colofón de um outro livro de alquimia, o Sirr Al-
Jaliqa ou Kitab Al-´Ilal, o qual fizera a sua aparição no Al-Andalus durante o califado do
omíada Al-Hakam II (f. 976).
Outros nomes são incontroversos. De um discípulo de Abu Maslama, de seu nome Ibn
Bisrun, conserva-se uma epístola, dirigida a Ibn Al-Samh e citada pelo historiador Ibn
Jaldun. Por seu turno, notável poeta, gramático, jurista e filósofo, Abu Muhammad ´Abd
Allah Ibn Muhammad Ibn As-Sid (O Filho do Lobo, também conhecido por Al-Nahuí, o
Gramático, e Al-Bataliaussi, o de Badajoz), nascido em Silves na época das primeiras
taifas, dedicou à alquimia uns quantos capítulos do Kitab Al-Masâ-´Il.
A relativa indefinição que reina com respeito ao universo das Artes do Fogo
(metalúrgia) ao tempo da penetração do Islão no Al-Andalus, subsiste concomitantemente
com a suspeição de a aura mágica do finisterra hispânico, manifestada pelo sincretismo dos
eventos históricos com a mitologia, circunstância à qual os adeptos muçulmanos chegaram
a conferir enorme valor simbólico, poder ter norteado o Islão para o contacto com o
mosaico das cosmogonias que, consabidamente, ali coexistiam. Se é de todo infundada a
suposição que diversos autores expõem de nunca ter havido em Portugal cultores da
Arcana Artis não é menos destituída de verdade a opinião que lhes dá existência apenas a
partir do século XVIII.
Ainda uns quantos dos apologistas da Alquimia sob a óptica hermetista, como Manuel
Bocarro Francês, Rafael Bluteau, Visconde de Figanière, Fernando Pessoa, etc., merecem
ser mencionados, para que conste. Aliás, só a notoriedade e o prestígio assinaláveis
atingidos pela crisopeia podem justificar a representação de um artífice dessa Obra Real no
túmulo do Rei D. Fernando, para já não referir os inúmeros exemplos conhecidos em
Portugal de telas seiscentistas e setecentistas iconografando laboratórios e Filósofos do
Fogo em plena actividade.
Alguém já sugeriu, sem contudo tornar públicas as suas fontes, que os freires de Cristo
foram adeptos da Química Hermética. Nada obsta, se bem que o mais plausível é que
tenham sido apenas da medicina espagírica ou iatroquímica. É o que se depreende do
capítulo onde se preceituam as atribuições do Boticário do Convento de Cristo de Tomar.
Não resisto à tentação de o reproduzir a partir do códice existente no ANTT, intitulado
Uzos das Ceremonias e Louvaveis costumes da Ordem de Christo reformados no anno de
1702: “O boticário será um religioso sacerdote de muita caridade e curiosidade, e que tenha
alguma ciência da botica ou experiência dela, ao qual se dará religiosos, ou seculares que o
ajudem; procurando sempre haver pessoa que saiba bem da botica pelo que importa à saúde
dos religiosos, crédito e bom serviço da botica, e assim deve estar o boticário presente à
visita pela manhã, e tarde, para notar bem as mezinhas que se mandem dar a cada um, não
se fiando nunca na sua memória, pois é coisa de tanta importância a saúde dos enfermos,
procurando sempre estar a botica muito provida dos símplices, e mais mezinhas necessárias
às necessidades e enfermidades que sobrevivem aos religiosos, fazendo e mandando fazer
as águas destiladas, xaropes, pílulas e mais compostos de que se usa, pedindo para isso ao
Prelado quem o saiba bem fazer, quando em casa o não houver para tudo ser perfeito; e
pedirá ao Prelado todo o açúcar necessário, que terá por rol para dele dar conta por inteiro.
Não dará para fora mezinha alguma sem licença do Prelado, excepto pós comuns,
unguentos, e outras coisas semelhantes, de pouco porte, mas nunca xaropes, nem purga,
sem o Prelado assinar as receitas do médico constando ser de pobres. Não comprará drogas,
nem outras mezinhas sem licença do Prelado, nem sem as ver quem disso bem entenda,
assim para a bondade delas, como para o preço. De todos os símplices, e compostos da
botica terá muito cuidado, para que não se corrompam, e quando houver de fazer algumas
coisas daquelas, que se costumam fazer de noite dará conta sempre disso ao Prelado para
que saiba a ocasião de sua falta e o que passa naquelas horas, e tempo, e procurará sempre
assistir nessa oficina”.
Apurar como vieram esses monumentos parar a Portugal constitui tarefa de difícil, se
não de impossível, concretização. Expressamente encomendados ou simplesmente trazidos
na bagagem de Adeptos de outras nacionalidades que nos visitaram? A. M. Amorim da
Costa parece optar pela segunda possibilidade quando afirma: “Portugal foi, certamente,
país desejado e visitado por alguns alquimistas ambulantes estrangeiros que por cá terão
demorado (e, porventura, até fixado), deixando atrás de si alguns discípulos, talvez
ferverosos depositários dos seus ensinamentos, de cujas práticas se podem encontrar
vestígios, aqui e ali”.
O contributo de pesquisadores espanhóis, não obstante a sua inegável utilidade, não se
mostra mais decisivo. Apesar de tudo, penso não ser necessário fazer depender
exclusivamente dessas visitas esporádicas a existência de Adeptos operando no nosso país,
embora, é certo, também cá se tenham deslocado alguns, nem sempre, convirá sublinhar,
com o intuito de desvelar os segredos de que se haviam tornado detentores...
Foram expoentes da farmácia química: Duarte Madeira Arrais, João Curvo Semedo
(principal impulsionador da utilização de remédios de segredo em Portugal), José Custódio
da Costa e Jacob de Castro Sarmento (que desempenhou importante papel na introdução e
vulgarização em Portugal das correntes iatromecânicas sob a influência de Boerhaave e
Newton).
Os remédios concebidos por João Curvo Semedo eram vendidos pelos dominicanos, em
Lisboa, na transição do século XVII para o XVIII. Em Aveiro e na Batalha os mesmos
padres vendiam um outro segredo, a Água Celeste. Na última localidade possuíam um
privilégio para que nenhum leigo lhes fizesse concorrência. Em Elvas, este instituto
religioso comercializava a Água de Inglaterra de André Lopes de Castro, nos finais do
século XVIII. Por seu turno, os jesuítas fabricavam-nos em todas as suas Boticas, sendo os
mais conhecidos as Pedras Cordiais, preparadas em Goa, no Colégio de S. Paulo, a
Teriaga Brasílica e uma Água de Inglaterra, preparadas pelo boticário de Santo Antão.
NOTAS
3 Idem, p. 214.
5 Idem, p. 16-17.
6 Ibidem, p. 313.
BIBLIOGRAFIA