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Uma das propostas deste site é apresentar informações sérias e confiáveis acerca
dos povos celtas, sua cultura, sua história e espiritualidade. Para isso, apesar de
ser um pesquisador diletante e não ‘profissional’, dedico-me a pesquisas
constantes, envolvendo muita leitura e contato com gente importante do universo
celta.
Esses povos também atraem a atenção em nossos dias por outro motivo: a
palavra ‘celta’ é hoje usada para definir povos cujas línguas modernas ou
ancestrais estejam relacionadas com a dos celtas da Antigüidade. A maioria das
pessoas que atualmente falam um idioma celta estão na Grã-Bretanha e na
Irlanda, e estes são geralmente descritos como celtas também.
Uma vez que ‘sabemos’ que esses povos eram celtas, temos a tendência a
presumir que todos eles possuíam uma organização social mais ou menos
padronizada. Contudo, ao escrever meu primeiro livro sobre os celtas, eu me
tornei cada vez mais consciente de que as diferenças entre os povos da
Antigüidade atualmente chamados de celtas eram no mínimo tão profundas e
importantes quanto os elementos culturais ‘celtas’ que lhes eram comuns. Aquilo
que é tido e havido como típico do “pacote cultural” celta – guerreiros, druidas, arte
abstrata de linhas entrelaçadas, etc. etc. – pode muito bem não passar de uma
criação moderna, gerada a partir de fontes espalhadas por amplos arcos de
tempo e espaço.
À esquerda: imagens de lótus gregas, no alto, inspiraram a arte celta primitiva e foram imitados e
desenvolvidos no estilo 'La Tène', usado especialmente em objetos metalúrgicos.
Desafiando as Suposições
Um exame mais aprofundado revela que algumas das suposições mais comuns e
básicas sobre a história celta apresentam sérias dificuldades:
Por volta de 800 a 600 a.e.a., nas terras ao norte dos Alpes, surgiram povos que
seus letrados vizinhos gregos do sul viriam a chamar de keltoi.
Estes primeiros celtas registrados formaram principados na área ao norte dos
Alpes, e estabeleceram comércio com os gregos e os etruscos. Em torno de 500
a.e.a. esses principados foram violentamente destruídos.
No século seguinte, numa faixa territorial que se espalhava pela Europa desde o
leste da França até a Alemanha, a Áustria e a Boêmia, novos grupos surgiram,
caracterizados por, entre outras coisas, sepulturas de guerreiros e um novo estilo
de arte. Os arqueólogos dão a essa cultura o nome de La Tène – os vestígios
físicos de grupos que, por volta de 400 a.e.a., subitamente invadiram a Itália e
começaram a se estabelecer no Vale do Rio Pó.
Á esq., um jarro de vinho de Dürrnberg, Áustria, séc. V a.C. - um exemplo antigo de arte 'Celta'
(conhecido pelos arqueólogos como estilo 'La Tène', em razão do local onde foi descoberto).
Esses invasores são os antigos celtas por excelência, também conhecidos como
gauleses. Se (para os romanos) antes os celtas eram um distante objeto de
pesquisa, agora eles repentinamente se haviam tornado a mais temível ameaça
bárbara.
Por volta de 390 a.e.a., a tribo gálica dos senones chegou a saquear Roma, mas
foram depois repelidos e contidos no Vale do Pó, que passaria a se chamar Gallia
Cisalpina, a ‘Gália deste lado dos Alpes’.
Á dir, as primeiras
migrações celtas
Os Gálatas da
Turquia
Grupos de
migrantes celtas
invadiram os
Bálcãs e, em 279
a.e.a., atacaram
Delfos, o maior
templo da Grécia.
Apesar de serem
repelidos e de
sofrerem terríveis
baixas, alguns
chegaram à Anatólia (moderna Turquia) e criaram uma espécie de reino-
saqueador ao redor da moderna Ancara. Conhecidos pelos gregos por um nome
equivalente ao romano “gauleses”, esses gálatas deram seu nome às suas terras,
Galácia, de onde surgem os Gálatas do Novo Testamento.
A clássica escultura conhecida como "o Gaulês moribundo" na verdade retrata um gálata da
Anatólia.
Os Celtas no Ocidente
Há muito se afirma que ondas de celtas também se deslocaram rumo ao
oeste e o noroeste a partir de sua terra natal na Europa Central, de forma
semelhante às migrações mediterrâneas historicamente registradas –
ainda que não houvessem observadores letrados nas áreas para registrar
tais invasões. Contudo, na Península Ibérica (Espanha/Portugal), os
romanos identificaram um povo chamado celtiberos, e há traços de
dialetos celtas em várias partes da península. A explicação para isso
seriam migrações celtas anteriores e não registradas.
Detalhe de uma inscrição em pedra de Botoritta, na Espanha. Usando alfabeto ibérico, a palavras
aparentemente são de um dialeto celta.
Assim, os antigos bretões e irlandeses passaram a ser vistos como tão celtas
quanto os gauleses e povos aparentados do continente, da Espanha e da Turquia.
Pequena cabeça de bronze retratando um homem com bigode - Welwyn, Inglaterra. Idade do Ferro
Tardia
A maior parte das áreas total ou parcialmente celtas, como as ‘Três Gálias’
(aproximadamente a França e a área do Reno) e a Hispania (Espanha e Portugal)
se tornaram prósperas províncias romanas, mas a língua e o estilo de vida celtas
não sobreviveram ao processo de ‘romanização’. Essas áreas viriam a falar
dialetos latinos, ancestrais das línguas atuais romance (espanhol, francês,
português, catalão, etc). Roma extinguiu a ‘celticidade’ no continente europeu.
O intercâmbio cultural não ocorria em sentido único. O triskle celta acima é, na realidade, um fecho
de cinto de espada pertencente a um legionário romano, e foi encontrado em Dura-Europos no rio
Eufrates, na Síria. séc. III d.C.
Pictos e Escotos
Com o início da queda do Império Romano nos séculos III e IV, os povos celtas
ainda livres partiram para a ofensiva. Na Caledônia, surge uma nova confederação
– os pictos -, ameaçando a fronteira romana enquanto piratas irlandeses
conhecidos como ‘scotti’ atacavam as costas ocidentais, ao mesmo tempo em que
as tribos germânicas dos anglos e dos saxões pilhavam o leste.
Por exemplo: nem todos os povos chamados celtas usavam arte ‘celta’ (estilo La
Tène). Os celtiberos, por exemplo, não usavam esse estilo. Da mesma forma, a
escassez de evidências sobre os druidas corrobora com a visão de que seu culto
deve ter se restrito às Ilhas Britânicas e grande parte da Gália, e provavelmente
era desconhecido pela maioria dos celtas continentais da Idade do Ferro.
Essa nova avaliação do status quo dos celtas na história vem sugerindo a alguns
que todo o edifício não passa de um castelo de cartas feito a partir dos desejos,
nacionalismos românticos e fantasias New Age, apoiado em fundamentos
academicamente desacreditados.
Como resposta, outros vêm a crítica à visão tradicional da história celta como
sendo motivada por forças sinistras, especialmente o nacionalismo inglês e o neo-
colonialismo (muitos dos agentes mais importantes são de fato ingleses, mas de
longe são maioria)
Estes, contudo, são pontos de vista extremos, opostos. Minha opinião pessoal é
de que a situação é muito mais complexa, interessante e positiva do que qualquer
dessas interpretações permite supor.
Se por um lado eu realmente creio que muito do que é comumente aceito como
história celta não passa de mito, por outro vejo isso como um aspecto normal da
construção de uma identidade étnica - os ingleses são especialmente hábeis na
criação de mitos nacionais e tradições ‘ancestrais’!
Mesmo assim, Isso não significa que a idéia de uma identidade celta moderna seja
muito mais ‘fraudulenta’ ou falsa do que qualquer outra – como a inglesa, a
francesa, a alemã ou até mesmo a ‘britânica’ no moderno senso político. Esta
última não é mais antiga do que a moderna identidade ‘celta’: ambas foram
criadas no século XVIII.
Quando nos damos conta disso, surgem novas possibilidades: os antigos bretões,
irlandeses e até mesmo gauleses podem ter sido muito diferentes de nós e, se
fôssemos capazes de encontra-los, eles nos pareceriam mais estranhos do que
imaginamos. O desenvolvimento dessas novas percepções nos trazem uma gama
muito mais vasta de instrumentos para compreendermos o passado e de
interpretações a explorar.
Não há evidências que indiquem que eles percebessem uma identidade comum
entre eles e os gauleses, e certamente não creio que eles se chamassem de
celtas. Pode nos ser útil hoje identifica-los como ‘celtas’ no sentido mais amplo de
idiomas e artes semelhantes, mas este nível talvez não seja o mais útil quando
tentamos compreender o passado. É muito vago, como ‘germânico’, ‘latino’, ou
mesmo ‘europeu’.
Creio que é uma tolice rotular essas novas perspectivas como uma tentativa
“imperialista inglesa’ para ‘dividir e governar’. Seguramente não é um ataque às
identidades de, digamos, irlandeses, escoceses ou galeses, nem mesmo o desejo
que muitos têm de expressar um sentimento de identidade quando dizem “vivo
nas Ilhas Britânicas, mas certamente não sou inglês!”
Sou um inglês do sul, e toda minha família vem de Londres, aonde chegaram
oriundos de diversas partes das Ilhas Britânicas e do Noroeste europeu, até onde
sei.
Fonte: http://www.le.ac.uk/ar/stj/celtindex.html
O Dr. James é, sem dúvida, um dos mais importantes nomes dos estudos celtas
da atualidade – não só por sua erudição e clareza de expressão, mas também – e
principalmente – por mostrar-se sempre aberto a teses controversas. Afinal, são
justamente essas visões diferentes que levam a um debate mais aprofundado do
tema ‘cultura celta’, tirando-nos do lugar comum que muitos pesquisadores
teimam em preservar e propondo alternativas válidas e bem informadas para
quem deseja conhecer a fundo as diversas facetas da cultura celta.