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Visões da Cultura Celta

- Dr. Simon James -

Uma das propostas deste site é apresentar informações sérias e confiáveis acerca
dos povos celtas, sua cultura, sua história e espiritualidade. Para isso, apesar de
ser um pesquisador diletante e não ‘profissional’, dedico-me a pesquisas
constantes, envolvendo muita leitura e contato com gente importante do universo
celta.

Um desses é o renomado Dr. Simon James, arqueólogo, autor de vários livros e


inúmeras vezes citado em meus textos. Com o intuito de oferecer seus
conhecimentos a leitores lusófonos, solicitei ao Dr. James autorização para
traduzir e publicar seus artigos em claudiocrow.com.br. Antes de autorizar, ele
gentilmente pediu para visitar o site e, em seguida, autorizou-me a traduzir e
publicar seus importantes textos sobre os celtas, disponíveis abaixo.

Artigos do Dr. SIMON JAMES:


- Quem foram os Celtas?
- História Convencional dos Celtas
- História Alternativa da “Celticidade”

Quem é o Dr. Simon James?

Quem foram os Celtas?


Os Celtas na História Antiga
Povos descritos como celtas surgem pela primeira vez, nos textos gregos, durante
o período a que os arqueólogos dão o nome de Idade do Ferro. Esta foi a última
fase da Pré-História, que na Europa ao norte dos Alpes corresponde, grosso
modo, aos últimos 600 a 800 anos antes de Cristo. Convencionalmente, a Idade
do Ferro finda com a conquista gradual da Europa ocidental e das Ilhas britânicas
pelos Romanos, tida como o marco para o início da história registrada.

Durante esses séculos, os celtas, também conhecidos como gauleses ou gálatas,


tornaram-se os mais temidos dentre os povos bárbaros para além da civilização
urbana grega e romana.

Acima: deus celta de três faces, da Gália romana

Muitos dos povos da Europa de então, da Espanha no Oeste até os Bálcãs no


Leste, e do norte da Itália até o Canal da Mancha, eram vistos pelos gregos e
romanos como aparentados entre si, descritos como ‘celtas’ (em grego, Keltoi; em
latim, Celtae), ‘gauleses’ (do latim Galli), ou ‘gálatas’ (do grego Galatae).

A arqueologia demonstra que esses povos possuíam culturas vibrantes, e


desenvolveram soberbos estilos artísticos.

Esses povos também atraem a atenção em nossos dias por outro motivo: a
palavra ‘celta’ é hoje usada para definir povos cujas línguas modernas ou
ancestrais estejam relacionadas com a dos celtas da Antigüidade. A maioria das
pessoas que atualmente falam um idioma celta estão na Grã-Bretanha e na
Irlanda, e estes são geralmente descritos como celtas também.

Entre os aspectos mais interessantes deste tema está a dificuldade em se definir


com exatidão quem foram os antigos celtas (bem como definir quem eles NÃO
foram), e que relação eles estabelecem com os modernos povos ditos ‘celtas’.

Problemas com a História dos Celtas

Uma vez que ‘sabemos’ que esses povos eram celtas, temos a tendência a
presumir que todos eles possuíam uma organização social mais ou menos
padronizada. Contudo, ao escrever meu primeiro livro sobre os celtas, eu me
tornei cada vez mais consciente de que as diferenças entre os povos da
Antigüidade atualmente chamados de celtas eram no mínimo tão profundas e
importantes quanto os elementos culturais ‘celtas’ que lhes eram comuns. Aquilo
que é tido e havido como típico do “pacote cultural” celta – guerreiros, druidas, arte
abstrata de linhas entrelaçadas, etc. etc. – pode muito bem não passar de uma
criação moderna, gerada a partir de fontes espalhadas por amplos arcos de
tempo e espaço.

Ao arbitrariamente criar uma imagem idealizada e generalizada do que teria sido


a sociedade celta, os estudiosos de gerações recentes criaram um molde no qual
nós empurramos povos da Antigüidade que, na verdade, possuíam semelhanças
importantes, mas também eram muito diferentes uns dos outros – tanto quanto os
povos da Europa moderna.

À esquerda: imagens de lótus gregas, no alto, inspiraram a arte celta primitiva e foram imitados e
desenvolvidos no estilo 'La Tène', usado especialmente em objetos metalúrgicos.

Representação costumeira de uma ‘tribo celta’ (extraído de meu primeiro livro!),


com a nobreza guerreira, os artesãos, etc. Este é,na verdade, um ‘modelo’
montado a partir de diversas culturas separadas por vastas distâncias
cronológicas e geográficas. Teriam os povos celtas realmente se estruturado
desta forma?

Desafiando as Suposições

O trabalho de inúmeros arqueólogos e antropólogos revelou a profundidade deste


e de outros problemas concernentes à forma em que a história dos celtas vem
sendo escrita.

Um exame mais aprofundado revela que algumas das suposições mais comuns e
básicas sobre a história celta apresentam sérias dificuldades:

 A noção de que os povos modernos chamados de celtas são simplesmente


os descendentes dos povos chamados de celtas de tempos passados é, na
melhor das hipóteses, uma meia-verdade: a questão é muito mais
complexa.
 A idéia de que todos os Celtas da Antigüidade se assemelhavam é
amplamente exagerada, se não equivocada.
 A idéia de que os Antigos Celtas e os celtas modernos sejam muito
semelhantes é também muito duvidosa.

História Convencional dos Celtas


Há muitas variações do mesmo tema - de modo geral, contudo, a história dos
celtas costuma ser narrada da seguinte forma:

Os primeiros celtas conhecidos

Por volta de 800 a 600 a.e.a., nas terras ao norte dos Alpes, surgiram povos que
seus letrados vizinhos gregos do sul viriam a chamar de keltoi.
Estes primeiros celtas registrados formaram principados na área ao norte dos
Alpes, e estabeleceram comércio com os gregos e os etruscos. Em torno de 500
a.e.a. esses principados foram violentamente destruídos.

No século seguinte, numa faixa territorial que se espalhava pela Europa desde o
leste da França até a Alemanha, a Áustria e a Boêmia, novos grupos surgiram,
caracterizados por, entre outras coisas, sepulturas de guerreiros e um novo estilo
de arte. Os arqueólogos dão a essa cultura o nome de La Tène – os vestígios
físicos de grupos que, por volta de 400 a.e.a., subitamente invadiram a Itália e
começaram a se estabelecer no Vale do Rio Pó.

Á esq., uma moeda de prata de Dumnorix, príncipe dos Aedui da Gália à


época de Julio Cesar, séc. 1 a.C. Em sua mão direita ele carrega uma corneta
de guerra e um javali (estandarte de batalha? Almoço?) e na esquerda, ao
que parece, uma cabeça cortada...

Á dir., túmulos escabados no século XIX em


Hallstatt, Áustria. Estes provavelmente são
aqueles a quem os gregos chamaram de Keltoi.

Á esq., um jarro de vinho de Dürrnberg, Áustria, séc. V a.C. - um exemplo antigo de arte 'Celta'
(conhecido pelos arqueólogos como estilo 'La Tène', em razão do local onde foi descoberto).

Os gauleses celtas: temíveis invasores bárbaros

Esses invasores são os antigos celtas por excelência, também conhecidos como
gauleses. Se (para os romanos) antes os celtas eram um distante objeto de
pesquisa, agora eles repentinamente se haviam tornado a mais temível ameaça
bárbara.
Por volta de 390 a.e.a., a tribo gálica dos senones chegou a saquear Roma, mas
foram depois repelidos e contidos no Vale do Pó, que passaria a se chamar Gallia
Cisalpina, a ‘Gália deste lado dos Alpes’.

Á dir, as primeiras
migrações celtas

Os Gálatas da
Turquia
Grupos de
migrantes celtas
invadiram os
Bálcãs e, em 279
a.e.a., atacaram
Delfos, o maior
templo da Grécia.
Apesar de serem
repelidos e de
sofrerem terríveis
baixas, alguns
chegaram à Anatólia (moderna Turquia) e criaram uma espécie de reino-
saqueador ao redor da moderna Ancara. Conhecidos pelos gregos por um nome
equivalente ao romano “gauleses”, esses gálatas deram seu nome às suas terras,
Galácia, de onde surgem os Gálatas do Novo Testamento.

A clássica escultura conhecida como "o Gaulês moribundo" na verdade retrata um gálata da
Anatólia.

Os Celtas no Ocidente
Há muito se afirma que ondas de celtas também se deslocaram rumo ao
oeste e o noroeste a partir de sua terra natal na Europa Central, de forma
semelhante às migrações mediterrâneas historicamente registradas –
ainda que não houvessem observadores letrados nas áreas para registrar
tais invasões. Contudo, na Península Ibérica (Espanha/Portugal), os
romanos identificaram um povo chamado celtiberos, e há traços de
dialetos celtas em várias partes da península. A explicação para isso
seriam migrações celtas anteriores e não registradas.

Detalhe de uma inscrição em pedra de Botoritta, na Espanha. Usando alfabeto ibérico, a palavras
aparentemente são de um dialeto celta.

Deduzindo as Invasões Celtas na Grã-Bretanha e na Irlanda

De forma semelhante, há muito se crê que houve invasões celtas às Ilhas


Britânicas. Julio César registrou que os gauleses, especialmente os Belgae, se
haviam estabelecido na Grã-Bretanha. Nomes idênticos de tribos são encontrados
tanto no continente quanto na Grã-Bretanha (por exemplo, os Atrebates e os
Parisi). Lingüistas modernos comprovam que os idiomas nativos dos bretões e dos
irlandeses eram muito próximos dos idiomas dos gauleses continentais, sendo
todos membros da família de línguas celtas.

Mais tarde, com o desenvolvimento da arqueologia, os artefatos da Idade do Ferro


na Irlanda e na Grã-Bretanha começaram a ser identificados, e mostravam
importantes elos com o mundo dos gauleses celtas do continente: todos os três
grupos produziam o mesmo tipo de arte ‘celta’ característica, com suas linhas
sinuosas e alusivas à vegetação, e ocasionalmente rostos de pessoas e animais.
Parecia haver uma ênfase comum nas armas, fortalezas e combates, e os
documentos históricos sugerem também a existência de instituições comuns,
especialmente na religião: os druidas, por exemplo, são registrados nesses três
grupos.

Assim, os antigos bretões e irlandeses passaram a ser vistos como tão celtas
quanto os gauleses e povos aparentados do continente, da Espanha e da Turquia.

Pequena cabeça de bronze retratando um homem com bigode - Welwyn, Inglaterra. Idade do Ferro
Tardia

A Conquista Romana: destruição da “Celticidade” Continental


Durante os três últimos séculos a.e.a, a expansão do Império Romano
gradualmente subjugou todo o mundo celta continental, exceção feita a algumas
áreas ao norte dos Rios Reno e Danúbio, que logo sucumbiriam a outro grupo de
‘bárbaros’: os primeiros germânicos.

A maior parte das áreas total ou parcialmente celtas, como as ‘Três Gálias’
(aproximadamente a França e a área do Reno) e a Hispania (Espanha e Portugal)
se tornaram prósperas províncias romanas, mas a língua e o estilo de vida celtas
não sobreviveram ao processo de ‘romanização’. Essas áreas viriam a falar
dialetos latinos, ancestrais das línguas atuais romance (espanhol, francês,
português, catalão, etc). Roma extinguiu a ‘celticidade’ no continente europeu.

À esq., a Muralha de Adriano, obra militar romana erguiuda de mar a


mar através do norte do teritório britânico por volta de 120 d.C.)

O intercâmbio cultural não ocorria em sentido único. O triskle celta acima é, na realidade, um fecho
de cinto de espada pertencente a um legionário romano, e foi encontrado em Dura-Europos no rio
Eufrates, na Síria. séc. III d.C.

Grã-Bretanha, Irlanda e Roma

Na Grã-Bretanha, a ocupação romana de (praticamente) todas as áreas que


viriam a compor os territórios da Inglaterra e do País de Gales trouxe uma perda
semelhante de cultura e línguas celtas no leste da ilha. Contudo, houve uma
continuidade de independência entre os ‘bárbaros’ da Caledônia (norte da
Escócia), enquanto que a Irlanda jamais foi invadida por Roma, permanecendo
uma colcha de retalhos de tribos e reinos independentes.
(a suposta ‘base militar’ romana recentemente descoberta em Drumanagh,
Irlanda, era quase certamente um centro comercial)

Pictos e Escotos

Com o início da queda do Império Romano nos séculos III e IV, os povos celtas
ainda livres partiram para a ofensiva. Na Caledônia, surge uma nova confederação
– os pictos -, ameaçando a fronteira romana enquanto piratas irlandeses
conhecidos como ‘scotti’ atacavam as costas ocidentais, ao mesmo tempo em que
as tribos germânicas dos anglos e dos saxões pilhavam o leste.

Catástrofe para os Bretões

No século V, a Bretanha romana sucumbiu e os anglo-saxões invadiram-na,


estabelecendo-se no leste, no que viria a originar a Inglaterra com seu idioma
germânico. Eles repeliram os grupos nativos britânicos – a quem chamavam de
‘galeses’, cada vez mais para o oeste, nas terras que formariam o País de Gales,
e também na Cornualha.

A Conquista da Bretanha Menor

A partir do oeste, alguns bretões cruzaram o mar até a Armórica, a extremidade


ocidental da Gália, na época em que a Gália passava a ser chamada de França
por conta de seus novos senhores germânicos – os francos. Os imigrantes bretões
eram a um só tempo refugiados das invasões anglo-saxãs e também invasores:
conquista e migração eram as palavras de ordem de então, e os bretões
aproveitaram a ocasião para também se expandirem. Desde então, a ilha da
Bretanha passou a ser chamada de Grã-Bretanha para não ser confundida com a
nova ‘pequena Bretanha’ (Bretanha Menor).

Irlandeses na Bretanha: as origens da Escócia

Os irlandeses também se juntaram ao frenesi militar, atacando seus parentes


celtas da Bretanha para escravizá-los (o mais famoso dos capturados sendo,
claro, o jovem São Patrício). Eles também se estabeleceram na Bretanha,
especialmente na costa Oeste da Escócia, que viria a receber o nome desses
colonizadores em Argyll: a terra dos ‘scotti’ se tornaria ‘Scotia’. Por fim, guerras
com os pictos e outros reinos inferiores levariam à união e à formação do reino
histórico da Escócia, no ano de 843.

A Irlanda se torna a terra dos Santos e dos Sábios

A própria Irlanda se tornaria cristã como resultado do trabalho de São Patrício no


séc. V, e viria a ser um dos maiores centros de santidade e conhecimento na
Europa durante os séculos VII e VIII. Seus clérigos e artistas exerceram uma
profunda influência na Grã-Bretanha (especialmente entre os ingleses) e no
continente.
Os Celtas na Idade Média e depois

 A BRETANHA MENOR, um reino independente no séc. IX, tornou-se um


dos muitos ducados semi-independentes que formavam a França medieval.
Com o crescimento do poder real centralizado no séc. XV, sua
independência minguou, culminando com sua absorção política pela França
em 1532.
 O PAÍS DE GALES permaneceu sendo um principado separado, mas sob
crescente dominação inglesa a partir do séc. X. Em 1485, o galês Henry
Tudor tornou-se Rei da Inglaterra, mas seu filho totalmente anglicizado
Henry VIII uniu politicamente o País de Gales à Inglaterra.
 A ESCÓCIA ficou, grosso modo, dividida entre as Highlands (Terras Altas) -
onde se falava o idioma gaélico (celta irlandês) - e as Lowlands (Terras
Baixas) em que se falava um dialeto germânico semelhante ao inglês. Os
belicosos clãs e chefes tribais das Terras Altas estavam em constante
conflito com seus vizinhos das Terras Baixas, que os tinham como bárbaros
ladrões de gado. Este foi o pretexto para a sua brutal supressão após o seu
(pouco entusiástico) apoio, em 1745, à tentativa do católico Bonnie Prince
Charlie de retomar dos protestantes hanoverianos o trono para a ancestral
casa real escocesa dos Stuart.
 IRLANDA: A partir das incursões vikings em 795, a Irlanda passou a ser
ocupada, total ou parcialmente, por estrangeiros. Aos daneses seguiram-se
os anglo-normandos no séc. XII. Durante o séc. XVI, o jugo imperial inglês
recrudesceu e a Reforma turvou ainda mais as relações. A Inglaterra
protestante manteve a Irlanda Católica sob sujeição, por vezes
incrivelmente brutal, até após a Primeira Grande Guerra.
 MIGRAÇÕES: Todas essas terras assistiram a migrações significativas ou
em massa, especialmente a partir do séc. XVIII: as pessoas fugiam das
condições constantemente precárias e da fome, em busca de empregos
igualmente esquálidos, mas com melhores salários, nas áreas industriais da
Grã-Bretanha, ou em busca das promessas de terras e liberdade no Novo
Mundo e na Oceania. Muitos dos emigrantes, especialmente da Escócia e
na Irlanda, não desejavam deixar suas terras, mas não tinham escolha
diante das expulsões dos senhores das terras que punham seus lucros
acima do bem estar de sua própria gente.

A Redescoberta de uma Herança Celta Comum

O séc. XVIII assistiu ao início do nacionalismo na Irlanda e em outras áreas, e à


redescoberta de uma herança celta comum. A Língüística e o início da
Arqueologia forneceram as bases para uma compreensão mais detalhada das
histórias desses povos, e contribuíram para o crescimento de uma
autoconsciência nacional que se manifestava na política e nas expressões
culturais - em especial na arte e na literatura. Este processo talvez tenha atingido
sua maturidade com o surgimento de um estado irlandês independente em 1921.
Atualmente, nem todos aceitam esta visão da história celta, e hoje é possível
redigir uma história alternativa da ‘Celticidade’.

Uma História Alternativa da 'Celticidade'


A idéia de que é possível escrever uma história comum dos celtas (ao invés da
história individual das nações irlandesa, galesa, escocesa, etc) é bastante recente.

Por volta de 1700, literalmente ninguém na Grã-Bretanha ou na Irlanda via a si


mesmo – ou a seus ancestrais – como ‘celtas’. Até então, desde o período do
Império Romano, o termo ‘celta’ referia-se somente aos antigos gauleses da
França e os povos continentais aparentados.

O conceito de que os escoceses, os galeses, os irlandeses e outros grupos nas


Ilhas Britânicas podem ser chamados de ‘celtas’ evoluiu durante os séculos XVIII e
XIX. Seria isso de fato a redescoberta de um passado esquecido? Ou
simplesmente uma criação moderna, imposta ao passado?

Escrevendo a História: suposições e motivações

As questões envolvendo povos, etnias (identidades


culturais, raciais e nacionais) e migrações são muito
mais complexas e problemáticas do que as
versões‘pasteurizadas’ da História podem sugerir.

Também é uma regra amplamente aceita que as


pessoas que recontam a História sempre têm algo a
provar a alguém ou, no mínimo, possuem um conjunto
de idéias pressupostas que os levam a apresentar as
informações de uma forma e não de outra.

A História não é “a verdade”, mas a interpretação do


escritor sobre o que ele considera uma evidência
importante.

Ao lado, um soldado das Highlands, por volta de 1900,


geralmente visto como o herdeiro de uma tradição de guerreiros
celtas.

Os Celtas: descoberta ou invenção?


Na base histórica de todo o tema estão os povos da Idade do Ferro européia
considerados como os primeiros celtas. A questão que alguns arqueólogos
atualmente exploram é: o uso moderno do termo ‘celta’ realmente serve para
celebrar a antigüidade de um povo? Ou na verdade obscurece as identidades de
uma família de povos brilhantes mas bastante diferentes, que se surpreenderiam
se descobrissem que são chamados de ‘celtas’?

O paradoxo central é que, até onde se sabe, na Antigüidade os únicos povos


chamados de ‘celtas’ (por eles mesmos ou por seus vizinhos) viviam somente no
continente europeu: os povos das Ilhas Britânicas eram vistos como semelhantes
aos gauleses celtas do que hoje é a França, mas eram seguramente considerados
como etnicamente diferentes pelos romanos – e talvez pelos próprios gauleses.

Ainda assim, atualmente os únicos povos chamados de ‘celtas’ são os


descendentes desses mesmos povos insulares que no passado eram diferentes
dos celtas. Como esta mudança veio a acontecer?

 Em tempos modernos, pesquisadores descobriram os elos entre esses


antigos celtas continentais e os antigos bretões e irlandeses;
 Esses pesquisadores já conheciam os elos que uniam os antigos bretões e
irlandeses por um lado, e os modernos galeses, irlandeses, escoceses, etc
por outro;
 Eles então uniram todos esses elos num todo, ao qual deram o nome de
‘celta’.

Á dir., como William Stukeley, no século XVIII, imaginava um


Druida. Além de auxiliar o início da mania por coisas druícias,
Stukeley foi o primeiro a descrever os antigos monumentos do
interior da Grã-Bretanha como 'celtas' .

Visões Diferentes dos Celtas

A visão convencional da 'Celticidade' é que, graças


à migração a partir de uma terra de origem na Europa
Central da Idade do Ferro, grande parte da Europa
Continental e das Ilhas Britânicas compartilhava de
um mesmo ‘pacote’ lingüístico e cultural celta, e que
são as semelhanças que importam mais. Todos esses
povos falavam línguas aparentadas: eram todos não-
letrados, não urbanizados e compartilhavam várias
características de organização social e crenças
religiosas (uma classe guerreira, o sacerdócio
druídico), possuíam uma arte similar, etc.

A visão alternativa reza que as semelhanças


existem, mas sua extensão é mais aparente do que real; e que são as identidades
locais – portanto, as diferenças ente esses povos – que são importantes. O
conceito de um ‘pacote cultural celta’ universal é visto como perigosamente
enganoso.

Por exemplo: nem todos os povos chamados celtas usavam arte ‘celta’ (estilo La
Tène). Os celtiberos, por exemplo, não usavam esse estilo. Da mesma forma, a
escassez de evidências sobre os druidas corrobora com a visão de que seu culto
deve ter se restrito às Ilhas Britânicas e grande parte da Gália, e provavelmente
era desconhecido pela maioria dos celtas continentais da Idade do Ferro.

As sociedades descritas como ‘célticas’ também parecem apresentar uma


variedade muito maior em sua organização política e social em diferentes
momentos e áreas do que geralmente se supõe. A região de Wessex no século V
a.C., por exemplo, pode não ter tido uma nobreza bem definida, nem uma classe
de guerreiros; do mesmo modo, nos tempos de César a tribo gaulesa dos Aedui
usava a escrita, erguia cidades e possuía um elaborado sistema de governo
constitucional.

Idéias Conflitantes e a questão das motivações

Não é de surpreender que, quando questionamos as suposições sobre


identidades étnicas e motivações políticas, os nervos aflorem.

Essa nova avaliação do status quo dos celtas na história vem sugerindo a alguns
que todo o edifício não passa de um castelo de cartas feito a partir dos desejos,
nacionalismos românticos e fantasias New Age, apoiado em fundamentos
academicamente desacreditados.

Como resposta, outros vêm a crítica à visão tradicional da história celta como
sendo motivada por forças sinistras, especialmente o nacionalismo inglês e o neo-
colonialismo (muitos dos agentes mais importantes são de fato ingleses, mas de
longe são maioria)
Estes, contudo, são pontos de vista extremos, opostos. Minha opinião pessoal é
de que a situação é muito mais complexa, interessante e positiva do que qualquer
dessas interpretações permite supor.

Daqui para onde?

Se por um lado eu realmente creio que muito do que é comumente aceito como
história celta não passa de mito, por outro vejo isso como um aspecto normal da
construção de uma identidade étnica - os ingleses são especialmente hábeis na
criação de mitos nacionais e tradições ‘ancestrais’!

Mesmo assim, Isso não significa que a idéia de uma identidade celta moderna seja
muito mais ‘fraudulenta’ ou falsa do que qualquer outra – como a inglesa, a
francesa, a alemã ou até mesmo a ‘britânica’ no moderno senso político. Esta
última não é mais antiga do que a moderna identidade ‘celta’: ambas foram
criadas no século XVIII.

Enquanto estivermos conscientes desses processos contemporâneos, eles não


nos impedem de interpretar o passado de forma crítica. No momento, a percepção
de que a imagem comum dos celtas pode ter tanto atrapalhado quanto auxiliado
nossa compreensão do passado nos leva a uma estimulante exploração das
diferenças dos povos da Idade do Ferro, e do cada vez mais amplo abismo que
separa o mundo deles de nosso mundo moderno.

Nossos ancestrais se pareciam conosco?

Há outro importante modo pelo qual a ênfase no perigo de se supor muito


facilmente que os celtas de hoje e do passado sejam idênticos pode nos ajudar a
compreender com mais clareza os povos da Idade do Ferro.

Como destaca o arqueólogo J.D.Hill, se supormos que os povos da Idade do Ferro


são nossos ancestrais culturais próximos, nós automaticamente os prejulgamos.
Se nós somos celtas, e eles eram celtas, é então muito fácil crer que eles se
enquadrariam em nossos conceitos do que é (ou era) ser celta. Eles devem se
encaixar no “pacote cultural’ celta; contudo, esse pacote é em grande parte uma
criação recente, compilado a partir de fragmentos de diferentes eras e lugares.

Quando nos damos conta disso, surgem novas possibilidades: os antigos bretões,
irlandeses e até mesmo gauleses podem ter sido muito diferentes de nós e, se
fôssemos capazes de encontra-los, eles nos pareceriam mais estranhos do que
imaginamos. O desenvolvimento dessas novas percepções nos trazem uma gama
muito mais vasta de instrumentos para compreendermos o passado e de
interpretações a explorar.

A estátua do Antigo herói Cu Chulainn no edifício dos Correios


em Dublin,comemorando a Revolta Irlandesa na Páscoa de
1916.Nele, a continuidade da antiga e da moderna Irlanda é
fortemente proclamada.

Uma questão de identidades

É provável que os primeiros habitantes da Europa


Continental
E das Ilhas Britânicas possuíssem uma hierarquia de
identidades, assim como nós hoje. Vivendo
atualmente nas East Midlands da Inglaterra, sou um
londrino por adoção, um sulista, um inglês, um
britânico e um europeu; a identidade que eu escolho
enfatizar depende de onde eu esteja e a quem eu me
dirija!
Desconfio que, antes da chegada dos romanos, as pessoas vivendo na Grã-
Bretanha ou na Irlanda identificassem sua primeira lealdade à sua família e ao clã
local, indo a seguir para a federação tribal, ou reino local. Ao menos até os
romanos chegarem e transformarem seu mundo para sempre, questiono até que
ponto essas pessoas se viam como britânicas ou irlandesas.

Não há evidências que indiquem que eles percebessem uma identidade comum
entre eles e os gauleses, e certamente não creio que eles se chamassem de
celtas. Pode nos ser útil hoje identifica-los como ‘celtas’ no sentido mais amplo de
idiomas e artes semelhantes, mas este nível talvez não seja o mais útil quando
tentamos compreender o passado. É muito vago, como ‘germânico’, ‘latino’, ou
mesmo ‘europeu’.

Creio que é uma tolice rotular essas novas perspectivas como uma tentativa
“imperialista inglesa’ para ‘dividir e governar’. Seguramente não é um ataque às
identidades de, digamos, irlandeses, escoceses ou galeses, nem mesmo o desejo
que muitos têm de expressar um sentimento de identidade quando dizem “vivo
nas Ilhas Britânicas, mas certamente não sou inglês!”

Ao contrário, essas perspectivas nos tornam mais cuidadosos quanto ao uso – e


freqüente mal uso – do que sabemos, ou cremos saber, sobre as culturas do
passado, cujas ‘vozes’, nas fragmentárias evidências históricas, podem ser
facilmente afogadas quando perseguimos nossos próprios objetivos políticos ou
emocionais sem critério.

As raízes desta nova abordagem estão, creio eu, na ênfase pós-colonial no


multiculturalismo, e na celebração das diferenças entre as culturas. Isto nos
possibilita enxergar os povos da Idade do Ferro britânica, por exemplo, não como
celtas genéricos, mas como um mosaico de sociedades distintas, cada qual com
suas próprias tradições e histórias.

© Simon James - © tradução: Claudio Quintino, 2007

Quem é o Dr. Simon James?


Dr. Simon James por ele mesmo

Sou um inglês do sul, e toda minha família vem de Londres, aonde chegaram
oriundos de diversas partes das Ilhas Britânicas e do Noroeste europeu, até onde
sei.

Após cursar arqueologia no London Institute of Archaeology (atualmente parte da


University College London), permaneci por lá para meu doutorado, sobre as armas
de romanos e de outros povos encopntrados em Dura-Europos, na Síria.
Após isso, trabalhei como ilustrador arqueológico especializado em desenhos de
reconstrução, o que acabou por me levar, em 1985, ao Museu Britânico para
ilustrar um livro sobre o desenvolvimento da arqueologia britânica desde 1945.
Tendo sido transferido para o Serviço Educacional do Museu Britânico, onde eu
era o responsável pela apresentação da Pré-História tardia e do período romano a
visitantes de todas as idades, permaneci em Bloomsbury até outubro de 1996,
quando mudei-me para Durham, à Companhia Especial Leverhume para o estudo
do exército romano no Oriente.

Desde Janeiro de 2000 tenho atuado como lente de Arqueologia na School of


Archaeological Studies da Universidade de Leicester.

Tenho participado de diversas excavações na GB e também na França, na


Alemanha e na Itália. Nos últimos anos, também escrevi diversos livros sobre
culturas do passado, para crianças e adultos, e continuo envolvido em
documentários televisivos como consultor de reoteiros e ocasionalmente como
entrevistado.

Para os incuravelmente curiosos, eis uma foto…

Fonte: http://www.le.ac.uk/ar/stj/celtindex.html

Simon James por Claudio Quintino Crow...

O Dr. James é, sem dúvida, um dos mais importantes nomes dos estudos celtas
da atualidade – não só por sua erudição e clareza de expressão, mas também – e
principalmente – por mostrar-se sempre aberto a teses controversas. Afinal, são
justamente essas visões diferentes que levam a um debate mais aprofundado do
tema ‘cultura celta’, tirando-nos do lugar comum que muitos pesquisadores
teimam em preservar e propondo alternativas válidas e bem informadas para
quem deseja conhecer a fundo as diversas facetas da cultura celta.

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