Você está na página 1de 196

EDIÇÃO BIBLIOTECA

CELTAS
GUERREIROS, ARTISTAS E DRUIDAS
NotíciasFlix
001-38252174

SHUTTERSTOCK
«TUDO O QUE DIZ RESPEITO AOS CELTAS
ESTÁ ENVOLTO NUMA ATMOSFERA
IRREAL E IRRACIONAL, DE ACORDO COM A
CONSCIÊNCIA ANTI-HISTÓRICA DESTE POVO.
OS CELTAS ENTRARAM NA HISTÓRIA PELA
PORTA DA LENDA, NUMA ALTURA EM QUE A
GRÉCIA E ROMA JÁ TINHAM UMA HISTÓRIA» .

JEAN MARKALE

4
entre mitos e verdades

Q
uando ouvimos falar deles, é geralmente sobre algum aspeto relacionado
com a magia, os rituais ou a sua simbologia. Raramente falamos deles do
ponto de vista da realidade histórica, mas sim dos estereótipos forjados pelo
imaginário ocidental em que se misturam Astérix, Cernunnos e Galatea, filha de um
rei celta e amante de Hércules. Mas os celtas pouco têm a ver com esses tipos altos e
louros em que todos pensamos. Na verdade, eram etnicamente muito pouco homo-
géneos. Também eram morenos e baixos. E foram eles que forjaram uma civilização
que dominou a maior parte do Velho Continente durante o primeiro milénio a.C. O
que é que este povo tinha de tão especial para que os arrogantes romanos os conside-
rassem «bárbaros escolhidos» e pensassem que os seus druidas eram depositários de
conhecimentos pitagóricos? Neste especial SUPER INTERESSANTE HISTÓRIA, ficará
a conhecer a sua história íntima, a sua cultura e tradições, pela mão de grandes espe-
cialistas. Boa leitura.

CARMEN SABALETE
Diretora
GETTY

Caldeirão de Gundestrup, recipiente ritual feito em prata (150-1 a.C.).

5
CONT
QUEM ERAM.................................. 8 NA HISPÂNIA............................... 58

LÍNGUAS...................................... 16 ASSENTAMENTOS...................... 68

O SANGUE DOS CELTAS............ 26 CASTROS.................................... 76

HALLSTATT.................................. 34 VIDA QUOTIDIANA...................... 84

SINGULARIDADES...................... 44
AGRICULTORES E
LA TÈNE....................................... 46 CRIADORES DE GADO............... 86
EÚDO
MOEDA........................................ 92 PERSONAGENS....................... 148

FERRO...................................... 102 ENDOVÉLICO........................... 160

GUERRA.................................... 110 NUMÂNCIA............................... 168

ARTE......................................... 120 RELIGIÃO.................................. 174

CALENDÁRIO........................... 130 CELTISMO EM PORTUGAL...... 184

ASTRONOMIA............................ 138 BIBLIOGRAFIA......................... 192


O conceito de «celta»
é complexo, pois inclui
uma multiplicidade de
elementos que diferem
consoante as regiões e
ao longo do tempo.

Quem eram os

8
O
s Celtas eram povos que habi-
tavam a Europa Ocidental na
Antiguidade, desde a Irlanda
e a Galiza até à longínqua Ga-
lácia, na atual Turquia, e desde a Escócia
até ao Norte de Itália e grande parte da
Península Ibérica. Constituem, por isso,
uma das raízes étnicas e culturais da Eu-
ropa, cujas tradições conservaram ritos e
lendas e até nomes de lugares, como o de
Céltigos, nalgumas regiões da Galiza.
A popularidade dos celtas é tal que são uti-
lizados como marketing para muitos pro-
dutos diferentes, como o tabaco, o leite, os
clubes desportivos e os grupos musicais.
Este interesse tem origem na «celtoma-
nia» romântica dos séculos XVIII e XIX.
No entanto, «celta» é um conceito com-
plexo, pois inclui a língua, a cultura ma-
terial — como as habitações, os trajes, os
instrumentos e as armas —, a economia e
a sociedade, a estrutura política, a religião
e a arte, refletida na sua iconografia e na
literatura imaginativa. Estes elementos
oferecem diferenças regionais e mudanças
ao longo do tempo num longo processo de
etnogénese, pelo que o seu estudo requer
uma combinação de dados arqueológicos,
linguísticos e antropológicos.

UM PROBLEMA COMPLEXO
O nosso conhecimento dos Celtas provém
dos historiadores gregos e romanos, cuja
visão sobreviveu até ao século XX. Uma
outra via é a língua e a literatura celtas,
estudadas desde o século XVIII, conserva-
das na Irlanda e noutras partes da Europa
Ocidental, e completadas pela toponímia
e pelos achados epigráficos. No entanto, a
arqueologia do século XIX identificou as

as?
culturas centro-europeias de Hallstatt e
La Tène como celtas, devido à semelhan-
ça das necrópoles centro-europeias com
as do Vale do Pó, atribuídas às invasões
celtas narradas pelos autores clássicos,
o que levou à ideia de que os celtas eram
originários da Europa Central. Este facto
gerou confusão, uma vez que os celtas da
Hispânia, documentados pela linguística
SHUTTERSTOCK

e pelos autores gregos e romanos, são de


uma cultura diferente dos de Hallstatt e La
Tène, o que tornou necessário explicar a

9
sua origem de uma forma diferente. Isso foi e os construtores dos megálitos. O interesse
conseguido nos últimos anos com a genética crescente por eles deu origem a uma «cel-
e o ADN, que esclareceram a origem e a anti- tomania» popular e atrativa, cultivada por
guidade dos Celtas e a sua relação com outros visões românticas e nacionalistas na Irlanda,
povos indo-europeus. Escócia, Bretanha e Galiza, algumas das quais
Os gregos e os romanos chamavam Keltoi, ainda hoje vivas, com reações contrárias que
Celtae ou Galatae aos povos bárbaros que chegaram a negar a existência dos celtas, um
habitavam a Europa Ocidental e que, na sua povo tão real como os gregos, os romanos ou
expansão durante os séculos V a III a. C., inva- os alemães, como o confirmam estudos ar-
diram a Itália e a Grécia e chegaram à Turquia. queológicos, linguísticos e genéticos recentes.
Os fócios foram os primeiros gregos a entrar «Celta» é um conceito étnico, tal como o en-
em contacto com eles na Hispânia, pois há tendiam os gregos e os romanos, que eram
relatos já no século VI a. C. na Ora maritima bons conhecedores dos povos e os identifica-
de Avieno (I, 185 f., 485 f.) e no século V a. vam pela sua língua, cultura e costumes. Este
C. Heródoto (II, 33; IV, 49), o «pai da histó- facto obriga a compreender que um grupo ét-
ria», afirma que viviam na nascente do Danú- nico é um sistema social constituído por cul-
bio e para além das Colunas de Hércules. São tura material e tecnologia, língua, caraterís-
também mencionados por Éforo, Xenofonte, ticas genéticas e modos de vida, organização
Platão, Aristóteles, Políbio, Posidónio, César, social e religião, elementos que diferenciam
Estrabão, Diodoro da Sicília, Tito Lívio, Trogo um povo de outro. Os celtas moldaram a sua
Pompeu, Plínio, o Velho, Tácito, Avieno e ou- personalidade num longo processo de evolu-
tros autores. ção nos vastos territórios que habitavam. A
A visão greco-romana de um povo bárbaro foi sua língua, os seus costumes e as suas ideias
transmitida aos humanistas do Renascimento tinham uma origem comum, que os diferen-
e do Iluminismo e aos estudos do Romantis- ciava dos outros povos, mas com variações de
mo. Em 1582, George Buchanan argumentou, um lugar para outro, uma vez que nenhum
na sua Rerum Scoticarum Historia, que os povo é homogéneo, fechado e estável, como
bretões e os escoceses descendiam dos gau- acreditavam os nacionalistas do século XIX
leses e, em 1707, Eduard Lhuyd, na sua Ar- por razões políticas.
chaeologia Britannica, considerou os celtas Embora os arqueólogos, desde o século XIX,
como descendentes de Jafé, um filho de Noé, pensassem que os celtas vinham da Euro-
e, portanto, os primeiros colonos da Europa pa Central, estes já viviam na Irlanda e na

ASC

À esquerda, escultura de Heródoto na antiga


Ágora de Atenas. Em cima, Rerum Scoticarum
Historia, de George Buchanan.
SHUTTERSTOCK
Vaso
campaniforme do
final do III milénio
a. C., encontrado
no enterramento-1
de Torrente de
Sant Olaguer
(Sabadell). Museo
de Historia de
Sabadell.

ALBUM
Península Ibérica na Idade do Bronze, pelo portadores dos haplogrupos R1a e R1b do cro-
que a sua origem remonta à Cultura Campa- mossoma Y, que constituem a base genética da
niforme do III milénio a. C. A chave é conhe- população europeia. O haplogrupo R1a, muito
cer o processo formativo dos celtas para saber difundido na Europa oriental, corresponde
quando se separaram do tronco indo-euro- aos povos balto-eslavos e daco-trácios, en-
peu, informação que tem sido esclarecida por quanto o R1b se difundiu na Europa nórdica
estudos genéticos e linguísticos recentes. Tra- através da cultura da cerâmica cordada, e, a
ta-se de um problema complexo, uma vez que partir daí, na cultura campaniforme da Euro-
estão em jogo fatores demográficos, sociais e pa Ocidental.
ideológicos, em contraste com as velhas ideias Por volta de 2500 a. C., a Cultura Campani-
de «invasão». forme tinha-se espalhado da Europa Central
para o Atlântico e para a Península Ibérica.
DUAS GRANDES FAMÍLIAS Estes povos podem ser considerados «proto-
Na Europa, a expansão dos povos indo-eu- -celtas», pois estiveram na origem dos povos
ropeus moldou a sua história até aos dias de celtas do I milénio a. C., com a sua cultura,
hoje. As análises de ADN indicam que os pas- língua e mitologia, num processo formativo
tores-guerreiros indo-europeus da cultura semelhante ao dos gregos, alemães, latinos e
Yamna ou Kurgan, que se desenvolveu nas es- outros povos indo-europeus. No que respei-
tepes da Ucrânia a partir de 4500 a. C., eram ta às suas caraterísticas, podem distinguir-se

A visão greco-romana de povo


bárbaro passou para os humanistas do
Renascimento e do Iluminismo para os
estudos do romantismo

11
ASC

Em cima, um túmulo numa floresta a sudeste de Grafrath


(Baviera); datado entre 1600-1300 a. C. À direita,
Vercingetorix atira as suas armas aos pés de Júlio César
(1899), de Lionel Royer, representando a rendição do líder
gaulês após a batalha de Alésia (52 a. C.).

duas grandes famílias: os celtas continentais


e os celtas atlânticos, que incluem todos os
povos celtas mencionados pelos historiado-
res gregos e romanos. Eram povos guerrei-
ros, liderados por reis e chefes carismáticos,
como atestam as suas armas, os seus trajes
de festa e os seus cânticos épicos, com heróis
como o irlandês Cuchulain, comparável ao
grego Aquiles.

CELTAS CONTINENTAIS
Os Celtas continentais, espalhados desde a
França até à Boémia, desenvolveram durante
a Idade do Bronze, no II milénio a. C., a Cul-
tura dos Túmulos, devido ao enterramento
em câmaras cobertas por estruturas tumu-
lares. Seguiu-se a Cultura dos Campos de
Urnas (1300-800 a. C.) — em que se genera-
lizou o ritual de cremação do cadáver — que
se estendeu da Hungria e dos Balcãs ao sul
de França e ao norte de Itália, onde esteve na
origem dos lepônticos e dos lígures, e chegou
ao nordeste da Península Ibérica, de que pro- leste de França, com chefes equestres aristo-
vêm os Celtiberos. cráticos que, no século VI a. C., — devido às
Por volta de 800 a. C., as influências trácio- influências do Mediterrâneo — dão origem a
-citas provenientes das estepes e a adoção do pequenos reinos, cujos reis eram sepultados
ferro caraterizam a cultura Hallstatt (800- em grandes túmulos, até que se deu uma crise
450 a. C.). Esta estendeu-se da Boémia até ao generalizada em que se desmoronaram as mo-

A cultura Hallstatt espalhou-se


da Boémia para o leste
de França entre 800 e 450 a. C.

12
ASC

narquias da Grécia, Roma, Etrúria e Tartessos, cimento com a romanização. No final do sé-
que desapareceram da história. culo V a. C., a pressão demográfica levou a
Esta crise deu origem à cultura de La Tène grandes movimentos migratórios, conheci-
(450-50 a. C.), caraterizada pela sua estru- dos como «invasões celtas», que saquearam
tura clientelar guerreira e pela utilização Roma em 387 a. C. e a Grécia em 279 a. C.,
generalizada do ferro em armas e utensílios, após o que se estabeleceram na Galácia e no
semelhantes aos utilizados até à mecanização norte de Itália, que se tornou a Gália Cisal-
do campo, com um grande desenvolvimento pina, com túmulos e sepulturas semelhantes
do artesanato em carpintaria, cerâmica, cou- aos da Europa Central.
ro, bronze, vidro, etc. La Tène representa a No século II a .C., as migrações diminuíram e
última fase da cultura celta, que corresponde desenvolveram-se a população, a agricultura,
aos gauleses históricos até ao seu desapare- o artesanato e o comércio com o Mediterrâ-

13
Costa atlântica
norte em Cedeira
(Galiza). Segundo
a tradição,
os fortes
construídos
nesta zona na
Idade do Ferro
eram habitados
SHUTTERSTOCK

pela tribo celta


dos Lapatiancos.

neo. Este desenvolvimento facilitou o apa- da Irlanda e os bretões da Grã-Bretanha, que


recimento de centros urbanos, conhecidos se mudaram para a Bretanha na queda do Im-
como oppida, desde os Cárpatos até ao Atlân- pério Romano e cujas línguas ainda sobrevi-
tico. Eram povoados fortificados de até 600 vem. A eles podem ser associados os «proto-
ha, com urbanismo irregular, com casas com -celtas» da Península Ibérica do período cam-
as suas hortas, que constituíam os centros de paniforme, provavelmente relacionados com
produção económica, comercial, adminis- os lusitanos, embora estes pareçam derivar de
trativa e artesanal de cada tribo, com a sua um ramo celto-itálico arcaico cuja chegada é
própria moeda e os seus próprios santuários ainda difícil de explicar.
e deuses. Estes são os celtas conhecidos pelo Os celtas atlânticos eram de cultura predo-
sábio Poseidonios (c. 135 a. C.-51 a. C.) e por minantemente pastoril e desenvolveram con-
Júlio César na sua Guerra das Gálias (58-51 a. tactos marítimos até ao I milénio a. C., com
C.), após o que os celtas continentais desapa- trocas de objetos de ouro e bronze, que por
receram, absorvidos pela romanização. vezes depositavam ritualmente. O seu carácter
guerreiro é evidenciado por armas de bronze e
CELTAS ATLÂNTICOS objetos de banquete para pactos de hospitali-
Em contraste com os celtas continentais, os dade que facilitavam as relações nessa socieda-
celtas atlânticos incluem os celtas goidélicos de. Os textos irlandeses relatam a formação de

Os celtas foram o maior inimigo de Roma


em toda a sua história e o único povo a
conquistá-la em 387 a. C.

14
pequenos reinos dedicados à criação de gado manteve na Escócia e na Irlanda até à chegada
e à invasão dos seus vizinhos. A Irlanda, cris- dos Vikings, no século IX d. C.
tianizada no século V por São Patrício, desen- Os celtas deixaram uma reputação de guerrei-
volveu uma rica arte derivada da de La Tène e ros terríveis, mas também uma arte atrativa,
uma imaginativa literatura épica e mítica, até com uma forte personalidade pela sua beleza
à conquista da ilha pelos Vikings a partir do sé- abstrata, bem como a sua religião e a sabe-
culo IX d. C. Também possuíam grandes san- doria dos druidas. A sua literatura, criada e
tuários astronómicos nas ilhas britânicas des- transmitida oralmente pelos seus bardos, deu
de o Megalitismo, como Stonehenge, que ser- origem a todas as literaturas da Europa Oci-
viam para fixar o calendário e que evidenciam dental, incluindo as de Espanha, tal como os
os conhecimentos astronómicos dos druidas mitos e ritos celtas foram preservados no fol-
celtas, admirados pelos historiadores gregos e clore e nas lendas da Irlanda, da Escócia, do
romanos, e uma literatura imaginativa da qual País de Gales, da Bretanha, mas também de
derivam os livros de cavalaria. muitas regiões de França e de Espanha, desde
a Galiza até às terras da antiga Celtibéria, de
OS CELTAS E ROMA modo que os celtas, por vezes considerados
Os Celtas foram o maior inimigo de Roma ao um povo bárbaro e pouco conhecido, consti-
longo da sua história e o único povo a con- tuem uma das principais raízes étnicas e cul-
quistá-la em 387 a. C. Mas, após a conquista turais da Europa.
da Hispânia e do Norte de Itália, seguida da
conquista da Gália por César, os Celtas conti-
nentais foram romanizados e desapareceram
da história. Após a conquista de Inglaterra MARTÍN ALMAGRO GORBEA
por Cláudio, em 43 d. C., a cultura celta só se Academia Real de História

15
LÍNGUA
C LT S

16
Pormenor do primeiro bronze

B. DÍAZ
da Contrebia Belaisca, uma
placa de cerca de 40x10 cm
escrita em ambos os lados e
datada de cerca de 70 a. C.,
encontrada em 1970 em
Cabezo de las Minas
(Zaragoza).

17
A
s línguas celtas formam um gru- Embora esta segunda classificação esteja a
po pertencente à macro-família ser revista há já alguns anos, continua a ser
indo-europeia. Estão assim rela- válida do ponto de vista descritivo.
cionadas com os vários membros, Tendo em conta estes dois critérios, apresen-
extintos ou não, das famílias anatólia, indo- tamos a seguir um resumo das línguas celtas
-iraniana, arménia, eslava, báltica, germâni- que deixaram registos escritos ao longo da
ca, itálica, grega, albanesa... história. Sabe-se com certeza que houve po-
Apesar da grande extensão que os povos cel- vos de língua celta na Antiguidade e na Idade
tas chegaram a ocupar (Europa ocidental e Média que não deixaram esses testemunhos
central, parte da Itália e mesmo a Ásia Me- diretos ou, se os deixaram, perderam-se para
nor), cederam gradualmente à pressão de sempre. A sua existência é conhecida graças
outros povos, nomeadamente dos germanos às referências a eles deixadas por outros po-
e dos romanos, e foram por eles absorvidos vos, as chamadas fontes indiretas. É o caso
ou encurralados nas Ilhas Britânicas. do gálata, na atual Turquia, ou do cúmbrico,
As línguas celtas são geralmente classificadas na atual Escócia.
de acordo com critérios geográfico-cronoló-
gicos e linguísticos. De acordo com o primei- A. CELTA CONTINENTAL
ro, dividem-se em: A.1. Celta P:
- Celta continental, com testemunhos que A.1.1 Lepóntico: o centro epigráfico desta
vão desde o século VII ou VI a. C. até aos pri- língua é a cidade suíça de Lugano, nas mar-
meiros séculos posteriores. gens do lago com o mesmo nome, entre os
- Celta insular, testemunhadas a partir da Lagos de Como e Maggiore. Num raio de cer-
Idade Média e muitas delas ainda hoje faladas. ca de 100 quilómetros, em território suíço
Quanto aos critérios linguísticos, a evolução e italiano, foram encontradas cerca de 150
do som indo-europeu labiovelar *kw, que se inscrições, escritas num alfabeto etrusco da
pronuncia como um K em português — por- variedade setentrional, também conhecido
tanto, velar labializada — com os lábios arre- como alfabeto de Lugano, embora esta desig-
dondados ao mesmo tempo, de onde labial. nação não pareça ser apropriada atualmente.
Assim, é feita uma distinção entre: A cronologia deste corpus epigráfico abarca
- Celta P: o som *kw evoluiu para p. desde o século VII ou VI a. C. até aos séculos
- Celta Q, porque se manteve firme, pelo II-I a. C. Os documentos mais notáveis do
menos na primeira fase. corpus leponês são as estelas funerárias, nas
quais a palavra transcrita pala (talvez soan-
do como [bala]), que poderia significar algo
ASC

como «túmulo» ou «lápide», foi encon-


trada até dezasseis vezes. Também há uma
abundância de epígrafes em cerâmica, com
indicações de propriedade. No final do século
XIX, esta língua designou-se por lepóntico,
pois pensava-se que era a língua dos Lepon-
tii, um povo celta que ocupava uma zona
mais a norte, no cantão suíço do Ticino. No
entanto, esta língua corresponde de facto a
membros da cultura de Golaseca. O glotóni-
mo sobreviveu na bibliografia especializada.
Nos anos 70 do séc. XX, M. Lejeune confir-
mou o seu carácter linguístico celta. É uma
língua celta P, como mostra a conjunção co-
pulativa enclítica -pe < *kw e, cf. latim -que e
celtibero -QVE, -kue.
A.1.2. Gaulês: é habitual distinguir entre um
Gaulês Transalpino e um Gaulês Cisalpino,
na perspetiva romana. O primeiro, «do ou-
tro lado dos Alpes», veio a estender-se pela
atual França, Bélgica, Luxemburgo, grande
O alfabeto Ogam foi utilizado para representar as línguas parte da Suíça e parte da Holanda e da Ale-
paleo-irlandesa e paleo-galesa. manha. Em suma, o território constituído

18
Pedra com
inscrições rúnicas e
em alfabeto Ogam
na Catedral de St.
Flannan, Killaloe,
Irlanda.
GETTY

19
As tésseras de hospitalidade são o tipo mais
caraterístico da epigrafia celtiberiana

pelas três partes referidas por César no início destas últimas, cerca de 40, são epitáfios e,
da Guerra das Gálias, para além da já pro- em menor número, dedicatórias e algumas
víncia romana de Narbonensis. inscrições públicas.
O conjunto epigráfico desta língua divide- No corpus galo-latino há cerca de duzentas
-se num corpus galo-grego e galo-latino, legendas monetárias a mais do que no corpus
que se diferenciam, como seria de esperar, galo-grego. Há inscrições em metal, como os
pela adoção e adaptação dos alfabetos grego calendários (fragmentários) em bronze de
e latino à sua língua. Existem também dife- Coligny e do santuário de Villards-d’Héria,
renças cronológicas e espaciais entre os dois ou os chumbos de carácter mágico de Cha-
conjuntos. Enquanto o primeiro é anterior malières e Larzac. A cerâmica de La Grau-
ao século II a. C. e se situa principalmente na fesenque é famosa, tal como os azulejos de
província de Narbonne — sendo o epicentro Châteaubleau. São igualmente conhecidas
epigráfico a foz do Ródano —, o segundo é inscrições em pedra, a maior parte das quais
mais setentrional e data do período cesaria- dedicadas a divindades.
no, sobretudo nos séculos I e II d. C. O gaulês cisalpino, «o deste lado dos Al-
Para além de cerca de 70 legendas monetárias pes», é considerado como a língua atestada
galo-gregas, existem inscrições em metal, no norte de Itália numa série de inscrições,
como a enigmática placa de chumbo de Ey- incluindo a inscrição de San Bernardino de
guières, a da espada de ferro de Port (Suíça), Briona (século I a. C.) e as inscrições bilin-
a do vaso de prata de Vallauris (Alpes-Marí- gues galo-latinas de Todi (segunda metade
timos) e o torque de ouro de Mailly-le-Camp do século II a. C.) e de Vercelli (século I a.
(Aube). Existem também numerosas inscri- C.). Se a relação entre o gaulês cisalpino e o
ções em cerâmica e em pedra. A maior parte transalpino é clara, a relação entre o gaulês

Vercingetórix
rende-se a César
após a batalha de
Alésia. Litografia.
ALBUM

20
cisalpino e o lepónico não o é tanto. Há au-
tores que as consideram como duas línguas
diferentes, mas há também quem pense que
são dialetos, juntamente com o gaulês tran-
salpino, de uma única língua: o gaulês. O
mesmo se passa com o sistema de escrita. A
Gália Cisalpina utilizava um alfabeto etrusco
da variedade setentrional, e alguns autores
falam de um alfabeto gaulês cisalpino por
oposição a um alfabeto leponês. Para outros,
porém, trata-se do mesmo alfabeto, que fa-
ria parte de uma família de escritas do norte
da antiga Itália, utilizada por línguas como o
venético e o rético.
A.1.3. Nórico, do qual subsiste um pequeno
corpus epigráfico: um fragmento de uma
inscrição de Grafenstein (Áustria) e uma pe-
quena inscrição de Ptuj (Eslovénia), datados
entre os séculos II e III d.C.
A.2 Celta Q:
A.2.1. celtibero: é a língua em que registam
as inscrições indígenas de uma zona da Pe-
nínsula Ibérica que compreende as cabecei-
ras dos rios Douro, Tejo, Júcar e Turia, até à
nascente do rio Martín, a oeste, sul e leste;
e a norte, o curso médio do rio Ebro. Os ro-
manos e as fontes antigas chamaram Celti-
beria a este território, habitado por Belos,
Titos, Lusones e Arévacos. Ocasionalmen-
te, os Pelendões e os Váceos são também
citados como Celtiberos. O continuum

ALBUM
epigráfico-linguístico dos primeiros in-
sere-se na área descrita, mas não o dos
segundos, embora tivessem, se não a
mesma língua, uma muito semelhante.
O mesmo aconteceria com os Beronos
e, talvez, com os Carpetanos, cujo con-
tinuum também se situa fora da área, pelo
menos em parte. A parte meridional da zo- Placa de chumbo com uma inscrição
na era habitada pelos Turboletes, Olcades e galo-latim encontrada em Source des
Lobetanos. A cronologia destes testemunhos Roches, Chamalières.
vai do final do século III a. C. ao século I d. C.
e estão escritos num sistema de escrita pró-
prio, adotado e adaptado do semissilabário torrita), o mais longo documento conhecido
ibérico levantino, e em alfabeto latino. com sintaxe complexa numa língua celta an-
Foi o trabalho de A. Tovar, nos anos quarenta tiga. Deste sítio provém também o Terceiro
do século XX, que deu a conhecer na Europa Grande Bronze, uma lista de mais de 200 fór-
a existência de testemunhos escritos de uma mulas onomásticas, cuja finalidade ainda não
língua celta com a particularidade de perder foi determinada. Para além destes dois do-
o *p intervocálico original em VERAMOS < cumentos, as tésseras de hospitalidade, com
*uper-amos, de tipo Q, devido ao tratamen- mais de cinquenta documentos, são o tipo
to do labiovelar, -QVE < *-kw e, de Peñalba mais caraterístico da epigrafia celtiberiana.
de Villastar (Teruel) (cf. latim -que ‘y’). A Na Península Ibérica foram também encon-
comunidade científica europeia deve ter-se trados vestígios de duas línguas cuja celtici-
rendido finalmente à celticidade do celtibe- dade é contestada:
ro em 1982, com a descoberta do Primeiro - Língua do Sudoeste ou Tartéssica: o seu
Grande Bronze da Contrebia Belaisca (Bo- corpus é atualmente constituído por cerca

21
ALBUM
Placa em The Grammar of Ornament,
de Owen Jones (1865).

22
ASC
A Península Ibérica antes da conquista
cartaginesa, por volta de 300 a. C.

O
NTIC
Â
ATL
ANO
OCE

Grupos linguísticos
Turdetanos
Tartéssicos (residual)
Celtas
Ibéricos
Aquitanos (proto-vascos)
Indo-europeus (pré-celtas)
Grupos etnogeográficos
Turdetani Grupos principais
Comunidades secundárias
râneo
mantesani

diter Principais colónias:


M ar Me Fenícias / Cartaginesas
Gregas

Na Península Ibérica, existem vestígios de


duas línguas cuja celticidade se discute
de noventa estelas, a maioria das quais loca-
Pormenor do
lizadas no sul de Portugal, e alguns grafitos,
Terceiro Grande
datados entre os séculos VIII e V a. C. Está Bronze de Botorrita
escrita num semisilabário da mesma família (século I a. C.).
do Ibero e do Celtibero.
- Lusitano, cujos testemunhos se situam na
metade norte de Portugal e na província de
Cáceres em Espanha (séculos I-II d. C.). São
conhecidas até ao momento seis inscrições
em alfabeto latino: Viseu, Cabeço das Fra-
guas, Lamas de Moledo, Arronches, Arroyo
de la Luz (x2).

B. CELTA INSULAR
B.1. celta P ou britónico:
B.1.1 O galês, no qual se podem distinguir
três períodos: o galês antigo, com uma tra-
dição literária que começa nos séculos VI
e VII; o galês médio, entre os séculos XII e
XIV, cuja obra mais notável é a coleção de
contos mitológicos Mabinogion; e o galês
moderno.
ASC

23
Escrita celtibérica
O
s Celtiberos adotaram e adaptaram signário levantino ibérico para escrever a sua
língua. Trata-se de um semi-silabário com dois tipos de sinais: fonemogramas para
vogais, sonantes e sibilantes e silabogramas para sílabas de estrutura de consoante
mais vocal. Criaram duas variedades de acordo com o uso dos signos para as nasais, a
oriental e a ocidental.

SIGNÁRIO PALEO-HISPÂNICO CELTIBÉRICO

CELTIBÉRICO OCIDENTAL CELTIBÉRICO ORIENTAL


trans- valor trans- valor
grafema grafema
crição fónico crição fónico

V
O
G
A
I
S

C
O
N
S
O
A
N
T
E
S

FRI
CATI outra sibilante outra sibilante
VAS ou fricativa ou fricativa
(ou africada) (ou africada)

OR
DEM

LA
BIAL

OR
DEM

DEN
TAL

OR
DEM

VE
LAR

24
Anverso e reverso da téssera Fröhner,
datada entre o final do século III a. C. e
o primeiro terço do século I a. C.

M RUIZ
O gaélico escocês ainda hoje é falado
na Escócia e em terras do Canadá

B.1.2 Córnico: falado até ao século XIX na chamado ogámico. A língua escrita neste sis-
Cornualha, os textos mais antigos que sub- tema é considerada uma forma muito antiga
sistem são algumas glosas do século XII. do irlandês, designada paleo-irlandês.
Atualmente, estão a ser desenvolvidos gran- Para além desta etapa, para o estudo da lín-
des esforços para a sua recuperação. gua irlandesa, estabelecem-se as seguintes:
B.1.3 Bretão: Devido aos confrontos entre irlandês antigo (c. 850), irlandês médio (c.
os anglo-saxões e os bretões, por volta de 900-1450) e irlandês moderno (a partir de
450-470 d. C., um grupo de bretões da Cor- 1475). A sua documentação está escrita em
nualha e de Devon emigrou para o noroeste alfabeto latino ou na sua derivação, o Cló
de França. Instalaram-se numa região a que Gaelach, e a mais antiga data dos séculos VII
chamaram Britânia, em homenagem ao seu e VIII d. C. São textos curtos, geralmente de
local de origem. No século seguinte, segui- carácter religioso, como as Glosas de Würz-
ram-se mais algumas vagas de emigração. burg, de Milão, etc. Ao longo da Idade Média,
A sua língua evoluiu gradualmente para o a famosa literatura irlandesa desenvolveu-se
bretão. A sua cronologia é a seguinte: bretão nos Ciclos mitológicos, do Ulster, de Fenian
antigo (c. 800-1100); bretão médio (c. 1100- e o Histórico.
1600); e bretão moderno a partir de 1600, B.2.2 Gaélico escocês: introduzido nas terras
que vai aguentando a pressão do francês. De altas da Escócia pelos colonos irlandeses en-
um ponto de vista geográfico, deveria ser tre os séculos IV e VI. No século XIII, já tinha
incluído no celta continental, mas, tradicio- uma identidade própria. Continua a existir
nalmente, faz parte do celta insular. não só na Escócia, mas também em partes
B.2 Celta Q, também conhecido como goidé- do Canadá, com as suas próprias variantes.
lico ou gaélico: B.2.3 Manês: língua da Ilha de Man, que so-
B.2.1 Irlandês: existe uma série de documen- breviveu até à década de 1970.
tos, cerca de 370, escritos em pedra, princi-
palmente de carácter funerário, localizados
sobretudo na Irlanda, embora também se
encontrem no País de Gales, na Cornualha e
na Ilha de Man (e com dúvidas na Escócia e
em Inglaterra), datados do século IV d. C. ao CARLOS JORDÁN
século VII d. C. Estão escritos num sistema Paleo-hispanista e Catedrático.
de escrita especial, de origem desconhecida, (Universidade de Saragoça)

25
RASTOS GENÉTICOS
«O SANGUE
DOS CELTAS»
26
Gravura a

ALBUM
cores de um bardo
germânico, poeta
que compunha
panegíricos e
cânticos de
guerra.

27
PORTABLE ANTIQUITIES SCHEME

O arqueólogo
britânico Colin
Renfrew examina
artefactos no British
Museum em 2012.

T
erão os Celtas deixado vestígios ge- linha de investigação independente da ar-
néticos da sua passagem e poderão queologia.
os estudos de ADN antigos e moder- Os dados arqueogenéticos são tão revo-
nos esclarecer a sua origem e as zo- lucionários que se fala de «Revolução Ar-
nas onde mais se implantaram? E, sobretudo, queogenética», fazendo parte da chamada
como é que as análises genéticas se articulam Terceira Revolução Científica da arqueologia
com os dados arqueológicos e linguísticos? A pelo arqueólogo dinamarquês Kristian Kris-
arqueogenética, termo cunhado e bem de- tiansen. E, como em qualquer revolução, as
senvolvido pelo arqueólogo britânico Colin fases iniciais são confusas, assustam e sus-
Renfrew, trata da aplicação de técnicas de citam receios. Se a isto juntarmos o facto
genética de populações (ADN) ao estudo das de a Internet, as redes sociais e os meios de
sociedades do passado. Há mais de duas dé- comunicação social amplificarem os dados
cadas que fornece dados novos sobre a pré- da investigação científica, mas muitas vezes
-história tardia e constitui uma excelente distorcendo-os, exagerando-os e enviesan-

28
ASC
MIGRAÇÕES

Chefaturas La Tène
Mar Migrações celtas
do
Norte
o
tic
lân
At
no
ea
Oc

Mar Negro

Roma
Gálatas
Mar Mediterrâneo Delphi

Migrações celtas em La Tène B (invasões celtas).

do-os, e considerarmos também a diversi- der a profundidade da realidade populacio-


dade de abordagens académicas aos Celtas, nal da pré-história tardia é difícil e complexo
podemos ter uma ideia da extraordinária — também para os arqueólogos — e abordar
complexidade de os estudar arqueogenetica- os cenários demográficos e de mobilidade do
mente e obter uma visão global. ponto de vista da arqueogenética também
Os estudos arqueogenéticos irromperam na não é tarefa fácil.
arqueologia como um «elefante numa loja de
porcelana» e apresentam uma dificuldade UM TEMA CONTROVERSO
inicial nas suas interpretações (pré)históri- As análises arqueogenéticas pertencem a
cas: nem os geneticistas dominam a literatura uma ciência «dura», cujas conclusões a ní-
pré-histórica, nem os arqueólogos dominam vel genético podem ser claras, mas a forma
a teoria e a metodologia paleogenética. Há já de inserir estes dados nas provas arqueológi-
alguns anos que estudamos a linguagem uns cas e no processo evolutivo histórico é outra
dos outros, em diálogo para melhor com- questão. A origem dos indo-europeus e as in-
preender e interpretar o processo global que vasões dos Yamnaya (povos das estepes) na
nos interessa: a mobilidade das populações Europa Ocidental no III milénio a. C. susci-
no passado e, sobretudo, as grandes migra- tam, desde há alguns anos, paixões e contro-
ções. Por isso, não é de estranhar que tenha vérsias que colocam a questão em evidência.
havido mal-entendidos mútuos. Compreen- Trata-se de um tema delicado, que pode rea-

Os dados arqueogenéticos são


tão revolucionários que se fala de
«Revolução Arqueogenética». Estudá-
los é extraordinariamente complexo

29
30
ASC
A nova «celticização do
Ocidente» e a expansão
dos «celtas», com as áreas
celticizadas e toponímia celta.

tlân s
tico
o a Celta
mu rigem
Exp

nd
ans

O
ão
cel

o ta
pan
Ex
Ex
pa
ns
ão Galatae

Helvéticos escolhendo as rotas de migração para a Suíça


(58 a.C.). Xilogravura colorida de uma ilustração do século XIX.

vivar velhas teorias racistas e ser perigosa-


mente atrativo em mãos inexperientes.
E como a teoria mais recente sobre a origem
dos celtas(Celtic from the West, dos Profs.
B. Cunliffe e J. T. Koch 2010, 2013 e 2016) os
procura no mundo do III e II milénios a. C.
na Europa atlântica, os celtas foram envol-
vidos no mundo conturbado dos grupos in-
do-europeus e grupos yamnaya. Mas se isso
se justifica para traçar a sua origem, em con-
trapartida, os celtas do I milénio a. C. rece-
beram muito menos atenção da genética. O
interesse inicial suscitado pelo primeiro li-
vro de Cunliffe e Koch (2010) foi seguido por
outros, nomeadamente Blood of the Celts
(2015) de J. Manco, que pretende integrar a
paleogenética, a arqueologia e a linguística.
E assim se relacionou, a expansão dos gru-
pos de Campos das Urnas da Idade do Bronze
Final (proto-Celtas) com a distribuição do
haplogrupo R1b-U152, que oferece alguma
coerência, pelo menos arqueológica e tam-
bém cronológica, a uma ampla gama de da-
tações por carbono-14.

MOVIMENTOS POPULACIONAIS
As numerosas análises de ADN antigo extraí-
do de contextos arqueológicos (por exemplo,
enterros) oferecem resultados para recons-
truir movimentos populacionais, calculando
proporções de ancestralidade partilhada en-
tre indivíduos ou grupos. Foi mesmo salien-
tado que a genómica antiga pode mostrar os
movimentos populacionais melhor do que
ALBUM

a arqueologia, porque as mudanças de an-

31
Conciliar a arqueogenética e a arqueologia
P
ara o futuro, a fim de conciliar as entida- com a moda, a transmissão e a inovação. O
des materiais das culturas arqueológicas tipo evolui no tempo e no espaço. E, através
com os dados paleogenéticos, precisa- dos métodos de datação arqueológica, é
mos de desenvolver taxonomias mais robustas possível estabelecer uma sequência porme-
da evolução cultural dos grupos arqueológi- norizada dos tipos e das suas variantes. Mas
cos. Na arqueogenética, as unidades taxo- é necessário que estas unidades taxonómicas
nómicas estão bem definidas, mas o mesmo — os tipos e as suas variantes — estejam bem
não acontece na arqueologia. É necessário organizadas. Só então os dados arqueoge-
«traduzir» a materialidade dos grupos arqueo- néticos e os dados arqueológicos podem ser
lógicos em unidades taxonómicas operacio- conciliados com maior precisão e podemos
nais, ou seja, reduzir os diferentes objetos a esperar relacionar a ascendência genética com
tipos, com desenhos normalizados. E, além artefactos arqueológicos de diferentes grupos
disso, enquadrar cada um deles num siste- em diferentes escalas geográficas.
ma específico de transmissão de informação A arqueogenética tem um grande futuro pela
através das gerações, ou seja, situá-los numa frente, mas convém lembrar que está a dar os
evolução filogenética ao longo do tempo. primeiros passos e que os dados disponíveis
Imaginemos o caso das fíbulas, os broches- esboçam, de certa forma, um quadro — so-
-imperdíveis para prender as roupas celtas. A bretudo o «big picture» à escala continental —
ideia genérica das fíbulas traduz-se em tipos ainda fragmentário e com lacunas, embora nos
concretos, que os artesãos — no seio de uma permita vislumbrar os traços mais intensos. Em
«comunidade de praticantes» — fabricam. As suma, dizer que as populações atuais de certas
fíbulas têm uma função prática, mas também regiões se sentem ou mesmo, como alguns
uma função ornamental e simbólica. Isto afirmam, «são celtas» não tem qualquer fun-
significa que, em diferentes grupos e diferentes damento na realidade. E se há alguma relação
regiões, as formas e os pormenores podem ou ligação afetiva a sentir, o melhor é sentir a
variar. A produção tem «mestres» artesãos e ligação íntima com a terra, a terra que pisamos,
aprendizes, e o artesanato é transmitido de com as paisagens que habitamos, e com a
diferentes formas dentro de uma comunidade grande cadeia de gerações de antepassados
de aprendizes. Para ser transmitido, o objeto que nos remetem para os Celtas, mas também
— e as suas variantes — tem de ser aceite nas para os caçadores do Paleolítico Superior e,
novas comunidades. E uma vez aceite a ino- finalmente, para os primeiros Sapiens modernos
vação, as peças fabricadas variam de acordo que saíram de África há mais de 100 000 anos.

idealização
tipológica
100%

comunidade
artífices de prática

variabilidade dos
materiais
TEMPO

transmissor aprendizagem

aceitação inovação

variação cultural entre


indivíduos e grupos
tempo de evolução
cultural

0% FÍBULA
FIGURA DO AUTOR

tipos
Ascendência genética Sequência arqueológica

32
Sepultura em poço

<1% frequência R1b-U152 31-35%

Mar
do
Expansão de Grupos Norte
Campos de urnas
o
tic
lân
At
no
ea
Oc

Mar Negro

Mar Me
diterrân
eo
(Segundo Manco 2015, com
adições do autor).
ASC

Vemos as grandes tendências, a grande


escala ,mas não podemos apurar os
detalhes à escala regional e local
cestralidade — ao contrário das mudanças embora a oriental seja também importante e
culturais no registo arqueológico — refletem explicável pelas influências fenícias, gregas e
necessariamente movimentos de pessoas. Pa- romanas do Mediterrâneo. O carácter intru-
ra os últimos 10 000 anos na Europa, o con- sivo da cultura dos Campos de Urnas da Ida-
junto de informações das últimas décadas é de do Bronze Final na Península Ibérica como
heterogéneo no tempo e no espaço. Existem precedente dos grupos celtas enquadra-se
mais dados e em mais regiões para a expansão bem nos dados paleogenéticos. O problema
dos primeiros agricultores do Neolítico (entre continua a ser a imprecisão do significado de
o VI e IV milénio a. C.) e para as migrações ascendência genética em termos como «mi-
das estepes do III milénio a. C. do que para a grações em massa», uma vez que a resolução
pré-história tardia do I milénio a. C. destes dados não é elevada e o peso efetivo dos
novos povos sobre os autóctones é difuso. A
GRANDES TENDÊNCIAS pegada genética marca processos de impacto
São necessárias mais informações para o pe- demográfico substancial durante períodos de
ríodo do Bronze Final — Idade do Ferro (ca. tempo mais ou menos longos e com «bolsas»
1300 a. C. — mudança de era). Em todo o caso, de áreas sem dados ou sem impacto genético.
os dados genéticos apontam para um pico de Observamos as grandes tendências, a grande
mobilidade para a situação na Europa Cen- escala, mas não conseguimos apurar os deta-
tral e na Europa Ocidental, que parece estar lhes a nível regional e local.
relacionado com os movimentos dos grupos
celtas, descritos nas fontes clássicas e arqueo-
logicamente rastreados. Na Ibéria é clara a an-
cestralidade do Norte, ligada à expansão dos GONZALO RUIZ ZAPATERO
Campos de Urnas e das línguas e grupos celtas, Pré-historiador (UCM)

33
O PERÍODO
HALLSTATT
(800-450 a. C.)
UMA ÉPOCA DE RAINHAS E CIDADES

34
Com seis metros de

AGE
altura e sessenta
metros de diâmetro,
o túmulo reconstruído
de Hochdorf, em
Baden-Wuerttemberg,
é um dos maiores do
seu género.

35
N
a Europa Central, a Primeira Ida-
Imagem do centro de
de do Ferro é conhecida como Hallstatt com o lago e
período Hallstatt (800-450 a. as montanhas.
C.). Foi um período de grandes
mudanças sociais, económicas e tecnoló-
gicas, incluindo a difusão da metalurgia do
ferro, o aparecimento das primeiras cidades
a norte dos Alpes e o desenvolvimento de
desigualdades sociais acentuadas, refleti-
das no registo funerário. Foi também uma
época de intensos contactos comerciais e
culturais entre a Europa Central e as socie-
dades mediterrânicas, especialmente com
os etruscos da Itália central e as colónias
gregas do sul de França e do sul de Itália.
Hallstatt é o nome de uma bela cidade nos
Alpes austríacos, reconhecida como Pa-
trimónio Mundial devido à combinação
das suas extraordinárias paisagens mon-
tanhosas e lacustres com a sua história ri-
ca e antiga. Desde meados do século XIX,
importantes descobertas arqueológicas,
sob a forma de túmulos da Idade do Ferro
e vestígios pré-históricos nas minas de sal,
tornaram o local famoso. O nome do sítio,
Hallstatt, passou a designar todo um perío-
do cronológico. No final da Idade do Bronze
e no início da Idade do Ferro, os extensos
depósitos de sal nas montanhas acima do
Lago Hallstatt eram explorados através de
uma rede de galerias. Na Antiguidade, o
sal era frequentemente considerado como
«ouro branco» devido ao seu grande valor
e às suas múltiplas utilizações, incluindo
a conservação de alimentos. O comércio
do sal trouxe grande prosperidade aos ha-
bitantes de Hallstatt, o que se reflete em
objetos e materiais de lugares distantes en-
contrados em numerosos túmulos, desde
o âmbar do Báltico ao marfim de elefante.
Além disso, nas minas, o sal contribuiu pa-
ra a conservação de numerosos materiais
orgânicos que normalmente desaparecem
com o tempo, nomeadamente sapatos, têx-
teis e utensílios como cestos.
dade, a maior parte deles apresenta cara-
RESIDÊNCIAS PRINCIPESCAS terísticas como a existência de uma zona
O fenómeno mais proeminente do perío- superior fortificada (por vezes designada
do de Hallstatt, no entanto, foi o desen- por «acrópole»), a presença de importa-
volvimento na Europa Central de uma ções provenientes do mundo mediterrâni-
série de grandes povoações, geralmen- co (sobretudo cerâmica grega, mas também
te fortificadas, conhecidas como «resi- produtos de outras regiões, como a Etrúria)
dências principescas» (Fürstensitze em e a construção de túmulos sumptuosos sob
alemão). Estes sítios, espalhados desde mamoas em redor dos povoados.
a França até à República Checa, desen- Os «túmulos principescos» (Fürsten-
volveram-se principalmente durante os gräber) serviam de local de enterramento
séculos VI e V a. C. Apesar da sua diversi- para indivíduos da elite social e, por vezes,

36
SHUTTERSTOCK

Os túmulos principescos serviam de


local de enterro para indivíduos da
elite social
também para os seus familiares. Entre os tos casos, os bens sepulcrais incluíam im-
objetos mais proeminentes encontram-se portações do mundo mediterrânico. Dentro
frequentemente carros de quatro rodas do grupo dos «túmulos principescos», po-
(autênticos «Rolls-Royces» da época), re- dem estabelecer-se algumas diferenças de
cipientes de metal para beber e comer, têx- categoria, indicando a existência de dife-
teis ricamente decorados, bem como jóias e rentes degraus na pirâmide social, desde
outros artigos de adorno pessoal. Em mui- pequenos chefes locais até personagens que

37
As mulheres do período Hallstatt
parecem ter ostentado um grande
poder religioso e, por vezes, político

O túmulo de
Hohmichele nas
proximidades de
Heuneburg (imagem
segundo Krausse
et al. 2016; foto R.
Hajdu; © Landesamt
für Denkmalpflege im
RP Stuttgart).
ASC

38
podem ser designados como reis e rainhas. religioso e, por vezes, político, desempe-
De facto, os túmulos mais ricos do período nhando um papel fundamental à frente das
Hallstatt podiam pertencer tanto a homens suas comunidades.
(caso de Hochdorf) como a mulheres (por
exemplo, o túmulo de Vix). Estas últimas HEUNEBURG
parecem ter detido um importante poder Entre os chamados «centros principes-
cos», o sítio mais bem estudado é o de
Heuneburg, situado no sudoeste da Ale-
manha, junto ao rio Danúbio. Embora os
túmulos circundantes tenham sido esca-
vados desde o século XIX, as escavações
sistemáticas na povoação começaram em
meados do século XX e continuam até aos
dias de hoje. As descobertas foram espeta-
culares, ultrapassando largamente todas as
expetativas. A parte superior, ou acrópole,
do Heuneburg, com cerca de 3 hectares,
foi fortificada com uma muralha de adobe
construída sobre um pedestal de pedra. Esta
técnica de construção é claramente de ins-
piração mediterrânica, o que confirma os
contactos estreitos entre os habitantes de
Heuneburg e os seus vizinhos do Sul. Du-
rante a primeira metade do século VI a. C.,
a acrópole estava densamente ocupada com
numerosos edifícios e um plano urbanístico
claramente organizado. No sopé da acró-
pole situava-se a chamada «cidade baixa»,
também ela fortemente fortificada e cuja
entrada principal era formada por um mo-
numental portal de pedra e adobe que devia
ter um grande valor simbólico e ostentató-
rio. Para lá desta, estendia-se um grande
povoado exterior de cerca de 100 hectares,
dividido em diferentes bairros e geralmen-
te menos densamente ocupado, incluindo
algumas quintas de proporções considerá-
veis. No total, estima-se que cerca de 5000
pessoas teriam habitado o Heuneburg em
meados do século VI a. C., um número que
excede a população de muitas colónias gre-
gas e fenícias no Mediterrâneo.

MONUMENTOS FUNERÁRIOS
O poder das elites de Heuneburg reflete-
-se em monumentos funerários impres-
sionantes, como a câmara funerária de
Hohmichele, com quase 80 metros de diâ-
metro e 13 metros de altura, ou a câmara
funerária 4 de Bettelbühl, escavada entre
2010 e 2013 com técnicas modernas. A câ-
mara funerária de Bettelbühl continha os
restos mortais de duas mulheres adul-
tas, enquanto uma rica sepultura infantil
associada sugere a transmissão hereditá-
ria de poder dentro das linhagens da eli-
te social. A análise dendrocronológica da

39
madeira da câmara funerária fornece uma um conflito violento. Após a reconstrução,
data do início do século VI a. C., indicando Heuneburg continuou a existir durante
claramente que as mulheres desempenha- várias gerações, embora a maior parte do
ram um papel crucial na história do assen- grande aglomerado exterior tenha perma-
tamento, desde as suas primeiras etapas. necido abandonado. Nalguns casos, foram
Pouco depois de meados do século VI a. C., construídos novos túmulos sobre os restos
uma grande parte de Heuneburg foi des- da ocupação anterior. Na acrópole, a exó-
truída pelo fogo, provavelmente devido a tica muralha de adobe foi substituída por

EEA

A ilustração acima mostra parte do cemitério escavado desde 1846 por Johann Georg
Ramsauer, nas proximidades de Hallstatt.

40
Localização das principais "residências principescas" e de alguns sítios
mediterrânicos estreitamente ligados à Europa Central
Mar
do
Norte

Rh

Elb
in

a
Kemmelberg
Canal de la
Mancha Glauberg Vladar
Závist
Dürkheim Ehrenbürg
Sen
a Marienberg
Hohensasperg Ipf
Heuneburg
Loira
Mont Lassois Breisach
Bourges Br ytzgyberg
Üetliberg
Chateau
Chatillon
sur-Salins
Oceano sur-Glane
Lyon-Vaise
Atlântico Forcello
Spina
Po

Massalia

Mar Mediterrâneo
ASC

heuneburg foi por vezes


identificado como a polis de Pyrene
mencionada por Heródoto
um estilo de construção mais tradicional, distância, como atestam as numerosas ce-
enquanto a ocupação densa deu lugar a um râmicas gregas pertencentes a estas últimas
padrão mais disperso que incluía alguns fases. As ligações com o mundo grego fazem
edifícios de dimensões monumentais. Em também com que que Heuneburg tenha si-
todo o caso, os habitantes de Heuneburg do por vezes identificado como a polis de
continuaram a manter relações de longa Pyrene mencionada por Heródoto perto das

Seleção de objetos de ouro e


âmbar meticulosamente decorados
provenientes do túmulo 4 em
Bettelbühl (imagem segundo Krausse
et al. 2016; foto Y. Mühleis;
© Landesamt für Denkmalpflege im
RP Stuttgart).
ASC

41
nascentes do Danúbio, embora esta possi-
bilidade não esteja confirmada.

MONT LASSOIS
Mais a leste, na região francesa da Borgo-
nha, situava-se o importante povoado de
Mont Lassois. A sua fama deve-se sobre-
tudo à descoberta, nas proximidades, do
túmulo de Vix, no qual foi enterrada uma
mulher com um carro, ricas jóias e um
enorme vaso grego de bronze, com 1,6 me-
tros de altura e 1 100 litros de bebida. O tú-
mulo de Vix é um dos enterramentos mais
ricos da pré-história europeia, ao ponto de
a sua ocupante ter sido por vezes designa-
da como uma verdadeira rainha que, pos-
sivelmente, desempenhava também certas
funções sacerdotais.
O povoado de Mont Lassois, situado nu-
ma colina fortificada junto ao rio Sena, foi
objeto de uma exploração arqueológica so-
bretudo no decurso dos últimos 20 anos. As
investigações permitiram identificar vários
edifícios absidiais, alguns deles de gran-
des dimensões. O maior destes edifícios,
com cerca de 33 x 20 metros, foi escavado

na sua totalidade, tendo sido recuperada


uma grande quantidade de cerâmica local
e grega de qualidade. No sopé da colina de
Mont Lassois, várias linhas de fortificações
alargaram a área do sítio a cerca de 40/45
hectares. Segundo as estimativas demográ-
ficas mais recentes, a população do Monte
Lassois era de 3500-5000 habitantes no seu
apogeu, comparável à de Heuneburg.

BOURGES
Ainda mais extensa que os sítios anterio-
res deve ter sido Bourges, no centro de

Recriação idealizada do grande


edifício absidial do Monte Lassois
(imagem segundo Chaume et al.
2012, projeto K. Rothe).

42
Recriação idealizada de
Heuneburg durante o seu
apogeu (imagem segundo
Krausse et al. 2016;
design Faber Courtial;
© Landesamt für
Denkmalpflege im RP
Stuttgart).

França, que no século V a. C. parece ter cidem com a transição para o período de La ASC

ocupado mais de 200 hectares. A história Tène, um período caraterizado por grandes
do assentamento é conhecida sobretudo mudanças, incluindo o aparecimento da
nos séculos posteriores, uma vez que Júlio chamada «arte celta» e o início de grandes
César o menciona como oppidum de Ava- migrações de populações da Europa Cen-
ricum no transcurso da Guerra das Gá- tral para a Itália e os Balcãs. As razões para
lias. No entanto, alguns autores associam estas mudanças são ainda debatidas, mas
a ocupação anterior de Bourges, no século podem ter incluído tensões sociais decor-
V a. C., com a capital do reino de Ambiga- rentes do crescimento das desigualdades
to, mencionada por Tito Lívio a propósito sociais e, possivelmente, também reações a
das migrações celtas para Itália. Embora oscilações climáticas. Abriu-se assim uma
esta identificação seja apenas conjetura, nova etapa, em que os «celtas» históricos
exemplifica que nos encontramos nos al- entraram plenamente nos relatos dos au-
vores da história escrita. tores clássicos.
Apesar da importância dos «centros prin-
cipescos», a sua existência foi relativa-
mente curta. Entre meados e finais do
século V a. C., todos eles foram abando-
nados (nalguns casos em resultado de uma MANUEL FERNÁNDEZ-GÖTZ
destruição violenta) ou entraram em declí- Historiador e arqueólogo
nio acentuado. Estas transformações coin- (Universidade de Edimburgo)

43
SINGULARIDADES
Constituídos por um elenco heterodoxo
de povos, os Celtas possuíam uma série
de caraterísticas particulares que os dis-
tinguiram como uma cultura com traços
AS ARMAS
Os Celtas espalharam-se por quase
únicos e uniformes nas suas tradições e toda a Europa, cobrindo uma faixa
linguagem. Pagãos na sua vertente reli- central de terra que se estende
giosa e exímios ourives e joalheiros na sua desde a Península Ibérica até ao
principal qualidade artística, percorreram Mar Negro. A guerra foi uma das
a Europa desde o século V a. C. até à domi- suas forças motrizes subjugando
nação romana na Gália no século I a. C. e numerosos povos e estabelecendo
na Britânia em 43 d. C. Os seus bardos le- colónias politicamente
garam apaixonadas lendas, onde abundam independentes entre si.
feiticeiros, fadas e heróis.

OCEANO
ATLÂNTICO
MAR DO Gundestrup
NORTE

Hallstatt
Parissi
La Tène
Roma

Galaicos
MAR MEDITERRÂNEO
Celtibéricos
Lusitanos
ALBUM

44
AS FORTALEZAS
Os celtas organizavam-se socialmente
em fortalezas amuralhadas, muitas
vezes também estabelecidas ao abrigo
de proteções naturais, como florestas,
montanhas e cursos de água. Em
geral, não tinham um traçado urbano
planeado e caraterizavam-se por
habitações ovais ou circulares.
Quando a sua cultura se relacionou
com a dos romanos, adotaram as suas
formas retangulares e retilíneas.

MAR NEGRO

Galácia

ARTE CELTA
Os ourives celtas deixaram uma valiosa
variedade de objetos que indicam a importância
que davam à ostentação pessoal. Broches,
colares, brincos, torques e anéis são disso
prova. Também a decoração das armas foi
objeto de grande cuidado, sendo de destacar
RESPEITO a riqueza ornamental do punho das espadas e
dos escudos. Em todos os casos, o bronze foi a
Os celtas mostraram respeito reverencial
pelos grandes blocos de granito que matéria-prima exclusiva.
encontravam nos seus territórios, pois Os caldeirões e vasos de bronze eram comuns
supunham que foram transportados por no quotidiano celta. Eram sempre profusamente
povos poderosos. Nestas pedras gravaram decorados.
as suas próprias inscrições.

45
Cabeça de homem
GETTY

em estilo La Tène.
As representações
da cabeça tinham
um significado ritual
para os Celtas e
eram utilizadas como
talismãs. Acreditava-
se que a cabeça
era o centro do ser
espiritual e a morada
da alma. Século
II-I a. C.. Msecke
Zehrovice (Boémia).

46
A CULTURA
DE LA

TÈNE

47
ASC/LUIS BERROCAL

Cultura de la Tène:
expansão dos túmulos de fossa

Elementos isolados
da Cultura de la Tène

Expansão máxima
da Cultura de la Tène

Expansão geográfica
da Cultura de La
Tène e dos seus
Brigantes principais materiais,
juntamente com
Britânicos as macro-etnias e
Icenos alguns dos principais
grupos étnicos.
Cantios (elaboração: autor).
Turones

Belgas Marcomanos
Helvetios
Biturigios

Gauleses
Eduos Cenomanos
Venetos
Arvernios
Boios
Senones

Belos
Arévacos

Celtiberos
Galatas
Célticos
48

N
o final do século XIX (1885), o um artigo polémico, «Adieu Hallstatt, adieu
arqueólogo Otto Tischler definiu La Tène», no qual denunciava a incoerência
um complexo cultural de grande destas «culturas arqueológicas», nomeada-
personalidade e importância na mente a de La Tène, então identificada com
génese da Europa, graças à abundância de um povo histórico, os Celtas. A própria Ar-
materiais encontrados em alguns sítios da queologia confirmava esta inexatidão, pois
Idade do Ferro da Europa Central. Um deles, deixava de fora a Celtibéria ou a própria Ir-
um possível local de culto nas margens do landa. No entanto, o termo «Cultura de La
lago Neuchâtel (Suíça), recebeu o seu nome: Tène» foi de tal forma aceite que se manteve,
«La Culture de La Tène». Cem anos mais tar- com um significado diferente, o de «com-
de, o arqueólogo John Collis (1986) publicou plexo arqueológico», uma distribuição de

48
materiais e estilos partilhados num espaço e migrações, mas entre meados dos séculos V
tempo específicos que, também erradamen- e IV a. C.. A data final, 50 a. C., foi escolhida
te, foi designado por «Cultura dos oppida». por ser a data da tomada de Uxellodunum
E, dado que este complexo coincidia com (Vayrac, França), última resistência indígena
os territórios gauleses, foi assimilado a es- na conquista romana da Gália.
tes povos, o que ainda hoje acontece, com o
mesmo intervalo cronológico que tinha sido UM NOVO SIGNIFICADO
proposto desde o início, entre 450 e 50 a. C. No início do século XXI, os arqueólogos euro-
No início do século XX, estas datas tinham peus também já não acreditavam na Cultura
sido escolhidas segundo os parâmetros de La Tène como um complexo arqueológi-
habituais de definição das «culturas ar- co... o conhecimento mais pormenorizado
queológicas», uma combinação de dados e sólido da Segunda Idade do Ferro permitiu
estratigráficos e de acontecimentos históri- constatar que, se por detrás das reiterações
cos. Assim, 450 a. C. foi a consequência de de materiais, técnicas de construção e cos-
uma transliteração temporal «extensiva» do tumes funerários podia existir uma certa ho-
relato de Tito Lívio que, em Ab urbe condita, mogeneidade ideológica, tal não implicava o
situa o reinado de Ambigatus, monarca dos reconhecimento de uma unidade cultural,
bitúrigos gauleses (Berry, França) , no final política ou social. Mas o termo «cultura de
do século VI. A riqueza do seu reinado foi tal La Tène» continuou a ser útil, sendo agora
que produziu um boom demográfico, cujas aceite para definir a Idade do Ferro tardia
consequências foram duas grandes expedi- na Europa Central. Assim, este conceito
ções de conquista da Europa meridional e equivale agora a algo muito mais ambíguo,
oriental. Resultados «finais» destas invasões e certamente mais coerente com o passado,
foram o saque de Roma em 396 a. C. e de Del- um fenómeno ambivalente que engloba as
fos em 279 a. C. O que a arqueologia e a his- esferas caraterísticas da Idade do Ferro da
tória da arte provaram foi a existência destas Europa temperada, mas sem a imagem uni-
ASC/CORTESÍA DE LUIS BERROCAL

Reconstrução do acampamento
romano e das obras de cerco
que César ergueu para reprimir a
resistência gaulesa no oppidum
de Alésia (Borgonha, França).
MuseuParq d’Alesia.

49
ficadora de estados ou civilizações. Os dife- do povoamento celta. Conhecidos como
rentes traços que caraterizam a «Cultura de oppida, desempenharão o papel das cida-
La Tène» sobrepõem-se num núcleo prin- des do Mediterrâneo e atingirão todo o seu
cipal, a Europa Central, mas distribuem-se esplendor precisamente nos últimos séculos
de forma diferente pelo resto do continente, do período, com a irrupção de Roma nos seus
alguns estendendo-se da Anatólia às Ilhas territórios. A partir do séc. III a. C., demons-
Britânicas e da Península Ibérica à Jutlândia. trarão caraterísticas técnicas e socioeco-
Na Europa Central, numa perspetiva histó- nómicas típicas das cidades, em sítios tão a
rica, o período de relativa tranquilidade do norte como Manching (Baviera, Alemanha).
início da Idade do Ferro levou a um cresci-
mento populacional, cujas consequências se POTÊNCIAS EMERGENTES
podem refletir na história de Ambigatus. O Mont Lassois e Glauberg, entre o final do sé-
que a arqueologia mostra é que o século V a. culo VI a. C. e o final do século V a. C., refle-
C. foi uma época de rutura e de instabilida- tem a transição para o «novo» mundo de La
de em relação à anterior. Desde o início, os Tène. No sopé dos dois oppida, encontram-se
povoados amuralhados, como Mont Lassois necrópoles tumulares principescas com tú-
(Borgonha, França) e Glauberg (Hesse, Ale- mulos típicos da «cultura Hallstatt». No en-
manha), tornaram-se cada vez mais impor- tanto, em simultâneo, os povoados sofreram
tantes, a ponto de monopolizarem a imagem uma remodelação geral, com a construção

As caraterísticas de La Tène sobrepõem-se


na Europa Central, mas difundem-se de
forma diferente no resto do continente

Visita turística aos


GETTY

vestígios do oppidum
de Bibracte (Mont
Beuvray em Saint-
Leger-sous-Beuvray,
norte de França).

50
ASC/CORTESÍA DE LUIS BERROCAL
Maqueta de
uma secção
da muralha
do oppidum
de Avaricum
durante o
cerco de
César e armas
dos guerreiros
gauleses.
Museu de
Bourges.

de grandes muralhas com fossos, utilizando Bretões, com os Icenos, Cantios ou Brigan-
técnicas que acabariam por ser identitárias tes. Entre os celtiberos, figuravam os belos e
da cultura de La Tène. os arévacos, e, na Europa de Leste, havia os
Na realidade, as mudanças do século V a. helvécios, os marcomanos e os gálatas, para
C. não foram apenas consequência do ci- citar apenas alguns dos grupos étnicos mais
clo expansionista anterior, mas também conhecidos.
da emergência das potências do Mediter- De um modo geral, nem estas macro-etnias
râneo central, de Cartago a Roma. Estas es- nem os povos que as compunham chegaram
timularam, sem dúvida, desenvolvimentos a constituir sociedades estatais, embora al-
locais das suas periferias, potências emer- guns dos populi mais meridionais tenham
gentes que viriam a ser identificadas co- atingido esse nível, como se pode verificar
mo as primeiras comunidades históricas: pela adoção da escrita, da moeda e, em al-
macro-etnias (gentes, nationes) e etnias guns casos, pelo incipiente urbanismo dos
(populi, civitates, ethne). Os Gauleses «Ci- seus oppida — por exemplo, no Languedoc-
salpinos», com os Senones, Cenomanos ou -Roussillon, Nages (Nîmes) ou Ensérune (Bé-
Boios; os Gauleses «Transalpinos», com ziers). As macro-etnias eram confederações
Bitúrigos, Eduos, Arvernos, Carnutos ou de populi, cada uma com um grande povoa-
Parísios; os Belgas, com os Eburones; e os do amuralhado, o oppidum, que servia de

51
Reconstrução de
uma casa de La Tène
do século I a. C., em
Roggendorf, Áustria.
Pode ver-se uma
grande lareira com
chaleira, utensílios de
cozinha, ferramentas
agrícolas e um
moinho de farinha no
extremo direito.
ALBUM

52
Os oppida
(povoados
amuralhados)
desempenharão o
papel das cidades
no Mediterrâneo

capital do território étnico e, sob a sua admi-


nistração, controlavam-se os assentamentos
amuralhados, sob a forma de castros (pagi,
castella) , e outros aglomerados abertos, sob
a forma de quintas e de extensos aglomera-
dos artesanais (vici). Alguns destes oppida
ficarão para a história pela sua participação
nas guerras contra César, como Avaricum
(Bourges, Berry) para os Bitúrigos; Bibrac-
te (perto de Autun, Borgonha), capital dos
Eduos, ou Alesia (Mont Auxois, Côte d’Or),
último reduto de Vercingetorix.

ALBUM

Ilustração de diferentes utensílios, joias e


armas desta cultura.

53
Vista aérea do oppidum de
Corent (Puy-de-Dôme).
ALAMY

FORMA DE GOVERNO viriolae = «aquele que carrega os torques»).


Embora estes povos fossem governados por Assim, estes senhores da guerra entroniza-
monarquias aos olhos dos romanos, a rea- dos serão representativos de uma sociedade
lidade transmitida pela Arqueologia e pela hierarquizada, onde o valor militar e de lide-
História Medieval comparada é que se tratava rança são enfatizados como justificação, ca-
de «chefaturas complexas», em que as co- raterísticas que não são exclusivas da Europa
munidades atribuíam o poder a um dos seus Central, como se vê na Hispânia Céltica.
membros, a título pessoal e em função das Pouco se sabe sobre as residências destes
suas virtudes, entre as quais se destacavam senhores da guerra. Algumas situavam-
as virtudes guerreiras. Isto não significa que -se fora do oppidum, e a sua identificação
os aristocratas de Hallstatt tenham desapare- é complicada. O que foi demonstrado é que
cido, mas sim que a sua capacidade de obten- alguns destes grandes povoados foram fun-
ção de poder diminuiu. A título de exemplo, dados em torno de um nemeton, um lugar
o próprio Vercingetórix era filho do prínci- sagrado identificado com um sítio natural
pe Celtilus e tinha um «nome falante», que (rocha, floresta ou nascente), que se urba-
significa «o grande rei guerreiro» (*-rix», niza utilizando-o como centro do povoado
«rei»). Mas a história deste líder identifica-o recém-fundado. Foi o caso de Manching, de
como um senhor da guerra, tal como Viriato, Fesques (Seine-Maritime) ou de Ulaca (Ávi-
eleito e coroado entre iguais com um outro la). Esta urbanização sagrada consolidar-se-á
nome falante com paralelos latinos (viriae, durante o século I a. C. sob a forma de ver-

54
Capacete cerimonial de Amfreville-sous-les-Monts,
datado de meados do século III a. C.

dadeiros «proto-templos», próximos dos -Bresse, França). Esta importância sagrada


modelos mediterrânicos. É o caso de Gour- dos oppida ajuda-nos a compreender a im-
nay-sur-Aronde (Oise) e de Corent (Puy- portância dos druidas, verdadeiros filósofos
-de-Dôme). A investigação interpreta estes e conselheiros políticos. Conhecidos desde
santuários como centros territoriais, tanto César, tinham o poder de unir etnias e ma-
religiosos como sociopolíticos, justificando cro-etnias, razão pela qual foram persegui-
assim as funções dos oppida. Como centros dos por imperadores como Tibério e Cláudio.
de peregrinação, estão muitas vezes associa- Druidas gauleses e bretões reuniam-se perio-
dos a depósitos maciços de animais sacrifi- dicamente numa floresta sagrada dos Carnu-
cados, esqueletos, armas e restos de grandes tos, no centro de França, para acordarem as
festas, como as que se realizavam durante o decisões a tomar nos seus populi. Por todas
«Samhain», a principal festa mencionada no estas razões, as caraterísticas mais marcan-
calendário de bronze de Coligny (Bourg-en- tes para manter a singularidade da Cultura

A comunidade atribuía o poder a um dos seus


membros, a título pessoal e em função das
suas virtudes, destacando as guerreiras

55
ASC/LUIS BERROCAL
O enxoval de um guerreiro do
início do período La Tène, no
Musée d’Archéologie Nationale
de Saint-Germain-en-Laye
(Paris).

de La Tène não são nem os seus líderes, nem realidade é que os dois fenómenos estão inti-
os seus povoados, nem as suas crenças, mas mamente ligados e serviram para caraterizar
a sua cultura material móvel, especialmente os padrões funerários da Cultura de La Tène:
identificada pela sua estética própria em ma- a proeminência dos valores guerreiros ma-
teriais funerários. terializados em espadas, capacetes, escudos,
arreios de cavalos e elementos decorativos
PADRÕES FUNERÁRIOS com valores simbólicos, como torques, fíbu-
No final do século V a. C., os túmulos fune- las ou jarros. Apesar desta imagem andrógi-
rários continuavam a ser importantes entre na, as mulheres desempenhavam um papel
os Países Baixos e o arco alpino. Mantiveram
a monumentalização do Hallstatt, mas com
ASC/LUIS BERROCAL

alterações evidentes no interior. As câma-


ras foram substituídas por fossas, onde se
encontravam cadáveres com panóplias de
guerreiro e carros de duas rodas — para es-
tar de pé, não para a guerra. Este ritual tem
sido tradicionalmente atribuído aos grupos
étnicos belgas e, como foram documentados
túmulos semelhantes em todo o sul de In-
glaterra, foram atribuídos a uma invasão da
Grã-Bretanha por estes povos nos séculos IV
e III a. C. Embora esta presença tenha sido
rejeitada por alguns arqueólogos ingleses, a

Enxoval de mulher do período La Tène, no Musée


Historique de Haguenau (Alsácia, França).

56
ASC/LUIS BERROCAL

ASC/LUIS BERROCAL
Grande torque de ouro encontrado na Fíbula de ouro de possível origem hispânica,
cidade inglesa de Snettisham, típico do fabricada por um ourives grego para um
estilo «plástico» de La Tène. senhor da guerra Celtibero.

A riqueza ornamental e a variedade de motivos


de La Tène foram de tal ordem que serviram
para definir toda uma evolução de estilos
equivalente ao dos homens nesta sociedade para compreender que esta evolução estética
guerreira, e os túmulos femininos apresen- foi fortemente condicionada pela necessida-
tam frequentemente tanta ou mais riqueza de de identificação comunitária dos grupos
do que os túmulos masculinos. A existência étnicos e pelo impacto que, a partir do sécu-
de uma organização social matrilocal é com- lo III a. C., teve o comércio mediterrânico em
provada por numerosos indícios. toda a Europa temperada. Algo semelhante
A identificação do mundo de La Tène com aconteceu com a arte plástica e a imaginá-
o enterro enquanto rito funerário é, no en- ria, e mesmo com a produção cerâmica, que
tanto, uma falsa assimilação. A realidade é assumiu o domínio da roda de oleiro e da
que a cremação nunca desapareceu, e até se pintura como principal técnica decorativa.
tornou dominante. Os seus túmulos em co- A estética desenvolveu motivos curvilíneos,
vas, ou em recintos quadrangulares, aumen- a compasso, favorecendo algumas manifes-
taram significativamente durante o período, tações artísticas muito singulares, que são o
até se tornarem quase exclusivos a partir do maior suporte para a manutenção do con-
século II a. C. ceito de Cultura de La Tène. Estas produções
A riqueza ornamental e a variedade de mo- encontram-se dispersas por toda a Europa
tivos de La Tène foi tal que serviu para de- temperada, desde as Ilhas Britânicas (torque
finir toda uma evolução de estilos, a partir de Snettisham) até à Roménia (capacete de
da sua periodização tradicional. Assim, aos Ciumeşti) e desde Espanha (fíbula de Bra-
primeiros estilos «severo e flamejante» (c. gança) até à Dinamarca (caldeirão de Gun-
450-400 a. C.) sucederam-se um estilo «fan- destrup), em maior ou menor grau.
tástico» (400-325 a. C.), caraterizando a fase
de La Tène A; o «estilo vegetal ou de Walda-
gesheim», representativo da fase de La Tène
B (ca. 325/250 a. C); os «estilos plásticos e de
espadas» da fase C1/2 (c. 250/100 a. C.) e, fi-
nalmente, o «estilo neosevero» de La Tène D LUIS BERROCAL-RANGEL
(c. 150/50 a. C.). As novas espadas, derivadas Departamento de Pré-História e Arqueologia
das espadas de Halstat, servem de paradigma (Universidad Autónoma de Madrid)

57
OS CELTAS NA

Castro galego de
SHUTTERSTOCK

Santa Tecla, no
município de La
Guardia (Pontevedra).

58
Mosaico cultural
da Península Ibérica e
suas diferenças em relação
aos Celtas europeus

59
Mar Cantábrico

Vasco-
Cantábricos Aquitanos
Galaicos Astures Vascones

L C
Ausetanos
Vacceos e Ilergetes
u l Sedetanos
s t
i Carpetanos i
t Vetones b
e Edetanos
a r
n o Contestanos

o Túrdulos
s
Oretanos
Célticos s Mar Mediterrâneo
Tartessianos- Bastetanos
Turdetanos

Oceano

CARLOS AGUILERA
Atlântico

O
s celtas da antiga Hispânia sempre pânia pelos fenícios, púnicos e romanos e que
despertaram interesse, desde que os gregos designavam por Ibéria. Nesta vasta e
o grande poeta Marcial, nascido articulada península coexistiu um mosaico de
na celtibérica Bilbilis, perto de povos tão diversos como celtas, tartessos, ibe-
Calatayud, dizia: «Somos filhos de celtas e ros e vascões, em resultado de um complexo
iberos» («Nos Celtis genitos et ex Hiberis»). processo de etnogénese, com uma tendência
Esta frase revela a dupla raiz cultural e étnica geral para os modos de vida urbanos, que se
dos povos da Península Ibérica, chamada His- cristalizou na romanização.
Os atuais estudos interdisciplinares de ar-
queologia, linguística, genética e as tradições
populares analisadas pela paleoetnologia
revelam duas grandes áreas culturais, uma
ibérica e outra céltica, relacionadas com a du-
pla raiz étnica a que alude Marcial. Por outro
lado, os povos hispânicos eram muito diver-
sos em termos de costumes, línguas e origens,
com fenómenos de mestiçagem e inter-etni-
cidade que dificultam a sua compreensão.
Nas zonas orientais até ao sistema ibérico viviam
povos ibéricos, originários do Neolítico, que
atravessaram o Mediterrâneo vindos da Anató-
lia e que falavam uma língua não indo-europeia
relacionada com o basco e o sardo, Isto expli-
ALBUM

caria as relações linguísticas entre o ibero e o


Vaso celtibero (séc. IV-I a. C.) encontrado no basco, apesar de os Vascões, antepassados dos
Cerro de San Miguel, Arnedo (La Rioja). bascos, terem habitado na Antiguidade a Aqui-

60
tânia até aos Pirinéus, já que no atual País Basco
viviam os autrígones, carisios e bárdulos, que
eram povos celtas.

DUPLA ORIGEM DOS IBEROS


Os iberos oferecem um duplo substrato
etnocultural, uma vez que, no final do II
milénio a. C., chegaram ao nordeste da
Península Ibérica (Catalunha, Vale do
Ebro e norte de Valência), os povos dos
Campos de Urnas, originários da Europa
Central, com profundas alterações nos
povoamentos, na cultura material, nos
ritos funerários, na religião e na sua or-
ganização social e étnica, caraterísticas
partilhadas com os celtiberos, devido às
suas origens semelhantes. Estes iberos
do nordeste espalharam-se pelo Levante
até às zonas meridionais, onde os ibe-
ros provinham da cultura de El Argar,
que se desenvolveu na Idade do Bronze.
Esta dupla origem dos iberos explica as

ASC
suas diferenças. Os Bastetanos, Ore-
tanos e Contestanos do sudeste, mais
aparentados e influenciados pelos
Tartessos, viviam em grandes oppida,
ao contrário dos Edetanos de Valên-
cia, dos Ilergetes e Sedetanos da bacia
do Ebro e dos Ilercavones, Cosetanos, Estela
Ausetanos, Indiketes e Arenosinos da com escrita
Catalunha, embora tendessem a conver- tartéssica
gir devido às influências fenícias e gregas e encontrada na Herdade
aos seus crescentes contactos, até que Roma de Abobada (Almodôvar).
acentuou a sua unificação . Museu de Beja.

SUBSTRATO «PROTO-CELTA
Os tartéssios habitaram o vale do Guadalquivir, até ao vale do Guadiana e que, segundo He-
de Córdova a Huelva, embora a sua influência ródoto (IV, 49), fazia fronteira com os Celtas a
tenha atingido todo o sul da Hispânia, favore- norte e os Tartéssios a sul.
cida no I milénio a. C. pela aculturação fenícia, No entanto, os povos celtas habitavam a maior
centrada em Gadir e noutras colónias do lito- parte da Hispânia, estendendo-se desde o sis-
ral. As suas raízes eram mediterrânicas como tema ibérico até ao Atlântico, incluindo a zona
as dos iberos, mas o seu território era mais ri- cantábrica e o País Basco, e expandiram-se
co, mais desenvolvido e aberto aos contactos também no sudoeste sobre o território dos
mediterrânicos e atlânticos. A partir da Idade Cónios. Para além disso, as notícias mais anti-
Campaniforme e da Idade do Bronze, as in- gas sobre os Celtas provêm da Hispânia, como
fluências atlânticas explicariam a celticização a Ora Maritima de Avieno (I, 185 f., 485 f.) e
da sua língua e, provavelmente, das suas elites Heródoto (II, 33; IV, 49).
dirigentes, como o demonstram os Cónios ou O estudo dos celtas hispânicos evoluiu a par-
Cinetes, um povo que viveu desde o Algarve tir do século XVI, quando se considerava que

Os Bastetanos, Oretanos e Contestanos do


sudeste, mais próximos e influenciados
pelos Tartéssios, viviam em extensos oppida

61
Gravura a cores
ilustrando a Guerra
Numantina na edição
francesa da História
de Políbio traduzida
do grego por Dom
Vincent Thuillier.

62
O estudo dos celtas hispânicos evoluiu
desde o século XVI, quando se considerava
que eram originários da Gália

ALBUM

63
tinham vindo da Gália, seguindo os autores Atlântico, incluindo toda a zona cantábrica e
clássicos. Esta visão durou até ao século XX, todo o País Basco, como atestam os etnónimos
quando foram descobertos campos de urnas celtas Autrigones, Caristios e Bárdulos, pois os
em Tarrasa, Barcelona, o que levou à dis- falantes de euskera entraram no País Basco na
cussão sobre se os Celtas tinham chegado à Alta Idade Média vindos da Aquitânia. Este
Hispânia numa ou em várias invasões. Atual- substrato «proto-céltico» pode ser identi-
mente, costuma-se distinguir dois grandes ficado com os Lusitanos, mas também com
estratos etnoculturais, um originário do os Vetões, Vaceus, Ástures, Galegos e outros
Campaniforme e outro originário dos Cam- povos do norte de Espanha, todos eles pro-
pos de Urnas. gressivamente influenciados pelos Celtiberos
Parte dos celtas da Hispânia provém de um no I milénio a. C..
substrato «proto-céltico» que chegou com Os «proto-celtas» campaniformes entra-
a Cultura Campaniforme no III milénio a. C., ram na Península Ibérica por mar, através do
que se estendia desde o sistema ibérico até ao Atlântico, e por terra, através da Catalunha e

64
Vista panorâmica do Castro de
Barona, na Corunha, habitado
desde o século I a. C. até ao
século I d. C..

Estela
circular
utilizada
para o culto
solar. Museu
Regional de
Pré-História e
Arqueologia,
Santander.

ALBUM
do País Basco. Eram pastores guerreiros que
viviam em pequenas aldeias de ocupação des-
contínua, com cabanas circulares como outras
culturas atlânticas. A sua dispersão coincide
com antropónimos, etnónimos e outras pa-
lavras «pré-celtas» começadas por P-, como
«páramo», que ainda hoje se conservam em
espanhol, e tinham ritos arcaicos, como o
lançamento de armas à água como local de
passagem para o Além, os banhos em saunas
rituais e os sacrifícios em altares rupestres.

A FORÇA DA HISPÂNIA
No final do II milénio a. C., surgem os castros
com casas redondas que se prolongam até à
Idade do Ferro, cuja fortificação é testemu-
nho da ocupação estável do vale envolvente e
da crescente pressão demográfica, mas a sua
organização social era pouco complexa, com
SHUTTERSTOCK

chefaturas documentadas por estelas e escul-


turas de guerreiros. Desenvolveram trocas
de metais com outras áreas atlânticas, como
estanho e ouro, facilitadas por pactos de hos-
pitalidade e casamentos exogâmicos. No final
Os celtas mais do I milénio a. C., sob o domínio romano,
surgiram grandes povoados que controla-
antigos da vam castros fortificados mais pequenos, cujo
Hispânia provêm de território se conservou em muitas freguesias
da Galiza . Estes povos, que se estenderam da
um substrato Galiza até à Estremadura, são os lusitanos,
pastores e guerreiros, como o famoso Viriato,
«proto-celta» cuja língua é afim às itálicas, o que indica uma
que chegou origem no III milénio a. C., quando «proto-
-celtas» e «proto-itálicos» conviviam algures
com a cultura entre a Ucrânia e a Europa Central.
campaniforme no Outro estrato etnocultural é formado por po-
vos originários da cultura centro-europeia
terceiro milénio de Campos de Urnas, que penetraram pelos

65
ALBUM
Moeda ibérica
cunhada na casa da
moeda de Kelse (Velilla
del Ebro, Saragoça).

desfiladeiros orientais dos Pirenéus no final


do II milénio a. C., num processo de coloniza-
ção que atingiu o norte de Valência e o vale do
Ebro até ao País Basco . Grupos destes povos
estabeleceram-se a partir do século IX a. C.
nas terras altas do sistema ibérico e no leste da
Meseta, onde formaram a Cultura Celtibera,
graças aos contactos mediterrânicos através
dos iberos. Estes povos falavam uma língua
que pertence ao celta continental, como a lín-
gua gaulesa, embora mais arcaica, uma língua
denominada «celtibérica» que conhecemos
através de inscrições que datam do final do formar fraternidades de jovens guerreiros ou
século III a. C. dedicar-se ao trabalho mercenário.
Os celtiberos eram pastores guerreiros que vi- A partir do século V a. C., as elites guerrei-
viam em castros fortificados que controlavam ras que controlavam o poder nesta sociedade
pequenos vales com as suas vias de comunica- clientelista adquiriram um carácter eques-
ção. As casas eram retangulares, com paredes tre, com símbolos como fíbulas e estandartes
divisórias comuns e com a porta virada para com a forma de um pequeno cavalo, por vezes
dentro, pois a parede exterior servia de mura- com a cabeça decepada do inimigo derrotado,
lha. Estes povos, depois de queimarem os seus aparecendo também um cavaleiro nas moe-
mortos, depositavam os restos mortais em das, como representação do Herói protetor
urnas nas necrópoles, por vezes cobertas por da tribo, que seria a sua divindade princi-
mamoas ou com estelas alinhadas. Os objetos pal, como o deus Teutates entre os gauleses.
funerários indicavam o seu estatuto social, A qualidade das suas armas de ferro e a sua
tal como a rica panóplia de túmulos dos seus tradição de pastores-guerreiros, favorecida
chefes. A qualidade e a abundância do ferro pela sua organização clientelar, facilitaram a
refletem-se nas suas armas, algumas de ori- sua progressiva expansão sobre o substrato
gem mediterrânica, como os elmos de bronze «proto-celta» e fizeram deles o principal po-
de origem ítalo-calcídica, trazidos durante vo da Hispânia, como reconhece Floro (I, 33,
as suas atividades de mercenários, pois eram 9), «Celtiberia, robur Hispaniae». Progres-
guerreiros fortes, admirados e temidos pelos sivamente expandiram-se e celtiberizaram
romanos, com costumes como os «combates os Vaceus e Vetões e os povos cantábricos e
de campeões», cortar a mão ou a cabeça do pressionaram os antigos Lusitanos, até darem
inimigo derrotado, como descreve Posidónio, nome celta à Galiza. Expandiram-se também

66
Os celtas da
Hispânia, por vezes
incompreendidos
até pelos
especialistas,
fazem parte do
nosso património
histórico e
cultural

sem esquecer que o etnónimo Célticos se con-


servou na Galiza. A etno arqueologia mostra
também a origem celta de muitos elementos
da cultura material, como os espigueiros gale-
gos e asturianos, ou o comer polvo em pratos
de madeira, a que alude Estrabão (III,3,7), ou
o beber cerveja, palavra que vem do celta ce-
revisia. Também se conservaram tradições
O uso do
sociais, como as árvores de juramento como
espigueiro está
a de Guernica, os ritos de iniciação e os trajes
muito difundido
carnavalescos, e até o território dos arcipres-
em grande parte
do norte da tados da Galiza é de origem celta, tal como as
Península Ibérica. comunidades medievais de aldeias e vilas. As
SHUTTERSTOCK

Na imagem, um crenças preservam ritos em rochas, árvores e


espigueiro galego. fontes sagradas e o santuário de San Andrés
de Teixido, onde «vai de morto quem não foi
de vivo», é uma cristianização das crenças
celtas na metempsicose ou transmigração das
para sudoeste, sobre cónios e tartéssios, on- almas, sem esquecer a tradição literária oral,
de eram chamados «célticos», originários da cujos mitos e lendas passaram para a epopeia
Celtibéria, segundo Plínio (N.H. 3, 13). Ro- e poesia castelhanas, como nas Leyendas so-
ma cortou esta expansão após lutas ferozes rianas de Gustavo Adolfo Bécquer.
durante o século II a. C.. O auge destas lutas Os celtas da Hispânia, por vezes incom-
foi a destruição de Numância em 133 a. C. e preendidos até pelos especialistas por serem
terminaram em 19 a. C., depois de Augusto diferentes dos celtas da Gália e das Ilhas Bri-
ter derrotado os Cântabros numa guerra não tânicas, são as nossas raízes e fazem parte
menos dura e heróica. do nosso património histórico e cultural.
A Paz de Augusto significou a romanização Por isso, os seus vestígios arqueológicos e as
das cidades, mas a cultura celta, presente na suas interessantes tradições folclóricas de-
Península Ibérica há mais de 2000 anos, não vem ser preservados para enriquecer o nosso
desapareceu, pois os pagani ou habitantes dos Património e constituir uma oferta turística
pagi ou «aldeias» continuariam com a sua atrativa, muitas vezes em zonas remotas e
língua e costumes «pagãos», alguns dos quais despovoadas, onde ainda podemos desfrutar
sobrevivem até hoje, embora a herança celta dos últimos ecos desta tradição cultural mile-
em Espanha seja muitas vezes manipulada ou nar, que é uma das principais raízes da atual
ignorada. Nomes de rios como Deva ou Ner- população europeia.
vión, de montanhas como Teleno, de cidades
como Segóvia, Salamanca ou Sagunto e de re-
giões como a Galiza ou a Cantábria são celtas,
alguns são mesmo «proto-celtas», como Pá- MARTÍN ALMAGRO GORBEA
ramo, o rio Pisuerga ou a cidade de Palência, Academia Real de História

67
68
Os assentamentos celtas
POVOADOS,
CASTROS E
OPPIDA

O castro de Chano (León) foi


SHUTTERSTOCK

habitado por astures entre


o século I a. C. e a primeira
metade do século I d. C..

69
Habitação no castro galego de Santa Tecla,
no município de La Guardia (Pontevedra).

SHUTTERSTOCK
O
s povos celtas espalhados por de habitantes. No topo destas comunida-
grande parte da Europa, das Ilhas des, alguns centros atingiam demografias
Britânicas à Anatólia e das planí- de alguns milhares de almas e um carácter
cies do Norte da Europa às mar- urbano específico. Eram grupos humanos
gens do Mediterrâneo, desenvolveram di- com esperança de vida curta, cerca de 35-
ferentes formas de povoamento, diferentes 45 anos. A mortalidade infantil era muito
organizações internas e até diferentes tipos elevada, os homens tinham taxas de morta-
de habitações. Mas, a partir de uma visão de lidade elevadas devido a conflitos intergru-
conjunto, é possível identificar os seguintes pais e as mulheres devido a complicações de
tipos de assentamentos: povoados, castros, parto e infeções puerperais.
oppida e granjas e quintas, que apresentam Os celtas de Hallstatt construíram povoados,
muitas semelhanças. É evidente que nunca tanto na planície como nas terras altas, com
existiu um modelo único destes tipos de po- pouca organização interna, casas retangula-
voamento num território tão vasto durante res de madeira e aparentemente sem edifí-
um período de mais de 500 anos. cios públicos. Mas nos cabeços dos vales do
Reno, do Danúbio e do Ródano — o coração
VARIEDADE DE ASSENTAMENTOS do mundo de Hallstatt — grupos mais nume-
A população das terras celtas, no seu mo- rosos e mais fortes estabeleceram as chama-
mento final antes da mudança de era, pode- das «residências principescas»(Fürstensit-
mos estimar — através do número de sítios ze), construídas em terrenos elevados com
no registo arqueológico — que poderá ter si- fortificações de muralhas, torres, fossos e
do entre 15 e 20 milhões de habitantes. Estes portões bem defendidos. Algumas «residên-
grupos, salvo casos excepcionais, viviam em cias principescas» atingiram uma complexi-
pequenos núcleos familiares, dispersos pe- dade que só recentemente estamos a desco-
los campos, vales e planaltos. A maior parte brir, com vários recintos e grandes áreas de
da população era rural, vivendo em gran- ocupação. O caso mais conhecido é o de He-
jas, quintas e pequenas explorações agrí- uneburg, nas margens do Alto Danúbio, com
colas. Acima deles, situavam-se as aldeias sofisticados meios de fortificação e, sobretu-
e outros centros fortificados (castros em do, a estimativa de que poderia ter alberga-
português e hillforts em inglês), bem como do uma população de 5000 a 6000 habitantes
outros não fortificados com várias centenas em cerca de 100 ha, um valor insuspeito até

70
A maioria da
população vivia em
GRANJAS, QUINTAS E
PEQUENAS EXPLORAÇÕES
AGRÍCOLAS

ALBUM
há poucos anos. Centros como Heuneburg,
Hohenasperg e Mont Lassois desenvolveram
traçados urbanos, mas de um urbanismo pe-
culiar que não se assemelha ao urbanismo
hipodâmico ou quadriculado do Mediter-
râneo, com o seu sistema de ruas bem or-
ganizado e grandes edifícios públicos. Esse
urbanismo hallstático do início da Idade do
Ferro (séculos VI-V a. C.) na Europa Central
foi designado como «urbanismo delicado»
devido ao seu carácter frágil e efémero, de-
senvolvido ao longo de algumas gerações. No
entanto, os traçados internos de Heuneburg
e do Monte Lassois, com a sua disposição re-
gular de estruturas, revelam um verdadeiro Granja comunal na Bretanha celta.
planeamento urbano na Europa Central. Um 1. habitação comum. 2. habitação de verão.
planeamento urbano que tinha a sua própria 3. celeiro. 4. pátio dos gansos. 5. vacas e
lógica interna em termos sociais e políticos. cabras. 6. barracão para fazer aguardente de
Por exemplo, as elites destes centros urba- ameixa. 7. poço. 8. forno comum.
nos, importavam do Mediterrâneo cerâmicas 9. estábulos 10. porcos. 11. armazém de
gregas finas e vinho, que apreciavam muito, milho. 12. paliçada. 13. milho. 14. pomar.
e organizavam banquetes para manter os la- De Harmsworth History of the World (1908).

Augusto

CARLOS AGUILERA
Hallstatt La Tène
Ha C Ha D1 Ha D2 Ha D3 LT A LT B LT C1 LT C2 LT D1 LT D2

Planeamento urbano
Oppida
Grau de concentração urbana

CENTROS
Centralização
Planeamento urbano - Vida curta
Hallstáttico - Instabilidade
- Efémero
Centralização
Migrações
celtas
Descentralização
Gerações

800 700 600 500 400 300 200 100 a. C. 1


Tempo

Evolução da concentração populacional e do planeamento urbano na Idade do Ferro


(gráfico do autor GRZ).

71
N
Mount Lassois 0 50 m

Heuneburg CENTROS URBANOS


HALLSTÁTICOS

ASC
Urbanismo regular hallstático: Mont Lassois (levantamento geomagnético por P.C.R. Vix) e
Heuneburg (segundo Krausse et al. 2016).

ços e as alianças com os chefes vassalos de centros urbanos, os famosos oppida dos
segunda/terceira ordem. No entanto, este textos clássicos. As causas do aparecimento
mundo desmoronou-se durante as primeiras dos oppida encontram-se em quatro fatores
décadas do século V a. C. inter-relacionados: a intensificação da pro-
dução agrícola e artesanal, o crescimento
O SURGIMENTO DOS OPPIDA demográfico sustentado, o aumento da «co-
As grandes transformações que se seguiram netividade social» e a estruturação política
foram um processo de descentralização polí- e religiosa dos territórios que estes centros
tica, uma ruralização crescente da população criaram.
e o aparecimento de novos centros de poder
a norte dos centros hallstáticos, as chefatu- CENTROS BEM DEFENDIDOS
ras de La Tène. Neste período dos celtas late- As descrições de Júlio César na sua Guerra
nianos, embora se tenham estabelecido no- das Gálias estabeleceram o cânone destes
vos povoados, assiste-se a uma explosão de centros: grandes aglomerados urbanos de-
pequenos assentamentos rurais, refletindo fendidos, embora fontes escritas posteriores
um importante crescimento demográfico; só tenham acrescentado alguma ambiguidade
na bacia de Paris foram descobertos mais de a esta definição. A arqueologia tem vindo a
200 nas últimas décadas. As granjas e quintas produzir conhecimentos sobre estes centros,
do início do período La Tène (450-300 a. C.) apesar da diversidade de critérios de acordo
ocupam o campo, muitas vezes rodeadas de com as tradições dos diferentes países. A di-
fossos e paliçadas de madeira — delimitando mensão é um critério importante: acima de
estruturas quadrangulares e trapezoidais — e 10 ha são geralmente considerados oppida,
contêm casas, estábulos, celeiros sobre esta- mas podem atingir várias centenas de ha em
cas e silos escavados na terra. centros maiores. As defesas incluem diferen-
Em finais do séc. III e inícios do séc. II a. C., tes tipos de muros: (1) o murus gallicus com
assiste-se a um novo movimento de centra- alvenaria de pedra e uma estrutura de gran-
lização, com o aparecimento dos grandes des troncos cruzados e fixados com grandes

72
pregos, (2) muros de postes verticais de ma- Os oppida maiores, com uma intensa ocupa-
deira e (3) muralhas de terra com fossos nas ção do espaço podiam albergar populações
Ilhas Britânicas. As formas eram adaptadas nunca antes vistas. As estimativas para Man-
ao tipo de sítio: com recintos completamente ching variam entre 5000 e 10 000 habitantes
murados tanto em terras altas como baixas, e para Bibracte entre um mínimo de 5000 e
noutros casos procuravam-se defesas natu- um máximo de 20 000.
rais — rios e promontórios — para reduzir
o comprimento da muralha a construir, de A PENÍNSULA IBÉRICA:
modo que pequenas barreiras permitiam fe- CASTROS E OPPIDA
char espaços em esporões, meandros e bifur- No centro, oeste e norte da Península Ibé-
cações de rios. rica, os povoados mais caraterísticos são os
A anatomia interna destas cidades celtas per- «castros», pequenos aglomerados (entre 0,2
mite-nos reconhecer bairros artesanais com e 2 ha) situados no cume das colinas, nos es-
concentração de oficinas cerâmicas e meta- porões dos rios e nas escarpas das encostas
lúrgicas, casas para emissão de moeda, tra- distribuídas ao longo dos vales dos rios. Às
balho do vidro e do osso e outras matérias- suas defesas naturais acrescentam muros de
-primas. Por todas estas razões, os oppida pedra em seco e, por vezes, de pequenos fos-
eram também centros de intercâmbio com sos e de campos de pedras aparelhadas. As
importantes redes comerciais. Existem zonas pequenas explorações rurais, pelo contrário,
residenciais para as elites e para a população são ainda pouco conhecidas.
comum, zonas sagradas com santuários e ou- Na parte oriental da Meseta, entre os celtibe-
tras dependências, e também espaços vazios, ros, impôs-se rapidamente o modelo da «rua
muito possivelmente para a realização de fei- central», com casas de planta retangular,
ras ou para abrigar atrás das suas muralhas como a fase inicial de El Ceremeño (Guadala-
a população dispersa nos arredores em mo- jara). Os maiores povoados teriam tido ape-
mentos de conflito e perigo. nas algumas centenas de habitantes, não ha-

A anatomia interna dos oppida permite-


nos identificar bairros artesanais com
oficinas de cerâmica e metalurgia
ASC

Maqueta da reconstrução
do oppidum celta de Mont
Vully. Museu Laténium
(Hauterive, Suíça).

73
600 ha
Superfícies
400
Manching
Oppida
Villeneuve-Saint-
Závist 300
Germain
0 1000 m
200
Oppida
50 - 100 ha

Roma
Bibracte
10 - 50 ha

Paris
(Charles V)
5 - 10
ha
Um campo de
Atenas futebol equivale
a um hectare

Os grandes oppida, com intensa


ocupação do espaço, albergavam
populações nunca antes vistas
Paliçada de madeira TIPOS DE MUROS OPPIDA DA SEGUNDA IDADE DO FERRO
Aterro
Mar do Norte Zona murada do tipo
El Murus Gallicus
ba
Camulodunum Rhin Zona com paredes
Verulamium
verticais do tipo poste
Fosso C Stradonize
Zavist

Fosso Hengitsbury Head


Canal da Noviodunum
A Kelheim
Bratislava
Mancha Trisov
Manching
MURO DE Sen
a
ATERRO Lutetia Heidengraben
Danub

Cenabum Magdalensberg
B
io

Alesia
Avaricum
Levroux Bibracte
Brixia
Oceano
Atlântico Gergovia Mediolanum PAREDE DE POSTES
Uxellodunum
Viena VERTICAIS
MURUS Bononia

GALLICUS
Nages Entremont
Golfo de
Tolosa Génova
Golfo de Lyon

Mar Mediterrâneo

74
Muralha do segundo
recinto do castro de
La Mesa de Miranda.
Chamartín (Ávila).
ASC

via hierarquia de território e as comunidades çam possíveis espaços sagrados ou rituais no


deviam ser pequenas, bastante homogéneas, oppidum de Ulaca, em Ávila.
igualitárias e auto-suficientes. A partir do sé- No noroeste, por volta de 400 a. C., no ter-
culo III a. C., o tipo essencial de povoamento ritório dos galaicos, os castros estendem-se
passou a ser o oppidum, centro fortifica- pelos vales, em pontos mais baixos, junto a
do destinado a defender a comunidade e os terrenos bem irrigados e com visibilidade
seus bens, observando-se simultaneamente homogénea do território. A população es-
um processo de organização hierárquica do taria a aumentar significativamente, pois o
território. Numancia é um bom exemplo das número de castros multiplica-se em mui-
cidades celtiberas. tas zonas por 2 ou 3, sem dúvida devido à
No centro da bacia do Douro, os oppida va- intensificação agrícola. Os castros, com
ceus maiores devem ter tido uma popula- pequenas áreas, entre 1 e 2 ha, têm mais
ção de alguns milhares de habitantes. Estes elementos defensivos, as portas são mais
centros têm muralhas de adobe e madeira elaboradas e são frequentes os castros com
com fortes fossos, grandes zonas residen- múltiplos recintos. Por volta dos finais do
ciais e subúrbios fora das muralhas, com século II a. C., surgem os oppida, grandes
bairros e lixeiras. Ruas mais ou menos re- povoações com alguns milhares de habitan-
gulares delimitavam quarteirões abertos tes, com estruturas públicas monumentais
para as ruas, embora se conheçam poucos como santuários, cisternas, ruas calceta-
pormenores devido à falta de escavações das, saunas e canais de água, de que são
em extensão. exemplo Sanfins e Briteiros.
Nas planícies ocidentais da Meseta, as po- Os castros asturianos —Campa Torres, San
voações dos Vetões eram, na sua maioria, Chuís, Morrión, Caravia e muitos outros—
de construção recente, com boas defesas — partilham algumas caraterísticas com os ga-
fossos, campos de taipa e muralhas de pedra laicos a oeste e os cântabros a leste, enquan-
com torres e, por vezes, baluartes maciços — to os situados do outro lado da cordilheira
e as mais importantes, como Las Cogotas, La cantábrica apresentam mais afinidades com
Mesa de Miranda, Yecla de Yeltes ou El Raso, a zona vácea do Douro.
encerram grandes superfícies de 20 a 70 ha
com vários recintos amuralhados, o que é
típico da zona vetã. O casario é insular, sem
verdadeiras ruas, oferecendo uma organiza- ALBERTO LORRIO ALVARADO
ção interna muito diferente do modelo urba- Pré-historiador (Universidade de Alicante)
no celtibero ou vaceu. Há pouca informação GONZALO RUIZ ZAPATERO
sobre edifícios públicos, embora se conhe- Pré-historiador (UCM)

75
JOSEOLGON CC BY-SA 3.0

Castro de São
Caetano.

76
Castros classificados como

MONUMENTO
NACIONAL
EM PORTUGAL
O
território português é rico em vestígios da
cultura castreja. Muitos são os castros que
se distribuem por todo o país, com espe-
cial incidência na região Norte, mas tam-
bém na região de Lisboa. Aqui apresentamos uma
breve caracterização daqueles classificados como
Monumento Nacional.

Castro de São Caetano


Local: Monção, Longos Vales
Povoado proto-histórico dos finais da Idade do Bron-
ze, com posterior ocupação romana. Situado num
outeiro proeminente ao Ribeiro de Silvas. Era defen-
dido por três linhas de muralhas que circundam o
povoado, construídas com silhares assentes em seco,
formadas por duas paredes e preenchidas com pedra
miúda. Foram identificadas construções de granito
de planta circular e quadrada, com ou sem vestíbulo.
Apresentavam um suporte de sustentação de cober-
tura que seria em tégula e imbrex e pavimentos em
terra batida. A estrutura de várias destas construções
abertas para um pátio lajeado era definida por um
muro, constituindo um quarteirão. Na parte superior
do povoado, um afloramento rochoso apresenta mo-
tivos gravados com a forma de serpente, fossetes, uma
ferradura e um quadrilátero. Do espólio desta estação
arqueológica fazem parte fragmentos de cerâmica da
Idade do Ferro, mós manuárias rotativas, moedas,
ferramentas metálicas artesanais, alfaias agrícolas
e armas, fíbulas em bronze tipo Anular e objetos de
adorno vítreos. Este espólio encontra-se disperso
(Museu de Arte Sacra e Arqueologia do Seminário de
Santiago, em Braga, na Junta de Freguesia de Longos
Vales e no Instituto de Arqueologia da Universidade
Portucalense, no Porto).

77
Castro da Cividade de Paderne tegicamente no alto de um monte, aproveita
Local: Melgaço, Paderne o declive do terreno como defesa e fornece
Povoado fortificado proto-histórico da Idade domínio visual de vastas áreas para contro-
do Ferro, com ocupação romana. Castro de lo de entradas e saídas na foz do rio Lima.
pequenas dimensões, apresenta uma linha Povoado da Idade do Ferro com posterior
de muralha de planta elíptica e posiciona- ocupação romana, inclui-se na tipologia dos
-se numa cota baixa com vista à exploração castros do Minho e da Galiza. Possui três li-
agrícola dos terrenos de aluvião. A muralha é nhas de muralhas com torreões de reforço
formada por duas paredes de blocos assentes e com fossos intermédios. As muralhas são
em seco, preenchidas interiormente com pe- constituídas por 2 muros paralelos, com o
dra miúda. A estrutura defensiva é reforçada interior preenchido por pedras e terra. As
na zona de mais fácil acesso, por um fosso es- casas, distribuídas irregularmente dentro
cavado na rocha. O seu espólio é constituído da muralha mais interior, apresentam uma
por fragmentos de cerâmica da Idade do Fer- arquitetura muito própria, com diferentes
ro e romana e por um fragmento de estátua plantas. Algumas, de aparelho helicoidal e
antropomórfica. planta redonda, possuem um vestíbulo ou
átrio e também, por vezes, fornos de cozer
Castro de Sacóias o pão e um escoadouro para a água. Várias
Local: Bragança, Baçal apresentam no exterior, pias, mós, fornos e
Aglomerado proto-urbano. Povoado da Idade bebedouros, possivelmente para o gado. É
do Ferro, com posterior ocupação romana. um dos castros mais conhecidos do Norte de
Encontra-se bastante destruído, existindo Portugal e dos mais importantes para o estu-
apenas pequenos muros formados por pedras do da proto-história e romanização do Alto
de dimensão reduzida, encontrando-se ves- Minho. O espólio recolhido é semelhante ao
tígios de telhas, tijolos e mós. Situa-se a 7 Km da Citânia de Briteiros.
de Bragança, num pequeno cabeço. Nele se A ocupação inicial supõe-se ter ocorrido no
ergue a capela de Nossa Senhora da Assunção. séc. VIII a.C.
O espólio recolhido deste povoado encon-
tra-se na Sociedade Martins Sarmento, no Castro de Ázere
Museu Municipal de Bragança e no Museu de Local: Arcos de Valdevez, Ázere
Arqueologia. Povoado da Idade do Ferro, construído no
séc. VIII a.C e com posterior ocupação ro-
Povoado Fortificado de Santa Luzia mana (séc. II d.C). Este castro é fortificado
Local: Viana do Castelo com um número incerto de muralhas, dada
Castro de grandes dimensões, situado estra- a configuração do terreno, e para aproveita-

CAMARA MUNICIPAL VIANA DO CASTELO

Citânia de Santa Luzia.

78
SHUTTERSTOCK

Castro de Monte Padrão.

mento das defesas naturais, com patamares timentos irregulares. A seu lado, outra gran-
a ocidente e declives a norte e Sul. As casas de construção de planta retangular apresen-
apresentam planimetria circular e quadrada. tava pavimentos lajeados e caleiras de escoa-
Do espólio, mínimo, constam moedas dos mento. No que respeita à ocupação medie-
imperadores romanos do séc.I, um anel de val, regista-se, numa plataforma superior ao
bronze e um fragmento cerâmico primitivo complexo romano, um templo alti-medieval
ornamentado. dedicado a S. Rosendo, ao qual se sobrepôs,
na baixa idade média, uma construção con-
Castro de Bagunte temporânea de uma extensa necrópole de
Local: Vila do Conde inumação constituída por caixas sepulcrais
Também conhecido como Cividade de Ba- com paredes delimitadas por lajes de granito.
gunte, era um povoado proto-histórico forti- Neste local terá existido um castelo medie-
ficado de grandes dimensões, possuindo cin- val, tendo sido encontrado espólio cerâmico
co linhas de muralhas. A plataforma central coevo. Situa-se num local sobranceiro ao rio
possui cerca de 325 m no eixo maior e 150 m Sanguinhedo.
no eixo menor. Foram identificados alguns
núcleos com construções de planta circular Castro de Alvarelhos
e retangular. Localiza-se numa zona elevada, Local: Alvarelhos, Trofa
destacando-se na paisagem. Também conhecido como Povoado Fortifica-
do de São Marçal, é um povoado dos finais da
Castro de Monte Padrão idade do Bronze, com fortificação da Idade
Local: Santo Tirso, Monte Córdova do Ferro. Situa-se num contraforte da serra
Povoado proto-histórico da Idade do Bronze de Sta. Eufémia, sobranceiro ao Vale da Ri-
final e continuidade da Idade do Ferro, com beira da Aldeia, afluente do Cávado. Estação
ocupação posterior romana e medieval. As arqueológica de grande importância pelos
posteriores linhas defensivas são constituí- materiais aqui recolhidos, designadamente
das por 3 linhas de muralhas. Na área central tesouros monetários, um deles constituído
identificam-se construções de planta circu- por cinco mil denários e nove ponderais em
lar, evidenciando sobreposições de ocupa- prata, um umbo de escudo e partes de uma
ção. Sinal da forte romanização posterior sítula em bronze. De estrutura complexa,
regista-se uma casa de planta quadrangular, ocupa uma vasta área de perto de oitocentos
centrada num pátio lajeado, com pórtico en- mil metros quadrados. Revela intensa ocu-
volvente, em torno do qual se desenvolvem pação romana e medieval. As intervenções
vários compartimentos e tendo como anexo arqueológicas entretanto realizadas revelam
ao corpo principal, um conjunto de compar- inúmeros alinhamentos de construções cir-

79
culares e quadradas e um conjunto identifi- 4 ou 5 destas construções, que convergem
cado como um edifício possivelmente termal. para um pátio comum lajeado, formando um
quarteirão definido por um muro. As casas
Castro dos Arados tinham uma cobertura de tegula e imbrex e
Local: Marco de Canavezes, Alpendurada, algumas apresentavam as paredes interio-
Várzea e Torrão res rebocadas e pintadas. No espaço central,
Povoado proto-histórico fortificado com identificam-se duas construções que, pelas
posterior romanização. Localização sobran- suas grandes dimensões se pensa serem es-
ceira aos rios Douro e Tâmega. Possui três truturas religiosas. Na plataforma superior
linhas de muralhas (algumas atingindo 6 m foi implantado um cemitério medieval com
de altura), formando um recinto de contor- 34 sepulturas de laje granítica com orienta-
no elipsoidal. No seu interior ainda se iden- ção Nascente-Poente, estando-lhes sobre-
tificam vestígios de construções de planta postos os alicerces de uma capela dedicada
circular e retangular. Aqui foi encontrado a S. Romão. No sopé do povoado, dentro da
um forno cerâmico e uma necrópole com muralha exterior encontra-se um edifício de
12 sepulturas, cavadas no terreno saibroso e banhos públicos, de pedra soterrada, sendo
todas cobertas com lousas. Uma das sepultu- visíveis os tanques para banhos, a canaliza-
ras apresentava na sua cabeceira uma estela ção e conduta em granito, para além de um
com uma cruz gravada, inserida num círcu- forno de planta subcircular com teto aboba-
lo. O espólio encontrado nas sepulturas era dado e uma câmara retangular de pavimento
da época do baixo e alto império romano. lajeado e uma fonte de mergulho. O vasto
espólio encontra-se no Museu Arqueológi-
Citânia de Sanfins co da Citânia de Sanfins e é constituído por
Local: Paços de Ferreira, Sanfins cerâmica da Idade do Ferro e romana, arte-
Povoado proto-histórico do séc.II a.C., com factos metálicos, numismática, objetos de
posterior ocupação romana e medieval, de- adorno e peças de joalharia em ouro e prata,
fendido por três linhas de muralhas que o aras anepígrafas, entre outros.
circundam, e uma muralha exterior de re-
forço, acrescida de um fosso escavado no Citânia de Sabroso
afloramento. Junto à porta da 2ª muralha Local: Guimarães, Sande e Balazar
foram encontrados os pés esculpidos numa Povoado proto-histórico fortificado, sem
rocha, do que seria uma estátua de guerrei- vestígios de romanização. Possui uma única
ro. O povoado estrutura-se a partir de um linha defensiva, de muralhas em talude, de
arruamento principal, ao qual se articulam forma poligonal, com cerca de 3 m de altura
perpendicularmente outros arruamentos e 4.5 m de espessura. No interior da mura-
secundários. Foram identificadas cerca de lha, numa área de 180x100 m identificam-se
160 construções graníticas de planta circular cerca de 35 casas de planta circular e 3 casas
com e sem vestíbulo e de planta quadran- de planta retangular com os cantos arredon-
gular. As estruturas habitacionais integram dados. Nas rochas cimeiras do monte en-

Citânia de Sanfins.
SHUTTERSTOCK

80
CM GUIMARÃES/PAULO PACHECO
Citânia de Saboroso.

contram-se gravados círculos concêntricos nas, revestidas de cerâmica e cobertas com


e covinhas. Situa-se num pequeno monte a imbrices, além de outros objetos arqueológi-
uma cota de 278 m. cos, entretanto destruídos e dispersos. Situa-
-se no cume do Monte do Bom Sucesso a 765 m
Citânia de Briteiros de altitude. Os materiais dominantes são mu-
Local: Guimarães ros de alvenaria granítica irregular. O espólio é
Povoado proto-histórico com provável iní- constituído por telhas, cerâmica pré-romana,
cio no séc.I – séc.II a.C e posterior roma- instrumentos de pedra, ferro e bronze e cerâ-
nização no século I d.C. Castro de planta mica diversa, com e sem decoração da Idade
ovalada, de grande dimensão, a Citânia de do Bronze e do período romano.
Briteiros é o mais emblemático exemplo da
cultura castreja do Norte da Península Ibé- Cava de Viriato
rica. Este conjunto arqueológico é o mais Local: Viseu
estudado em Portugal, tendo-se iniciado as Construída como acampamento defensivo,
escavações no séc. XIX por Martins Sarmen- supostamente em 56 a.C., esta estrutura de
to. Possui quatro linhas de muralhas e a área entrincheiramento de grandes taludes de
central, com cerca de 250x150 m organiza-
-se segundo 2 eixos principais, complemen-
SOCIEDADE MARTINS SARMENTO

tados por ruas transversais, que dividem o


Citânia de Briteiros.
povoado em quarteirões, onde se erguem
casas de planta circular e retangular. Situa-
-se no topo de uma elevação. O espólio reco-
lhido encontra-se nos museus da Sociedade
Martins Sarmento.

Castro do Bom Sucesso


Local: Mangualde, Tavares
Povoado proto-histórico fortificado, com evi-
dências de ocupação desde a Idade do Bronze,
prolongando-se até à Idade do Ferro. Apresen-
ta vestígios de estruturas defensivas angulares
e arqueadas e alicerces de habitações de planta
circular, bem como de sepulturas luso-roma-

81
terra, ladeados por um fosso, tem uma for- melhanças com castros da região da Figueira
ma octogonal com mais de 2 km de períme- da Foz e de Castela. O espólio recuperado en-
tro. Inicialmente existiriam quatro grandes contra-se no Museu de Mação (utensílios de
portas, indiciando um ordenamento de ei- pedra polida, mós, objetos cerâmicos feitos à
xos ortogonais. mão ou com torno).

Castro de Tintinolho Estação Arqueológica da Pedra do


Local: Guarda, Alvendre Ouro
Povoado possivelmente da Idade do Ferro, Local: Lisboa, Alenquer
com ocupação posterior romana e medieval. Aglomerado proto-histórico da Época Calco-
Situado num cabeço a 920 m de altitude, so- lítica, intencionalmente situado a uma alti-
branceiro ao vale do rio Mondego, este castro tude média de uma encosta pedregosa, acima
isolado, provavelmente da época lusitana, da povoação da Pedra do Ouro e sobranceiro
apresenta 3 níveis concêntricos de muralhas a um vale transversal ao rio Tejo. As mura-
em granito e uma estrutura defensiva que lhas e a torre oca correspondem à fase final
se apoia na topografia natural, caracteriza- das construções eneolíticas. Apresenta tam-
da por grandes afloramentos rochosos. Em bém vestígios de um monumento funerário
toda a área identificam-se vestígios de cons- (tholos). O seu espólio está exposto no Museu
truções circulares e quadrangulares. Do seu Municipal de Alenquer, do qual se destacam
espólio fazem parte moedas romanas, visi- 2 peças: um vaso de uma época posterior à
góticas e portuguesas do reinado de D. João construção do castro, que se supõe ser cel-
I, para além de tégula, ladrilhos e fragmentos ta do séc.I a.C, e uma figurinha feminina de
de cerâmica e vidro. barro, as famosas Vénus, esta conhecida co-
mo Vénus da Pedra do Ouro.
Castro de São Miguel de Amêndoa
Local: Santarém, Mação, Amêndoa Castro de Rocha Forte
Povoado proto-urbano da Idade do Ferro (séc. Local: Lisboa, Cadaval
IV a séc. I a.C), com ocupação posterior ro- Aglomerado proto-urbano. Povoado fortifi-
mana e visigótica. Implantado numa colina, cado da Idade do Ferro. Encontra-se soter-
a 497 m de altitude, numa posição estratégica rado com o terreno coberto de mato e agri-
central face às bacias dos rios Tejo e Zêzere, cultura. Foi considerado Monumento Nacio-
apresenta vários recintos com muralhas em nal em 1910.
alvenaria e granito sem argamassa, que po-
dem alcançar 1,80 metros de espessura. O re- Castro de Vila Nova de São Pedro
cinto mais bem defendido situa-se no ponto Local: Lisboa, Azambuja
mais alto. Apresenta habitações dispostas as- Povoado proto-urbano da Época Calcolítica,
simetricamente, de planta retangular e qua- com anterior ocupação neolítica. Terá sido
drada, dotadas de 2 ou 3 compartimentos em fortificado em várias fases de ocupação, que
alvenaria com argamassa, correspondentes a lhe vieram a integrar duas linhas de mura-
cerca de 50 casas, das quais 10 são escavadas. lhas de pedra calcária. Na primeira fase seria
Também se identifica uma viela íngreme e um povoado aberto; na segunda fase foi ro-
estreita (entre 0,90 e 0,60 m). Apresenta se- deado por uma muralha de pedras cobertas

Cava de
DESENHO DE JOÃO DE PAVIA, SÉC.XVII.

Viriato.

82
VITOR OLIVEIRA CC BY-SA 2.0

Castro do
Zambujal.

com uma camada de barro. Desta fase foram Marchicão e do Rio Mira. Os restos de mura-
identificados um forno semicircular abobada- lha do castelo medieval formam um polígono
do, um depósito escavado no calcário e uma irregular com paredes de 2,4 m de espessura
cisterna; terão ocorrido ainda uma terceira média, atingindo nalguns pontos mais de 5 m
e quarta fases, com destruição do existente e de altura. Este castro integra-se num circuito
reconstrução de novo sistema defensivo. Si- arqueológico que se desenvolve numa área de
tua-se numa pequena península, com uma 15 km e é constituído por 23 estações arqueo-
elevação central e próximo às ribeiras de Al- lógicas, do neolítico à idade média, das quais
coentre, Carrascal e Massuca. de destacam o povoado calcolítico do Corta-
douro, os monumentos megalíticos Fernão
Castro do Zambujal Vaz I e II e o Tholos da Nora Velha, as necró-
Local: Torres Vedras poles do Porto de Lages, da Idade do Bronze, e
Um dos mais importantes povoados calcolí- do Pego da Sobreira e de Fernão Vaz, da Idade
ticos da região de Lisboa, instalado num local do Ferro e a da Vaga da Cascalheira. No espó-
onde talvez já tivesse existido um, de origem lio encontram-se machados de pedra polida,
neolítica. A sua ocupação prolongou-se até ao fragmentos de vasilhas da Idade do Ferro,
período argárico, sendo o mais setentrional cerâmica campaniense, contas de vidro e de
povoado do Cobre. Está implantado num ca- ouro, agulha em osso, braceletes em bron-
beço de altitude média, na serra do Varatojo, ze, mós, percutores, esferoides; cerâmica
sobranceiro a vales férteis, junto ao mar. Era romano-visigótica, árabe e portuguesa me-
fortificado por uma muralha reforçada por dieval, objetos em metal (fusos, cossoiros,
torreões e possivelmente uma segunda linha fivelas, chaves, argolas, etc.), objetos em pe-
de muralhas. Os seus construtores dedica- dra, pedras lavradas romanas e visigóticas,
vam-se à prospeção mineira e à metalurgia do lápides árabes, moedas e lucernas.
cobre, tendo desenvolvido intensas relações
comerciais dentro e fora da Península Ibérica
entre 3000 e 2500 anos a.C. As escavações ar- EQUIPA EDITORIAL TEMPUS ART
queológicas revelaram que a sua construção
se desenvolveu em várias fases cronológicas.
Da antiga fortificação resta apenas o núcleo
central com cerca de 25 m de diâmetro. As
casas, de planta oval, eram construídas em
adobe e tinham cerca de 6 m de diâmetro. O
seu espólio encontra-se no Museu Municipal
de Torres Vedras.

Castro da Cola
Local: Beja, Ourique
Povoado proto-histórico da Idade do Bronze
e da Idade do Ferro, com ocupação medie-
NEMRACC CC BY 3,0

val islâmica, também designado de Cidade


de Marrachique. Ocupa o cume de um mon- Castro da Cola.
te com 200 m de altitude junto da Ribeira de

83
VIDA QUOTIDIANA
NOS CASTROS
A sociedade celta era rural e exalava uma profunda vitalidade em todas as suas atividades. Os castros, as
suas povoações fortificadas, eram um labirinto urbano: uma rua principal dava acesso aos alojamentos
familiares, que não comunicavam entre si.

Era assim que A lareira Situada no interior


comiam da habitação, servia para
aquecer e cozinhar com fogo.
Durante os banquetes, As madeiras, encaixadas
que incluíam carne de em dois buracos na parte de
porco cozida, carne de trás de uma base de pedra,
vaca, javali, mel, queijo, seguravam os potes de
manteiga e pão — de comida com cordas.
trigo, painço, figos e
castanhas ou bolotas
— os comensais atira-
vam a comida uns aos
outros até acabarem
em verdadeiras bata-
lhas campais. Comiam
com as mãos, sentados
à mesa, e usavam um
punhal para cortar os
pedaços duros. Apesar
dos excessos, o grego
Estrabão registou a re-
pulsa que sentiam pela
obesidade («nenhum jo-
vem é perfeito se ultra-
passar o comprimento
fixo do seu cinto»).

...e assim
bebiam.
A embriaguez era
contínua entre
os Celtas, que
fabricavam hidromel
e chorma — cerveja
de trigo com mel — e
eram apaixonados
pelo vinho, a tal
ponto que, como
não o produziam, o
importavam de Itália
em troca de sal, cães,
peles, escravos, etc.

* Bairros no interior do castro O chão O corte mostra a terra Casa completa Entre 1965 e
O castro de Santa Tecla, em Pontevedra original, a primeira camada — 1972, foram reconstruídas duas
(Noroeste de Espanha), tem 20 hectares, pequenas pedras para nivelar casas completas no castro,
data do século I a. C. e permitiu aos o chão — e a última camada com os seus telhados cónicos
arqueólogos recriar parcialmente o — argila batida. A reentrância de colmo ou material vegetal.
que era um povoado celta e como se na entrada é uma ombreira, Foi acrescentada uma janela
distribuía a sua unidade básica: o bairro onde um pau servia de pivô polémica, cuja existência não
familiar, aqui detalhado. para a porta. está documentada.

84
Capas, sandálias e ornamentos Oferendas à natureza
Os Celtas usavam capas de lã escura — abertas Os riachos, lagos e rios sagrados eram
de um lado e presas com um broche no ombro o destino de todo o tipo de oferendas
oposto — e sandálias de cânhamo e de couro. rituais — pontas de lança, capacetes,
Adornavam-se com torques e fíbulas de metal; espadas. Um povo gaulês, os Volcos
usavam colares, pulseiras e sinos. Tectosagos, chegou mesmo a oferecer
200 000 libras de ouro e prata.

Loja O trigo, o centeio, a cevada e o Estrutura Depois de construir a


painço eram armazenados em frascos base circular de pedras — talhadas
num silo fechado de 1 m de altura para para encaixar quando secas — o
impedir o acesso dos animais. Um telhado era montado com um poste
pequeno telhado de barro era então central de madeira e ramos dispostos Muro exterior A sua
colocado sobre o silo para o proteger num eixo cónico. Mais tarde, a casa função era proteger o
da chuva. era rodeada por um vestíbulo. castro dos ventos fortes
e delimitar o espaço
geográfico do povoado.
Os cantos eram
arredondados ou em
aresta. As construções
quadrangulares são um
contributo romano.

Forno Situado no
vestíbulo, era aquecido
no interior até se poderem
retirar as brasas. De
seguida, colocava-se a
massa de farinha e fechava-
se. Para além de cozer pão,
era utilizado para cozer
barro —cazuelas-e para
fundir metais.

O papel das mulheres * A bravura das


As mulheres celtas gozavam de igualdade de tratamento mulheres celtas é
com os homens. Para além das tarefas domésticas, dedi- lendária. Tácito, o
Cisterna Nos pátios cavam-se à educação e às armas — podiam ser instru- historiador romano,
pavimentados havia um toras militares e até comandantes. As mulheres solteiras descreveu-as
buraco escavado na pedra desdenhavam a virgindade, escolhiam vários amantes e como «mulheres
para recolher a água da chuva. eram livres de recusar o namoro. As mulheres não eram desgrenhadas com
Era o bebedouro dos animais subservientes aos maridos, tinham o direito de possuir vestes negras, como
domésticos — porcos, vacas, fúrias empunhando
bens e eram indemnizadas em caso de separação legal.
cabras, ovelhas — que andavam tochas».
As mães eram consideradas deusas protetoras.
ALBUM

livremente à volta do castro.

85
Quinta experimental de Little Butser, em
ALBUM

Hampshire. As plantas tintureiras eram


cultivadas em quintas da Idade do Ferro e
utilizadas para tingir tecidos.

UMA SOCIEDADE DE
AGRICULTORES
E CRIADORES
86
DE GADO 87
U
m povo pastor-guerreiro, criador mentos derivados de plantas, especialmente
de gado: é esta a imagem dos Cel- cereais ou frutos colhidos. Recorde-se que
tas que nos é transmitida pelos um erudito romano, Plínio, na sua obra His-
escritores romanos. As suas in- tória Natural (18.68), afirma que o pão de
formações são muito escassas, mas tiveram trigo era uma especialidade dos gauleses, o
um grande peso na ideia coletiva que subsis- que deve ter acontecido porque gozava de
te sobre a economia celta. Felizmente, a ar- muito boa reputação entre outros autores
queologia avançou e a análise dos vestígios da época. Se disséssemos que a boa reputa-
dos povoados escavados revela a complexa
atividade agro-pastoril que caraterizava o
mundo celta. No entanto, num espaço tão
vasto como o que ocupavam, deve ter havi-
do nuances regionais. Para além destas, há
indícios de formas comuns, como na cultura
material, nas ideias e na língua.
A organização do território reflete uma sá-
bia utilização dos recursos disponíveis, ten-
do as populações áreas de cultivo à sua volta
para autossuficiência, complementando a
sua alimentação com a caça e a recoleção.
Há que ter em conta que as sociedades pe-
cuárias criavam os seus animais não só para
alimentação, mas sobretudo como fonte de
riqueza que podia ser trocada por outros
bens, e pelos produtos obtidos a partir de- Foice de ferro
les, como o leite, a lã ou o couro. De facto, os de La Tène
estudos paleodietéticos mostram que a base (400-300 a. C.)

ALBUM
da sua dieta não era a carne, mas sim ali-

O uso de arados cada vez mais


aperfeiçoados e de técnicas sofisticadas
de cultivo itinerante é difícil de
documentar através da arqueologia
ALBUM

Agricultor com arado


e animal. Estatueta
de bronze do rio
Saone, França.

88
Molde de uma pequena
figura de touro encontrada
ção do pão francês remonta à época celta,
numa gruta do Karst da
pareceria um exagero, mas é interessante
Morávia (século V a. C.).
lembrar que a charrua de ferro, instrumen-
to indispensável para o cultivo do trigo em
grande quantidade, em francês «soc», de-
riva do nome gaulês «swch». O facto é que
os Celtas conseguiram cultivar, já no século
V a. C., terras que os seus antepassados não
tinham conseguido explorar. Isto foi pos-
sível graças à utilização de arados cada vez
mais aperfeiçoados e de técnicas sofistica-
das de alternância de culturas, descritas em
textos romanos, mas difíceis de documentar

ALBUM
através da arqueologia, porque não sobre-
viveram vestígios tão espetaculares como
outros aspetos da sua cultura.
natural — fornecem azoto ao solo mas, sem
o saberem, praticavam um sistema que lhes
MELHORIA DA PRODUTIVIDADE permitia não esgotar o solo, para que este
Os arados puxados por bois já eram co- se mantivesse produtivo. É por isso que,
nhecidos na Europa antes do mundo celta, em grande parte da Europa temperada, os
mas estes aperfeiçoaram-nos. Sabe-se que cereais, juntamente com a carne salgada,
utilizavam a relha, uma peça de ferro pon- constituíam uma parte importante das ex-
tiaguda que servia para lavrar a terra, com portações do mundo celta para os portos do
formas diferentes consoante a zona. Algu- Mediterrâneo.
mas comunidades utilizavam lâminas de As sementes conservadas nos povoados cel-
arado de forma estreita, o que lhes permi- tas escavados, desde a Europa Central até ao
tiu colonizar toda a Europa Central para a interior da meseta castelhana, mostram que
agricultura. No Tirol, está documentado um o trigo era consumido, nas suas variedades
outro tipo, com uma aiveca, para revolver de trigo comum e espelta. O cultivo do cen-
a terra e formar um sulco, o que aumenta teio progrediu durante toda a Idade do Fer-
a circulação do ar e a canalização da água. ro, sem dúvida devido à sua resistência ao
Além disso, foram conservados utensílios frio, e sabe-se que em locais como a Alema-
como enxadas, foices, picaretas e ancinhos, nha atingiu o seu auge no final do período.
desde os Balcãs até Espanha, que testemu- Na Grã-Bretanha, a espelta e a variedade
nham outros trabalhos agrícolas efetuados de cevada foram os cereais mais cultivados
manualmente. durante todo o primeiro milénio a. C.. Se-
Em toda a Europa celta, existiam muitos meadas no inverno, eram consumidas jun-
hectares de campos cultivados, o que au- tamente com os cereais de primavera, como
mentava a produtividade da terra e per- o trigo e a cevada pelada. Como eram colhi-
mitia obter rendimentos elevados. Não se das em duas alturas diferentes, difundiu-se
sabe desde quando se generalizou a prática a imagem de que havia duas colheitas por
da rotação de culturas, mas é possível iden- ano, que nos foi transmitida por escritores
tificar a sábia combinação entre a semen- como Diodoro da Sicília. Não podemos dei-
teira de cereais de inverno, a sementeira
de cereais de primavera e o pousio. César,
falando dos suevos, afirmou que estes não A descoberta de
cultivavam a mesma terra durante mais de
um ano, e Tácito salientou que os germa- estábulos nos Países
nos cultivavam um campo diferente todos
os anos e nunca lhes faltava terra. A produ-
Baixos e no Norte da
tividade dos campos era também mantida Alemanha confirma
pela sementeira intercalada de favas, ervi-
lhas ou nabos com a de cereais, que figuram
a existência de uma
nos registos de sementes recolhidos nos criação de animais
sítios escavados. Os Celtas não sabiam que
estes produtos — que são um fertilizante organizada

89
xar de referir o importante uso que faziam OS SENHORES DO GADO
da cevada para a produção de cerveja, de Se os vestígios deixados pela agricultu-
tal forma que o nome que lhe damos parece ra são débeis, os da criação de gado não o
derivar de um nome celta. E não era a única são. As técnicas de estudo sofisticadas de
bebida alcoólica que consumiam; sabemos que os arqueólogos dispõem atualmente,
também de outras que eram obtidas a partir nomeadamente a análise laboratorial do
do trigo húmido e fermentado. O vinho, por pólen extraído dos sedimentos das esca-
outro lado, era um produto de luxo impor- vações, revelaram a diminuição das zonas
tado do sul da Europa, e as sementes de uva arborizadas. Isto explica-se não só pelo de-
não aparecem nas regiões da Europa Central senvolvimento da agricultura, mas também
antes da conquista de Roma. O que se sabe pelo facto de a criação de gado necessitar de
que era consumido na Alemanha, na Suíça, pastagens. Há alguns anos, uma publicação
na Polónia e até na Eslováquia, eram frutos científica chamou às populações pré-ro-
silvestres como a avelã e a faia, tal como na manas do oeste da Península Ibérica «Os
Hispânia se comia bolota transformada em Senhores do Gado», o que poderia ser alar-
farinha. Outras espécies vegetais devem gado à maior parte das comunidades celtas,
também ter sido cultivadas para a produção porque sublinha justamente a sua vocação
de linho e de cânhamo, pois existem ricas para a criação de gado. Os escritores ro-
necrópoles principescas nas quais estão bem manos deixaram-nos aqui e ali notícias
representadas as tecelagens feitas com elas. avulsas sobre estes povos como criadores
de ovinos, caprinos e bovinos, dados que
concordam com a análise dos ossos recu-
perados nas escavações arqueológicas.
A descoberta de estábulos nos Países Baixos
Cópias de
alfaias agrícolas e no norte da Alemanha confirma a existên-
utilizadas numa cia de uma pecuária organizada, com áreas
casa em La Téne. bem delimitadas onde os animais podiam
pastar sem invadir as terras alheias. Em
Espanha, o aparecimento de esculturas de
pedra de porcos e touros na zona dos Ve-
tões, em Ávila e Salamanca, foi interpreta-
do como possíveis marcadores territoriais
para controlar o acesso a zonas com melhor
pasto, uma vez que a manutenção do gado
exige pastos seguros e fontes de água. Em
algumas zonas, especialmente nas mon-
tanhas, foi revelada a existência de tran-
sumância, a deslocação de pessoas com os
seus rebanhos para aproveitar as pastagens
das terras altas no verão e as dos vales no
inverno. Este facto não é surpreendente,
pois a mobilidade — mesmo dentro de um

Os ovinos e
caprinos são
as espécies mais
representadas
nos castros da
Península Ibérica,
seguidos dos
bovídeos e suínos
ALBUM

90
Conjunto escultórico
Vetón de Los Toros
de Guisando, em El
Tiemblo (Ávila).

SHUTTERSTOCK
território delimitado — é comum nas co-
munidades pastoris, que se deslocam para

ALBUM
melhor aproveitar os recursos do meio. A
especialização do gado variava entre as di-
ferentes regiões onde viviam as populações
celtas. O gado diversificou-se e adaptou-se
às condições de cada meio. Os ovinos e ca-
prinos são as espécies mais representadas
nos castros da Península Ibérica, seguidos
dos bovídeos e suínos. Nas quintas do final
do período La Tène escavadas na Europa Moeda de ouro do rei dos
Central, os porcos representam até 40% dos catuvelaunos, Cunobelino.
ossos recolhidos. É interessante notar que, (10-40 d. C.).
no sítio de Villasviejas del Tamuja (Cáceres),
faltam os ossos das espáduas dos porcos en-
tre os restos ósseos presentes no sítio, o que
pode ser uma prova de que estas partes não mente que possuir um cavalo era uma ca-
eram consumidas pelas pessoas que aí vi- raterística de elevado estatuto social e um
viam, provavelmente porque os presuntos símbolo de poder.
já eram exportados. Por último, é de referir Em suma, as caraterísticas do espaço rural
a presença de cavalos entre os animais cria- europeu que surgiram na época celta deram
dos pelos Celtas, documentados a partir de forma a uma paisagem que se manteve pra-
800 a. C. em toda a Europa como um animal ticamente inalterada até aos nossos dias.
de prestígio. São representados em moedas,
ornamentos e decorações de cerâmica. Nos
túmulos mais ricos, encontram-se arreios ANA MARTÍN BRAVO
e outros objetos colocados nos cavalos para Diretora do Serviço de Documentação
permitir a sua montaria, o que indica clara- do Museo Nacional del Prado

91
O PESO DA

MOE

Lingotes e
fragmentos de
prata do tesouro
de Driebes. Cerca
200 a. C. MAN.
Foto: Fernando
Velasco Mora.
ASC

92
DA

93
Tetradracma de Filipe II da ASC

Macedónia (359-336 a. C.)


MAN. Foto: Fernando
Velasco Mora.

A
s moedas são um dos
testemunhos arqueológi-
cos mais importantes para o
conhecimento das sociedades
celtas. Autênticos objetos falantes, docu-
mentos emanados diretamente dos poderes
instituídos, sobreviventes materiais de anti-
gos Estados desaparecidos, constituem um
elemento fundamental para a compreensão
de realidades dificilmente apreensíveis por
outras vias. Mas a sua relevância vai para por fim, as utilizaram. No entanto, da teoria
além da sua evidente utilidade económica: à prática há um longo caminho a percorrer.
através delas podemos definir as estruturas O maior problema — ou incentivo — é o facto
políticas em que se organizavam os povos de não existir uma moeda celta, mas muitas.
celtas, aproximarmo-nos da sua organização O imenso território coberto pela Europa
territorial, conhecer os nomes de cidades e de celta, a sua enorme fragmentação e as dife-
pessoas ou vislumbrar a mentalidade daque- rentes personalidades de cada comunidade
les que decidiram cunhá-las e daqueles que, materializam-se num grande número de

94
Os territórios periféricos só
começaram a incorporar a vida
monetária a partir do século III a.C.
emissões monetárias muito diversas, desen- ANTES DA MOEDA
volvidas ao longo de 300 anos, nas quais é Na nossa mentalidade atual, a moeda é um
difícil encontrar um fator comum. dinheiro universal. Permite-nos medir o va-
Talvez o fator mais partilhado seja precisa- lor das coisas, comprar e vender, pagar sa-
mente a forma como a moeda foi introduzida lários e representar a identidade coletiva de
nas sociedades celtas, uma forma de dinhei- um país. Mas é apenas uma das muitas for-
ro nascida por volta de 600 a. C. no extre- mas de dinheiro que existiram ao longo da
mo oriental do mundo grego, no que é hoje história, embora seja a mais bem sucedida.
a costa mediterrânica da Turquia. A partir As moedas que podem ter sido utilizadas na
daí, a sua utilização espalhou-se pelas cida- Pré-História e na Proto-História europeias
des gregas e não só, atingindo toda a costa nem sempre deixaram vestígios no registo
mediterrânica e regiões adjacentes. Foi um arqueológico ou, se o fizeram, não são fá-
processo rápido mas desigual; os territórios ceis de identificar. Mas a ausência de moeda
periféricos, como a maioria dos celtas, só co- não implica o recurso à troca, que, a certos
meçaram a incorporar a vida monetária no níveis, pode tornar-se uma atividade muito
século III a. C. complexa e pouco ágil.
O que sabemos do mundo grego antes do
aparecimento da moeda, dos usos na Meso-
CREDITO

ASC

Moedas do tesouro de
Driebes. Cerca de 200
a.C. MAN. Foto: Miguel
Ángel Camón Cisneros.

95
potâmia e no Egito, e das comparações com graças aos paralelos no Próximo Oriente, a
outras sociedades, antigas e modernas, que algumas alusões de geógrafos e historiadores
também não utilizavam moeda, sugere que clássicos — como a referência de Estrabão às
na Europa da Segunda Idade do Ferro qual- «lâminas» de prata de alguns povos do in-
quer coisa, desde cabeças de gado e cereais a terior da Península Ibérica — e aos achados
objetos como torques, espetos ou caldeirões, arqueológicos.
poderia ter funcionado como dinheiro. Mas Conjuntos como o tesouro de Driebes (Gua-
o dinheiro mais conhecido é o metal a peso, dalajara), constituído por cerca de 14 kg de
lingotes de vários tamanhos, objetos de prata
cortados e 19 moedas partidas, demonstram
a utilização da «prata cortada» em pelo me-
nos algumas das zonas consideradas celtas.
O espólio é datado do final da Segunda
Guerra Púnica ou pouco depois, por
volta de 200 a. C. Este foi um conflito
importante para a Hispânia, pois foi
o ponto de viragem para a difusão
maciça do uso da moeda.

DA IMITAÇÃO À
IDENTIDADE
A origem da primeira
cunhagem celta reside na
cópia direta das moedas
gregas. A imitação de
moedas de prestígio,
aceites no comércio

Imitação celta do
ASC

tetradracma de
Filipe II da Macedónia
(359-336 a.C.). MAN.
Foto: Miguel Ángel
Camón Cisneros.

96
A origem da primeira cunhagem celta
está na cópia direta de moedas gregas,
como as de Filipe II da Macedónia

Estáter de ouro dos nérvios (norte


da Gália). Século II-III a. C. MAN.
Foto: Alberto Rivas Rodríguez.

ASC

local ou internacional, é um fenómeno


recorrente na história. Neste caso, as emis-
sões copiadas são as de Filipe II da Macedó-
nia (359-336 a. C.) e as das colónias gregas
do extremo ocidente, Massalia (Marselha,
França), Emporion e Rhode (São Martinho
das Ampúrias e Rosas, Gerona). inscrições que identifiquem a autoridade
As tetradracmas de prata de Filipe eram a emissora, pelo que a sua atribuição a povos
moeda de referência para os celtas da ba- ou poderes específicos é uma questão em
cia do Danúbio, enquanto as imitações das aberto.
suas estáteres de ouro eram produzidas nu- As imitações meridionais justificam-se pelas
ma área muito vasta, que se estendia da Eu- relações comerciais e pessoais com as zonas
ropa Central à Britânia. No sul da Gália, as costeiras mediterrânicas, enquanto as liga-
dracmas de Rodes, cunhadas no século III, ções entre o reino da Macedónia e as popu-
inspiraram abundantes emissões de pra- lações celtas vizinhas explicam a cópia das
ta, conhecidas como moedas «à la croix», moedas de Filipe. O principal meio de entrada
«com cruz», pois estilizavam o mais possí- deve ter sido o salário dos mercenários alista-
vel a rosa original de Rodes. Não apresentam dos nos exércitos macedónios, embora outros

97
Moeda de prata dos
éduos, em nome de
Dumnorix Bibracte
(Mont Beauvray, França),
ca. 60-54 a. C. MAN.
Foto: Ángel Martínez
Levas.

ASC

estímulos, como presentes diplomáticos ou


cerimoniais entre as elites governantes, te-
nham sido sugeridos para a difusão das moe-
das de ouro, que, devido ao seu elevadíssimo
valor intrínseco, têm usos mais restritos.
O imaginário macedónio enquadrava-se bem
na mentalidade celta. As cabeças dos deuses
gregos também seriam vistas como sagra- A partir do século II, a cunhagem celta ex-
das, devido ao significado especial da cabeça pandiu-se e diversificou-se, incorporando
humana no seu imaginário religioso. O car- o bronze e as moedas romanas como novo
ro vitorioso e o cavaleiro enquadram-se no modelo. As moedas em metais pobres, como
simbolismo equestre das elites, enquanto o as potines gaulesas — fundidas em moldes
estilo de gravação se adapta à sensibilidade numa liga de cobre, estanho e chumbo —
artística celta, criando desenhos próprios. que podem ter funcionado como pequenos

A partir do século II, a cunhagem celta


incorporou o bronze e as moedas
romanas como novo modelo

98
trocos locais, são testemunho de uma utili- Os celtiberos adotaram o signário ibérico pa-
zação relativamente generalizada da moeda ra escrever os seus textos. Ao contrário dos
na vida quotidiana. seus parentes a norte dos Pirinéus, a prática
A Gália, o território celta mais conhecido, de incluir lendas nas moedas era generali-
reúne todas as caraterísticas da sua cunha- zada, e os nomes que aparecem são exclu-
gem, desde a imitação à multiplicidade de sivamente nomes de cidades. Graças a elas,
tipos e de potenciais poderes emissores. Tal sabemos da importância, ou mesmo da pró-
como na Hispânia, as fontes clássicas forne- pria existência, de lugares não mencionados
cem os nomes das vilas e cidades com que os nas fontes clássicas ou pouco conhecidos por
romanos se confrontaram a partir de finais outros meios. Como documentos oficiais, as
do séc. III a. C., mas é muito difícil atribuir moedas confirmam que a unidade política
as séries monetárias a povos específicos. No que articula o território celtibero não é a et-
caso dos gauleses, as suas inscrições, sempre nia ou o povo, mas a cidade.
em latim, parecem referir-se a indivíduos, Cunhadas em prata e bronze, apresentam
alguns dos quais são mencionados em tex- as mesmas tipologias dos seus vizinhos
tos literários, como o mítico Vercingetórix, ibéricos: cabeças masculinas e cavaleiros.
chefe dos arvernos, ou Dumnorix, dos éduos, Uma uniformidade que não é contrária aos
derrotado durante a guerra gaulesa. costumes celtas; sugeriu-se uma imposição
romana, mas parece responder mais a uma
O CASO DA CELTIBÉRIA mecânica de imitação. Para um utilizador
A dificuldade de determinar o que se consi- que não soubesse ler ibérico, todas as moedas
dera celta na Península Ibérica é abordada celtiberas e ibéricas em circulação no mesmo
noutros artigos deste número especial, mas momento pareceriam semelhantes, pelo que
não há dúvidas quanto à Celtibéria, a zona se enquadrariam naturalmente nos circuitos
melhor identificada tanto pelas fontes clás- económicos.
sicas como pela cultura material. De facto, a A cunhagem começou por volta de mea-
moeda é um dos materiais essenciais, mais dos do século II a. C. Embora cada oficina
numerosos e com maior tradição de investi- tivesse o seu próprio ritmo de acordo com
gação para compreender o processo histórico as suas necessidades, com inícios, volumes
dos séculos II e I a. C. de produção e períodos de emissão muito

Gauleses vistos por Roma


E
stes denários comemoram a conquista
da Gália por Júlio César. Juntamente
com os elementos tipicamente celtas,
o escudo e o carnyx, as cabeças de
dois gauleses, um homem e uma
mulher, sublinham a diferença
em relação aos romanos
«civilizados» (homens
sem barba e de cabelo
ASC

curto e mulheres de
cabelo apanhado).
No entanto, são
representados
com dignidade e
não como cativos.
O gaulês foi
representado como
Vercingetorix, mas
sem qualquer base
científica.

99
Na Hispânia, a maior parte das cidades
celtiberas deixou de cunhar moeda
no primeiro terço do século I a.C.

Unidade de Sekeiza,
cidade celtibera
(Poyo de Mara,
Saragoça). Meados
do século II a. C.
MAN. Foto: Antonio
Trigo Arnal.

ASC

diferentes. Como o seu aparecimento coin-


cide com o processo de conquista, têm sido
tradicionalmente interpretados como uma
exigência de Roma para o pagamento de im-
postos e tropas; no entanto, para além da gem de soberania e independência, devem
pressão romana, há outras razões ligadas às ter influenciado a decisão de cunhar a sua
necessidades da vida urbana. Obras públi- própria moeda.
cas, estradas, impostos e despesas militares, Por muito que as moedas celtas «falem» por
bem como o desejo de difundir uma ima- si, é essencial dispor de contextos arqueo-

100
Denário de Arekorata,
cidade celtibera (Muro
de Agreda?, Soria).
Circa 140-130 A. C.
Foto: Ángel Martínez
Levas.
ASC

lógicos fiáveis para avaliar a sua utilização


efetiva, definir as áreas de circulação das
emissões e delimitar a sua cronologia. Por
exemplo, os achados em locais de minera-
ção e acampamentos militares indicam que
os mineiros e os soldados utilizaram a moe- vilas e cidades a utilizar e emitir moeda, ou a
da mais do que outros setores da população, adaptar-se ao seu sistema, a cunhagem celta
provavelmente porque não tinham acesso teve uma vida própria, que foi esmorecendo
fácil a dinheiro alternativo. O seu apareci- no decurso do século I a. C., à medida que o
mento em santuários denota uma utilização mundo ia mudando e com ele uma popula-
ritual, como oferenda à divindade. Em todos ção cada vez mais romanizada. Na Hispânia,
os casos, a perda de moedas de bronze, um a maioria das cidades celtiberas deixou de
dinheiro que viaja nos bolsos, permite-nos cunhar moeda no primeiro terço do século.
visualizar a mobilidade das pessoas, por ve- Só algumas delas retomaram a cunhagem
zes a grandes distâncias. em latim anos mais tarde. Embora o poeta
Marcial, nascido em Bilbilis (Calatayud, Sa-
O FIM DAS ragoça), pudesse ainda proclamar no século
MOEDAS CELTAS I d. C. «Nós, nascidos de celtas e ibéricos»,
A República Romana nunca impôs a sua o facto é que nada ficou nas moedas desses
moeda nos territórios que controlava, em- tempos passados.
bora ela tenha chegado, mesmo em grandes
quantidades, com a ajuda dos exércitos e dos
negociadores itálicos que se instalaram nas
novas terras. Embora a sua ação direta ou a PALOMA OTERO MORÁN
sua crescente influência tenha incentivado as Museo Arqueológico Nacional

101
FERRO
O METAL NEGRO
DOS GUERREIROS
E CAMPONESES

102
Escultura

AGE
rupestre de Val
Camonica (Capo
di Ponte, Itália),
representando
guerreiros da
Idade do Ferro
com capacetes,
espadas e
escudos.

103
A. Gravura de ferreiro de Val Camonica (Itália);
B. Equipamento de ferreiro da região do Danúbio e C
C. Ferreiro do início do século XX, mostrando a
continuidade básica do equipamento de trabalho do ferro.

A
AGE

104
A EXPANSÃO
DO FERRO NA
EUROPA

Influência
ciméria e cita

ÁSIA MENOR
MEDITERRÂNEO
GRÉCIA ORIENTAL

Feníc
ios
ASC

Mapa da expansão da metalurgia do ferro na Europa (segundo Pleiner 1980, modificado).

O
ferro foi uma grande inovação resistente e mais afiada. O problema do fer-
tecnológica que revolucionou a ro está na tecnologia ...
agricultura, o artesanato e as for- Tudo começou com a identificação de ja-
mas de combate da época. Foi tão zidas de minério que tinha de ser extraí-
decisiva que os arqueólogos chamam à Ida- do e levado para as aldeias. Aí, as oficinas
de do Ferro (750-50 a. C.), a última grande metalúrgicas tinham pequenos fornos que
fase da pré-história europeia, precisamente eram carregados com camadas alternadas
por causa dos objetos feitos nesse metal. As de minério de ferro e carvão vegetal e atin-
vantagens do ferro em relação ao bronze são giam uma temperatura de cerca de 1100 °C.
tão evidentes que é necessário começar por A massa de ferro resultante era esponjosa e
explicar por que razão o seu trabalho não foi cheia de impurezas, o que exigia outro tipo
adotado mais cedo. Em comparação com as de trabalho, a forja, um processo de manu-
minas de cobre e de estanho, escassas mas fatura que consistia em moldar o metal ba-
indispensáveis para a obtenção do bronze, tendo-lhe com um martelo numa bigorna.
as minas de ferro estão muito dissemina- Mas mesmo este processo não produzia um
das na natureza, o que permitiu o acesso fio de corte suficientemente duro. O ferro
aos metais a muitas sociedades onde, até tinha de ser misturado com uma pequena
então, eram pouco mais do que um luxo. quantidade de carvão para produzir aço, o
Outra grande vantagem é o facto de poder que só podia ser feito aquecendo a lâmina
proporcionar uma lâmina mais dura, mais ao rubro, martelando-a e arrefecendo-a

Os metalúrgicos sabiam como temperar


o metal, um processo que tinha de ser
repetido várias vezes até se atingir a
dureza e a resistência desejadas

105
ASC

Uma forja da Idade do Ferro (Gravura de 1871).

em água. Isto produzia a têmpera do metal, processo de trabalho de metais anterior às


aumentando a sua dureza e resistência. Os técnicas de fundição.
metalúrgicos sabiam por experiência pró-
pria como o fazer, um processo que tinha EXPANSÃO PARA A EUROPA
de ser repetido várias vezes até se obter o A partir das oficinas do Próximo Oriente, a
efeito desejado. metalurgia do ferro espalhou-se gradual-
As suas origens situam-se no Próximo mente pela Europa, primeiro no Mediter-
Oriente e, em especial, no mundo hitita da râneo Oriental e na Grécia, nos séculos XII-
Anatólia, a atual Turquia. Este ponto de vista -XI a. C., antes de chegar à Europa Central.
está agora plenamente confirmado, mesmo Duzentos anos mais tarde, chegou à Europa
para além das datas convencionais dos sé- Central a partir dos Balcãs, pela rota do vale
culos XIV-XIII a. C., como o prova a recente do Danúbio, e daí até aos finisterra atlânti-
descoberta por uma equipa de arqueólogos cos. A leste, o ferro entrou pelo Cáucaso e
japoneses de uma faca de ferro em Kaman- pelas estepes pônticas.
-Kalehöyük, a sudeste de Ancara, datada de Os objetos de ferro mais antigos da Península
cerca de 2000 a. C. Por outro lado, pequenas Ibérica datam dos séculos XII-X a. C.. Estão
contas de ferro meteórico descobertas em ligados à chamada «pré-colonização», ou
enterramentos no norte do Egito e datadas seja, aos contactos e navegações do Medi-
de cerca de 3200 a. C. confirmam um longo terrâneo oriental imediatamente anteriores

Os objetos de ferro mais antigos da


Península Ibérica datam dos séculos
XII-X a. C., ligados à chamada
«pré-colonização»

106
ao estabelecimento das primeiras colónias
fenícias na costa andaluza, por volta de 800
a. C. A sua relação com as elites é evidente e
pode simbolizar o controlo da produção me-
talúrgica pelos indivíduos mais destacados. A
posse de peças de ferro, um metal exótico e
sumptuário como revelam as magníficas ja-
zidas de Villena e Baioes, era um indicador de
prestígio, e este carácter deve ter orientado o
interesse posterior pelo metal «negro».
As primeiras produções de ferro devem ter
sido pouco satisfatórias, devido à sua dificul-
dade, o que levanta outra questão inevitável:
porque é que, apesar de tudo, o seu uso se
generalizou? Ainda estamos longe de com-
preender exatamente porquê. A alegada su-
perioridade tecnológica do bronze está longe
de ser provada. Parece mais razoável pensar
que uma das chaves do seu sucesso foi a sua
ampla distribuição. Calcula-se que o cobre
seja 700 vezes mais escasso do que o ferro
e que o estanho seja cerca de 35 vezes mais
escasso do que o cobre. Na Idade do Bron-
ze, a necessidade de obter cobre e estanho
para produzir objetos de bronze implicou a
criação de extensas redes comerciais, rigida-
mente controladas pelas elites. O ferro pôs
fim a essas redes e aos sistemas políticos da
época, inaugurando uma nova era.

MISTERIOSA METALURGIA
Continua a ser chocante o facto de o ferro ter
sido conhecido tão cedo e de só ter come-
çado a ser utilizado em quantidades signifi-
cativas na Europa no século VIII a. C.. Este
facto mostra que os avanços técnicos só «in-
rompem» quando há uma grande procura
social, o que parece ter acontecido nessa al-
tura, coincidindo com uma grande expansão Lâmina
demográfica após os séculos negros que se de punhal
proveniente
seguiram ao colapso das civilizações minóica
de uma
e micénica. Desde logo, o processo de ado-
sepultura
ção não foi rápido, primeiro foi introduzido
da Segunda
em pequenos ornamentos e armas, depois Idade do Ferro
vieram outros instrumentos de trabalho e, da necrópole
finalmente, foi massivamente utilizado em Vetã de Las
alfaias agrícolas, tornando-se muito mais Cogotas
visível na vida das pessoas. (Cardeñosa,
A adoção do trabalho do ferro pressupõe a Ávila).
existência de um especialista que vai adqui-
rindo novas competências. Os ferreiros mais
antigos da Europa temperada eram expe-
rientes ferreiros de bronze, mas muito ra-
ALBUM

pidamente o ferreiro tornou-se um artífice,


diferente dos outros metalúrgicos. É muito
provável que o conhecimento preciso do tra-
balho do ferro estivesse envolto em «misté-

107
Os avanços tecnológicos e as
mudanças no estilo de luta levaram ao
aparecimento de espadas mais longas e
mais consistentes no século II a. C.

rio». Nalgumas regiões europeias, túmulos espadas, soldavam-se varas longas e finas,
com ferramentas de ferreiro mostram que a formando uma folha laminada.
própria metalurgia era um ofício esotérico
que não podia ser delegado a qualquer ar- MARCA DE ESTATUTO
tesão ou classe servil. O controlo dos misté- Em 500 a. C. a Europa estava no limiar da
rios da natureza era uma marca de poder e história escrita e o ferro tinha-se tornado o
de autoridade e estes especialistas, como os material padrão, embora os objetos artísticos
representados nas gravuras rupestres de Val de maior qualidade continuassem a ser fei-
Camonica, no norte de Itália, eram investi- tos de bronze. As espadas passaram por vá-
dos de um estatuto social especial. rias modas e estilos, gerais ou com um forte
Muitos achados provêm de enterramentos carácter local. Inicialmente, as lâminas eram
ricos. Locais como Sticna (Eslovénia) e Halls- bastante curtas, mas os avanços tecnológicos
tatt (Áustria) incluem arreios de cavalos e fa- e as mudanças no estilo de luta levaram ao
cas, mas os objetos mais impressionantes são aparecimento de espadas mais longas e con-
as espadas de ferro. Estas espadas são armas sistentes no século II a. C., adaptadas para
de elite, as mais antigas com grandes pomos combater a cavalo. Anos de experimentação
de madeira, por vezes decorados com um levaram a um virtuosismo notável na forma
revestimento de ouro. Mais do que qualquer como diferentes qualidades de metal foram
outro objeto, estas espadas demonstram que criadas e trabalhadas numa grande variedade
o trabalho do ferro era dominado na Europa de objetos. Artefactos com forte cunho béli-
Central nessa época. Gradualmente, foram co foram também encontrados nesta época
desenvolvidas técnicas mais sofisticadas na nas agrestes zonas interiores da Península
região alpina. Para moldar as lâminas das Ibérica, onde viviam as populações celtibe-

A IRRESISTÍVEL ASCENSÃO DO FERRO

Generalização das
ferramentas agrícolas

Acelerar a utilização Utilização militar


do ferro significativa
Primeiras produções e
importações

Ferro Ritual e Limitada e em Primeira expansão Produção em massa


meteórico simbólico pequena escala em grande escala
CARLOS AGUILERA

1400 a C 1200 a C 1000 a C 800 a C 600 a C 400 a C 200 a C 1dC

Figura de Gonzalo Ruiz Zapatero.

108
Pormenor do
punho de uma
espada de ferro.
Sepultura 270 da
necrópole de La
Osera (Charmartín,
Ávila).

ras e afins. Armas de arremesso como o soli-


ferreum, forjado a partir de uma única peça,
ou alguns modelos de espadas e punhais so-
brevivem praticamente inalterados durante de madeira e para reforçar as muralhas em
séculos. As combinações de armas que apa- redor dos povoados.
recem em necrópoles como Aguilar de An- Ao mesmo tempo, os camponeses explora-
guita ou La Osera permitem-nos reconhecer vam e ordenavam a terra como nunca an-
equipamentos específicos, alguns dos quais tes. Novas terras foram cultivadas e as fer-
profusamente decorados, indicando o seu ramentas de ferro começaram a substituir
importante papel na definição do estatuto e as de bronze, permitindo a intensificação da
da identidade dos indivíduos. O nível mais produção baseada em cereais e leguminosas.
elevado era o dos equites ou cavaleiros, que Toda uma gama de ferramentas e utensílios
possuíam cavalos, escudeiros e as melhores de ferro (foices, gadanhas, enxadas, pás,
armas de ferro. ganchos de poda, etc.) facilitou o trabalho
agrícola. O fabrico de gadanhas em grande
UM NOVO MODO DE VIDA escala pode ter desempenhado um papel
O facto é que, nos últimos duzentos anos importante na armazenagem dos alimen-
a. C., o ferro era forjado e fundido em gran- tos e na colheita quotidiana. As charruas
de escala em toda a Europa celta, tanto em simples eram capazes de trabalhar os solos
grandes como em pequenas comunidades, pesados dos fundos dos vales, sobretudo
geralmente fora das povoações devido ao quando equipadas com couceiras e cunhas
perigo de incêndio e aos fumos nocivos que de ferro. As couceiras de ferro e o maior pe-
se produziam. Também se importavam lin- so das charruas permitiam-lhes cavar mais
gotes para facilitar a circulação do metal. Sí- fundo, e os agricultores podiam lavrar mais
tios espetaculares como Manching (Alema- terra por dia.
nha) ou Bibracte (França), com populações Este arsenal de objetos revolucionou o tra-
de vários milhares de pessoas, forneceram balho no campo e a economia das suas po-
um mostruário muito grande de ferramen- pulações, moldando um modo de vida que
tas de ferro para atividades produtivas. In- pouco mudou praticamente até à Revolução
cluem ferramentas de ferreiro, de carpin- Industrial.
teiro, de trabalho dos têxteis e do couro,
de fabrico de cerâmica e de agricultura. Os
pregos de ferro eram vitais e eram necessá- JESÚS R. ÁLVAREZ-SANCHÍS
rias grandes quantidades para fixar estacas Professor Titular de Pré-História (UCM)

109
Capacete do
ALBU,
tipo Montefortino
utilizado tanto
pelos exércitos
celtas como
pelos romanos,
encontrado em
Caldelas de Tuy
(Pontevedra).
Provavelmente do
século II a. C.

110
A CULTURA
DE

111
N
em todos os investigadores con- das. As bases destes senhores eram grandes
cordam com a existência objetiva recintos bem fortificados, dominados por
de uma identidade étnica ou cul- muralhas de terra e paliçadas de madeira na
tura celta, partilhada em grande Europa central, por vezes influenciados pela
parte da Europa durante a Idade do Ferro, poliorcética grega, com o aparecimento, por
entre os séculos VIII e I a .C., com uma lín- exemplo, de torres de fogo flanqueadoras e
gua, cultura material e auto-perceção no es- proteções de portas.
sencial comuns. Mas, para efeitos práticos, Mas é a partir do século IV a. C. que as fontes
assumiremos aqui que tal entidade existiu e literárias nos permitem reforçar as arqueo-
não foi apenas uma designação genérica e mal lógicas para mostrar um quadro de exércitos
informada dos autores greco-latinos para o de dimensão crescente. Um povoado podia
conjunto da «Europa bárbara». No entanto, reunir vários milhares de homens; uma con-
mesmo assim, é impossível aceitar uma uni- federação, dezenas de milhares.
dade e homogeneidade cultural durante um
período de sete ou oito séculos, num espaço EXÉRCITOS E TÁTICAS
que se estenderia da Bretanha à Anatólia. As fontes tendem a descrever os celtas como
No domínio da guerra, este facto é parti- altos e fisicamente superiores aos seus inimi-
cularmente evidente nas descobertas ar- gos romanos, assustadores na sua aparência
queológicas que revelam grandes mudanças (a história do duelo singular entre Virido-
ao longo do tempo e diferenças regionais marus e Marcellus assemelha-se à de Golias
substanciais entre Hallstatt C-D e o final do contra David). Impressionantes (Políbio,
período de La Tène. No entanto, é inegável Diodoro) são os Gaesatae, que combatiam
que a combinação do estudo de armas, de nus, num frenesim, armados de dardo e es-
fortificações e dos ritos em túmulos e san- pada e adornados apenas com os seus torques
tuários apresenta alguns pontos comuns. No e braceletes. A música estrondosa dos gritos
entanto,quando se trata de guerra, socieda- e o som das cornetas e dos cornos de metal
de e cultura, os textos greco-latinos são a são sempre citados nas fontes.
nossa melhor base, apesar de se centrarem Os Celtas eram homens livres que comba-
na interação com o mundo greco-romano e tiam em tribos, clãs e famílias, o que dava
em épocas posteriores, sobretudo do último coesão às suas unidades, e comandados pe-
terço do século III a .C. ao século I d. C com a los seus líderes naturais, aristocratas e che-
conquista da Gália por César e a conquista da fes. César menciona séquitos de centenas de
Bretanha entre César e Domiciano. clientes juramentados para combater com os
seus patronos. Lutavam em formações cer-
FONTES ARQUEOLÓGICAS radas, embora não fossem tão disciplinados
E LITERÁRIAS e articulados como os romanos, mas os seus
Durante a Primeira Idade do Ferro, até cer- ataques de infantaria eram muito violentos
ca de 500 a. C., os grandes senhores enter- e terríveis à primeira investida. No entanto,
rados com as suas armas tinham um tama- embora uma fonte os considere constantes
nho de 184 ou 187 cm de altura, mais do que em combate (Políbio, em Telamon), a maio-
na França atual. Eram homens fortes, bem ria refere que, se a sua primeira carga impe-
preparados para o combate individual, que tuosa falhava, ficavam rapidamente desmo-
podiam comprar couraças caras e capacetes ralizados. Era costume (que os romanos da
de bronze em relevo, que lideravam séqui- República também seguiam) que os guerrei-
tos subordinados através de relações sociais ros arrojados saíssem da linha e desafiassem
de dependência, a que as fontes posteriores os melhores inimigos para um combate in-
chamarão «clientelas», contingentes de se- dividual, cantando e insultando os seus ad-
guidores, armados com armas ligeiras e fun- versários.

Os celtas eram homens livres que


combatiam agrupados em tribos, clãs
e famílias, comandados pelos seus
líderes naturais, aristocratas e chefes

112
Espada GUERREIRO CELTA DO TEMPO DE CÉSAR SÉCULO I
curta
Espada longa

Bainha para
espada curta

Ponta de lança em
Capacete tipo
forma de lança
Weisenau com
Ponta de bochechas
lança com
barbatanas

Bainha de
espada longa
Casco
simples

Escudo oval
plano com
umbo de ferro

Cota de malha
Pormenor da de tipologia
fixação da bainha original celta
da espada ao cinto

Não usavam o arco


porque consideravam
que matar um inimigo
à distância era um ato
de cobardia.

Régua ou virola de
Correia de suspensão ferro
da espada

113
114
ALBUM
As fontes tendem
a descrever os
celtas como sendo
altos e fisicamente
superiores aos
romanos, de aspeto
atemorizador

A cavalaria gaulesa, numerosa e bem arma-


da, figura de forma proeminente nas narrati-
vas de César e, mesmo antes, parece ter sido
uma componente importante dos exércitos
celtas, ultrapassando largamente os aristo-
cratas. Estrabão (4,4,2) e Plutarco(Marc. 6)
escreveram que os celtas eram apaixonados
pela guerra e que, devido à sua natureza
agressiva, eram melhores cavaleiros do que
soldados de infantaria. Pausânias menciona,
a propósito dos Celtas na sua invasão da Gré-
cia (10,19), a prática (trimarcisia) segundo a
qual cada cavaleiro era acompanhado por
três cavalos e dois pajens, que lhe forneciam
cavalos frescos, se necessário, ou o substi-
tuíam, se caísse. Muitas vezes os cavaleiros
celtas podiam desmontar e combater a pé se
o caso o exigisse, como em Cannas, abando-
nando a vantagem da mobilidade.

AS ARMAS DOS CELTAS


Entre o século III a. C. e o século I d. C., vá-
rios autores gregos e romanos descrevem
aspetos militares de âmbito celta: Políbio,
Diodoro, Estrabão, César, Lívio e Tácito são
os mais importantes. As suas descrições da
panóplia eficaz dos Celtas coincidem com a
arqueologia: espadas rectas cortantes, es-
cudos ovais planos mais pequenos e menos
eficazes do que os escudos curvos em forma
de telha dos Romanos, capacetes de ferro ou
bronze, por vezes com decorações assusta-
doras. A arma mais caraterística dos Celtas
em toda a Europa, de Portugal à Hungria, era
a espada reta de lâmina comprida e gumes
paralelos, que passou de 60 cm para mais de
um metro no tempo de César, acentuando a
sua função mais cortante do que perfurante.

Reconstituição histórica de guerreiros celtas do


século IV a. C. com escudos, capacetes e lanças
nas margens de um rio, Friuli-Venezia Giulia, Itália.

115
CHEFE E GUERREIRO CELTA
Início do período La Tène, finais do século V a.C.

Guerreiros celtas, portam uma espada do tipo


Tène, escudos alongados, mas ainda não usam
cota de malha, mas sim discos peitorais.

Os escudos costumavam ter


um pedaço de ferro nas
bordas ou no centro.

Chefe celta
Guerreiro e
ajudante do
chefe
A qualidade
das armas
indicava a sua
posição na
hierarquia
social.

As suas armas eram


únicas e intrans-
missíveis, feitas
para cada guerreiro
e não podiam ser
usadas por
ninguém que não
fosse o seu dono.

As principais
armas que
utilizavam eram a
lança e uma
espada longa.

116
Espadas dobradas e oferecidas aos deuses ( século III a. C.?). Encontradas no sítio ritual de
Gournay-sur-Aronde, em França.

Eram transportadas em bainhas metálicas, de ferro rebitados e frisados, flexível e con-


penduradas verticalmente ao longo da per- fortável, que Roma adoptaria. As mais antigas
na e suspensas por um cinto com um siste- cotas de malha conhecidas são celtas e datam
ma de suspensão destinado a evitar que se do início do século III a. C. As mais antigas
atrapalhassem ou emaranhassem quando conservadas provêm de túmulos em Horny
se deslocavam ou corriam. Este sistema é o Jatov (Eslováquia) e Ciumesti (Roménia), e
oposto do utilizado no Mediterrâneo, onde as depois de toda a zona celta, como Kikburn
espadas, muito mais curtas, eram suspensas (Grã-Bretanha) ou Fluitenberg (Holanda).
obliquamente ao lado do corpo, penduradas No domínio da cavalaria, os Celtas deram
numa fivela ou numa correia que atravessa- também contributos fundamentais, o mais
va o peito e era pendurada ao ombro. Polí- importante dos quais foi a primeira sela de
bio menciona que, em combate, as espadas montar eficaz. O mundo clássico utilizava
celtas se dobravam por vezes e tinham de ser mantas acolchoadas (ephipion) e foram os
endireitadas com a força das pernas; análi- citas das estepes que desenvolveram, no sé-
ses metalográficas efectuadas por R. Pleiner e culo V a. C ., um modelo primitivo de sela
outros demonstraram que, do ponto de vista semi-rígida que dava apoio ao cavaleiro. Os
metalúrgico, muitas espadas eram de ferro Celtas, pelo menos a partir do século II a. C.,
macio e, por conseguinte, propensas a defor- desenvolveram um selim muito eficaz com
mação. Outras, porém, eram de aço, talvez uma armação e quatro «chifres» ou botões
intencionalmente nalguns casos. nos cantos, que foi adotado pelos romanos
Mas o mundo celta desenvolveu outras armas no século I a. C..
de extraordinária qualidade e impacto. A mais Mas as armas mais importantes em combate
famosa é a cota de malha de milhares de anéis eram as lanças e os dardos e, entre os menos

117
ASC

Representação da sepultura de carruagem de La Gorge-Meillet (Somme-Tourbe, Marne).

As armas mais importantes eram as lanças e


os dardos e, entre os menos favorecidos,
as fisgas, os arcos e as flechas

118
Carros de guerra celtas
V
eículos cerimoniais de quatro rodas, que, na Gália, o cocheiro era um servo e
por vezes muito decorados e asso- o combatente um nobre, enquanto Tácito
ciados a um complexo ritual funerário, especifica (Agr. 12) exatamente o contrário:
aparecem nos túmulos principescos do final que na Bretanha o cocheiro era o nobre e o
do período Hallstatt. Não têm nada a ver combatente um assistente de menor catego-
com as carruagens de duas rodas com raios ria. Diferentes fontes mencionam exércitos
que aparecem no período La Tène, desde com até mil e dois mil carros em batalha, o
o século V a. C.. Eram veículos ligeiros, que parece muito exagerado.
puxados por dois pequenos cavalos, com Os romanos enfrentaram carros celtas em
uma pequena plataforma aberta na parte Sentino (295 a. C.), que inicialmente derrota-
de trás, sobre a qual se encontravam um ram a linha de cavalaria romana e parte das
cocheiro e um combatente, utilizados na legiões (Lívio 10.28-30); Políbio menciona
guerra em grande número para aproximar (2.28) que em Telamon (225 a. C.) os celtas
os nobres guerreiros da linha de combate e tinham carros, embora não explique como ou
para fustigar o inimigo com dardos. Diodoro se eram utilizadas. Embora em 50 a. C. pare-
afirma que «os bretões utilizam os carros na çam ter caído em desuso na Gália em favor
guerra, tal como os antigos heróis gregos as da cavalaria, Júlio César encontrou-os, para
utilizaram na guerra de Troia» (5,21,5). Entre seu espanto, nas suas famosas incursões de
os séculos V e I a. C., foram encontrados 55-54 a. C. na conservadora Grã-Bretanha:
mais de duzentos «túmulos de carros de «assim, eles [os carros] combinam a leveza
guerra», sobretudo na Grã-Bretanha e em da cavalaria com a consistência da infan-
França, que permitem uma boa reconstitui- taria... tão grande é a sua perícia que estão
ção da sua estrutura. Estes mesmos túmulos habituados a galopar os seus cavalos por
contêm panóplias por vezes com cotas de encostas íngremes sem cair, e a abrandá-los
malha completas. Os carros de guerra, famo- e virá-los num curto espaço de tempo; cor-
sos a partir de 150 a. C. no Egipto faraónico, rem pelo leme, apoiam-se na canga, e com
na Grécia micénica e, mais tarde, na Assíria um salto dão a volta à caixa» (Bell. Gal. 4.33).
e na Pérsia, tinham deixado quase comple- Até o general Agricola foi confrontado com
tamente de ser utilizados para a guerra no carros caledónios na Escócia, em 83 d. C.
Mediterrâneo, mas na Céltica a sua utilização (Tácito, Agr. 35.3).
durou até ao século I d. C. Diodoro diz (5,29): Não há provas de que, apesar da imagem
«quando encontram a cavalaria inimiga em da famosa estátua do século XIX da rainha
batalha, primeiro lançam os dardos contra Boadicea num carro que se encontra junto
o adversário e depois descem dos carros ao Big Ben em Londres, os carros celtas
e combatem com a espada». Refere ainda transportassem foices à maneira dos persas.

abastados que serviam de apoio ligeiro, as e depois levá-las para as suas cidades, e de
fundas e até os arcos e flechas, que tinham depositar as armas em santuários está bem
pouco ou nenhum prestígio na guerra. documentado por textos e pela arqueologia.
Santuários como o de Gournay estão repletos
RITOS DE ARMAS E DE MORTE de armas em depósitos de oferendas, origi-
No mundo celta, a inumação de armas em nalmente fixados na paliçada perimetral;
sepulturas de homens adultos e, ocasional- enquanto em Ribemont um terrível mo-
mente, em sepulturas de crianças ou de mu- numento com estrutura de madeira conti-
lheres, como parte dos objectos da sepultura nha mais de uma centena de esqueletos de
e muitas vezes — mas nem sempre — como inimigos decapitados e decompostos, com
parte de uma panóplia funcional completa, os seus escudos e lanças. Pode tratar-se de
é uma fonte de informação relevante tanto um monumento à vitória, enquanto outros
sobre os ritos como sobre as armas e a sua recintos do santuário contêm ossos e armas
utilização. dos vencedores.
Como em qualquer povo antigo, os rituais re-
lacionados com a guerra eram importantes.
O costume de cortar as cabeças dos rivais, FERNANDO QUESADA
pendurá-las no pescoço dos seus cavalos Professor de Arqueologia (UAM)

119
ARTE
CELTA
Caldeirão de

ALBUM
Gundestrup
(século I a. C.). O
caldeirão de prata
foi depositado
durante um ritual
no pântano de
Rævemosen.
Museu Nacional
de Copenhaga,
Dinamarca.

A expressão
plástica de um
universo mental
transbordante
Brincos de ouro do tesouro de Bedoya.
Museu de Pontevedra.

ALBUM
A
pós cento e cinquenta anos de in- seus gostos estéticos e códigos mentais, que
vestigação, continua a ser um facto criaram um estilo próprio, original e incon-
surpreendente, a grande unidade fundível. Um estilo que ainda hoje é reco-
de estilo da arte celta, apesar da nhecido como tal, mesmo na época romana
sua dispersão por vastas e diversas regiões e medieval, nas ilhas britânicas e noutras
da Europa nos séculos V-IV a. C., o período regiões atlânticas. Mas, comparadas global-
conhecido como La Tène. Uma unidade de mente a arte greco-etrusca e celta, esta últi-
estilo em que, para maior riqueza, se po- ma não é uma arte de edifícios monumentais,
dem reconhecer caraterísticas regionais de de grandes esculturas de superfície polida ou
intensidade variável, que variaram ao longo de pinturas murais coloridas como as que de-
do tempo e se prolongaram até ao período coram os túmulos etruscos, mas de pequenos
imperial romano. e médios objetos de adorno pessoal (torques,
Uma das caraterísticas mais marcantes da colares, pulseiras, pingentes, fíbulas, bro-
arte dos povos celtas é a grande influência ches, faleras...), de louça doméstica e de lu-
exercida sobre ela pela arte grega e etrusca, xo (vasos de ouro, prata, bronze, cerâmica,
sobretudo nos primeiros tempos do seu de- vidro ou madeira com apliques de bronze...),
senvolvimento, bem como por alguns povos ao mundo da guerra (espadas e punhais, ba-
não celtas da Europa de Leste. No entanto, inhas, escudos, capacetes...) ou às crenças e
os artistas e artesãos celtas tiveram o grande práticas religiosas (selos, caldeirões, oferen-
mérito de reinterpretar essas influências de das votivas, amuletos...). Mesmo quando os
uma forma tão singular, adaptando-as aos artistas celtas realizavam esculturas ou re-

Brincos de ouro do tesouro de


Bedoya. Museu de Pontevedra.
ALBUM

122
levos, em pedra, bronze ou madeira, eram Os artistas e
geralmente de pequenas dimensões, como
se pode ver nas conhecidas obras de Roque- artesãos da Europa
pertuse, Entremont, Sources-de-la-Seine,
ou o deus de bronze de Bouray-sur-Juine.
celta dominavam
Embora existam excepções, como os guer- na perfeição
reiros galaico-lusitanos, são raras as obras
com mais de um metro de altura.
as técnicas de
trabalho com
UMA PERSONALIDADE PRÓPRIA
Os artistas e artesãos da Europa celta domi- todos os tipos de
navam na perfeição as técnicas de trabalho
com todos os tipos de metais: fundição em
metais
bronze, trabalho a frio, soldadura, filigrana,
gravura, técnicas de incrustação de mate- como imitações grosseiras e descuidadas de
riais como o âmbar, a pasta vítrea ou o co- obras gregas e etruscas. Mas rapidamente,
ral. Aprendidas em grande parte através dos sem negar estas evidentes influências me-
contactos que as elites aristocráticas celtas, diterrânicas, se consolidou a ideia de que
para quem trabalhavam, mantinham as- se tratava de uma arte com personalidade
siduamente com os comerciantes gregos e própria, que obedecia a parâmetros mentais
etruscos, não se deve esquecer que algumas diferentes dos que operavam nas culturas
destas técnicas pertencem a uma tradição mediterrânicas e que nela se podiam reco-
centro-europeia e atlântica que remonta ao nhecer estilos e períodos diferentes. Foi Paul
início da Idade do Bronze. Jacobsthal, em 1944, o primeiro investiga-
Desde 1870, os estudiosos da arte celta ten- dor a elaborar um quadro geral explicativo
tam compreender o seu significado, a sua da evolução da arte celta. Segundo ele, entre
relação com a das altas culturas mediterrâ- os séculos V e II a. C., podia reconhecer-se
nicas e a sua evolução ao longo da Segunda um Primeiro Estilo ou fase a que chamou
Idade do Ferro. Inicialmente, a maioria dos Estilo Primitivo; uma segunda fase a que
objetos de arte da cultura de La Tène que se chamou Estilo de Waldalgesheim; e uma
tornaram conhecidos foram interpretados terceira fase que, por sua vez, englobava

Capacete celta em
ouro (séc. VI a. C.)
proveniente de
Leiro, Rianxo
(La Coruña).
ALBUM

123
Capacete celta em bronze
e ferro (séc. VI-III a. C.).
Canosa, Apúlia, Itália.

GETTY

Os artistas celtas reinterpretaram


motivos de tradição orientalista
adaptando-os à sua mentalidade

124
três modos de tratamento das formas: o Es- era virtualmente impossível estabelecer uma
tilo Plástico, o Estilo das Espadas Húngaras periodização completamente satisfatória dos
e o Estilo das Máscaras ou Estilo Cheshyre. estilos da arte celta, porque a sua riqueza era
Duas décadas mais tarde, P.-M. Duval pro- tal que ultrapassava qualquer tentativa.
pôs um novo esquema baseado em aspetos
exclusivamente ornamentais, pelo que cha- QUATRO PERÍODOS
mou de Estilo Severo o equivalente, grosso A riqueza e complexidade, tanto formal como
modo, ao Primeiro Estilo de Jacobsthal, às concetual, da arte celta é um facto inegável e
duas fases seguintes denominou de Estilo existem muitas obras singulares que são difí-
Livre, e no denominado Estilo Neosevero — ceis de enquadrar numa classificação que se
uma espécie de cesto de bugigangas — in- pretenda exaustiva, mas isso não nos impede
cluiu todas as manifestações plásticas pos- de construir um quadro de referência. Atual-
teriores ao século II a. C. mente, e seguindo V. Kruta (2000), que por
Embora reconhecendo os esforços destes e sua vez é devedor de estudiosos anteriores, a
de outros autores menos proeminentes, as arte celta estrutura-se em quatro períodos:
críticas a ambas as construções crono-es-
tilísticas vieram de Ruth e Vincent Megaw, 1. PERÍODO FORMATIVO. Datado do segun-
que na sua Celtic Art (1990) concluíram que do terço do século V a. C. e inícios do século

ASC

Falera de bronze desenhada a compasso, encontrada no túmulo de Cuperly (Marne). Início do


século IV a. C. (Musée des Antiquités Nationales, Saint-Germain-en-Laye, França).

125
A surpresa da
turfeira
OBJETO: Caldeirão ritual.
SÍTIO: Gundestrup (Jutlândia,
Dinamarca).
CRONOLOGIA :Segunda metade do
século II — início do século I a. C.
MATERIAL: Prata, parcialmente
dourada (9 kg).
DIMENSÕES: 69 cm de diâmetro;
216 cm de perímetro da boca;
42 cm de altura.

Em 28 de maio de 1891, o pântano


dinamarquês de Raevemose maravilhou
os estudiosos do mundo celta com
um dos mais notáveis e enigmáticos
artefactos arqueológicos: o Caldeirão
de Gundestrup. O que foi encontrado
foram cinco placas retangulares
que decoram o interior, sete placas

ASC
quadradas mais pequenas no exterior
Cabeça de divindade esculpida em pedra,
e uma peça discoidal. A curvatura
com 45 cm de altura, do santuário de
destas doze peças permitiu ao Museu
Mšecké Žehrovice (Boémia). séc. II-I a. C.
Nacional de Copenhaga reconstituir
(Národní Muzeum em Praga).
as dimensões do caldeirão que
decoravam, sendo a peça em forma
de disco que decorava o fundo interior.
Tratava-se, portanto, de uma oferenda cabeça de águia, máscaras de silenos e sáti-
às águas desmontada do seu suporte. ros, etc., foram reinterpretados pelos artis-
A iconografia, de cariz religioso, é tas celtas para os adaptar à sua mentalidade,
indubitavelmente celta, e nela se conferindo assim à arte deste período uma
reconhecem não só divindades — grande unidade iconográfica. A utilização do
como Taranis, Smertrius e talvez compasso, que se encontra em muitas fale-
Cernunnos — mas também ritos de ras de bronze (por exemplo, Cuperly e Som-
passagem para o Além e a divinização
me-Bionne), placas, vasos e ornamentações
do guerreiro através da imersão no
diversas, merece ser qualificada de magis-
caldeirão, mas tanto as técnicas do
tral. Com a sua ajuda, decompuseram de tal
trabalho da prata como a apresentação
narrativa não são caraterísticas da arte modo as formas naturais e combinaram-nas
celta ocidental, mas sim da arte trácio- de uma forma tão singular que, por vezes, é
daciana, pelo que deve ter sido feita difícil distinguir os principais motivos icono-
no norte da Bulgária/sul da Roménia/ gráficos dos seus fundos.
oriente da Hungria.
2. PERÍODO DE PLENITUDE. Este período
durou cerca de duzentos anos, entre o início
do século IV a. C. e o início do século II a. C.,
mas tendo o seu maior período de esplendor
IV a. C.. Seria equivalente ao Primeiro Estilo no século III a. C.. Trata-se da fase central
de Jacobsthal, e carateriza-se pelas impor- da expansão celta em direção ao Mediterrâ-
tantes influências que absorveu do mundo neo, que teve como uma das consequências
mediterrânico e, através dele, das culturas a intensificação do contacto direto com os
do Próximo Oriente. Os motivos da tradição centros itálicos, iniciado timidamente já
orientalista, como as palmetas, as flores de no século V a. C. Neste período desenvol-
lótus, as árvores da vida, os animais fantás- veu-se um novo modo de tratar as formas,
ticos como grifos, esfinges, serpentes com conhecido como Waldalgesheim ou Estilo

126
Vegetal Contínuo, caraterizado por com- se difundiu por toda a Europa, enraizan-
posições complexas, por vezes justapostas, do-se sobretudo na metalurgia e, em espe-
de caules e folhas, muito bem montadas e cial, na produção de armas decoradas para
perfeitamente simétricas graças à utilização satisfazer a elevada procura de uma aristo-
magistral do compasso. O predomínio das cracia militar em crescimento. Na cerâmica
formas vegetais não fez, no entanto, com fina pintada, este novo estilo tem a sua me-
que as imagens de animais — reais e fan- lhor expressão nas produções da região de
tásticos («dragões») — e de seres humanos Champagne, cujas decorações geométricas
caíssem em desuso, mas continuaram a ser a vermelho e preto se inspiram nos mesmos
representadas. Trata-se de um estilo com princípios que estavam presentes nos vasos
caraterísticas esotéricas que rapidamente gregos de figuras vermelhas.

Torques de ouro de Erstfelt


(Cantão de Uri, Suíça), decorados
com figuras fantásticas. Finais
do século V a. C. ou inícios do
século IV a. C. (Schweizerisches
Landesmuseum, Zurique).
ASC

127
Escudo em bronze
decorado com
esmalte vermelho.
Battersea, Londres.

ALBUM
3. O PERÍODO DOS GRANDES OPPIDA. Este A escultura e
período estende-se desde o início do século
II a. C. até à segunda metade do século I a. C. o relevo eram
De um modo geral, trata-se de uma fase cuja
produção artística é menos conhecida do que
especialidades
a das fases anteriores. Na cerâmica pintada, artísticas
a par dos desenvolvimentos geométricos,
proliferaram as decorações zoomórficas e,
destinadas a
no que respeita à ourivesaria, este foi um representar o
período marcado pela cunhagem massiva
de moedas, sobretudo gálicas, que nos pro- universo religioso
porcionaram um vasto e rico repertório de
imagens artísticas da época de La Téne. A sua
iconografia é inspirada na cunhagem medi- quanto a arte celta deste período na Europa
terrânica, mas o que as torna singularmente continental sofreu um rápido e drástico de-
celtas é a decomposição geométrica com que clínio devido à pressão cultural e política do
tratam as suas representações, por vezes até Império Romano — embora com diferenças
ao extremo da mais pura arte abstrata. A al- regionais — sobreviveu nas Ilhas Britânicas,
teração das proporções naturais de animais mantendo os seus principais fundamentos
e objetos, a estilização das formas segundo técnicos e iconográficos: adaptação à forma e
convenções plásticas próprias e a adição de ao campo decorativo do suporte, mistura in-
elementos ausentes nos protótipos mediter- dissociável dos elementos decorativos prin-
rânicos são as caraterísticas mais marcantes cipais com os do fundo, combinação perfeita
destas moedas. entre motivos animais e vegetais, utilização
Para além do episódio marcante da cunha- prioritária de linhas curvas, com compasso,
gem como meio de expressão artística no em detrimento das retas, procura de riqueza
quadro dos oppida, esta fase é muito mais cromática em placas, fíbulas e outras peças
marcante em termos de produção de metais, de dimensões modestas... Porque continua a
uma vez que, por exemplo, foram produzidas ser uma arte eminentemente materializada
algumas das mais belas e preciosas esculturas em pequenos objetos.
de bronze ou muitos dos esplêndidos torques
de ouro (Ipswich, Broighter, Tayac...). ESCULTURA E RELEVO
Já em finais do séc. VI a. C. ou inícios do
4. PERÍODO DE SOBREVIVÊNCIA DA ARTE séc. V a. C., o artista celta mostrava inte-
CELTA NOS TERRITÓRIOS INSULARES. Este resse pela escultura e pelo relevo, em pe-
período situa-se entre a segunda metade do dra, bronze e madeira, mas poucas obras
século I a. C. e o início do século V d. C. En- sobreviveram. Tratava-se de uma especiali-

128
Quatro cabeças
de guerreiros
mortos. Estela de
pedra do oppidum
de Entremont
(França).

ALBUM

dade artística destinada a representar o seu turas, especialmente as religiosas, estejam


universo religioso, mas também a servir os espalhadas por toda a Europa e Ilhas Britâ-
chefes guerreiros: figuras votivas (Sequa- nicas, existe uma certa concentração no sul
na, Côte d’Or, França), imagens de deuses da Alemanha e na Provença.
(Mšecké Žehrovice (Boémia, República Che-
ca; Bouray-sur-Juine, Essonne, França), de
aristocratas guerreiros (Glauberg, Hesse,
Alemanha), peças decorativas para edifícios
provavelmente religiosos (Fellbach-Schmi- JUANFRANCISCO BLANCO GARCÍA
den, Alemanha) e pouco mais, constituem Professor do Departamento de Pré-História e
o catálogo temático. Embora estas escul- Arqueologia da UAM

129
O
CALEND
A complexa

SHUTTERSTOCK
conceção que os
Celtas têm do tempo
indica um grande
desenvolvimento
cultural que
ainda não temos
ferramentas para
compreender.

NDÁRIO
CELTA
Pormenor do
calendário de
Coligny. Trata-se
de um calendário
lunissolar gravado
numa placa de
bronze, preservado
em 73 fragmentos.
ALBUM

A
cultura celta tinha uma conceção se desenvolveram fora da esfera cultural do
complexa do tempo, que herdou Mediterrâneo e do Médio Oriente. Tal como
da sua cultura de origem, a cultura acontece com outras civilizações e culturas,
indo-europeia.Este tipo de conce- esta conceção complexa do tempo deve fa-
ção do tempo teria o seu início no desenvol- zer-nos refletir, porque indica um grande
vimento das sociedades agrícolas e pecuárias desenvolvimento cultural, mesmo que ainda
(economias planificadas) do Neolítico Final não tenhamos os instrumentos para o com-
no território de transição entre a Europa e a preender correta e completamente.
Ásia e em torno do Mar Negro. Esta origem
foi, portanto, partilhada com outras cultu- DOIS TIPOS DE TEMPO
ras antigas, como a bramânica e a germâni- Os diferentes povos celtas partilhavam uma
ca e, em parte, com a iraniana e outras, que língua comum (com vários dialetos inteli-

132
gíveis entre si), uma mesma cosmologia e O calendário
cosmogonia com um sistema de crenças re-
ligiosas e um panteão comum de divinda- sacralizava os
des e com um sistema ideológico comum.
O Universo Celta era constituído por vários
ciclos da vida
«planos» ou dimensões que intercomunica- numa cultura
vam entre si, ou seja, era um «Multiverso».
Sabemos que a cultura celta, que possuía co-
camponesa e
nhecimentos astronómicos avançados, tinha guerreira muito
uma conceção do movimento dos astros em
trajetórias «circulares», baseadas em ciclos, devota
o que não implica, no entanto, a conceção de
um universo estático de «eterno retorno». nios, Rivros, Anagantios, Ogronios, Cvtios,
Isto reflete-se na coexistência de dois tipos Giamonios, Simivisonnos, Eqvuos, Edrinios,
de tempo: um tempo do mundo dos huma- Edrinios, Cantlos, ficando a décima terceira
nos, o tempo terrestre de tipo lunissolar, e lua aparentemente sem designação.
outro dos deuses e seres divinos, um tempo O calendário celta era, antes de mais, um
que poderíamos designar por «estelar» (do calendário religioso que sacralizava os ciclos
movimento dos astros) ou «cósmico». da vida numa cultura camponesa e guerreira
A evidência arqueológica mais concreta do profundamente devota. É, portanto, simul-
calendário celta é o «Calendário de Colig- taneamente um calendário ritual e um ca-
ny» (Ain, Auvergne-Rhône-Alpes, França). lendário ecológico-ambiental e económico.
Foi feito numa placa de bronze no início do Foi concebido para organizar a vida da socie-
século II (d. C.), escrito em língua gaulesa, e dade em função da evolução das condições
regista as festas celtas e não romanas . A sua
principal função era «ajustar» os ciclos tem-
porais do sol e da lua para marcar a época das
diferentes festas religiosas celtas. Cada mês
recebe uma designação, que começa com a lua
de Samonios, que assinala o festival de Samon
(Samain), e continua com as luas de Dvman-

Cabeça de uma
divindade feminina,
provavelmente a
deusa celta Brigit.
Século I d. C.
(Kerguilly-en-
Dinéault,
França).

Estatueta em bronze
de Taranis, o deus
supremo do panteão
celta. Saint-Didier
(França).
ALBUM

ALBUM

133
DIFERENÇAS BÁSICAS NA CONTAGEM DO TEMPO ENTRE
A CULTURA CELTA E A CULTURA MODERNA
PERÍODOS PERÍODOS
JORNADA INFERIORES FESTIVIDADES MESES ANOS SUPRA-ANUAIS
A UM MÊS

CONTAGEM Noites Quinzenas de Todas as Lunares de Treze meses Saitlon, anos


CULTURA crescentes e luas cheias e 28 dias lunares solares e
CELTA minguantes outros eventos períodos entre
lunares litúrgicos e efemérides
culturais cósmicas

CONTAGEM Dias Semanas de Cada sete dias Variáveis de Doze meses Quadriénios
ATUAL sete dias e outros even- 28, 29, 30 com anos,
tos litúrgicos ou 31 dias bisextos,
e culturais décadas,
séculos e
milénios

do meio natural e das diferentes atividades favorável), sendo o período de lua cheia (três
agrícolas, pecuárias e recoletoras. Era de tipo noites e dois dias) entre ambas celebrado
lunissolar e baseava-se no cálculo dos ciclos como momento principal do mês. Estrabão
lunares e das principais efemérides solares, descreve como «[...] os celtiberos e os seus
os solstícios e os equinócios. O ano tinha dois vizinhos do norte fazem sacrifícios a um deus
períodos ou «estações», um escuro e frio e sem nome, à noite, nas luas cheias, diante
outro luminoso e quente, típicos das latitu- das portas, e com toda a família dançam e
des em que esta cultura se desenvolveu, o he- observam até ao amanhecer». A lua nova ou
misfério norte temperado. Era composto por «negra» (também de três noites e dois dias)
treze meses lunares (fases lunares ou órbitas era um momento considerado «pouco auspi-
da lua em torno da terra) e um período de cioso», mas ao mesmo tempo «de começo»
ajustamento ou «não-tempo» que coincidia e de continuidade com o seguinte.
com a festa do «Ano Novo» ou Samain. É muito provável que os solstícios e os equi-
nócios tenham tido algum tipo de celebra-
AS DATAS-CHAVE DO ANO ção, provavelmente mais exclusiva dos espe-
Cada mês lunar tinha 28 dias (dias) que co- cialistas religiosos e das pessoas envolvidas
meçavam ao pôr do sol e tinham a sua pleni- nos cultos dos diferentes deuses. O que sa-
tude ao nascer do sol (meio-dia). Júlio César bemos com maior certeza é que os solstícios
explica sobre os gauleses que «[...] eles não e equinócios são efemérides muito impor-
contam o tempo pelos dias, mas pelas noi- tantes para estabelecer o ponto, no curso da
tes, e assim, nos seus aniversários, nos iní- circulação do sol, a partir do qual se situam
cios dos meses e dos anos, a noite precede as festas principais ou cardeais, acrescen-
sempre o dia». Cada fase lunar formava uma tando-lhes um certo período de tempo (em
quinzena (que seria o equivalente às nossas relação ao período lunar). E também para
semanas), com uma quinzena escura (lua situar outras celebrações rituais específicas
minguante brilhante, desfavorável) e uma dedicadas a qualquer divindade por qualquer
quinzena brilhante (lua crescente brilhante, motivo. Isto pode indicar a possibilidade de

Em Samain, as barreiras entre as


diferentes dimensões do mundo celta
eram particularmente permeáveis

134
existirem calendários mais complexos, sa- nosa), filha de Taranis (o trovão, o troador),
grados (esotéricos), que eram reservados o deus supremo do panteão celta . É interes-
aos especialistas religiosos e que serviam pa- sante notar que esta deusa era a protetora
ra estabelecer, a partir destes, os calendários dos videntes e dos curandeiros, dos bardos
rituais ordinários. (os poetas cantores) e também dos artesãos,
O início do ano era celebrado com a festa de numa época do ano em que estas atividades
Samain, no início do frio e invernoso «pe- eram particularmente importantes numa so-
ríodo negro» (o que é hoje o início de no- ciedade que se encontrava recolhida nas suas
vembro) . Esta é a primeira das duas grandes «casas de inverno», em aldeias e povoados
festas celtas e é também um dos principais ei- fortificados.
xos temporais, juntamente com Beltaine, no O período luminoso começa com a festa de
ponto oposto deste eixo cardinal. Era a festa Beltaine (fogo de Bel ou Belenos) no início de
dos mortos e da memória dos antepassados, maio, a festa do início da época de esplendor
uma festa essencialmente de tipo familiar. da natureza, de crescimento das culturas e de
Na cultura celta, acreditava-se numa vida grande atividade pecuária. Era também a festa
feliz depois da morte, na qual os espíritos dos especialistas religiosos ou druidas. Cara-
residiam durante um «tempo», enquanto terizava-se pelo ritual de acender fogueiras,
as almas desenvolviam a sua existência atra- erguer postes de madeira e decorar profusa-
vés de reencarnações sucessivas. Samain é mente com elementos vegetais. A partir desta
o tempo em que as barreiras dos diferentes festa, uma parte da população distribuía-se
«mundos» ou dimensões do universo celta pelos diferentes espaços ambientais, residin-
eram particularmente permeáveis e os espí- do durante longos períodos nas «casas de ve-
ritos, os seres de natureza espiritual e os vivos rão» para explorar as cabanas de gado ou os
conviviam no mesmo plano. Por conseguinte, diferentes recursos naturais.
é também um período perigoso e arriscado. Seguia-se a festa de Lugnasad, (no atual mês
Segue-se a festividade de Imbolc (atual mês de agosto), uma divindade feminina equi-
de fevereiro), que está ligado ao início da rea- valente a uma «deusa-mãe» ou «deusa da
tivação da fecundidade da natureza e a uma terra» que é expressão da própria natureza e
divindade feminina chamada Brigit (a lumi- é também a festa das colheitas. O seu nome

Celebração do
SHUTTERSTOCK

festival Beltaine
em Butser Ancient
Farm (Hampshire,
Reino Unido).

135
CALENDÁRIO RITUAL ANUAL (COM AS SOBREPOSIÇÕES DAS
PRINCIPAIS FESTAS CELTAS E CRISTÃS DA ATUALIDADE)
FIM E INÍCIO
DO 1º MÊS 2ª MÊS 3ª MÊS 4ª MÊS 5ª MÊS 6ª MÊS 7ª MÊS 8ª MÊS
ANO

FESTA DE Noites Festival do Festa de Equinócio da Festa de


SAMAIN solstício de Imbolc primavera Beltaine
OU DOS inverno (Brigit)
MORTOS

FESTA DE Dias Festa de Natal Festa de Semana Festa dos


TODOS OS Santa Brígida Santa Maios
SANTOS

deve-se ao facto de esta deusa (na cultura cel- começavam ao anoitecer e se desenrolavam
ta irlandesa é chamada Tailtiu) ser a mãe de durante três noites e dois dias. Festivais
Lug, um deus multifacetado que representava como o Beltaine ou o Lugnasad decorriam
o poder da luz solar e cuja festa se celebrava em «espaços santuário», enclaves naturais
simultaneamente. O ciclo anual recomeçava considerados nesta cultura como locais de
com Samain. É importante notar que Imbolc, comunicação com divindades e espíritos. O
Beltaine e Lugnasad são festas relacionadas Imbolc era celebrado em espaços rituais es-
com divindades femininas e com a fertilidade pecíficos nos núcleos e o Samain em habita-
da natureza, das pessoas e dos animais. ções familiares e necrópoles especialmente.
Estas festas calendárias e religiosas fixas Algumas das grandes festas rituais realiza-
eram uma celebração social essencial e fun- vam-se em espaços amplos, onde se podiam
cionavam também como «assembleias» e reunir grandes grupos e muitas famílias per-
«festivais», verdadeiras peregrinações, que corriam quilómetros para assistir. Aí, as pes-
ASC

Calendário celta no prado de Santa Engracia, realizado pelas crianças das escolas do Alto
Gállego em 2006. Biescas (Huesca).

136
Concebido como
uma ordem
9ª MÊS 10ª MÊS 11ª MÊS 12ª MÊS 13ª MÊS sagrada, o
calendário permite
Festa do Festival de Equinócio
solstício Lugnasad de outono
a planificação
de verão da vida religiosa,
social, económica
e militar
Festa de Festas de São Miguel Deste modo, as festas do calendário ritual,
São João São Roque Arcanjo sobretudo as cardinais, distribuíam o tempo
e da Virgem anual de forma homogénea entre momen-
relaciona- tos de intenso trabalho no território e mo-
das com as mentos de reclusão forçada nos povoados
colheitas fortificados, separados por períodos curtos
mas muito intensos de celebrações. Um ca-
lendário que permitia planear e organizar a
soas acampavam e conviviam durante todo vida religiosa, social, económica e até militar
o tempo das festividades, em que o fogo era destes povos. Era concebido como uma or-
um dos elementos principais, marcando o dem sagrada, divina, uma vez que emanava
espaço da celebração e servindo para efetuar da vontade dos deuses.
sacrifícios, iluminar, cozinhar, aquecer, etc. Uma das questões mais importantes e trans-
Realizavam-se cerimónias religiosas com cendentes em relação ao calendário celta é
sacrifícios de animais e de prisioneiros de que ele exprime, provavelmente melhor do
guerra, reuniões políticas e assembleias de que qualquer outro conceito ou fenómeno,
representantes, exercícios de guerra e ainda a importância que a cultura celta teve no de-
banquetes, música e danças. Estes eram os senvolvimento da cultura europeia. A análise
principais momentos de convívio e sociabi- do calendário ritual cristão mostra como esta
lidade desta cultura camponesa de povoados religião assimilou as principais festas do ca-
dispersos por paisagens de florestas e monta- lendário celta e grande parte do seu conteú-
nhas. A celebração de acordos e pactos entre do, cristianizando-as. Festas como o Dia de
famílias e grupos, o estabelecimento de na- Todos os Santos (Samain), Santa Brígida (Im-
moros ou a celebração de casamentos tinham bolc-Brigit), o Dia de maio (Beltaine), a Vir-
lugar em festas do período luminoso como o gem de agosto (Lugnasad) continuam a ser
Imbolc e o Beltaine. fundamentais no nosso património cultural
Para além destas festas, o calendário permi- e ritual. E com isso preservaram as raízes de
tia a realização de outros rituais, de forma um fenómeno cultural milenar que continua
programada ou por necessidades específi- vivo em nós. Assim, não são eles que têm
cas, com determinadas divindades do pan- semelhanças connosco, mas nós com eles:
teão. Numa cultura de tempos e espaços fa- somos os seus herdeiros. Esta continuidade
voráveis e desfavoráveis, a celebração destas de mais de dois milénios só é compreensível
cerimónias tinha de ocorrer em momento e quando reconhecemos a enorme importân-
lugar adequado. Neste sentido, cabia aos es- cia que a cultura camponesa teve e tem no
pecialistas religiosos encontrar o momento desenvolvimento do que conhecemos como
mais favorável para a celebração do ritual, «civilização ocidental».
em cada caso com base no curso do perío-
do solar e da lua. As festas deste tipo, de que
sabemos muito pouco, envolviam também JESÚS FRANCISCO TORRES MARTÍNEZ
rituais complexos, com sacrifícios e oferen- Diretor Científico do Instituto
das às divindades e, provavelmente, também Monte Bernorio para o Estudo da
banquetes e outros atos sociais. Antiguidade Cantábrica (IMBEAC)

137
O CONHECIMENTO
A
S
T
R
DOS
N
Ó
M
I
CELTAS
138 O
FOTO: A. C. GONZÁLEZ GARCÍA

Pormenor do
conhecido
calendário
de Coligny.

139
Composição mostrando os diferentes
alinhamentos astrais da plataforma
ritual de Segeda.

PARAGEM DA LUA EQ
UI

CI
OS

PAR
A GEM
DA L
UA
FOTOS: FRANCISCO BURILLO. COMPOSICIÓN: AUTOR.

«PEDRA
ANGULAR»

O
s celtas da Antiguidade não escre- um conhecimento astronómico comum. No
viam; mais tarde, na Idade Média, entanto, estudos recentes põem em causa
na Irlanda e no País de Gales, os este ceticismo. Começarei com algumas ob-
falantes de línguas celtas adota- servações sem ligação entre si.
ram a escrita, o cristianismo e o calendário
romano baseado no ciclo do Sol a partir da 1 DE AGOSTO EM LUGDUNUM
reforma de Júlio César, que começou a ser Júlio César conquistou a Gália entre 58 e 50
aplicado em 45 a. C. A utilização tardia e es- e escreveu uma crónica sobre as suas cam-
porádica da escrita pelos falantes de línguas panhas. Conta que os sábios da Gália (drui-
celtas levanta dúvidas quanto à existência de das) se preocupavam com o conhecimento

140
O calendário de
Coligny é a prova
da realidade
do calendário
sugerido pelos
relatos de César

território dos carnutos. Tendo em conta a ex-


tensão da Gália, isto implica um calendário
partilhado.
Em 1897, foi descoberto em Coligny, a cerca
de 100 quilómetros a norte de Lyon, um ex-
traordinário calendário fundido em bronze.
Embora tenha sido feito no início do sécu-
lo II d. C., estava escrito na língua gaulesa e
consistia num ajustamento dos ciclos do sol
e da lua, quando parecia que a língua e este
tipo de ajustamento eram situações de um
passado longínquo. Este artefacto é a prova
ERÃO

da realidade do calendário sugerido pelos re-


latos de César.
DE V

No início da Idade Média, os poderes do Papa


ou de outras autoridades eram limitados e os
usos sociais dos cristãos misturaram-se com
TÍCIO

os já existentes. Na Irlanda, esta situação le-


vou à fixação no calendário cristão-romano
SOLS

das chamadas datas de início de estação, os


dias de novembro (Samain), fevereiro (Im-
bolc), maio (Beltaine) e agosto (Lugnasad).
Estas datas são o resultado da adaptação de
um calendário que combinava os ciclos do
sol e da lua com o calendário solar romano-
O
TRONÓMIC
NORTE AS
-cristão. Estas festas eram celebradas sob di-
ferentes formas locais ao longo dos séculos e
fixavam determinados atos jurídicos.
«PEDRA Dêmos outro salto. Um dos pioneiros dos
ANGULAR» estudos celtas modernos, Henri D’Arbois de
Jubainville (1827-1910), observou que a data
da inauguração do altar das Três Gálias em
Lugdunum (atual Lyon), 1 de agosto de 12 a.
C., coincidia com a data de Lugnasad. Reba-
teu-se-lhe que a data comemorava a entrada
dos astros, sem detalhar o conteúdo desse de Octávio em Alexandria em 31 a. C., pondo
conhecimento. Dá ainda duas outras indi- fim às guerras civis romanas.
cações. Por um lado, sublinha a sabedoria Na primeira metade dos anos 60 do século
dos druidas, afirmando que eles estudavam XX, o autor destas linhas vivia numa aldeia
até vinte anos. Como os antigos contavam, o do norte da Galiza onde o único carro que
número coincide com os dezanove anos que circulava todos os dias era o carro do padei-
a lua precisa para fazer um ciclo completo no ro. Nalguns dias de inverno, nós, os rapazes,
firmamento a partir de um ponto de obser- colhíamos abóboras e esculpíamos com ca-
vação terrestre. Por outro lado, relata que se nivetes os traços de uma cara, colocávamos
reuniam anualmente num local sagrado no uma vela no interior e com este artefacto

141
ASC

Estela funerária de Vesunna (Perigeux) com a representação de um crescente lunar (foto do autor).
ASC

Placa remontada do Calendário de Coligny. Musée d’Archéologie du Jura, Lons-le-Saunier.

142
Em contextos arqueológicos, foram
encontrados objectos como dodecaedros
ou fósseis de ouriços-do-mar, interpretados
como indícios de reflexões cosmológicas

tentávamos assustar os escassos notívagos. AS PROVAS MAIS FIÁVEIS


Quando fomos invadidos pelo carnaval co- Até agora, apresentei factos dispersos. Ob-
mercial de Samain, a memória veio à tona; servações de Júlio César, o calendário de Co-
tinha-o celebrado muito antes de saber al- ligny, o 1º de agosto em Lugdunum, um cos-
guma coisa sobre ele. tume calendárico irlandês e uma recordação
Em 2011, o astrofísico A. César González-Gar- pessoal. A pertinência de considerar estas
cía deslocou-se a Lyon para dar uma confe- observações como provas de conhecimen-
rência. Aproveitou a sua estadia para medir a tos astronómicos celtas foi debatida devido à
orientação da rua Roger Radison, que conser- sua heterogeneidade. Para encontrar um fio
va o traçado da rua principal da colónia ro- condutor, é necessário alargá-las. Verificou-
mana de Lugdunum, fundada por um lugar- -se, por exemplo, que as estelas funerárias do
-tenente de Júlio César chamado L. Munatius período romano decoradas com crescentes
Plancus em 43 a. C. A rua estava orientada lunares têm a mesma distribuição espacial
para o nascer do sol do dia 1 de agosto. Esta que os falantes de línguas celtas durante o
observação resolveu a controvérsia entre os Império Romano. Verifica-se assim a impor-
estudiosos franceses sobre a data, ao implicar tância do astro para os Celtas. Além disso,
que doze anos antes da entrada de Augusto em contextos arqueológicos, foram encon-
em Alexandria e trinta e um anos antes da trados objetos como dodecaedros ou fósseis
inauguração do altar das Três Gálias, o dia 1 de ouriços-do-mar, que foram interpretados
de agosto era importante em Lugdunum. como sinais de reflexões cosmológicas.

Alinhamento do santuário de Corent


(França) ao nascer do sol de 1 de agosto.
A figura ao lado mostra a imagem obtida
nesse dia. É necessário deslocar-se para
norte do eixo do santuário para que o Sol
se posicione no cume do Puy St. Romain
em 7 de agosto.
FOTOS, CORTESÍA DEL AUTOR

143
santuário rochoso

solstício de
solstício
1 de maio inverno
de verão
FOTO: D. ROMEUF. MONTAJE: CORTESÍA DEL AUTOR

Alinhamentos solares no santuário rochoso do castro de Baroña (Porto do Son, A Coruña).

No entanto, as datas das festas do início da do astronómico sirva de guia para o estudo
estação são a pista mais fiável para iden- posterior das suas observações astronómicas.
tificar um modelo celta de conhecimento Infelizmente, não existe tal construção. Por
astronómico. Isto porque não coincidem este motivo, seguiram-se dois caminhos di-
com nenhum acontecimento solar impor- ferentes e complementares.
tante, como os solstícios ou os equinócios. Na Galiza, mediu-se a orientação de qua-
Além disso, estas datas parecem estar o mais se tudo o que é mensurável em contextos
afastadas possível de tais acontecimentos. A arqueológicos da Idade do Ferro, quando,
dificuldade em compreender o seu funcio- segundo fontes literárias antigas e alguns
namento exato permite considerá-las como testemunhos epigráficos, a zona era povoa-
identificadores culturais. Assim, quando en- da por falantes de línguas celtas misturados
tidades arqueológicas orientadas para estas com falantes de outra língua conhecida como
datas aparecem no território de falantes de «lusitano». Assim, foram identificados sítios
línguas celtas, pode inferir-se a existência de com orientações para solstícios, equinócios e
observações astronómicas partilhadas. datas de início de estação, mostrando a com-
Subsiste a dificuldade de identificar a cons- plementaridade dos dois tipos de orientação.
trução específica dos povos de língua e cul- Por exemplo, entre os petróglifos de A Fer-
tura celtas, de uso generalizado, e cujo estu- radura, detetaram-se orientações solsticiais

144
FOTO: ROSARIO CEBRIÁN
Segobriga (Cuenca) cidade romana alinhada com o nascer do sol a 1 de maio. Abaixo, o
fórum romano da cidade de Segobriga está orientado para o dia 1 de maio.

FOTO, ROSARIO CEBRIÁN

Júlio César conta nas suas crónicas que


os sábios gauleses, chamados druidas, se
ocupavam do conhecimento dos astros, sem
dar pormenores desse conhecimento

145
146
FOTOS: CORTESÍA DEL AUTOR FOTO: CORTESÍA DEL AUTOR
As datas das festas do início da estação não
coincidem com nenhum acontecimento
solar, como os solstícios ou os equinócios
a 1 de fevereiro, e no grande castro de San grande, mas a identificação de cada elemento
Cibrán de Las, orientações de solstício de ve- assinalado implicou anos de observações.
rão. No cume do pequeno castro de Baroña Existem situações comparáveis noutros lo-
foram identificadas orientações para os dois cais da Península Ibérica. A plataforma ri-
solstícios e para o 1º de maio. O castro de Ar- tual de Segeda destaca-se na Idade do Ferro.
mea apresenta orientações para o solstício de Trata-se de uma estrutura de pedra muito
inverno e para os dias 1 de fevereiro e 1 de bem construída, orientada para os aconte-
novembro. No castro de Avión existe apenas cimentos solares e lunares no horizonte. Do
uma orientação para o dia 1 de novembro, lado «romano», a cidade de Segóbriga tem
no cume do castro, uma bacia retangular um nome celta, a «fortaleza da Vitória», e
escavada na rocha orientada para essa da- está orientada para o dia 1 de maio, enquanto
ta e para um ponto relevante do horizonte Iruña (Vitória), a capital dos caristios (pala-
oriental. Além disso, a superfície da rocha vra que significa «amáveis» em celta) estava
apresenta vestígios de erosão por incêndios orientada para o dia 1 de novembro.
que só podem ser intencionais, e sabemos Por outro lado, a Gália sofreu uma profunda
que na Irlanda e na Escócia a festa de Samain transformação durante o reinado de Augus-
implicava o acender de grandes fogueiras. to. Destaca-se a fundação de 48 cidades, das
Estaremos perante a evidência arqueológica quais se mediu a orientação de 33; 19 estavam
de algo semelhante? A amostra não é muito orientadas para as datas do início da estação,
muito antes de as datas das festas irlande-
sas, das quais partimos, entrarem na órbita
do cristianismo, da escrita e do calendário
Em cima, à esquerda, o nascer romano de base solar. A sua escolha deve-se
do Sol desde o santuário rupestre ao facto de, em cada caso, as elites locais de-
de Armea (Allariz, Ourense) no
finirem a planta da cidade que fundaram e,
dia 1 de novembro. Em baixo, o
ao fazê-lo, manterem uma data tradicional.
petróglifo de A Ferradura (Amoeiro,
Esta mistura reaparece nos nomes mistos
Ourense), que está alinhado com
o pôr do sol de 1 de fevereiro, de cidades como Augustonemeton, o «san-
quando o astro se encontra sobre tuário de Augusto», ou Augustodunum, «a
o castro de San Cibrán de Las. fortaleza de Augusto», ou nos nomes de per-
sonagens como Gaio Júlio Vercondaridubno,
o primeiro sacerdote do altar das Três Gálias,
um cidadão romano com nomen (apelido)
gaulês, que celebra o dia 1 de agosto de tra-
dição gaulesa para culto a Roma e Augusto
nos arredores de Lugdunum, uma colónia
romana com um nome gaulês.
A difusão e a persistência do peculiar uso ca-
lendárico constituído pelas festas de início
de estação revelam um conhecimento dos
ciclos do sol e da lua e dos seus necessários
ajustamentos, por parte de uma comunidade
de sábios que partilharam os seus conheci-
mentos nos territórios povoados por popu-
lações celtas e cujos vestígios aprendemos a
seguir pouco a pouco.

MARCO V. GARCÍA QUINTELA


Catedrático de História Antiga (USC)

147
PERSONAGENS

LOCALIZAÇÃO: Borgonha, França


PERÍODO: SÉC. I A.C.

M
arcus Tullius Cicero, na sua o qual exercia o poder de um rei, com o
obra De divinatione (Sobre a poder de governar a vida e a morte do seu
Adivinhação), I.41.90, afirma povo, embora tivesse também uma série de
ter conhecido um druida da limitações, como a proibição de sair do seu
tribo gaulesa dos Éduos, chamado Divi- próprio território. Segundo César, Divicia-
ciaco, que costumava fazer previsões por co sempre demonstrou o maior fervor pelo
meio de augúrios ou conjeturas. Diviciaco povo romano e revelou-se uma pessoa leal,
torna-se assim o único druida cujo nome justa e prudente. No entanto, o seu irmão
aparece nas fontes clássicas. Júlio César Dumnorix odiava os romanos e conspirava
também o menciona várias vezes nos contra eles, pelo que, apesar dos apelos
seus Comentários sobre a Guerra das de Diviciaco, acabou por ser morto pelas
Gálias. A sua data de nascimento é des- tropas de César. O local e a data da morte
conhecida, mas sabe-se que, em 63 a.C., de Diviciaco são desconhecidos. Em 1894,
sobreviveu à batalha de Magetobriga, na a cidade francesa de Autun ergueu um mo-
qual os Éduos foram massacrados pelas numento em sua honra, mas este foi des-
forças combinadas das tribos gaulesas truído em 1942, durante a ocupação alemã
rivais dos Secuanos e dos Arvernos, aju- da França na Segunda Guerra Mundial.
dados pela tribo germânica dos Suevos,
sob o comando do seu rei Ariovisto. Di-
viciaco deslocou-se depois a Roma para
pedir ajuda ao Senado romano, onde foi Segundo César,
convidado por Cícero. O pedido de ajuda
dos gauleses serviu de pretexto para a fase Diviciaco sempre
seguinte da conquista da Gália por Júlio
César, que enfrentou e derrotou Ariovisto.
demonstrou o
Para investigadores como Xavier Delamar- maior fervor
re, Diviciaco, para além de exercer o cargo
religioso de druida, terá sido também, em
pelo povo
tempos, o vergobretus, ou seja, o magis- romano
trado principal dos Éduos. Esta figura era
nomeada pelo período de um ano, durante

148
CELTAS
Uma
cerimónia
druida (ca.
1737-1744),
de Noël Hallé.

ASC

149
LOCAL:
Norfolk,
Reino Unido
DATA:
Ano da morte
60-61 d.C.

S
egundo as fontes literárias roma-
nas, Boudica foi a líder de uma
rebelião contra o domínio romano
na Britânia, em 60 d. C., seme-
lhante a insurreições anteriores noutros
territórios conquistados por Roma, como
a de Viriato na Hispânia e a de Vercin-
getórix na Gália. No entanto, pouco se
sabe sobre Boudica, apesar dos relatos
dos historiadores romanos Tácito e Dion
Cássio sobre a revolta e de algumas provas
arqueológicas dos seus efeitos. Em 43 d.
C., as legiões romanas desembarcaram nas
costas da Britânia, iniciando a conquista
da ilha. O marido de Boudica, Prasutago,
líder da tribo dos icenos, era um aliado
dos romanos. Aquando da sua morte, Pra-
sutago tinha disposto que metade da sua
riqueza e do seu território passaria para
as suas duas filhas e a outra metade para
o imperador Nero. No entanto, os admi-
nistradores imperiais romanos ignoraram
a sua última vontade. Confiscaram todos
os seus bens, espancaram publicamente a
viúva e violaram as suas filhas. Este facto
desencadeou a violenta insurreição dos
icenos, juntamente com os seus vizinhos
Trinovantes, aos quais se juntaram, pouco
depois, muitos outros. Os rebeldes co-
meçaram por atacar Camulodunum (Col-
chester), a principal colónia romana na
ALBUM

150
Bretanha. Sem uma muralha defensiva,
os seus habitantes refugiaram-se no
Tácito diz-nos
templo dedicado ao imperador Cláudio. que se suicidou
Os seguidores de Boudica incendiaram
este edifício. Em seguida, marcharam com veneno e,
para Londinium (Londres), o princi- segundo Dion
pal entreposto comercial romano, e
Verulamium (St. Albans). Ambas as Cássio, adoeceu
cidades foram arrasadas. No total, cer-
ca de 70 000 romanos e aliados foram
e morreu
massacrados nestes três centros popu-
lacionais. Por fim, os rebeldes foram
vencidos numa batalha decisiva, cujo numerosos escritores e artistas inspi-
local exato se desconhece. Também não raram-se na figura de Boudica como
sabemos o destino exato de Boudica. símbolo da liberdade, de rebelião, de
Tácito diz-nos que se suicidou por en- coragem, e do espírito e força britâni-
venenamento, enquanto que, segundo cos. Desta forma, tornou-se uma figura
Dion Cássio, adoeceu e morreu. De popular nos livros escolares de história
qualquer modo, a partir do século XVI, e em representações de todo o género.

SHUTTERSTOCK
Escultura em bronze de Thomas
Thornycroft comemorando Boudica
(Londres).

151
O
túmulo da princesa de Vix
foi descoberto em 1953 nas
imediações da aldeia de
Mont Lassois, outro impor-
tante centro de poder durante os sé-
culos VI-V a.C. As escavações dirigidas
por René Joffroy numa pequena ele-
vação no sopé desta aldeia revelaram
um enterramento intacto da Idade do
Ferro, com um impressionante con-
junto de mobiliário e de ornamentos
pessoais. A câmara funerária, com
cerca de 9 m 2, continha o corpo de uma
mulher com cerca de 1,60 m de altura
e trinta anos à data da morte. Os res-
tos mortais foram depositados sobre
o chassis de um carro, cujas quatro
rodas foram retiradas e colocadas junto
a uma das paredes de madeira da câ-
mara. As jóias da defunta incluíam um
torques de ouro de 480 gramas, situa-
do junto ao crânio e encimado nas ex-
tremidades por figuras de cavalos ala-
dos, contas de âmbar possivelmente da
região do Báltico, várias fíbulas (uma
delas com coral vermelho de provável
origem mediterrânica), seis pulseiras
de lignite e duas de âmbar, um torques
de bronze no ventre e duas argolas
ALAMY

de bronze adornando os tornozelos.


Noutra parte da câmara encontravam-
-se espalhados vários recipientes asso-
ciados ao consumo de vinho: um enó-
coe de bronze etrusco para verter vi-
nho, vários recipientes áticos de figu-
ras negras e enorme crátera de bronze.
Esta peça excecional foi provavelmente
fabricada numa das colónias gregas do
LOCAL: sul de Itália e terá chegado à Borgonha
Vix (Borgonha, francesa como presente diplomático.
Tem 1,64 m de altura, pesa quase 210
França) kg e tem uma capacidade de cerca de
1100 litros, o que faz dela o maior vaso
DATA: de bronze sobrevivente do mundo an-
cerca de 500 a. C. tigo. Está também ricamente decorado
com duas figuras de Medusa nas pegas
amovíveis e uma procissão de hoplitas

152
e carros no gargalo. Duas estátuas frag-
mentárias de um homem sem cabeça e
de uma mulher sem cabeça foram en-
contradas nas imediações do túmulo de
Vix, o que sugere a existência de uma
representação da princesa. Vários auto-
res sugeriram que a mulher sepultada
em Vix terá sido uma sacerdotisa, mas
esta função religiosa não é incompatível
com um possível papel de líder política
da dinastia governante em Mont Lassois.

ALBUM

Acima, pega enrolada da Cratera de


Vix com cabeça de Górgona. À direita,
terminal de torques em ouro maciço,
com pata de leão e cavalo alado sobre
base de filigrana, proveniente do
túmulo de Vix.
ALBUM

153
LOCAL:
Glauberg
(Hesse, Alemanha)
DATA:
Século V a.C.

O
sítio de Glauberg é um exem-
plo notável dos complexos sí-
tios centrais que existiam no
século V a. C. no centro-oeste
da Alemanha. Dois túmulos principes-
cos foram erguidos no sopé da acrópole
fortificada. O maior foi reconstruído na
sequência de trabalhos arqueológicos
efetuados na zona. Originalmente, devia
ter um diâmetro de quase 50 m e uma
altura de 6 m, o que o tornava um marco
na paisagem circundante. Este Túmulo
1 continha dois túmulos de guerreiros
intactos que foram extraídos em bloco
e escavados em laboratório. Os achados
do Túmulo 1 são particularmente no-
táveis. A sua câmara funerária, forrada
a madeira, com cerca de 2 x 1 m, con-
tinha os restos mortais de um homem,
com cerca de 30 anos, acompanhado
de um rico enxoval constituído, entre
outros objetos, por um colar de torques
ou de ouro, um anel, uma pulseira de
ouro, um escudo, uma espada de ferro
e um jarro de bronze com hidromel.
Em 1996, durante as escavações no
limite exterior do grande túmulo, fo-
ASC

154
Torques de
ouro em
exposição
no museu
Keltenwelt am
Glauberg.
ASC

ram descobertos os restos de quatro lado direito traz uma espada e o peito
estátuas, uma das quais estava quase está coberto por uma couraça. O seu
completa e representa um chefe cel- estilo de representação é influenciado
ta que transportava grande parte do pelo mundo mediterrânico. Trata-se
equipamento encontrado no Túmulo muito provavelmente da representa-
1. Esta peça de arenito conserva ainda ção de um antepassado heroicizado ou
1,86 m de altura, embora os pés se te- de um antepassado mítico. A sudeste
nham perdido. Na sua cabeça tem um do Túmulo 1, duas valas paralelas com
toucado singular, possivelmente de 350 m de comprimento abrem-se sob a
couro, com duas protuberâncias que forma de uma «avenida processional»,
representam provavelmente folhas de ligando-a a um sistema de valas e aterros
visco. Ao pescoço usa um torques com que se estende por vários quilómetros
três pendentes, enquanto nos braços usa na paisagem. Este sistema pode ter sido
várias pulseiras, um anel e um pequeno construído com o objetivo de separar o
escudo oval com umbo de metal. Do espaço sagrado do mundo dos vivos.

155
LOCAL:
Hochdorf an der Enz
(Baden-Württemberg, Alemanha).
DATA:
cerca de 540 a.C.

D
urante os séculos VI-V a. C.,
foram erigidos numerosos
túmulos à volta da residência
principesca de Hohenasperg,
perto de Estugarda, muitos dos quais
foram saqueados na antiguidade. No en-
tanto, um deles estava tão achatado pela
passagem do tempo que a sua elevação
do solo era quase impercetível, o que o
protegeu da pilhagem. As escavações
efetuadas neste túmulo entre 1978 e
1979, sob a direção de Jörg Biel, puseram
a descoberto um dos mais ricos enter-
ramentos da Europa da Idade do Ferro.
A câmara funerária de madeira, com
cerca de 4,7 x 4,7 m, continha os restos
mortais de um homem com cerca de 40
anos de idade e 1,87 m de altura. O corpo
estava deitado sobre um divã de bronze
(kliné) ricamente decorado, apoiado por
oito figuras femininas sobre rodas. Os
ornamentos e as vestes que cobriam o
corpo do príncipe de Hochdorf demons-
tram o elevado estatuto do defunto. Ao
pescoço usava um torques de ouro, no
braço direito uma pulseira de ouro, no
peito duas fíbulas de ouro e na cintura
um cinto de ouro com um punhal de
bronze e ferro banhado a ouro. Junto à
cabeça foram encontrados os restos de
um chapéu feito de casca de bétula, uma
navalha de barbear e um pente. Nos pés,
havia finas placas de ouro que decora-

156
ASC
Em cima, reconstrução do túmulo
vam os sapatos desaparecidos. Aos pés do príncipe de Hochdorf. Em baixo,
do kliné havia um caldeirão de bronze ornamentos de ouro encontrados no
de fabrico grego com uma capacidade de túmulo.
cerca de 500 litros, que originalmente
continha hidromel e está decorado com
três leões à volta do bordo. Noutro canto
do túmulo, encontrava-se um carro de
quatro rodas com jugo e arreios, uma
faca e louça de bronze para nove pessoas,
entre outros objetos. Por fim, numa das
paredes da câmara, encontrava-se um
conjunto de nove cornos de beber, o
maior dos quais é de ferro e tem uma ca-
pacidade de 5,5 litros, o que demonstra
a importância dos ritos de comensali-
dade e dos banquetes funerários entre
as elites das comunidades hallstáticas.
A estátua de um guerreiro encontra-
da no sítio vizinho de Hirschlanden
apresenta muitos dos elementos en-
contrados no túmulo de Hochdorf,
cuja possível estela não foi recuperada.
O Professor Dirk Krausse interpretou
esta sepultura como pertencendo a
um pontifex maximus, com base no
armamento simbólico e nos elementos
de sacrifício encontrados no túmulo.
ASC

157
A
LOCAL: Guerra das Gálias (58-51 a. C.)
Auvergne, França atingiu o seu clímax na Batalha
de Alésia (52 a. C.), na qual as
DATA: tropas comandadas pelo gene-
ral romano Júlio César se confrontaram
cerca de 82 a. C. - com os rebeldes gauleses liderados por
46 a. C. Vercingetórix. Mas se conhecemos em
pormenor a vida de César, pouco sabe-
mos sobre o comandante da insurreição
gaulesa. De acordo com o geógrafo gre-
go Estrabão, Vercingetórix nasceu no
oppidum de Arverno, na Gergóvia. O seu
nome é um nome composto que significa
«rei supremo dos guerreiros». O seu
pai, Celtilo, segundo César, tinha exer-
cido a supremacia sobre toda a Gália,
mas foi assassinado pelos seus próprios
concidadãos quando quis restabelecer a
realeza em seu benefício. Como observa
Laurent Olivier, quando Vercingetórix
é mencionado na obra de César, este
descreve-o como adulescens, ou seja, já
não é uma criança, mas ainda não é um
homem com idade para exercer cargos
públicos, pelo que no início de 52 a. C.
devia ter entre vinte e trinta anos.
Em 52 a. C., o já poderoso Vercingetórix
convoca os seus seguidores e incita-os
a iniciar uma revolta geral contra os
romanos. Em seguida, enviou embai-
xadas a todas as tribos vizinhas para
que se juntassem à insurreição. Já antes
se tinham registado outras coligações
militares gaulesas, a última das quais
dez anos antes, contra Ariovisto. Em
Bibracte, capital dos Éduos, foi eleito co-
mandante-chefe de uma nova coligação
alargada, desta vez contra os romanos.
Segundo César, depois de sofrer várias
derrotas, optou pela guerra de guerrilha
SHUTTERSTOCK

e por uma política de terra queimada,


numa tentativa de enfraquecer e esgotar
o exército romano. No entanto, após a

158
ASC
Na imagem, a reconstrução das defesas romanas
em Alésia, atual Museu de Alésia. Em baixo, a
estátua equestre de Vercingetorix de Bartholdi em
Clermont-Ferrand.
ASC

queda do oppidum de Biturige, em Ava-


ricum, onde cerca de 40 000 pessoas
foram exterminadas pelos romanos,
retirou-se para Gergóvia para a defender
do ataque de César. O assalto romano
terminou com uma clara derrota. Por
fim, Vercingetórix tentou defender o
oppidum de Alésia, mas o eficaz siste-
ma de cerco construído pelos romanos
e a derrota do exército que veio em seu
auxílio levaram à sua rendição. Segun-
do o historiador romano Dion Cássio,
Vercingetórix foi executado por ordem
de César no final do triunfo celebrado
pela conquista da Gália em 46 a.C.

JESÚS RODRÍGUEZ HERNÁNDEZ


Pré-historiador (UCM)

159
Topo do Templo
de Endovélico na
Rocha da Mina.

160
ENDOVÉLICO
UM DEUS
INTEMPORAL
Um Deus Misterioso

R
ecordo com clareza o momento em
que li pela primeira vez o nome do
maior deus lusitano. No roman-
ce histórico A Voz dos Deuses, do
saudoso João Aguiar, a epígrafe inicial tinha
inscrito o estranho e, ao mesmo tempo, mis-
terioso nome: «A história de Tongio filho de
Tongétamo, sacerdote do grande deus Endo-
vélico e guardião do seu santuário»… Quem
era Endovélico?
Até então, já ouvira falar dos diversos deuses
do panteão greco-romano: Zeus/Júpiter; Po-
sídon/Neptuno; Hades/Plutão, entre tantos
outros teónimos. Contudo, o nome Endové-
lico nunca fora por mim lido ou escutado.
A leitura d’A Voz dos Deuses tinha como
propósito embrenhar-me na vida de Viria-
to, do lusitano que unira diversas tribos para
combater, até ser assassinado em 139 a. C.,
as legiões romanas. Pretendia aproximar-me
daquele que é considerado o primeiro gran-
de herói da portugalidade, apesar de Portu-
gal só ter surgido mais de mil anos depois.
Contudo, a leitura do livro guiou-me até En-
dovélico, dando início, assim, à descoberta
daquele que é o maior dos deuses lusitanos:
deus do Além, da cura, da profecia, o deus
muito bom.
A descoberta conduziu-me anos mais tarde
até ao seu templo mais antigo, quando fiz a
minha «peregrinação».
Quem era Endovélico?... Aliás, quem é En-
dovélico?
Sinalização para
se caminhar até ao A CHEGADA DOS CELTAS
Santuário de Endovélico. Por volta do século VI a. C., os celtas chega-
ram à Península Ibérica. Não terá sido grande

161
o confronto com os habitantes da região, os natureza. Será no mundo natural que encon-
iberos, pois há registo de que se fundiram, tramos os templos celtas.
principalmente na zona central, dando ori- Já no século V a. C., a região que é hoje Portu-
gem aos celtiberos. gal era dominada por dois grupos de povos:
Os celtas trouxeram a sua cultura e religião. os lusitanos e os calaicos. Ambos, eram cons-
Na Península Ibérica, enraizaram-se e con- tituídos por diversas tribos, que partilhavam
tinuaram as suas tradições e as suas ma- uma identidade comum. Os celtas tinham-
nifestações artísticas. Assim, a arte celta é -se difundido a partir do centro da Europa,
facilmente identificada no território portu- segundo a teoria mais aceite. De facto, eles
guês. A chamada cultura castreja tem vários tinham alcançado os extremos do continente
exemplos arquitetónicos, onde se salientam europeu e dominavam grande parte do terri-
os comuns padrões geométricos, de linhas tório. Se tivessem tido unidade, teriam sido
redondas que se entrelaçam. provavelmente o maior império da antigui-
Mas a religião céltica não tem a mesma ma- dade nesse período.
nifestação visual que a arte, pois estava liga- Apesar da divisão política, comungavam das
da à figura do druida, do sacerdote que co- mesmas tradições e crenças. Assim, a sua
mungava entre o mundo do Além e o mundo chegada à Península Ibérica é a manifestação
material. A ligação entre esses dois mundos da sua alma enquanto povo, mas não é total-
era através do mundo natural. A natureza as- mente imune à influência dos que já habita-
sumia um papel importante na ligação entre vam a região. Por isso, coloca-se a questão:
os homens e os diversos deuses adorados. Os terá sido Endovélico uma divindade trazida
animais, as árvores, a fauna e a flora em ge- pelos celtas ao longo da sua expansão?
ral, eram «porta» para se comungar com os Não se sabe efetivamente se o deus Endové-
seres divinos. Por isso, é comum que a per- lico era crença celta na sua origem ou não.
ceção da religião celta comece nos espaços da Podia já ser adorado pelos iberos antes da
chegada dos celtas. Contudo, independente-
mente da resposta, o deus tornou-se o mais
adorado pelas tribos celtas na Península Ibé-
rica, tendo sido o seu centro de adoração na-
quilo que é hoje o Alentejo. O número de aras
(de pequenos altares consagrados às divinda-
des) e inscrições encontradas são prova dis-
so mesmo. Além disso, a inscrição do nome
segundo formas diversas mostra que os de-
votos eram oriundos de regiões de linguajar/
pronúncia diferente. De facto, Endovélico
é invocado como Endovólico ou Enobólico,
entre outros teónimos semelhantes.
Curiosamente, o conhecimento que temos da
divindade devemo-lo aos romanos. Estes não
excluíam do culto as divindades indígenas
das zonas que ocupavam. Aliás, adoravam-
-nas, praticando culto à maneira romana.
Por isso, o número de aras e outros monu-
mentos que se têm descoberto é graças à prá-
tica religiosa dos romanos. São as aras com
inscrições que permitiram o conhecimento
dos deuses ctónicos da Península Ibérica, en-
tre os quais se destacam, para além de Endo-
vélico, Atégina e Trebaruna.
De facto, com a chegada dos romanos à Pe-
nínsula Ibérica em 218 a. C. por causa da
guerra com Cartago (a poderosa cidade-esta-
do fenícia no norte de África e com quem Ro-
Porta de uma casa castreja, no Museu Morais Sarmento, ma se digladiava desde 264 a. C.), Endovélico
em Guimarães, ornamentada com um entrançado padrão prepara-se para ser romanizado. A romani-
geométrico, muito característico da arte celta. zação de Endovélico é prova da importância

162
da divindade e da forma como se relacionou
rapidamente com os novos crentes.

LUGARES DE CULTO | S. MIGUEL


DA MOTA Ara com
Falar de Endovélico é ter presente dois lu- dedicação a
gares concretos, onde o deus era adorado. Endovélico,
A associação do deus a um desses lugares é presente no
consensual. A associação ao outro provoca Museu Nacional
dúvidas, principalmente entre os especialis- de Arqueologia.
tas. Contudo, o segundo lugar é aquele que
mais pessoas tem atraído.
O primeiro espaço é aquele que se situa no
cabeço de S. Miguel da Mota, no concelho do
Alandroal. Hoje, o lugar é apenas um monte
com um marco geodésico. Contudo, no tempo
dos romanos, esse local assistira à construção
de um magnífico templo para que os devo-
tos pudessem adorar e agradecer as benesses imerso na natureza e mais coincidente com
concedidas pela divindade. A construção terá as práticas de veneração dos celtas. A desco-
ocorrido por volta do século I d. C. e terá tido berta, como já foi referida, deve-se ao pro-
como propósito dar o devido espaço de ado- fessor Manuel Calado.
ração e agradecimento àquela divindade celta A identificação do dito santuário rupestre
que se tornou romana com a integração das tornou-se, pelo renascimento da devoção a
terras ibéricas no império nascido em Roma. Endovélico, o real santuário daquele que é
Esse magnífico templo terá sido demolido o maior deus lusitano. Num lugar chamado
após a cristianização. Recordemos que o cris- Rocha da Mina, junto ao Rio Lucefecit, onde
tianismo sempre foi muito adverso à prática as águas serpenteiam e uma fraga emerge. No
de outras correntes religiosas, registando a
história uma destruição constante de tem-
plos e tradições religiosas que não provi-
Topo do santuário
nham do pensamento cristão. A intolerância de Endovélico
cristã, no caso do templo de Endovélico no na Rocha da
outeiro de S. Miguel da Mota, terá feito com Mina. Destacam-
que os materiais aí existentes tivessem sido se os degraus
usados para construir uma ermida, erigida esculpidos na
sob a invocação de S. Miguel. Será essa er- pedra, que dariam
mida que um dia estará em ruínas e que será acesso a alguma
demolida para se recuperar todo um extraor- plataforma
dinário espólio escultório e epigráfico. construída
O responsável pela demolição da ermida em com matérias
1890 e recuperação do espólio referente a perecíveis.
Endovélico foi José Leite de Vasconcelos, o
fundador daquilo que é hoje o Museu Nacio-
nal de Arqueologia. Graças aos seus esforços,
ficava a salvo do furto e da destruição o es-
pólio que se tornou fundacional do museu.
Apenas cerca de 100 anos mais tarde, o pro-
fessor Manuel Calado encontraria o santuário
rupestre, mais antigo que o templo construí-
do pelos romanos e onde os lusitanos presta-
riam culto a Endovélico.

LUGARES DE CULTO | ROCHA DA MINA


Próximo do lugar onde foi erigido pelos ro-
manos o magnífico templo de mármore a En-
dovélico, foi descoberto um templo antigo,

163
Guerreiro calaico. A adorados na natureza, não se construindo
escultura está presente
espaço com materiais duráveis.
no Museu Nacional de
A localização do santuário da Rocha da Mina
Arqueologia, em Lisboa.
integra o elemento natural para que os deu-
ses sejam adorados, assim como o isolamento
que um lugar de culto necessita. Além disso,
topo, encontram-se es- a presença da água junto ao rochedo que de-
culpidos na pedra qua- la emerge é também significativo, pois surge
tro degraus. Perto do lo- como elemento purificador. Seria neste belo
cal, encontra-se também espaço que os sacerdotes prestariam culto ao
um largo orifício, escava- maior deus da região.
do também na pedra.
Pela proximidade do O ETERNO DEUS MUITO BOM
templo construído pelos As descobertas relacionadas com Endovélico
romanos e pelas carac- não têm trazido somente respostas. De fac-
terísticas naturais que o to, essas descobertas têm suscitado muitas
local apresenta, conclui- questões e dúvidas. Relativamente ao nome,
-se que aquele lugar seria José Leite de Vasconcelos considera possível
o lugar primitivo para que o nome Endovélico seja celta e tenha
adoração a Endovélico. como significado «Muito Bom», tal como
A adoração pelos celtas o deus irlandês Dagda, também chamado
aos seus deuses era sem- «Deus Bom». Apesar da incerteza, sabe-se
pre no meio natural. que é um deus infernal e da cura. Apesar das
É fácil imaginar um diversas associações a certos deuses roma-
guerreiro calaico a ado- nos, é um deus com características próprias,
rar um deus pátrio, pois não necessitando dessas aproximações.
temos representações Primeiramente, é um deus infernal, porque
escultórias do guerreiro. tem uma função no pós-morte. Essa ideia é
Seria um soldado com es- oposta à ideia de ser castigador. De facto, o
cudo pequeno e redondo, conceito de inferno não pode ser compreen-
tendo nos braços as famo- dido no sentido cristão, mas no sentido dos
sas braceletes (vírias) e o antigos gregos. Para estes, o inferno era so-
colar grosso no pescoço mente o lugar para onde iam as pessoas que
(torques). Mas torna-se morriam. Por exemplo, para os antigos gre-
difícil imaginar os templos que gos, o inferno era o reino dos mortos, onde
tinham para adorar as suas divindades, pois, existia um lugar para os heróis (os Campos
conforme tradição celta, os deuses eram Elísios), um lugar para os seres humanos que

Uma Escrita Misteriosa


O
conhecimento dos celtas ainda tem algumas limitações,
pois o que sabemos sobre eles e sua a origem provém dos
historiadores gregos e romanos. De facto, os celtas não
registavam a sua história. A cultura e a religião eram sustentadas
pela oralidade. Contudo, não deixa de ser curioso notar que, na
Península Ibérica, no Sudoeste, há um conjunto diversificado
de pedras com inscrições. Estas estelas têm uma linguagem, a
chamada Escrita do Sudoeste, que alguns autores consideram ter
muitas semelhanças com a língua celta, apesar de os símbolos
usados para registar a língua terem influência fenícia. Terão sido A chamada estela do guerreiro,
os celtas ibéricos pioneiros na escrita? com escrita do Sudoeste. Está
Além disso, alguns estudiosos apontam uma ligação direta entre localizada no Museu da Escrita
os celtas do País de Gales, que teriam vindo não do centro da do Sudoeste, em Almodôvar.
Europa, mas do Sudoeste da Península Ibérica.

164
No interior do Santuário de Nossa
Senhora da Boa Nova, conserva-se
uma inscrição a Endovélico.

tinham tido uma vida sem grandes feitos e


que não tinham praticado ações ímpias (os
Campos Asfódelos) e um lugar para as pes-
Santuário de Nossa Senhora da Boa Nova, situado na
soas que mereciam castigo (o Tártaro, onde
freguesia de Terena, do concelho do Alandroal. O local é
encontramos os famosos castigados, como
uma igreja-fortaleza.
Prometeu e Sísifo).
Sendo um deus infernal, Endovélico seria um
deus que conduziria as almas depois da morte
para o Além. Assim, seria um deus benéfico. famosa Porca de Murça seja um símbolo reli-
Por também ser um deus da cura, foi associa- gioso do antigo deus, que ainda vive sob um
do a Esculápio, o deus romano da medicina. pedestal no espaço público da referida vila.
Essa associação provém das várias inscrições Apesar da tentativa para se eliminar a me-
de agradecimento a Endovélico por graças mória de Endovélico, o deus vive nos lugares
que ele concedeu. De facto, as pessoas ante a mais improváveis. Aliás, ele vive enquanto o
doença ou outra necessidade faziam um vo- seu nome for pronunciado e os ex-votos re-
to, uma promessa de fazer ao deus uma ofe- gistados nas dezenas de objetos com inscri-
renda, como uma ara, para agradecer a graça ções à divindade permanecerem protegidos;
recebida. Assim, o pagamento da promessa protegidos da destruição provocada pelo
daria origem a um ex-voto, os diversos ob- fanatismo e pela ignorância. Aliás, as inscri-
jetos de pedra com a inscrição de agradeci- ções, ironicamente, conservam-se nos lu-
mento pela graça dada pelo deus. gares mais inverosímeis, como no Santuário
Outro aspeto importante do deus é o da pro- de Nossa Senhora da Boa Nova, uma igreja-
fecia. Por isso também foi associado ao deus -fortaleza, situada na freguesia de Terena, do
grego Apolo, que tinha no santuário de Del- concelho do Alandroal. No interior da igreja,
fos um grandioso templo onde fazia profe- ainda se encontra conservada uma inscrição
cias. O santuário Endovélico seria, por con- a Endovélico.
seguinte, visitado também por pessoas que
pretendiam conhecer o futuro ou interpretar AS MÁSCARAS DE ENDOVÉLICO
os sonhos tidos. Assim, o lado oracular faria Quando José Leite de Vasconcelos chegou ao
com que o seu templo tivesse uma grande monte onde se situava uma ermida em ruí-
importância. A associação do deus à profe- nas, logo concluiu que a estrutura era consti-
cia também está comprovada com inscrições tuída por aras e partes de diversas esculturas
encontradas. do antigo templo de Endovélico, que fora de-
O seu símbolo principal é o javali/porco. É molido e usado para construção de um tem-
forte a possibilidade de as esculturas de por- plo cristão. Certamente que o erigir do tem-
cos/javalis encontrados em Portugal, prin- plo cristão tinha como intuito eliminar a pre-
cipalmente no Norte, sejam representações sença da divindade adorada anteriormente.
do deus, mostrando que o seu culto estava Contudo, com o tempo, a ermida construída
disperso para além das proximidades do seu falhou o propósito, pois foi desmontada e já
santuário, localizado no Alentejo. Talvez a não existe. Além disso, foram recuperados

165
Algumas Referências dezenas de objetos consagrados à divindade
Literárias a Endovélico que habitava o lugar antes do cristianismo aí
ter chegado.

A
s referências a Endovélico são antigas. Já o Realmente, depois de ter sido romanizado,
pensador André de Resende se referira ao deus Endovélico enfrentou algo inadmissível pa-
no século XVI, tornando-se um dos primeiros ra um deus: o esquecimento com que alguns
divulgadores de algumas das inscrições latinas com cristãos pretenderam aniquilá-lo. Quando o
referência a Endovélico. O nome do deus sempre foi
cristianismo se oficializou como religião do
estando presente, mesmo que de uma forma ténue,
império romano, todas as outras religiões
na cultura portuguesa, tendo obtido o verdadeiro
começaram a sentir o fanatismo como nun-
impulso com José Leite de Vasconcelos.
Curiosamente, enquanto lia recentemente de forma ca fora sentido. A demolição de lugares sa-
desorganizada Viagem a Portugal de José Sarama- grados e o assassínio massivo de pessoas que
go, a presença do deus fez-se notar. O único prémio professavam crenças diferentes alastrou por
Nobel da língua portuguesa começa por escrever todas as terras onde o cristianismo se fazia
no início do capítulo «Alta está, alta mora» sobre as sentir com a sua «mensagem de amor». Os
condições climatéricas que encontra na Serra da outrora perseguidos tinham-se tornado per-
Estrela. O céu nublado suscita-lhe a lembrança dos seguidores.
antigos deuses, referindo apenas um: Endovélico, que A cristianização de cultos pagãos ocorreu por
é adjetivado com a palavra louvado. todos os lugares onde o cristianismo fanático
«É certo que se arrisca a estar na serra e não ver a ser- teve possibilidade de se manifestar. A intole-
ra, mas confia que algum deus hermínio, desses que rância cristã cumpriu-se na destruição sis-
na Lusitânia se veneravam e agora estão adormecidos, temática dos lugares de culto diferentes e na
como louvado Endovélico, acorde do pesado sono modificação das tradições enraizadas nas po-
secular para abrir umas nesgas de céu e mostrar ao pulações. Mudar a mente das pessoas teve ou-
viajante os seus antigos impérios.» (SARAMAGO, José. tro processo, pois não se podia simplesmente
Viagem a Portugal. Porto, Porto Ed., 2022. p. 379.) deitar abaixo a mentalidade como se fazia com
No capítulo seguinte, «O povo das pedras», Sarama- as construções. Assim, a fórmula foi «santifi-
go volta a referir o nome do deus por causa do dom car» deuses e transformar ritos com simbolo-
que ele tinha na juventude: o dom de voar. gia cristã. De facto, certos anjos e santos não
«Teve o viajante de esperar todos estes anos para
são mais do que a cristianização de deuses pa-
reaver o dom perdido, quem sabe se por uma só noite,
gãos. Aliás, a simbologia cristã em geral tem a
e ainda assim o estará devendo a uma derradeira
sua explicação nas ditas religiões pagãs.
compensação de Endovélico, que, não podendo fazer o
milagre físico de dissipar as brumas, as reconstituiu no Com o que foi referido, entende-se que a
sonho para satisfação do viajante.» (SARAMAGO, José. substituição de Endovélico, deus infernal e da
Viagem a Portugal. Porto, Porto Ed., 2022. p. 383.) cura, por S. Miguel tenha feito sentido para
Também no meu sétimo livro de poesia, Eternamente os cristãos que quiseram anular a presença do
Dante, inscrevi alguns versos para o deus num poema deus celta na região. Efetivamente, S. Miguel é
que recebeu como título o seu próprio nome: apresentado como um arcanjo da cura, função
«Enquanto tarda tudo, / invoco o deus esquecido… / igualmente atribuída a Endovélico. Também
— Há muito que te espero. // E sigo / o trilho do javali.» se atribui a S. Miguel a receção das almas dos
Obviamente, o projeto pessoal para a divulgação do que morreram, pesando-as na sua balança,
deus concretizou-se com outra profundidade no livro símbolo com que surge normalmente repre-
Mitos Lusitanos | Endovélico e outros Deuses, publica- sentado; e Endovélico é o deus que conduz as
do pela Zéfiro em 2022. almas depois da morte. Também o facto de S.
O livro foi escrito com a Miguel ser o chefe dos exércitos de Deus na
intenção de apresentar, batalha contra Satanás pode ter ajudado na
através da narração, os associação, pois alguns consideram Endové-
deuses pátrios aos mais lico um deus de cariz guerreiro.
jovens e a todas as pes- S. Miguel o deus do fim dos tempos é uma das
soas que pretendem ter máscaras de Endovélico. Por isso, a ermida
um vislumbre dos deuses
adorados pelos ante-
passados. Em função
disso, foram criados Livro Mitos Lusitanos | Endovélico e outros
mitos a partir de aspetos Deuses, publicado em 2022 pela Zéfiro.
históricos e arqueológi- Para a capa, foi escolhido o animal-
cos relacionados com as símbolo do deus Endovélico, o javali,
divindades lusitanas. desenhado segundo a arte celta.

166
construída para apagar a memória do gran-
dioso templo construído a Endovélico pelos
romanos foi consagrada a S. Miguel. Mas En-
dovélico tem outra máscara.
Como foi referido, muitos deuses foram
«santificados». Alguns santos passaram a
ser venerados em locais com a intenção de se
diluir as marcas dos deuses nos ideais cris-
tãos. Santo Antão, o famoso ermita que vi-
veu no deserto do Egito no século IV e que foi
tentado por demónios, é um bom exemplo. O
santo da oração e da solidão viveu uma vida
solitária; quem queria encontrá-lo tinha de o
procurar no deserto; também os deuses cel-
tas tinham de ser procurados na solidão da
natureza. Talvez seja essa a razão de o tem-
plo rupestre de Endovélico ser localizado
num local isolado. Santo Antão é associado à
cura, tal como Endovélico. Por fim, o animal
símbolo de Santo Antão é o porco, tendo En-
dovélico o mesmo animal na sua simbologia.
Quer em S. Miguel, quer em Santo Antão, Fresco de Santo Antão no Santuário de
encontramos as máscaras do antigo deus Nossa Senhora da Boa Nova. O Santo surge
lusitano. desenhado na tradicional companhia do cão e
com um javali, símbolo do deus Endovélico.
ENDOVÉLICO | UM VERDADEIRO
DEUS
Não se conhece ainda a forma definitiva de gundo o ideal dos romanos. O rosto do deus é
Endovélico com que era adorado pelos lusi- o de um homem barbudo. Não tem ar de no-
tanos e depois pelos romanos. O rosto que vo nem de velho. Terá sido esculpido seguin-
temos do deus foi aquele que se encontrou do o modelo de um deus grego ou filósofo. A
em S. Miguel da Mota e que foi esculpido se- restante parte do corpo ainda continua uma
incógnita, apesar de terem sido apresentadas
algumas hipóteses. Contudo, é o rosto de En-
dovélico que marca a sua presença.
Ao longo da história da humanidade, muitos
deuses foram cultuados e muitos deuses fo-
ram esquecidos. Mas Endovélico é um deus
verdadeiro, pois superou a morte do esque-
cimento e, apesar das muitas perguntas sem
resposta que suscita, continua vivo. Aliás,
renasceu com as descobertas efetuadas por
José Leite de Vasconcelos e tornou-se maior
desde então, existindo, inclusive, um movi-
mento pagão que o cultua.
Talvez o futuro traga novas revelações sobre
o deus Endovélico e o seu rosto se torne mais
claro. Enquanto isso tarda, pode cada um
de nós tomar o caminho e procurar escutar
o deus nos seus santuários, onde o deus fala
nos sonhos.

Rosto de Endovélico, que se encontra SÉRGIO FRANCLIM


no Museu Nacional de Arqueologia. Mestre em Estudos Portugueses
(FCSH, Universidade Nova de Lisboa)

167
O CERCO DE
NUMÂ
ÂNCIA

Numância (1881), de
Alejo Vera Estaca. Museo
del Prado (Madrid).
ASC

168
R
oma, após vinte anos de derrotas cia e, provavelmente, avistou as suas mura-
e desafios ao seu poder pela cida- lhas nos primeiros dias de setembro. Deve
de celtibera de Numância, decidiu ter-se instalado num acampamento nem
pôr termo a esta situação e en- perto nem longe da cidade e com um bom
viou o seu general mais prestigiado, Públio controlo dos arredores de Numância, muito
Cornélio Cipião, vencedor de Cartago, pa- provavelmente na Gran Atalaya de Renie-
ra subjugar os Numantinos. Cipião, após a blas, a 8 km de Numância.
campanha contra os Váceos, em 134 a. C., Começou imediatamente a apertar o cerco à
avançou para invernar na região de Numân- cidade, avançando as suas posições e estabe-
lecendo primeiro dois acampamentos per-
to de Numância: Peña Redonda e Castillejo.
Cipião iniciaria a circunvalação colocando
obstáculos temporários para a aproximação
ao inimigo. A sua preparação foi o primeiro
passo do cerco. Os romanos deviam trazer
consigo, as estacas necessárias para a cons-
trução da primeira paliçada, o mais rapi-
damente possível. É de supor que tenham
escavado muito rapidamente — tratava-se de
um exército de 20 000 homens — um fosso
onde seriam colocadas as grandes estacas, a
fim de surpreender os Numantinos. Não fo-
ram encontrados vestígios deste trabalho nos
arredores da cidade.
Depois de tomadas todas as medidas e de
protegidas as obras do cerco, passaram à
construção de um fosso e uma muralha.
Schulten estimou em cerca de 4 m a largu-
ra da muralha nos locais onde está mais bem
conservada. Era necessária uma escada para
subir ao topo da muralha, que foi construída
com grandes pedras de ambos os lados e um
enchimento intermédio de terra e pequenas
pedras. A altura da muralha era de 3 m, sem
contar com o parapeito superior de estacas
de madeira (2 m), ou seja, uma altura total
de 5 m.
Segundo Schulten, só quando a muralha de
bloqueio estava pronta é que o cerco foi fe-
chado. Hoje sabemos que o cerco era cons-
tituído pelos dois acampamentos principais
— Castillejo e Peña Redonda —, pelos fortes
de El Molino, Dehesilla, Peña del Judío, Alto
Real, La Vega, Travesadas e Valdevorrón, e
pelo castelo ribeirinho, situado a jusante da
junção do rio Merdancho com o Douro.
O abate de árvores para a obtenção de ma-
deira para as grandes estacas do vallum, as
torres de madeira e o resto das construções
dos acampamentos e fortalezas foi calculado
em cerca de 10 000 m3 de madeira, aos quais
se deve acrescentar a lenha para a cozinha e
o aquecimento dos legionários e das tropas
auxiliares. Sem dúvida, uma desflorestação
muito forte do território numantino. Por
outro lado, a base de pedra do cerco e as
fundações dos acampamentos apontam para

169
SHUTTERSTOCK Estruturas domésticas e muralha em
Numância (Garray, Soria).

trabalhos de cantaria de um volume de cerca do, aproveitando o curso dos rios Tera, Due-
de 65 000 m3 de pedra. ro e Merdancho, como primeiro obstáculo.
Calculando 60 000 soldados do exército ro- O fosso na zona da planície tinha 2400 m de
mano e 362 kg de alimentos por pessoa e por comprimento. Se acrescentarmos o percur-
ano, obtém-se um total de 21 720 000 kg de so ao longo do Tera, que não é muito largo
alimentos por ano. A cavalaria do exército nem muito profundo, temos mais 1200 m;
romano durante o cerco utilizaria cerca de um total de quase 4000 m. Para cercar es-
4000 cavalos, cada um consumindo cerca de te espaço seriam necessárias mais cerca de
10 kg de forragem por dia, o que representa- 16 000 estacas.
ria uma quantidade aproximada de cerca de O percurso da muralha pode ser traçado pe-
40 000 kg de forragem por dia, o que, ao lon- los vestígios encontrados e pela afirmação
go de um ano, equivaleria a 14 600 000 kg. de Apiano de que o seu circuito media 48
estádios (cerca de 9000 m), o que coincide
O CERCO CONSOLIDA-SE com os vestígios encontrados. Foi encontra-
O perímetro de Numância era de 24 estádios do entre o castelo ribeirinho de El Molino e o
(4400 m), e o das obras do anel mais do que acampamento de Dehesilla, entre este último
duplicava o perímetro da cidade. Como não e o acampamento de Alto Real, entre Castil-
era possível prolongar a muralha de circun- lejo e Valdevorrón, e entre Merdancho e Peña
valação à volta da lagoa no lado oriental, Redonda. O comprimento total do cerco (o
rodeou-a com um aterro da mesma largura conjunto do recinto dos acampamentos ali-
e altura que a muralha para desempenhar nhados com o vallum) era de cerca de 9000
a mesma função. Não há vestígios do fosso m. e foram necessárias pelo menos 36 000
em frente da muralha defensiva menciona- estacas grandes. Para reforçar o valor da
do por Apiano. Na opinião de Schulten, só muralha, foram erguidas torres de madeira
seria necessário na planície oriental, não — mais de 200 —, espaçadas cerca de 30 m
sendo necessário noutras partes, uma vez entre si, com uma altura estimada de cerca
que, sendo íngreme, poderia ser substituí- de 10 m, e quatro andares, dois acima do pa-

Cipião iniciou a circunvalação


colocando obstáculos temporários
para a aproximação ao inimigo

170
O CERCO DE NUMÂNCIA
Vinte anos de resistência feroz obrigaram a
toda-poderosa Roma a reunir o maior exército da sua
Numantia história no que respeita a campos de cerco. Públio
Cornélio Cipião, o Pequeno Africano, em 134 a.C., foi
encarregado de subjugar apenas 4.000 numantinos,
após anos de humilhação e humilhação contínuas.

Castelo romano

Acampamento romano

Reconstrução da
cidade de Numância

Acampamento romano

Castelo
romano

Cipião ergueu um cerco


de quase dez
quilómetros de
comprimento,
fortificado com torres,
fossos e paliçadas.

PALIÇADA
ROMANA

Registos
Fosso
Porta norte
da cidade de
Numância
A t e r r o d e t e r ra

171
A escassez de alimentos provocou uma
situação insustentável, mas o pior
para os Numantinos não era a fome

rapeito da muralha, o inferior para catapul- outros 10 000 deviam formar um corpo de
tas e o superior para sinais. reserva. O próprio Cipião percorria o cerco
para o inspecionar todos os dias e todas as
CONDENADOS noites. Estava firmemente convencido de
A UMA MORTE SEM HONRA que o inimigo, assim cercado, não seria ca-
O rio Douro era muito utilizado pelos Nu- paz de resistir por muito tempo, pois já não
mantinos para abastecimento e deslocação podia receber armas, alimentos ou socorro.
das tropas que entravam na cidade a nado ou O sólido aparelho de cerco podia resistir a
em pequenos esquifes. Como Cipião não po- qualquer tentativa dos habitantes da cidade.
dia ligar as margens do rio com uma ponte, O conjunto do recinto, com cerca de 48 es-
por ser largo e muito impetuoso, construiu tádios (cerca de 9000 m) de perímetro, ofe-
duas torres, uma em cada margem, e de cada recia uma grande capacidade para impedir a
uma delas pendurou, com cordas, grandes saída dos Numantinos.
tábuas de madeira que deixou flutuar sobre Os guerreiros da cidade tentaram várias
o rio, e nas quais foram pregados numero- vezes romper o cerco, pois não havia pior
sos dardos e espadas, segundo a descrição de castigo para um celtibero do que não poder
Apiano, impedindo assim que alguém atra- morrer em combate. Sabemos que uma ten-
vessasse sorrateiramente, quer a nado, quer tativa, feita por Rethogenes e um pequeno
navegando. grupo de guerreiros, foi bem sucedida, ele
Quando tudo estava pronto, colocou nume- chegou à cidade de Lutia e tentou recrutar
rosos mensageiros ao longo das obras de for- combatentes. Os mais jovens e os mais co-
tificação, que lhe comunicavam de dia e de rajosos saíram a favor, mas quando Cipião
noite o que se passava, transmitindo as no- soube do facto, ordenou que lhes cortassem
tícias uns aos outros. Nesta altura, as tropas
romanas contavam 60 000 homens, incluin-
do as forças indígenas.
Cipião ordenou que metade do exército
guardasse as muralhas e se deslocasse pa-
ra onde fosse necessária a sua presença;
20 000 homens deviam combater a partir
das muralhas, quando a ocasião o exigisse, e
ASC

Representação da muralha celtibérica de Numância,


ASC

constituída por uma base de pedra e um parapeito de


adobe e madeira. Recriação da muralha de Numância.

172
Litografia a cores do cerco de Numância
em Museo Militar del Ejercito Español,
Volume 1, editado por Evaristo Ullastres
(Barcelona, 1883).

ALBUM
as mãos como castigo. Impediu-os assim de cheios de raiva, sofrimento, fadiga e remorso
empunhar espadas, condenando-os a uma por terem devorado os seus camaradas. Ci-
morte indigna, pois não podiam morrer a pião, tendo escolhido cinquenta deles para
combater. Assim terminou a única tentativa o seu triunfo, vendeu os restantes e arrasou
de ajudar Numância. a cidade. Esta é, sem dúvida, a versão mais
A cidade foi condenada à morte por inani- plausível, que em nada mancha o ato de he-
ção, pois os 4000 homens armados encer- roísmo e a luta pela liberdade dos celtiberos
rados na cidade pouco podiam fazer contra de Numância. Numância começava a tor-
o dispositivo romano. A escassez de ali- nar-se «eterna». Tornou-se primeiro numa
mentos tornava a situação insustentável; os lenda, e com o passar do tempo até aos dias
alimentos tornavam-se cada vez mais es- de hoje, num símbolo poderoso para além de
cassos e as peles e até a carne humana dos qualquer ideologia e época.
mortos tinham de ser cozinhadas para ser- A ação e a luta pela liberdade de um povo
vir de alimento. Mas o pior para o conceito impressionaram Roma de tal forma que os
celtibérico de honra não era a fome, mas o escritores romanos posteriores mostraram
facto de não poder morrer a combater. Os simpatia pelos Numantinos e levaram o seu
Numantinos, atingidos pela fome, tentaram heroísmo à exaltação. Assim, forjaram os
uma rendição honrosa, que Cipião recusou primórdios da sua lenda, mas, ao mesmo
categoricamente; irritados e desesperados, tempo, o valor documental e a veracidade
chegaram mesmo a matar os seus próprios que a própria dimensão humana lhes confe-
embaixadores. re. A história dos Numantinos entrava num
caminho em que história e lenda se entrela-
O FIM DO CERCO çam e também se manipulam. A arqueolo-
Após onze meses de cerco, no verão de gia e o progresso da investigação iluminam
133 a. C., os numantinos sobreviventes ren- as margens de ambas e ajudam a corrigir as
deram a cidade. Apiano — a fonte mais fiável distorções das narrativas posteriores.
— relata que alguns deles se suicidaram de
várias formas, e outros chegaram ao ponto
indicado por Cipião, com um aspeto hor-
rível: corpos imundos, cobertos de pêlos, ALFREDO JIMENO MARTÍNEZ
unhas compridas, um cheiro nauseabundo, Diretor do Plano Arqueológico
roupas imundas e fétidas e olhares terríveis de Numância

173
Cenografia da
floresta dos druidas
na ópera Norma,
de Vincenzo Bellini,
representada no
Theatre Royal des
Italiens em 1835.
ALBUM

Gravura.

174
A
RELIGIÃO
DOS ANTIGOS
CELTAS
Entre o imaginário e o real

175
C
om a documentação atual, é im-
Cena de sacrifício
animal pintada possível realizar uma reconstrução
num caldeirão geral da religião e mitologia celtas
de cerâmica de antigas — relatos das origens, ca-
Numância (séc. lendários festivos, poderes e mitos dos deu-
II-III a. C.). Museo ses, cosmologias, etc. —; sabemos demasiado
Numantino, Sória. pouco para podermos explicar tudo, pelo que
as narrativas gerais são excessivamente es-
peculativas e não passam de uma projeção
a-histórica do imaginário do próprio histo-
riador. Do mesmo modo, as recriações da
religião celta propostas pelo Neodruidismo,
pela Wicca e pelo Celticismo são o resultado
da invenção de uma suposta tradição ances-
tral, imaginada de acordo com as fantasias
modernas sobre os celtas do passado, e com
pouca base científica.
Por outro lado, vale a pena recordar que nun-
ca houve uma religião celta única e estática,
mas sim diferentes sistemas religiosos que se
foram alterando à medida que as sociedades
celtas mudavam. Nunca houve um panteão
divino pan-céltico, nem uma mitologia par-
tilhada por todos os povos da antiga Céltica.
Este facto não impede que encontremos ele-
ASC/S. ALFAYÉ

mentos religiosos recorrentes, que podemos


relacionar com a existência de crenças, rituais
e visões do mundo comuns, que se manifesta-
ram de forma diferente em cada região, gru-
po cultural e período histórico. Alguns destes
elementos mítico-religiosos sobreviveram
nas histórias e sagas da Irlanda e do País de
Gales escritas por monges medievais — como
o Mabinogion, o Leabhar Ghabála Éireann,
ou o Ciclo do Ulster —repletas de caldeirões
mágicos, druidas, rainhas, pedras que falam,
metamorfoses, banquetes e batalhas heróicas.
Infelizmente, não dispomos de um corpus se-
melhante aos relatos insulares para os povos
da Céltica antiga, pelo que não conhecemos as
histórias míticas que davam sentido aos seus
rituais, imagens, paisagens sagradas e deuses .
Este facto limita (severamente) a nossa capaci-
dade de interpretar e compreender estes anti-
gos sistemas religiosos, agravado pela própria
parcialidade das fontes documentais de que
Estatueta dispomos. O celta era uma cultura oral e exis-
feminina em tem poucos textos religiosos escritos em lín-
terracota guas celtas; por exemplo, o calendário gaulês
polícroma de
de Coligny, a «grande inscrição» celtibérica
Numância,
de Peñalba ou a maldição gaulesa de Chama-
que poderá
lières. Conhecemos muitos nomes de deuses
representar uma
sacerdotisa ou celtas graças às inscrições romanas dos séculos
uma deusa (séc. I-IV d. C., mas nem sempre é fácil reconstituir
os espaços e as dinâmicas rituais de que faziam
ASC/S. ALFAYÉ

II-I a. C.). Museo


Numantino, Sória. parte, nem saber quais eram as atribuições e
o território de graça dessas entidades divinas.

176
O «corpo de pântano» de
Clonycava (Irlanda), século
IV-III a. C.; o cabelo tem
uma cor avermelhada
devido à turfa ácida.
National Museum of
Ireland, Dublin.

ASC / S. ALFAYÉ
Nunca existiu uma religião celta única e
estática, mas sim diferentes sistemas religiosos
que se foram transformando

A informação sobre a religião dos Celtas for- procedimentos rituais. Embora esta infor-
necida pelos autores gregos e latinos insere-se mação literária seja amplificada e distorcida
num discurso ideológico que legitima a sua como parte da narrativa criada por Roma
conquista e colonização por Roma, apresen- para justificar a conquista, a arqueologia
tando-os como a antítese bárbara — também documenta casos de violência intrapessoal
em termos religiosos — da civilização clássica; ritualizada entre os Celtas, embora seja por
há, por isso, omissões, distorções e exotismo. vezes difícil determinar o que motivou a se-
Quanto às imagens, é difícil desvendar os leção das vítimas e se os seus ferimentos são
seus códigos e significados sem conhecer as peri ou post-mortem. Os «corpos dos pân-
narrativas mítico-religiosas, mas mesmo as- tanos» encontrados em turfeiras e pântanos
sim podemos identificar nelas rituais, deu- na Irlanda e em Inglaterra são os restos natu-
ses, sacerdotes, geografias sobrenaturais, ralmente mumificados de homens que foram
combates heróicos, símbolos solares, etc. sacrificados e aí depositados nus entre o sé-
Os maiores avanços sobre religião celta vêm culo IV a. C. e o século I d. C.. Um dos jovens
da arqueologia, mas aquilo que não deixou depositados no pântano de Lindow (Inglater-
vestígios materiais — gestos, palavras, sons, ra) usava uma bracelete de pelo de raposa e
cheiros, elementos perecíveis, movimentos, um corpo pintado, e tinha comido uma refei-
emoções e sensações — é irrecuperável. ção especial antes de sofrer uma morte brutal
— foi golpeado na cabeça, asfixiado, degolado
VIOLÊNCIA RITUALIZADA e afogado. Apesar de ter tentado defender-se,
A violência ritualizada constitui um elemen- o homem de quase 2 metros de altura e bem
to central e comum dos sistemas religiosos cuidado a quem pertence o tronco mutilado
celtas, apesar das diferenças entre eles. depositado no pântano de Oldcroghan (Irlan-
Os textos greco-latinos relatam com repug- da) foi esfaqueado até à morte, decapitado e
nância que os povos da Céltica antiga sacri- cortado ao meio, tendo os mamilos sido cor-
ficavam seres humanos para diversos fins e tados e os braços perfurados e trespassados

177
Santuário de Belovac
em Gournay-sur-
Aronde (França),
séculos IV a.C. - I d. C.,
segundo um desenho
de J.-C. Golvin.
ASC

por ramos de aveleira. O adulto encontrado romantismo associou estes rituais sangren-
na turfeira irlandesa de Clonycava foi repe- tos aos druidas e aos megálitos, inventando
tidamente golpeado na cabeça e no tronco uma iconografia dramática sem base histó-
com um machado de pedra, cortado ao meio, rica que sobrevive no imaginário popular. A
estripado e atirado para a turfeira; conserva imolação dos inimigos também fazia parte
um elaborado penteado fixado com um gel de dos rituais guerreiros de preparação para o
resina de pinheiro proveniente de Espanha. combate ou de celebração da vitória. Foi o
No lago de Llyn Cerrig Bach, no País de Gales, que fez Boudica, rainha do povo britânico
foram encontradas correntes e cadeias para dos icenos, com a população capturada du-
cinco cabeças, objetos metálicos e restos de rante a sua revolta anti-romana (60 d. C.),
animais e de seres humanos, que podem estar que torturou e sacrificou como oferenda aos
relacionados com sacrifícios humanos (afo- seus deuses. Os restos humanos encontrados
gamento por imersão?). na Sima de La Cerrosa (Astúrias) e noutras
As fontes literárias aludem ao sacrifício celta grutas cântabro-ástures poderiam perten-
de prisioneiros em cerimónias teatrais que cer a indivíduos sacrificados no contexto das
envolviam o derramamento de sangue e a Guerras Cantábricas (século I a. C.).
observação dos últimos estertores e as entra- Outras vezes, o sacrifício humano celta pode
nhas dos vencidos para fins divinatórios. O ter sido uma forma ritualizada de pena capital

178
reservada a certos criminosos, co- Par de artefactos rituais celtas
conhecidos como «colheres»,
mo relata César; ou uma forma de
séc. II-I .a. C., Cumbria,
agradecimento aos deuses pela
Inglaterra. British Museum,
preservação dos cereais de que
Londres.
dependia a sobrevivência da
comunidade, como no caso
dos 25 jovens deposita-
dos em silos na aldeia de
Danebury (Inglaterra),
que apresentam sinais
de lapidação, desmem-
bramento e canibalis-
mo. Noutras ocasiões, o
assassínio ritual permitia
a sacralização e/ou a pro-
teção mágico-religiosa de
um edifício e dos seus habi-

BRITISH MUSEUM
tantes, daí o enterramento de
crianças e adultos em muralhas
e fossos. Desconhecemos o signi-
ficado de outros sacrifícios humanos
— como os efetuados no século II a. C.
em Gordion (Turquia) —, e das complexas
manipulações rituais de restos humanos, santuários, ne-
completos ou desmembrados, atestadas nu- crópoles, etc.).
ma grande variedade de contextos celtas. As vítimas mais
Praticaram a amputação da mão direita e a comuns eram os
decapitação dos adversários, bem como a animais domésti-
exibição e manipulação das suas armas e ca- cos (ovelhas, porcos,
beças. Sabemos que as cabeças dos vencidos bovinos, cães, cavalos,
eram penduradas nos cavalos dos vencedores gatos), embora também
— como se vê em moedas, cerâmicas gaule- se sacrificassem corvídeos,
sas, báculos e fíbulas hispanas; pregadas, em- javalis, veados... A escolha da espécie, do
balsamadas e integradas em troféus junto às sexo, da cor e da idade do animal dependia
muralhas, como na aldeia gaulesa de Cailar; da divindade invocada, da finalidade do ri-
expostas em complexos religiosos, como em tual e de outras convenções culturais, e a sua
Roqueperturse e Gournay-sur-Aronde (Fran- imolação era acompanhada de atos, palavras
ça); guardadas nas casas como testemunho do e gestos codificados pela sua tradição reli-
valor dos seus possuidores; e utilizadas como giosa, que não deixaram vestígios. Alguns
artefactos rituais em cerimónias cujo de- animais eram consumidos, no todo ou em
senvolvimento e finalidade desconhecemos. parte, em festas cerimoniais, como acontecia
Sabemos que o hábito recorrente de obter, no século III a. C. no altar-cozinha sacrificial
conservar e exibir as cabeças dos vencidos de Castrejón de Capote (Badajoz). A maioria
não está ligado a um «culto do crânio» unitá- eram depositados — completos ou apenas em
rio e pancéltico, mas a uma prática complexa partes — em fossos abertos em contextos do-
de violência ritualizada com significados só- mésticos, em túmulos e em fossos ou poços
cio-religiosos diversos e mutáveis. de complexos religiosos.
O sacrifício de animais está bem documenta- Outra prática sacrificial partilhada pelos povos
do entre os povos da antiga Céltica e em con- da antiga Céltica era a inutilização deliberada
textos muito diversos (habitações, muralhas, de objetos como forma de os «matar» e, as-

A imolação dos inimigos fazia parte dos


rituais guerreiros de preparação para o
combate ou de celebração da vitória

179
Nesta imagem, a
montanha-santuário
celtibérica de Peñalba,
Villastar (Teruel). À
esquerda, uma inscrição
dedicada à deusa
celta Degantia por
Flávia, possivelmente
uma sacerdotisa, em
cumprimento de um voto
em honra da comunidade
dos Argaelos. Datada
do século I d. C., é
proveniente de Bergium
Flavium (Cacabelos).
Museo Arqueológico de
Cacabelos, León.

ASC / S. ALFAYÉ

sim, transferi-los para o domínio sobrenatural:


armas dobradas, cerâmicas partidas, ânforas
decapitadas, caldeirões e capacetes desman-
telados, moedas perfuradas ou cortadas, etc.

PAISAGENS SAGRADAS
E LOCAIS DE CULTO
Os textos greco-romanos insistem no carác-
ter naturalista da religião celta e na sua relu-
tância em encerrar os deuses em edifícios e
imagens humanas, preferindo venerá-los nas
florestas (nemeton) e em paisagens naturais Mas, apesar do que afirmam os autores gre-
pouco modificadas antropicamente (grutas, co-latinos na sua descrição tendenciosa da
montanhas, nascentes, pântanos, etc.). Isto barbárie religiosa celta, os celtas construíram
não significa que houvesse um culto às árvo- efetivamente locais de culto e imagens divi-
res, à água, às rochas ou às montanhas, mas nas com forma humana. Embora não se trate
sim uma veneração dos poderes sobrenatu- de templos ao estilo clássico, a arqueologia
rais que se manifestavam nestas topografias documenta uma variedade de estruturas cul-
e que se integravam em histórias mítico-reli- tuais e complexos religiosos, tanto dentro
giosas de que quase nada sabemos. A monta- como fora dos povoados, identificando tra-
nha de Peñalba de Villastar (Teruel) e a Cueva dições regionais e/ou étnicas. Alguns eram
de La Griega (Pedraza) são exemplos de ar- mesmo centros cerimoniais supralocais,
quitetura natural sagrada celta; o mesmo como Tara (Irlanda), associada à realeza; as
acontece com os rios, fontes e lagos onde se Fontes Sequanae (França), centro salutífero
celebravam rituais com o depósito aquático de peregrinação; ou Ribemont-sur-Ancre,
de objetos, na sua maioria metálicos, como um macabro santuário em honra dos Belgae
é exemplo a descoberta na fonte termal de caídos em combate com os corpos expostos.
Duchcov (República Checa). As atividades rituais também se desenrolavam

180
ASC / S. ALFAYÉ

Apesar do que A MORTE NÃO É O FIM:


VISÕES DO ALÉM
afirmam os autores As antigas sociedades celtas partilhavam a
crença de que a morte não era o fim da vida,
greco-romanos, mas uma fase liminar, intermédia, que dava
os celtas lugar a uma outra forma feliz de existência,
embora imaginassem de formas diferentes
construíram como era esse Além e como se acedia a ele.
lugares de culto A iconografia e os textos clássicos e insu-
lares documentam a crença num Além si-
tuado em ilhas do Atlântico e noutras vias
aquáticas de acesso à geografia dos mortos.
em contextos domésticos, como o atestam Noutras ocasiões, localiza-se nas regiões
as inumações infantis, a parafernália ritual celestes, onde acedem os guerreiros caídos
(queima-perfumes, cerâmicas cultuais, esta- em combate depois de exporem os seus cor-
tuetas, etc.) e os depósitos de animais desco- pos aos abutres e corvídeos, como se docu-
bertos em habitações de toda a Céltica. menta na Hispânia e na Gália. Acreditavam

181
O chamado «túmulo
do druida» em
Deal, Inglaterra,
pertencente a um
homem enterrado
com uma coroa na
cabeça, uma espada
e um escudo (séc.

BRITISH MUSEUM
III-II a. C.). British
Museum, Londres.

também num mundo subterrâneo ao qual se político-militares, como Diviciacus. Em-


acedia através de sepulturas pré-históricas bora, tal como ele, alguns druidas tenham
(sídh) e de grutas. colaborado com o Império Romano, outros
optaram por fazer frente ao invasor. Este
DRUIDAS E OUTROS facto, aliado à rejeição do sacrifício humano
ESPECIALISTAS RELIGIOSOS — ilegalizado em Roma em 97 a. C. — levou
Nem os druidas de César, nem os do Neo- os imperadores Tibério e Cláudio a ordenar a
-Druidismo, nem os da cultura popular perseguição do druidismo, de forma a desa-
(Panoramix), são os druidas históricos tivar o seu poder catalisador da resistência
da Antiguidade, sobre os quais sabemos indígena e a desmantelar a tradição cultural
realmente muito pouco. Para o seu estu- de que eram guardiões. Se sobreviveram,
do, temos apenas a imagem distorcida que fizeram-no transformados noutro tipo de
nos oferecem os textos clássicos e os re- autoridade religiosa.
sultados de uma controversa «arqueologia Quanto à «arqueologia druídica», trata-se
druídica». de túmulos e objetos singulares — toucados,
Os autores clássicos localizam os druidas coroas, «colheres» decoradas, cetros, facas,
apenas na Bretanha e na Gália — não há etc. — que supostamente pertenceram aos
qualquer referência textual ou epigráfica à druidas, embora possam ter sido também
sua presença noutras zonas da Céltica —, utilizados por outros especialistas religiosos
e atribuem-lhes um poder sagrado e uma celtas. Sabemos que, pelo menos na zona
função sócio-religiosa preeminente: sacer- hispânica, alguns destes especialistas usavam
dotes presentes em todas as cerimónias re- mantos talares e barretes de bico, como mos-
ligiosas, depositários de um saber coletivo tra a cena do sacrifício de animais pintada na
que transmitiam oralmente, juízes de todos cerâmica numantina; e que outros usavam
os litígios, filósofos, adivinhos, curandei- máscaras e disfarces nos seus rituais, talvez
ros, conselheiros dos poderosos e chefes para encarnar os deuses.

182
Segundo o escritor Deusa esculpida num
romano Salústio, as tronco de carvalho
e com olhos de
mulheres celtiberas quartzo, séc. VI a. C.,
Ballachulish, Escócia.
eram as depositárias National Museum of
da memória oral das Scotland, Edimburgo.

suas comunidades,
que transmitiam
através dos seus
cânticos

AS MULHERES NA
RELIGIÃO CELTA
Embora o celtismo e o neopaganismo defen-
dam o carácter eco-feminista da antiga re-
ligião celta, e seja inegável que as mulheres
celtas tinham uma liderança político-militar
e um reconhecimento social impensáveis no
mundo clássico, não sabemos se historica-
mente existiram druidesas ou se, como se
deduz da literatura greco-latina, o sacerdócio
druídico era reservado aos homens. Os textos
clássicos destacam a ativa luta anti-romana
das sacerdotisas na Grã-Bretanha, como as
que tentaram, sem sucesso, impedir a destrui-
ção da ilha sagrada de Anglesey (Gales) pelo
exército romano; e como a rainha Boudica,
sacerdotisa da deusa Andraste. Mencionam

ASC/NMS
também a existência de outros sacerdócios
femininos entre os Celtas, e duas imagens fe-
mininas encontradas em Numância podem
representar sacerdotisas ou deusas celtiberas. os poderes sobrenaturais, expressa em me-
Além disso, segundo o escritor romano Salús- tamorfoses recorrentes e figuras híbridas. As
tio, as mulheres celtiberas eram depositárias suas religiões eram sistemas complexos de
da memória oral das suas comunidades, que crenças, mitos, rituais, deuses e paisagens
transmitiam através dos seus cânticos; talvez sagradas, que moldavam visões do mundo
fossem também guardiãs da tradição religiosa que se transformavam, tal como as socieda-
do seu povo. Havia também profetisas celtas des a que davam sentido. A dominação ro-
como a puella cluniense e as Dryades, adivi- mana provocou mudanças nestas religiões
nhas gaulesas consultadas pelos imperadores tradicionais, que já estavam inseridas num
romanos no século III d. C. Mas, para além quadro provincial céltico-romano.
das suas funções sacerdotais e proféticas, as No estudo das religiões celtas do passado
mulheres estavam também presentes na re- misturam-se distorções antigas, primitivis-
ligião celta como agentes individuais — fiéis, mo cultural romântico, arqueologia, vozes
peregrinas — e como deusas adoradas — De- indígenas e narrativas coloniais, imaginá-
va, Epona, Degantia, etc. — como atestam as rio moderno e realidade histórica. Há ainda
imagens e as inscrições votivas. muito por descobrir e compreender sobre
estes fascinantes sistemas religiosos.
ENTRE O IMAGINÁRIO E O REAL
Os antigos celtas acreditavam na existência
de uma inter-relação cósmica, numa ligação SILVIA ALFAYÉ
fluida entre a natureza, os seres humanos e (Universidad de Zaragoza)

183
Que é feito
DOS CELTAS?
O celtismo em Portugal: sob esta qualificação abrigava-se
um fantástico mundo de povoados fortificados, comunidades
camponesas e guerreiras e formas de arte muito particulares.

184
O trísceles, motivo

EDUARDO BRITO
de possível
inspiração
astral, esculpido
num elemento
arquitetónico da
Citânia de Briteiros,
costuma ser
interpretado como
um símbolo de
caráter apotropaico.

185
F
azem parte da nossa linguagem co- como uma cultura – mas assinalando o facto
mum, quando falamos nos tempos de integrarem diferentes etnias – a definição
anteriores à Romanização, nos cas- de Celta parece corresponder à sua perspeti-
tros, nas comunidades do Ferro. Co- va sobre um conjunto de povos culturalmen-
mo qualquer tema com um carácter enigmá- te e tecnologicamente distintos do universo
tico, místico e controverso, os Celtas atraem greco-romano. É nesse sentido que parece
a atenção, desde há muito tempo, inicial- apontar a identificação de sucessivos gru-
mente como foco de interesse de um grupo pos de povos Celtas à medida que avançava a
intelectualizado. De facto, o muito que se conquista ou integração de novos territórios
escreveu sobre os Celtas, ao longo de déca- por parte de Roma, inclusive na Península
das, traz uma dificuldade acrescida quando Ibérica. É aqui que nos surge a original de-
se intenta desconstruir a ideia, ou seja, per- finição de «Celtiberos», para as tribos que
ceber o que poderão ter sido e as diferentes habitavam no Leste da Meseta, e que a his-
realidades a que terão correspondido. Dota- toriografia tradicional fez arrastar até aos
dos de uma designação – de uma identidade Lusitanos. Desta forma, as informações es-
– própria, os Celtas inspiraram, e inspiram, critas relativas aos Celtas espalharam-se por
nacionalismos e bairrismos, novas identida- diferentes regiões da Europa: por todo o ter-
des, marcas e clubes desportivos. ritório alpino e toda a antiga Gália, parte da
É aos autores gregos e romanos que se de- Península Ibérica, Ilhas Britânicas, por toda
ve a sua entrada na História. O termo Celta a planície da Panónia e mesmo na Anatólia.
foi utilizado para definir, inicialmente, as Esta amplitude territorial, bebida dos autores
populações dos territórios dos atuais sul de da Antiguidade, foi utilizada, desde logo, pe-
França e norte de Itália, ampliando-se de- los investigadores do século XIX, para a cons-
pois esta designação a outras zonas da Euro- trução de uma alegada identidade cultural
pa ocidental e central. Embora os geógrafos única, que seria marcada por uma tendência
clássicos da Antiguidade os tenham descrito migratória, com a qual sempre se identifica-
ram os Celtas. Esta ideia coincidia também
com o difusionismo que caracterizava, na
época, a interpretação das inovações tecno-
lógicas. Não só a mobilidade das populações,
mas vários outros aspetos que, na verdade,
podem ser considerados como transversais à
maior parte dos contextos culturais da Euro-
pa proto-histórica, foram considerados como
característicos dos Celtas. Incluem-se aqui o
habitat fortificado, a inexistência de escrita
alfabética, o politeísmo que enformava uma
religião de índole animista, o caráter agro-
-pastoril da sua economia, a exacerbação
do belicismo na sua sociedade e, finalmen-
te, uma língua comum, ou várias línguas da
mesma família. Em termos evolutivos, esta
cultura Celta, que também tinha reflexo na
arte evidenciada pelos objetos, foi atribuída
ao primeiro milénio antes da nossa Era, em
duas grandes fases: Hallstatt, mais antiga, e
La Tène, mais recente, nomes derivados de
dois sítios arqueológicos, o primeiro na Áus-
tria, o segundo na Suíça.
Foi a partir daqui que, já entrando no século
XX, a evolução das investigações foi cons-
truindo as características de uma cultura,
pese embora não fossem aspetos unânimes,
Trísceles esculpido na Pedra variando de país para país, em função dos
PALIMPSESTO, LDA

Formosa do Balneário Sul da artefactos arqueológicos que iam aparecen-


Citânia de Briteiros. do: idênticos uns, mas distintos outros. Is-
to posto, à aceitação da existência de uma

186
Ruínas de estruturas habitacionais
da Citânia de Briteiros.

SMS
cultura Celta europeia, surgem, quase desde tecentos anos antes da nossa Era, caracte-
logo, posições «anti-celtistas» por parte de riza-se quase exclusivamente pelo habitat
vários investigadores. Estas posições deriva- fortificado. As razões para a generalização
vam dos vários contextos, nomeadamente do castro como unidade de povoamento são
arqueológicos, que iam sendo estudados e ainda muito discutidas, tendo a sua origem
identificados, e que evidenciavam diferentes ainda no final da Idade do Bronze. Numa fase
culturas materiais. inicial, os castros estavam implantados em
Em Portugal, ocorreu também essa identifi- relevos mais elevados, com acessos dificul-
cação, porque facilitava uma leitura cultural tados pela orografia, em que o critério defen-
dos povos pré-romanos, preenchendo lacu- sivo parece ter sido fundamental. Contudo,
nas e permitindo uma filiação étnica anterior nos últimos séculos deste período, o número
à conquista romana. Contudo, o discurso de castros aumenta significativamente, veri-
historiográfico nacionalista, que caracteri-
zou os séculos XIX e XX, praticamente até
à década de 1970, evidenciou sobretudo os
Lusitanos, que embora considerados como Vestígios de uma casa circular
de origem Celta, eram muito mais facilmen- do Castro de Sabroso.
te associados a uma ancestralidade especi-
ficamente portuguesa. Este aspeto ofuscou
o celtismo tradicional que caracterizou o
discurso de boa parte dos arqueólogos de
outros países europeus, nomeadamente em
Espanha e muito particularmente na Galiza.
No entanto, ainda hoje se fala, em Portugal,
numa pretensa «invasão Celta» de 500 an-
tes da nossa Era, da qual não existe qualquer
evidência arqueológica.

UM MUNDO DE CASTROS...
A Idade do Ferro no Norte de Portugal, que
corresponde sensivelmente aos últimos se-
SMS

187
SMS

SMS
Fragmento de cerâmica da Idade do Ferro,
com decoração incisa, proveniente da
Muralha do recinto superior do Castro de Sabroso. Citânia de Briteiros.

ficando-se a sua construção em colinas mais as construções angulares, umas e outras co-
baixas, próximas de terras mais aptas para bertas com estruturas de madeira e colmo
cultivo, sugerindo uma maior aproximação ou giesta. Diferentes construções formavam
aos vales. Os castros caracterizam-se por conjuntos, que parecem corresponder a uni-
possuírem uma ou mais linhas de muralha, dades habitacionais ocupadas por uma famí-
construídas em granito ou em xisto, con- lia extensa.
soante as regiões, sistemas de fossos e taludes Nos séculos II e I antes da nossa Era, alguns
(muralhas em terra) e uma área edificada que castros parecem concentrar um maior nú-
correspondia apenas a uma parte dos terre- mero de habitantes e funções económicas e
nos abrangidos pelas defesas. políticas, sendo conhecidos como oppida,
No interior dos povoados, a arquitetura ca- num fenómeno que também se verificou em
racterizava-se por outra originalidade do outras zonas da Ibéria e da Europa, em ter-
Noroeste da Península Ibérica, a casa circular ritórios da periferia das zonas controladas
em pedra, cujo modelo se baseia nas caba- pelo Império Romano. No Norte de Portugal
nas circulares, comuns na Idade do Bronze são também conhecidos como «grandes cas-
e ainda no início da Idade do Ferro. A estas tros», ou «citânias», embora o termo «citâ-
casas típicas vieram juntar-se, na fase final, nia», tal como «castro» ou «cividade», seja

O primeiro anti-celtista
português
F
rancisco Martins Sarmento, investigador vimaranense
do século XIX, arqueólogo, etnógrafo e fotógrafo, foi dos
primeiros objetores da filiação céltica dos habitantes dos
castros do Norte de Portugal. Não que Sarmento estivesse em
sintonia com a interpretação mais atual, porque a sua teoria
era baseada nos mesmos pressupostos difusionistas do seu
tempo, e com uma valorização absoluta das fontes clássicas.
A sua oposição ao celtismo fundamentava-se na leitura que
fez da Ora Maritima de Avieno, da qual interpretou que os
Francisco Lusitanos descenderiam de povos Lígures da Europa do Norte,
Martins que também se terão fixado na atual Ligúria. A sua interpre-
Sarmento. tação não lhe sobreviveu, sendo mais conhecido pelo seu
Autorretrato, trabalho de estudo e proteção de vários sítios arqueológicos
posterior a 1868. do Norte do país.

188
utilizado independentemente da dimensão
dos sítios.
Esta aparente preponderância do habitat for-
tificado na Idade do Ferro do Norte do país,
está na origem da definição do conceito de
Cultura Castreja, contexto que define as ca-
racterísticas culturais e sociais dos habitan-
tes dos castros, e cuja utilização pelos inves-
tigadores é variável, tal como a sua associa-
ção aos Celtas, que tem vindo a decair. São

LUÍS RICARDO
monumentos representativos deste contexto
povoados como Briteiros, Sabroso, Sanfins,
Terroso, São Lourenço ou Santa Luzia, todos Potinhos cerâmicos, usados para beber, recolhidos na
castros visitáveis na região. Citânia de Briteiros.

...E DE SÍMBOLOS.
Embora manifestações artísticas como a Ar-
te Rupestre se tenham mantido ao longo da
Idade do Ferro, o longo período em que os
castros foram habitados caracteriza-se por
uma iconografia muito específica. Vários
motivos que figuravam em gravuras rupes-
tres em períodos mais recuados continuaram
a fazer parte do reportório artístico, sendo
agora representados em elementos arqui-
tetónicos em pedra, juntamente com novos
MIGUEL OLIVEIRA

símbolos. A iconografia caracteriza-se por


motivos abstratos, de caráter geométrico, ou
de possível inspiração vegetalista ou astral.
São comuns os elaborados frisos decorados Par de arrecadas em ouro, recolhidas na Citânia de
em ombreiras e padieiras de portas, ou em Briteiros, em 1937.

Carro votivo de Vilela,


Paredes. Miniatura de
bronze atribuída ao século
IV a. C., que representa um
conjunto de personagens
integrantes de um cortejo, no
qual se incluem guerreiros,
sacrificantes e um ovicaprino.
EDUARDO BRITO

O cortejo dispõe-se sobre um


carro de bois estilizado.

189
EDUARDO BRITO

EDUARDO BRITO
Bracelete de ouro recolhido em Lebução, Torque de ouro recolhido em Lebução,
Valpaços, profusamente decorado com os Valpaços, com terminais em dupla escócia
motivos característicos da arte castreja, com os topos decorados.
bem como motivos que revelam influências
mediterrânicas.

rodapés exteriores de algumas casas, bem


como, ainda no domínio da arquitetura, nas
pedras formosas dos balneários, cuja densi-
dade decorativa sugere a importância e o in-
vestimento das comunidades na construção
destes edifícios. Numa sociedade ritualizada,
como seria a da Idade do Ferro, é possível que
muitos motivos, que hoje vemos como abs-
tratos, possam ter tido um significado claro,
comum para estas comunidades, podendo
também representar símbolos de proteção
espiritual, função que alguns dos motivos
parecem ter mantido em épocas posteriores.
Falamos dos círculos concêntricos, espirais,
labirintos, trísceles e tetrásceles, rosáceas.
Figuras humanas e animais são praticamen-
te inexistentes na decoração arquitetónica.
Estão, no entanto, presentes na estatuária,
sendo o tema de várias estatuetas femini-
nas, bem como esculturas sedentes, estas
quase sempre masculinas, mostrando uma
personagem sentada num banco ou numa
cadeira. Umas e outras parecem ter tido
uma função tutelar, tal como as célebres

Estátuas de
SMS

guerreiros
galaico-lusitanos, Fragmentos de escultura zoomórfica
provenientes de provenientes do Castro de Sabroso,
Fafe e Felgueiras. formando a cabeça de um porco, que estaria
encaixada num corpo proporcional.
SMS

190
estátuas de guerreiros, representados em
A prática da sauna no
pé, em posição hierática, com um escudo Norte de Portugal
U
circular sobre o abdómen. Estas estátuas,
m dos aspetos mais distintos dos povos
munidas de armas e de objetos de adorno,
castrejos do Norte do país, alheio à caracteri-
poderiam representar heróis divinizados,
zação que tradicionalmente se faz dos Celtas,
provavelmente colocados sobre a muralha é a existência da prática dos banhos, interpretados
dos castros, ou junto das portas da mesma, como possivelmente rituais, em espaços expres-
podendo ser vistas como uma metáfora do samente construídos para o efeito. Os balneários
poder das elites guerreiras. As esculturas de eram construídos em pedra, em parte soterrados, e
animais correspondem aos conhecidos ber- dispunham de um átrio, uma antecâmara, uma câ-
rões ou varrascos, representando porcos, mara e um forno. A câmara de sauna era aquecida
javalis ou bovinos, podendo relacionar-se pelo forno, onde também se colocavam seixos, que
com a abundância. O seu caráter sagrado é eram depois molhados para a obtenção de vapor
sugestivo, mas conjetural. e proporcionando a sauna. Esta era antecedida de
Vários motivos e técnicas decorativas eram unção com óleos, e seguida de banho de água fria,
frequentes em objetos quotidianos, particu- num tanque de pedra, e nova unção com óleos.
larmente na cerâmica e nos adornos feitos Talvez tenha sido a identificação romana do banho
em metal. Assim, as louças de ir à mesa eram com um hábito civilizado que tenha justificado a
decoradas com motivos incisos ou impressos descrição detalhada desta prática na Geografia
no barro fresco, mas também fíbulas, brace- de Estrabão. As pedras formosas eram elementos
letes, vírias e caldeirões – objetos usualmen- centrais dos edifícios de banhos.
te fabricados em bronze – eram também de-
corados, muitas vezes com recurso a moldes.
A ourivesaria é, talvez, das formas artísticas
que passaram por uma maior especialização
nesta época, sendo conhecidas várias tipolo-
gias de joias, desde os torques, até aos bra-
celetes e arrecadas. Os motivos decorativos
da ourivesaria parecem ter resultado de um
misto de influências mediterrânicas e «con-
PALIMPSESTO, LDA

PALIMPSESTO, LDA
tinentais», expressão que tem vindo a subs-
tituir o epíteto Celta.
De facto, as fragilidades da visão tradicional
desta suposta cultura Celta fizeram com que Pedra Formosa do Câmara de sauna do
o termo caísse em desuso entre a maior parte Balneário Sul da Citânia Balneário Sul da Citânia
dos historiadores e arqueólogos. No entanto, de Briteiros. de Briteiros.
vários investigadores continuam a recorrer a
esta nomenclatura, defendendo a sua utiliza-
ção como forma de articulação com as dinâ-
micas históricas da Proto-história europeia
e considerando a sua origem nos autores da
Antiguidade. A maioria, contudo, tende a
considerar que o termo Celta se refere a um
contexto geográfico muito específico, que
corresponderá à antiga Gália e ao maciço
alpino. O termo Celta é também, por vezes,
ainda usado para identificar um conjunto de
línguas aparentadas, que também se falariam
na Península Ibérica. Este assunto é igual-
mente controverso. Mas talvez seja, precisa-
mente, esta controvérsia que mantém acesa
a chama destes míticos antepassados.

Pedra Formosa atribuída ao Balneário Este da Citânia


GONÇALO CRUZ de Briteiros, o primeiro exemplar destas estelas a ser
Arqueólogo identificado.

191
o ALDHOUSE-GREEN, J. MIRANDA (2010): El mundo o GARCÍA-BELLIDO, Mª. P. Y BLÁZQUEZ CERRATO,
de los Druidas. Akal, Madrid. C.(2001): Diccionario de cecas y pueblos hispánicos.
CSIC, Madrid.
o ALDHOUSE-GREEN, J. MIRANDA (1995): Mitos
Celtas. Akal, Madrid. o GARCÍA QUINTELA, M. V., A. C. GONZÁLEZ-
GARCÍA, E SEOANE-VEIGA (2014): De los solsticios
o ALDHOUSE-GREEN, J. MIRANDA (2007): Arte Celta. en los castros a los santos cristianos: la creación del
Leyendo sus mensajes. Akal, Madrid. paisaje cristiano en Galicia, Madrider Mitteilungen,
55: 443-485.
o ALFAYÉ, SILVIA (2009): Santuarios y rituales en la
Hispania Céltica, ARCHAEOPRESS, OXFORD. o GARCÍA QUINTELA, M.V., A. CÉSAR GONZÁLEZ-
GARCÍA, A., ESPINOSA, D., RODRÍGUEZ ANTÓN, A. E
o ALMAGRO GORBEA, M. E DÁVILA, A. (1994): BELMONTE, J. A. (2022): An archaeology of the sky
Urbanismo de la Hispania «céltica» castros y oppida in Gaul in the Augustan Period, Journal of Skyscape
del centro y occidente de la Península Ibérica, in Archaeology 8/1.
Almagro Gorbea, M. & Martín, A. M. (Eds.) Castros
y Oppida en Extremadura: 13-75Ed. Complutense o GARCÍA QUINTELA, M.V. E DELPECH, F. (2013): El
Complutum Extra 4, Madrid. árbol de Guernica: memoria indoeuropea de los ritos
vascos de soberanía.Abada, Madrid.
o ALMAGRO, M. ET AL. COORDS (2004): Celtas y
Vettones. Real Academia de la Historia - Diputación o GARROW, D., GOSDEN, CH. & HILL, J. D. (2008):
de Ávila, Ávila. Rethinking Celtic Art. Oxbow Books, Oxford.

o ALMAGRO-GORBEA, M. (2018): Los celtas. o GRACIA ALONSO, F. (2009): Furor Barbari. Celtas y
Imaginario, mitos y literatura. Almuzara. Córdoba. Germanos contra Roma. Versatil, Barcelona.

o BRUN, P. E RUBY, P. (2008): L’âge du Fer en o JAMES, SIMON (2005): El mundo de los celtas.
France.Premières villes, premiers États celtiques. La Blume, Barcelona.
Découoverte, Paris.
o JIMENO MARTÏNEZ, A. e DE LA TORRE, J. I. (2005).
o BUCHSENSCHUTZ, O. ET AL. (2014): L’Europe Numancia. Símbolo e Historia. Ed. Akal, Madrid.
Celtique à l’âge du Fer (VIIIe-Ier siècles). Nouvelle
o JIMENO MARTÍNEZ, A. e CHAIN, A. (2017): La
Clio.L’Histoire et ses problèmes, PUF ,Paris. guerra numantina: cerco y conquista de Numancia, in
Jimeno, A. Coord. Numancia Eterna.2150 Aniversario,
o COLLIS, J. (1989): La Edad del Hierro en Europa.
la memoria de un símbolo: 235-250. Junta de
Editorial Labor, Barcelona. Castilla y León, Valladolid.
o CONNOLLY, P. (2016): La guerra en Grecia y Roma. o LALUEZA-FOX, C. (2018): La Forja Genética
Desperta Ferro, Madrid.(pp.118-132). de Europa: Una Nueva Visión del Pasado de las
Poblaciones Humanas. Universitat de Barcelona,
o CUNLIFFE, B.W. (2018) [1997]: The Ancient Celts. Barcelona.
Oxford University Press, Oxford...
o KRAUSSE, D., M. FERNÁNDEZ-GÖTZ, L. HANSEN E
o ELUÈRE, CH. (1987): L’Or des celtes. Office du I. KRETSCHMER (2016): The Heuneburg and the Early
LivreS.A. Fribourg. Iron Age Princely Seats: First Towns North of the Alps,
Archaeolingua, Budapeste.
o FERNANDEZ-GÖTZ, M. (2018): Urbanization in
Iron Age Europe: Trajectories, Patterns, and Social o MANCO, J. (2015): Blood of the Celts: The New
Dynamics, Journal of Archaeological Research, Ancestral Story. Thames and Hudson, Londres.
26:117-162.
o MEGAW, R. e V. (1996): Celtic Art. From its
o FICHTL, S. (2012): Les peuples galois. IIIe-Ier beginnings to the Book of Kells. Thames & Hudson,
siècle av. J.-C. Errance, Paris. Londres.

192
o MORALEJO ORDAX, J. (2011): El armamento o SCHULTEN, A. (1945): Historia de Numancia.
y la táctica militar de los galos. Fuentes literarias, Barna, Barcelona.
iconográficas y arqueológicas. Anejos de Veleia,
Série minor, 28, Vitoria-Gasteiz. o SILVA, M. (2019): Once upon a time in the West:
The archaeogenetics of Celtic origins, in Cunliffe,
o MOYA-MALENO, P.R. (2020): Paleoetnología de B. e Koch, J. T. Exploring Celtic Origins: New Ways
la Hispania Céltica: Etnoarqueología, Etnohistoria y Forward in Archaeology, Genetics and Linguistics.
Folklore. 2 vols. BAR Publishing. Oxford. Oxbow Books, Oxford & Philadelphia.
o QUESADA SANZ, F. (2010): Armas de la antigua
o VV. AA. (2017): Oppida. Las primeras ciudades de
Iberia. De Tartesos a Numancia. La Esfera, Madrid.
Europa. Desperta Ferro - Arqueologia & História, nº15.
o RUIZ ZAPATERO, G. (2014): Gentes de la Edad del
Hierro. Comunidad de Madrid, Dirección General de o VV. AA. (2013): Monnaies gauloises. Origine,
Patrimonio (Una historia para todos, nº 4), Madrid. fabrication, usage, Dossiers d’Archéologie, 360,
novembro-dezembro. Edições Faton, Dijon.
o OLIVIER, LAURENT (2021): César contra
Vercingétorix. Punto de Vista Editores, Madrid. o WEBSTER, GRAHAM (2007): Boudicca. La reina
guerrera. Booket, Barcelona.
o OTERO MORÁN, P. (2009): Les emissions
indígenes de la Celtibèria, in Campo, M. (Coord.): Els o WELLS, P. (1988): Granjas, Aldeas y Ciudades.
ibers. Cultura i moneda. MNAC, pp. 44-49 e113-116 Comercio y orígenes del urbanismo en la
(versão espanhola), Barcelona. protohistoria europea. Editorial Labor, Barcelona.

Direção Carmen Sabalete (csabalete@zinetmedia.es)

REDAÇÃO
Redatora chefe Cristina Enríquez (cenriquez@zinetmedia.es). Consultora Marta Ariño
Coordenação de design Óscar Álvarez (oalvarez@zinetmedia.es). Diretor Geral Financeiro Carlos Franco
CRO (Diretor Comercial) Alfonso Juliá (ajulia@zinetmedia.es)
REDAÇÃO EM MADRID Diretor de Desenvolvimento de Marca
C/ Alcalá, 79. 1º A. 28009 Madrid; Teléfono +34 810 583 412. Óscar Pérez Solero (operez@zinetmedia.es)

Colaboradores: Gonzalo Ruiz Zapatero, Martín Almagro Gorbea, Carlos DISTRIBUIÇÃO:


Jordán, Manuel Fernández-Götz, Luis Berrocal Rangel, Alberto Lorrio V.A.S.P. Distribuidora de Publicaçöes, S.A.
Alvarado, Ana Martín Bravo, Jesús R. Álvarez Sanchís, Paloma Otero A Super Interessante é uma publicação
Morán, Fernando Quesada, Juan Francisco Blanco García, Jesús registada na Entidade Reguladora
Francisco Torres Martínez, Marco V. García Quintela, Jesús Rodríguez para a Comunicação Social com o n.º 118 348.
Hernández, Alfredo Jimeno Martínez, Silvia Alfayé, Carlos Aguilera, Depósito legal: 122 152/98.
Gonçalo Cruz, Sérgio Franclim, Tempus Art.

© Zinet Media Global, S.L. Esta publicação é propriedade exclusiva da Zinet Media Global, S.L., e a sua reprodução total ou parcial, não autorizada, é totalmente proibida, de acordo
com os termos da legislação em vigor. Os contraventores serão perseguidos legalmente, tanto a nível nacional como internacional. O uso, cópia, reprodução ou venda desta revista só
poderá realizar–se com autorização expressa e por escrito da Zinet Media Global, S.L.

193
SHUTTERSTOCK

Você também pode gostar