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Depois de uma travessia demasiadamente longa, tendo nos abeirado desses extremos em que

se abismam tanto a subjetividade como o sexo (e tendo nos abeirado deles precisamente na
medida em que uma subjetividade se abisma no impossível da relação sexual), nós finalmente
desfrutamos da oportunidade de ver algo de fundamental para a nossa pesquisa, ou bem de
enunciar esse algo tal como nós o teríamos entrevisto no curso de nossa exposição: a saber, que
Lacan havia lançado luz sobre um grande número de desfiladeiros e altitudes os quais estariam
distribuídos ao longo de um percurso que caminhava paralelamente à trajetória de Alain
Badiou. Quando atinge uma primeira posição avançada em sua investida em direção à
subjetividade, por ocasião de seus années rouges (que, como mostrado em capítulo anterior,
correspondem ao final da década de 60 e ao início da década de 70, ou bem aos anos de seu
mais ardoroso maoísmo), Badiou não pode deixar de notar esse caminho trilhado por Lacan,
que não coincide exatamente com o seu, mas que avança numa mesma direção, e de tal maneira
que, desde o lugar em que o filósofo havia se detido, podiam-se divisar nessa rota uma série de
entroncamentos por onde talvez valesse o risco de enveredar-se. Mais do que um encontro
inesperado, o que se tem é um encontro ligeiramente atrasado entre o filósofo e o psicanalista
– ou ainda, um encontro minimamente diferido, realizado efetivamente como um segundo
encontro: contrariando todas as expectativas, o encontro entre eles consumou-se de fato num
segundo momento, agora a dar-se entre um filósofo e um anti-filósofo, tendo acontecido, assim,
somente após um primeiro desencontro (o que, surpreendentemente, em nenhuma das duas
ocasiões vem a resultar, pela soma de cada uma das componentes opostas, no cancelamento de
seus respectivos impulsos). Encontro que, atrasando-se ligeiramente, faz com que se
encontrem, afinal, a propósito de algo que não eles mesmos: eles terão se encontrado a
propósito da psicanálise, é verdade; mas essa ocasião terá sido a de uma psicanálise que Badiou
nunca teve o cuidado de praticar, como tampouco teria havido de sua parte a preocupação de
expandir a jurisdição teórica da descoberta conceitual de Freud. É bem verdade que algum
movimento expansivo resulta desse encontro, posto que nele torna-se evidente um impulso de
percorrer distâncias ainda maiores do que aquelas cobertas por Lacan. Não obstante,
continuaria difícil mensurar a magnitude dessas distâncias desde uma referência comum, como
se houvesse para elas um mesmo ponto de largada: é preciso ter bem claro que, para dar as suas
próprias passadas, Badiou não parte do mesmo lugar que Lacan.
De sorte que, para ver onde realmente se encontram, tanto quanto era possível nós tentamos
mantê-los desencontrados, como se estivessem, os dois, sempre a correr paralelamente um ao
outro (mesmo lá onde a presença de um efetivamente se impôs ao outro). Mas, a despeito do
que podíamos apenas sugerir durante todo o trajeto de nosso trabalho até aqui, agora é preciso
rematar a questão, pelo menos quanto a alguns de seus aspectos chave. Costurando os fios
principais dessa dupla malha que viemos manipulando cautelosamente, desenha-se um
pontilhado maior. E é mantendo esse pontilhado como o nosso alvo que arriscaremos, pois, dar
um ponto de basta ao estofamento dos tecidos em que vimos desfiar-se a textura da trama de
suas ideias, tanto as de Lacan como as de Badiou. Em uma e outra trama despontam, claro, as
diferenças, as séries irredutíveis, as divergências radicais, enfim, aquilo que um tecido não seria
capaz de recobrir na sua face oposta. No entanto, sem nos dispensarmos do artifício de uma
certa brevidade, daremos ênfase ao trabalho inverso, que é o de destacar as suas sobreposições,
recortando ali onde os tecidos foram tramados, se não de igual maneira, pelo menos
paralelamente um ao outro. Prosseguindo no uso dessa metáfora, diremos que, para proceder a
tal exercício, não é tanto a qualidade dos fios que nos interessa, e sim a técnica utilizada para
executar os nós de sua trama.
*

1
Como nos esforçamos por mostrar nos primeiros capítulos deste trabalho, a situação de Alain
Badiou relativamente ao pensamento francês das décadas de 50 e 60 do século XX é bastante
complexa: a uma só vez marcado pelas experiências intelectuais de Sartre e de Althusser, sem
falar no legado mais amplo que lhe teria sido transmitido pela chamada epistemologia histórica
e pelo estruturalismo, o fato é que não caberia reduzi-lo à determinação estrita de quaisquer de
suas influências. Elas se alternam e se combinam para produzir, em alguns dos primeiros
escritos filosóficos de Badiou, uma elaboração sumamente original, em que a impressão de
certas marcas decerto se faz evidente, mas na qual sobressai também uma singular capacidade
de esboçar um desenho que, sem ser reconhecível de imediato, pela incipiência de sua
composição, nem por isso deixa de traduzir-se numa forma propriamente nova. Lembremos,
assim, que uma espécie de assinatura dessa filosofia, ainda precoce em suas formulações
teóricas iniciais, pode ser identificada na tentativa de conjugar um rigor conceitual pensado
segundo o expediente das operações lógico-matemáticas a um anseio de que a efetivação
propriamente racional da política se desse por meio de uma agenda revolucionária. Resultando
numa composição improvável, que a bem da verdade se revelou quimérica, na época (isto é, a
década de 1960) ela se pretendia como a conciliação da dialética dos progressos científicos à
dimensão materialista da luta de classes.
Mas, inesperadamente, na França houve o acontecimento de Maio de 1968. E a partir desse
momento, considerando-se o páreo que o pensamento do jovem filósofo tentava ajuizar
conceitualmente, as expectativas quanto a uma política revolucionária seriam percebidas
assumir a dianteira sobre as suas aspirações de rigor científico. Em conformidade com o que
dizíamos há pouco, essa pode ser entendida como a primeira investida do filósofo sobre os
domínios da subjetividade: como o prova em detalhe o capítulo que dedicamos a uma tal
reviravolta, as consequências de sua retirada das fileiras do althusserianismo e de sua
correspondente recusa de fazer ciência em vez de política (ou de acreditar fazer política ao
aplicar-se àquilo o que pretensamente se chamava, sob o althusserianismo, de ciência) têm um
alcance profundo e são notáveis pela transformação que implicam. Em suplemento a essa
reviravolta, mencionemos, no entanto, a existência de uma evidência literal que deve nos servir
de critério para apreciar o teor dessa transformação, evidência que explicita inequivocamente
a sua vinculação à problemática da subjetividade: logo após o ciclo de suas intervenções
“teórico-panfletárias”, que compreendem os três livros citados e parcialmente analisados no
nosso capítulo sobre a aludida reviravolta (Cf. o capítulo ""), Badiou escreve Théorie du sujet,
que é um dos trabalhos mais importantes de sua produção filosófica, o qual, de certa maneira,
antecipa a sua construção mais sistemática e mais acabada do ponto de vista ontológico (qual
seja, aquela que ganha forma no projeto de L’être et l’événement, iniciado em 1988, com a
publicação de sua primeira parte, e concluído em 2018). E a argumentação mais fundamental
de nosso trabalho consiste justamente em recompor como que uma linha de continuidade entre
os années rouges e a publicação de Théorie du sujet, em 1982: essa linha de continuidade, nós
nos empenhamos em torná-lo evidente por meio de uma série de recursos, encontra no ensino
de Jacques Lacan algumas de suas pistas mais promissoras. Ou, para enunciá-lo sem rodeios:
para nós, a questão, precisamente, é que, de maneira singular, mesmo que não constituísse uma
lição direta sobre a política, o ensino do psicanalista dava a ver uma forma inédita de aliar o
rigor conceitual próprio da lógica e das matemáticas a um registro em que singularidade e
universalidade estariam co-implicadas numa negatividade em que as duas fazem uma nova
história possível. De outra maneira, diremos que a via trilhada por Badiou, quando este deixa
de compreender a história como o objeto de uma ciência e passa a entendê-la como o domínio
da interveniência mais ou menos ambivalente de um sujeito dividido, guarda uma afinidade
mais do que essencial para com os caminhos desbravados pelo pensamento de Lacan.

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Repare-se, de saída, que, paralelamente à caracterização da psicanálise como uma espécie de
arte liberal dos tempos modernos, Badiou, num texto de 1977 intitulado “Às margens do Anti-
Édipo”, fazia a seguinte observação: “Insurreição, Lênin dirá, é uma arte. Não uma ciência,
mas uma arte” (BADIOU, pág. 185). É mais do que uma feliz coincidência, portanto, que em
ocasiões distintas a política e a psicanálise sejam pensadas por Badiou e por Lacan como artes,
e não propriamente como ciências. E, detalhe absolutamente crucial, devemos notar que elas
constituem artes a serem praticadas, se não em vistas, então pelo menos em reconhecimento da
universalidade de que a ciência moderna se vê dotada de maneira impreterível: indicam-no
tanto o legado da epistemologia histórica francesa herdado por Badiou (que o acontecimento
de Maio de 68 não cancela, muito embora transforme significativamente), como os diálogos
que Lacan indiretamente mantinha com essa corrente de pensamento, sobretudo através da
mediação de Alexandre Koyré. Por caminhos bem distintos, o filósofo e o psicanalista se
deixam guiar quase que por um mesmo princípio. E é isso, dizíamos, que fará com que Badiou
possa reencontrar-se com Lacan, mesmo que à época desse reencontro a natureza de suas
preocupações teóricas não coincidisse em tudo. Não admira, por exemplo, que exatamente
Théorie du sujet, que se quer como a organização e transcrição de um seminário proferido pelo
filósofo de 1975 a 19791 – ou seja, um livro que segue de muito perto o formato cuja eficácia
havia sido demonstrada na França por ninguém menos que Lacan 2 –, exatamente ele conduza
de volta às formalizações lógico-matemáticas: contrastando com o hiato representado pelas
publicações que Badiou realiza durante os années rouges, retorna o expediente formal, mas,
agora, subtraído de preocupações imediata ou estritamente epistemológicas. Assim, preterir a
ciência em favor da arte era uma maneira de dar o devido valor à práxis, a qual nem por isso
deixa de requerer uma teoria incrivelmente sofisticada.
Não deixa de ser significativo que, bem ao gosto do lacanismo, o termo “arte” se preste a toda
uma série de equívocos. A palavra latina ars, de que derivam os cognatos em francês [art] e
em português [arte], de certa maneira traduzia a tekhnê dos gregos, mas sem nomear o que nós,
modernos, entendemos atualmente por arte. Por sua vez, o emprego que fazem Lacan e Badiou
desse termo condensa significados diversos, característicos de tempos distintos, e que talvez
sejam até contraditórios entre si. Por um lado, como o sugere a referência de Lacan às artes
liberais do medievo europeu, esse emprego realmente evoca o seu significado antigo, de
técnica, de ofício, que, enquanto prática fundada num determinado saber, é passível de
aprendizado e transmissão. Todavia, tanto para o filósofo como para o anti-filósofo, essas
técnicas – ou melhor, essas artes – estariam subtraídas de seu caráter ordinário (como, nesse
sentido, também o estariam as artes liberais, na medida em que conferem alguma liberdade a
quem as pratica), não podendo ser equiparadas a uma profissão ou a um reles ganha-pão.
Haveria, assim, algo de excepcional nas artes da psicanálise e da política, algo que faz menção
ao estatuto de que a arte, em sua dimensão estética, desfruta em nossos dias: muito embora seja
produto do trabalho humano, e, como tal, possa até mesmo render uma remuneração (baixa ou
alta, pouco importa), a verdadeira obra de arte é aquele artefato que de maneira mais evidente
se apresenta como algo que não se esgota na mera técnica, não encontrando-se ao alcance do

1 Percebe-se facilmente que as divisões cronológicas são meramente didáticas: a rigor, a elaboração de Théorie
du sujet dá-se ao mesmo tempo que a publicação de Théorie de la contradiction, De l’idéologie e . Mas, explicando
melhor as complicações de nosso trabalho, em resposta à pergunta que possivelmente suscitamos (“por que criar
um problema de continuidade onde ele não existe?”), optamos por não nos apoiar nessa evidência "empírica". Em
primeiro lugar, porque . Em segundo, por que existem nuances conceituais que esse dado empírico acaba por
esconder, e que esperamos discernir através do recurso a Lacan. A continuidade a que nos referimos é a da
problemática do sujeito, e não da maneira como Badiou entende ser necessário dar-lhe uma resposta.
2 No prefácio a Théorie du sujet, Badiou chega a dizer que Lacan lhe deu, à forma-seminário, uma “dignidade

definitiva”. Cf. BADIOU, pág. 12.

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artista o ensinar aos seus possíveis discípulos como fabricar, por sua própria conta e risco, o
que se poderia chamar legitimamente de novas obras de arte (sendo-lhe facultado, claro,
confidenciar-lhes o que ele acredita ser o segredo de suas criações, mas sem com isso assegurar
que o que eles alcançarão venha a ultrapassar a categoria de pobres reproduções). Como dito a
respeito da temporalidade da práxis analítica, estamos nos referindo aqui a uma dimensão em
que convergem tekhnê e praxis: isto é, dimensão em que as leis que regem uma determinada
circunstância não são ignoradas pela instância que nela intervém, mas que, ainda assim, são
leis que podem ser subvertidas por esta última, conduzindo, pois, a uma outra situação, que é
não só mais ou menos oportuna, mas uma situação verdadeiramente nova, desde que a instância
interveniente “saiba” concorrer para essa mudança (saber que tem de permanecer aqui entre
aspas, porque ele não é prévio à intervenção, mostrando o seu valor retroativamente, somente
através da decisão da instância de afirmar a sua escolha de mudar a circunstância). A
psicanálise e a política, mantendo algum vínculo com o caráter disruptivo das obras de arte,
corresponderiam, com efeito, a duas exceções à legislação da ciência moderna. Mas elas não
seriam exceções no sentido de serem seus desmentidos, afinal, as duas perfazem registros de
atividade que, em vez de rivalizarem ou se pretenderem como refutações da ciência, conservam
uma afinidade essencial para com ela – mais especificamente quanto àquilo que também ela,
enquanto prática teórica que demonstra possuir um alcance universal por intermédio da
afirmação de um princípio singular 3, pressupõe de uma exceção.
Tendo isso em vista, recapitulemos o gesto lacaniano em algumas de suas principais
características. O que expusemos na seção anterior, talvez com excessivo detalhe, dependia,
como se viu, de uma elaboração muito cuidadosa da inclinação pretensamente científica do
estruturalismo, diante da qual a psicanálise foi instada a se posicionar. E, com efeito, o “retorno
a Freud” foi uma primeira tentativa de realizar esse posicionamento de maneira propriamente
consequente. Eis o motivo pelo qual tivemos o cuidado de enfatizar a relativa proximidade de
Lacan para com Lévi-Strauss e para com a linguística estrutural. Mas esse posicionamento, nós
sabemos, não se deu sem que houvesse uma série de complicações. Essas complicações não
decorrem das dificuldades que poderíamos supor advir da tentativa de estabelecer a psicanálise
como uma ciência estrita, mas, isso sim, de uma outra tentativa, que é a de preservar, em sua
teorização, o registro conceitual da subjetividade. Diga-se, assim, que o mais importante,
quanto a esse aspecto em particular, é que se esteja ciente da contradição que passa a atravessar
toda a empresa lacaniana desde o momento em que ela é posta sob o signo da estrutura. Como
assinalamos anteriormente, em seu ensino Lacan não cuida de tematizar o sujeito apesar da
estrutura, mas, ao contrário, ele se coloca a pensar o sujeito graças ao significante isolado pelo
estruturalismo: entre outras coisas, a escandalosa identidade proposta pelo psicanalista, a dar-
se entre o sujeito do inconsciente e o sujeito da ciência moderna (isto é, o sujeito cartesiano),
explicita muito bem a contradição que acompanha um tal gesto teórico. O que quer dizer que,
ao acolher a estrutura em seu âmago, a teorização lacaniana encontra-se sob um risco
permanente, que é o de fazer com que o sujeito desapareça na estruturação rigorosa e
sistemática do significante, a não ser que essa teorização se mostre à altura das contradições
que reiteradamente fomenta. E, de certa forma, é em resposta a essas contradições que veríamos
o psicanalista desdobrar-se entre a filosofia e as artes, por exemplo, em suas comunicações
com Hegel e com Heidegger, ou em sua interlocução quase que inconsciente (mas nem por isso
menos eficaz) com Mallarmé. Não obstante essa outra movimentação descrita pelo ensino de
Lacan, que parece combinar à marcha do estruturalismo em direção à ciência o extravio de uma
deambulação romântica, a exceção através da qual o registro subjetivo pode validar as suas

3 Ilustremos essa afirmação com o princípio de inércia:

4
contradições compreenderá igualmente um itinerário lógico-matemático, a investir o
psicanalista na vereda dos impasses da formalização.
Essa trajetória, que de novo e de novo se torna cada vez mais complexa, mais intrincada, mais
repleta de contradições e de paradoxos, ela é que deve ser considerada concernir muito
proximamente à formação do pensamento mais maduro de Badiou, mesmo quando não a afeta
diretamente. Se nos voltamos para a maneira como Lacan pensava a historicidade do sujeito
do inconsciente, teremos um dos melhores indícios disso. Em primeiro lugar, porque Lacan, a
partir do recurso ao significante, teria conferido um novo relevo conceitual ao nachträglich
freudiano, destacando o funcionamento retroativo de sua temporalidade bastante específica: a
colocar em evidência a virtude da instância simbólica de estruturar a narrativa do sujeito, uma
das maneiras de pensar a sua potência de reescrita passa a ser a de aproximá-la da poesia, como
se a análise fosse um processo de escansão do discurso do analisante. Por si só essa forma de
dispor do problema apresentaria algum interesse para o Badiou dos années rouges, que, após
Maio de 1968, havia sido deslocado de preocupações eminentemente epistemológicas para
questões mais atinentes à práxis (ainda que fossem questões atinentes a uma práxis de outra
ordem, a saber, uma práxis política): afinal, mesmo que a concepção althusseriana do
materialismo histórico também compreendesse uma virtude retroativa, ela o fazia em referência
incontornável à prática científica. Lacan, por sua vez, em sua insistente retomada do móvel
teórico do significante, havia se proposto pensar uma ação da palavra, em vez de enquadrar a
psicanálise dentro dos limites bem definidos de uma ciência da linguagem: recusando a
possibilidade de uma metalinguagem, ele decidia-se a preterir os momentos de compreender
em favor dos instantes de concluir. Ou seja, com a psicanálise lacaniana, a prática científica,
mesmo que não seja alvo de rejeição ou de hostilidade, deixa de representar como que o
fundamento absolutamente necessário para a consecução de uma nova práxis 4 (ou, em outras
palavras, as insuficiências do saber científico deixam de representar um obstáculo
intransponível para essa práxis). No entanto, como notado antes, não é só como poesia que a
práxis de escansão do discurso do analisante se deixa pensar pelo psicanalista. Se se tem o
cuidado, por exemplo, de consultar o apêndice a “O seminário sobre 'A carta roubada’” (que,
como mencionado antes, é o primeiro texto dos Escritos), constata-se facilmente que os
recursos à álgebra e à topologia feitos por Lacan nessa ocasião destinam-se, entre outras coisas,
a pensar a temporalidade de interveniência clínica da psicanálise. Assim, aos olhos de Badiou,
quando tramava práxis e formalização lógico-matemática, o psicanalista acabava fornecendo
um exemplo ímpar, absolutamente sem igual no panorama do pensamento francês de então.
Lembremos, com efeito, que não faria sentido declarar que foi Lacan quem conduziu Badiou a
uma ideia de história subjetivamente estruturável: descontada a vocação sartreana de suas
primeiras incursões teóricas (a qual certamente pode ser vista prenunciar a adoção dessa nova
perspectiva), de certa forma, como expusemos em outra parte deste trabalho, uma tal concepção
deve ser enxergada como estando implicada nos impasses com que se havia o althusserianismo
em 1968; além, obviamente, de ser preciso entendê-la como seguindo-se à decisão do filósofo
de, em resposta a esses impasses, aplicar-se a uma inovadora releitura de Hegel. Mas essa
movimentação como que espelha o posicionamento de Lacan ante o estruturalismo. Por
exemplo: ao fim do percurso a que levam os supracitados impasses, de alguma maneira Badiou
se veria mais próximo de Lévi-Strauss do que de Althusser. E isso, claro, não porque houvesse
adotado como norte de seu pensamento o ideal de cientificidade do etnólogo, mas porque a

4Existe, de fato, uma relação de pressuposição entre a psicanálise e a ciência moderna. Mas ela não consiste em
que, para que a sua práxis seja bem sucedida, o psicanalista faça ciência.

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perspectiva aberta por uma matemática das qualidades ainda mantinha a sua pertinência para o
filósofo: não nos esqueçamos que, tal como expresso em algumas das críticas que Badiou fazia
a Althusser mesmo antes de começarem os années rouges, também Lévi-Strauss havia chegado
à conclusão de que essas matemáticas tendiam a destruir o horizonte de uma consideração
estritamente objetiva da história, pelo menos quando esta última era pensada em sua dinâmica
própria (ou seja, ela, a história, podia ser objetiva, desde que soubesse renunciar no momento
correto à apreensão total da multiplicidade infinita do tempo histórico). E, uma vez traçado
esse percurso, Badiou podia apreender a singularidade do ensino do psicanalista, que
antecipava precisamente o gesto de apropriação das matemáticas das qualidades num contexto
em que elas poderiam ser mobilizadas por uma práxis. Em verdade, a empresa lacaniana
exacerbava a componente matemática do estruturalismo, depurando, assim, a sua álgebra, a
ponto de que ela perdesse os traços distintivos e propriamente científicos que davam forma e
conteúdo às estruturas elementares do parentesco ou aos pares fonéticos laboriosamente
escrutinados pela linguística. Operando por uma espécie de subtração, Lacan tomava da álgebra
e da topologia para lidar com o negativo, isto é, com algo que é evanescente e indeterminado
em sua essência mesma. De sorte que no ensino de Lacan pôde surgir um tratamento lógico-
matemático que trabalha por meio de remanejamentos pontuais, ao indicar, através da escrita
de certos impasses, quais as descontinuidades que a análise deve efetuar ao ocupar-se da
negatividade do desejo: ao fazê-lo, o psicanalista chega realmente a prescindir de uma ciência
da história do sujeito, mas a obter em troca a práxis que permite ao sujeito (re)fazer a sua
própria história.
Temos, pois, uma ocasião para ensaiar um entendimento sobre que espécie de subtração
poderia mostrar-se à altura das contradições com que a teorização do sujeito tem de se haver,
a saber, uma subtração que consiga enodar a universalidade à singularidade (tal como o fazem
as classes paradoxais de que fala Jean-Claude Milner). O procedimento que depara o universal,
no pensamento de Lacan, não é o de uma abstração que reúna as propriedades comuns a toda
uma série de indivíduos tomados empiricamente e classificados arbitrariamente segundo uma
mesma categoria. Tampouco se trata de uma imposição feita desde o exterior desses indivíduos,
como se o objetivo da teorização lacaniana fosse a instituição de um universal que requeresse,
de sua parte, a destruição de cada uma das respectivas diferenças a caracterizá-los. Trata-se,
antes, de uma consideração lógica, capaz de discriminar a causa, de natureza fundamentalmente
negativa (o que não quer dizer apenas ausente, mas, sim, indeterminado na impossibilidade de
apresentar-se por completo), que faz com que todos os sujeitos difiram singularmente uns dos
outros. De maneira mais ou menos desenvolvida, essa lógica pode de fato ser rastreada em toda
a empresa estruturalista da psicanálise lacaniana. Ainda que com certa incipiência, ela está lá
num primeiro instante, quando possibilita uma situação geral da nosologia analítica, ao
localizar psicóticos, neuróticos e perversos em relação à castração ocasionada pela entrada do
homem na estrutura da linguagem. Em seguida, ela pode ser dita apresentar-se de forma ainda
mais decidida no conceito de objeto a, que desbasta toda uma nova topologia para o sujeito do
inconsciente a partir da causa a um só tempo negativa e singular de seu desejo. E – sem nos
esquecermos de que essas complicações teóricas não se excluem completamente, executando,
em vez disso, uma reescrita multifacetada –, por fim, através de uma das formulações lógicas
mais consequentes que Lacan foi capaz de providenciar, ela deve ser localizada na enunciação
da inexistência de uma relação sexual, a qual divide homens e mulheres como duas
universalidades marcadas por negatividades singulares e incomensuráveis uma à outra. Torna-
se evidente que, progressivamente, o significante lacaniano firma-se como um operador teórico
que trabalha com conjuntos, e não com categorias (referindo-se esse último termo, aqui, em
sua acepção aristotélica). Esse detalhe, que contrai seu aspecto epistemológico somente de

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maneira colateral, configura um pressuposto importantíssimo, afinal, ele assume uma
consequência radical do acontecimento representado pela descoberta da teoria dos conjuntos:
não é apenas a realidade que se torna mais pobre se se recusa a existência de infinitos de
diversas magnitudes, como se fosse o caso de o homem, enquanto ente dotado de uma
faculdade imaginária normalmente tida como imoderada, ser privado (ou ser obrigado a privar-
se) de suas fantasias quando finalmente lhe é deparada a realidade das coisas tais como elas
realmente são (sob pena, assim, de incorrer em prejuízo para si e para os demais, se não se
mostrar capaz de abdicar das ficções que lhe seriam as mais caras); mas, antes, é o próprio
pensamento que se veria limitado, impedido de atuar numa nova frente, se a única lógica que
lhe restasse fosse a do empirismo. E, com o pensamento, a própria ação que ele respalda se
veria barrada de maneira no mínimo contraproducente, para não dizer francamente oposta à
verdade. Assim, da perspectiva lacaniana, faria sentido rememorarmos que nos domínios das
matemáticas ser realista é ser platônico: com efeito, elas constituem um campo em que a
realidade do pensamento, quando avaliado em sua quase que completa indiferença a
praticamente tudo o que é da ordem da empiria, não pode mais ser recusada. Porém, o realismo
com que o psicanalista tem de lidar não é o de um mundo de ideias que existiriam
separadamente de suas contrapartes empíricas, e sim o colocado em causa pelo real, na medida
em que este franqueia um limite que determina negativamente a legislação do simbólico (o que
significa afrontar os limites do que, numa dada circunstância, é o caso, ou, em outras palavras,
daquilo que é dizível).
Tal como Lacan, Badiou deverá percorrer um caminho que leva para além do estruturalismo,
mas unicamente porque se compromete a atravessar este último. Em conformidade com isso,
havíamos dito na seção anterior que Lacan inaugura uma espécie de vertente do pós-
estruturalismo que ganha impulso desde o próprio estruturalismo. Um dos motivos para dizê-
lo é que, curiosamente, ele inventa uma maneira de abordar o sujeito em sua historicidade que,
ao contrário de outras derivas do pós-estruturalismo, não cede nunca ao historicismo. O
psicanalista temporalizava a estrutura, de forma a adensar as afinidades entre clínica e história. 5
Mas ele o fazia de maneira a dar a devida importância à divisão que concerne à prática clínica
da análise, que é uma divisão em que o sujeito é tanto o joguete do grande Outro da linguagem,
como a posição, eminentemente vazia, de assunção da singularidade de um desejo. A divisão
a que se refere a empresa lacaniana compreenderá toda uma evolução conceitual, que vai de
fórmulas mais esquemáticas a teorizações radicalmente abertas às contingências, e não por
acaso a tirar proveito de um confronto sempre renovado (e renovador) com o pensamento
francês das décadas de 50, 60 e 70 do século XX. 6 Dessa forma, o psicanalista enriquecia os
sentidos possíveis daquilo que se poderia chamar de uma dialética estrutural – intersecção
teórica que havia sido acalentada por Badiou já nos verdes anos de seu althusserianismo. Mas,
vamos repisá-lo, trata-se agora da possibilidade de aceder a uma dialética estrutural que, em
oposição à plenitude ontológica do suposto espinosismo de Althusser, leva em consideração a
negatividade, e isso por meio de uma formalização lógico-matemática. Por essa via, a qual se
desobriga de apreender a história sob uma perspectiva estritamente objetiva, a divisão que uma

5 Uma definição muito feliz de Gilles-Gaston Granger concebe a história como uma “empresa clínica sem prática"
(GRANGER, pág. 169). Essa definição, como veremos, é pertinente para compreender as relações entre Badiou
e Lacan, porque coloca em evidências as dificuldades de passar de uma teoria do sujeito radicada na psicanálise
a uma teoria do sujeito centrada em torno da política: afinal, qual é a prática que autoriza falar de um sujeito na
história (que, como se sabe, na tradição filosófica ocidental, é uma categoria eminentemente política)? Se Badiou
não aceita de todo a definição de Granger, ele tampouco a rejeita por inteiro, pois, a seu ver, a prática política não
consiste prioritariamente na escansão de um discurso, como seria o caso com a prática analítica (lacaniana).
6 Registre-se, por exemplo, a aceitação de uma pluralidade de nomes-do-pai. A confrontação com Blanchot,

Bataille, etc.

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tal dialética alcança se faz acompanhar de uma dissimetria: como a história não pode mais ser
apreendida como uma totalidade, ela deve a sua dinâmica à irrupção de elementos que, sendo
fundamentalmente estranhos a uma certa configuração estrutural, provocam alterações
qualitativas, impossíveis de assimilar nos termos da velha lógica que regia as permutas dentro
do sistema anterior. Ou, de outra forma, diremos que a álgebra de uma situação inicial não
prevê o corte que dispõe a práxis numa nova topologia. O mesmo Badiou, que durante os seus
années rouges havia se esforçado para distinguir conceitualmente a dialética e o estruturalismo,
precisamente ele podia então reler a advertência inicial dos Escritos, sendo levado a ponderar
mais seriamente o famoso trecho em que o psicanalista explicava que o seu leitor deveria ser
de alguma forma implicado “[n]uma consequência em que (...) precise colocar algo de si"
(LACAN, pág. 11). Escapando à inércia das transformações puramente algébricas de um
estruturalismo voltado prioritariamente para a ciência, as quais fariam conceber o Outro como
apenas mais uma figura do Mesmo, Lacan (e, em seu encalço, Badiou) se colocava(m) em
condições de inquirir honestamente sobre a fecundidade de seu endereçamento a um sujeito:
“na linguagem nossa mensagem nos vem do Outro, e para enunciá-lo até o fim: de forma
invertida. (...) Mas se o homem se reduzisse a nada ser além do lugar de retorno de nosso
discurso, não nos voltaria a questão de para que lho endereçar?” (LACAN, pág. 9).
Como seria previsível, essa experiência da contradição, em que a estrutura tem de se revelar
incapaz de recobrir plenamente o sujeito, ela de maneira alguma se presta à experimentação
científica (e quando o faz, o faz apenas de maneira parcial). Desde a dissimetria acusada pela
impossibilidade desse recobrimento, fica em evidência, um tanto quanto paradoxalmente, o
caráter hipotético que a práxis analítica, em sua relação com a subjetividade, necessariamente
clama. Como a subjetividade posta em cena pelo inconsciente nunca se faz perfeitamente
acessível ao conhecimento, encontrando-se, antes, sob o risco permanente de desaparecer em
meio às combinações e recombinações do significante, ela não faz valer o seu lugar senão como
uma hipótese que continuamente se subtrai à prova. Endereçar-se ao sujeito é um ato que
inevitavelmente comporta alguma incerteza. Ou melhor, a única certeza que esse
endereçamento pode se dar é a de interpelar o sujeito antecipadamente (isto é, antecipadamente
em relação à suposta prova de sua existência), para que a sua realidade evanescente, entrevista
numa abertura sempre muito breve, não se perca de todo. Não é por menos que em certos
momentos Lacan chegou a declarar, um pouco como se se tratasse de uma ameaça (obviamente,
não ameaça dele contra quem o ouvia, mas daquilo que o desconhecimento desse saber poderia
implicar para a descoberta de Freud), que se o inconsciente não está estruturado como uma
linguagem, então aquilo que se faz na psicanálise não tem nenhum sentido. A declaração é
significativa porque ela apoia todo o seu peso nesse “se” hipotético. Certamente, mais do que
importante, de acordo com Lacan, seria essencial saber que o inconsciente está estruturado
como uma linguagem, caso contrário, os psicanalistas se veriam quase que absolutamente
desprovidos dos meios para alcançar os seus objetivos. Mas um tal saber não assegura a
existência de nenhum sujeito, porque, quanto a este último, é preciso tê-lo interpretado, por
meio da prática ciosa da análise, para que se possa deparar qualquer indício de sua presença
ambivalente (ou seja, todo indício dessa presença sempre vem ou muito cedo ou tarde demais,
e não se pode depender dele para começar a práxis). E essa lição, como se pode ler na seguinte
passagem de Théorie du sujet, é verdadeiramente crucial para Badiou: “Onde está o
inconsciente? Onde está o proletariado? Questões para as quais não há nenhuma chance de
resolução, nem pela empiria de uma designação, nem pela transparência de uma reflexão. É
preciso o trabalho árido e esclarecido da análise e da política” (BADIOU, pág. 296). Para que
lho endereçar, ao sujeito, a mensagem que a linguagem insiste em nos retornar sob uma falsa

8
simetria? Ora, para isso mesmo, isto é, para que, a despeito dessa falsa simetria, ele possa, mais
do que ser enunciado, enunciar-se como um sujeito.
Tem-se, pois, um sujeito que só encontra a oportunidade de assumir propriamente o seu lugar
quando é, digamos assim, interpelado de fora (ou que, na sua alienação, não deixa de existir
por ser interpelado de fora: dessa maneira, ele ocupa uma posição muito distinta daquela que
lhe designa a concepção althusseriana, a qual entende que o sujeito é uma ilusão ideológica
justamente pela função constitutiva que desempenha para o indivíduo esta interpelação externa
a ele). E, mais do que interpelado, ele é entendido poder aproveitar efetivamente essa
oportunidade quando reconhecido e interpretado em sua divisão. Daí que, tanto para Lacan
como para Badiou, a práxis se veja dividida. Isto é, a própria instância interveniente – que não
se constitui de sujeitos, mas que coloca um sujeito em cena – estaria afetada de divisão: entre
analista e analisante, para o primeiro; ou entre o partido e as massas, para o segundo. De
qualquer maneira, o sujeito, que não se identifica nem com o indivíduo em seu sentido
psicológico e nem com a classe trabalhadora em seu sentido sociológico, requer uma divisão
da realidade. E isso tanto porque ele encontra nessa divisão o instante de sua emergência volátil,
como porque ele a aprofunda e tenta lhe dar lugar, na travessia de uma situação estruturada
tanto em torno de uma falta, como relacionável ao excesso que essa falta colocaria em causa.
Vê-se, portanto, com relativa clareza, como Lacan e Badiou partilham em larga medida o vasto
temário da subjetividade. Subjetividade, nós já o explicamos, não quer dizer aqui um mundo
interior, psicológico – ainda que haja alguma coisa normalmente designada nesse sentido que
pode de fato ser considerada da alçada do sujeito na acepção em que o empregamos. Antes,
subjetividade faz menção a algo que, sendo excessivo, se coloca, ao mesmo tempo, dentro e
fora de uma dada situação. Na medida em que o sujeito entra em cena apenas quando há a
divisão da realidade, porque uma contradição vem anunciar uma transformação qualitativa, ele
deve ser dito opor-se a uma objetividade estrita, posto que a estruturação de uma dada
circunstância, que é aquilo mesmo que permite aos objetos nela assumirem um lugar, não
compreende a supracitada transformação. Em outras palavras, o sujeito, na acepção em que
empregamos o termo, é tematizado a propósito da impossibilidade de alguma coisa situar-se
completamente numa determinada circunstância: trata-se de um subjectum com um tempo
próprio, porém, um tempo que não teria adquirido ainda o seu lugar em meio aos objetos do
mundo no qual ele ameaçou fazer a sua aparição (o que, em parte, explica uma espécie de
interioridade desse tempo, que às vezes resta apenas como a convicção “subjetiva” de que um
mundo pode ser diferente daquele que de fato é). E Lacan e Badiou revelam-se como dois
artistas (ou como dois teóricos das artes) que jogam com essa impossibilidade, ao mostrar que
ela não é fundamentalmente o signo de uma interdição inultrapassável, e sim a localidade
inesperada de uma laboriosa travessia.
*
Feita essa consideração geral de como se enodam paralelamente as teorizações que o
psicanalista e o filósofo propõem para o registro conceitual do sujeito, passemos a uma
consideração mais cerrada da matéria que elas implicam. Diga-se, pois, que existe uma outra
razão para que Badiou tenha procurado no sujeito, que é um tema tão caro a Lacan, a
possibilidade de um remanejamento teórico que correspondesse às suas expectativas quanto à
práxis. Essa razão é a aptidão política do sujeito na época das luzes. A palavra sujeito [em
francês, sujet] tem um significado eminentemente político, e é imprescindível recordarmos
disso a essa altura de nossa exposição. Ou, considerando certos desdobramentos da filosofia
ocidental, sobretudo nos séculos XVIII e XIX, ainda que fôssemos obrigados a reconhecer para

9
o sujeito um escopo muito maior, seríamos levados também a dizer que ele tem uma deriva
moderna política de importância irrecusável. Para afirmá-lo, fugindo um pouco ao nosso
itinerário, nos permitiremos recorrer à ajuda de dois grandes teóricos franceses que estabelecem
diálogos, se não diretos, pelo menos cruzados com Jacques Lacan e Alain Badiou (ou, se não
com os dois, então com temas centrais de suas respectivas “doutrinas”). Esses dois teóricos,
uma ou outra vez mencionados neste trabalho, são Étienne Balibar e Michel Foucault. Como
deve ser óbvio, não apelaremos aos dois na tentativa de mostrar como eles teriam influenciado
ou se deixado influenciar por Lacan ou por Badiou, hipótese que, verdadeira ou falsa, não nos
interessa de maneira alguma em nossa presente investigação. O seu testemunho é devido à
admirável competência dos dois para reconstituir historicamente certas problemáticas, uma das
quais nos compete discutir agora: aquela que investe o sujeito de uma importância filosófico-
política sem precedentes.
O primeiro deles, que, tal como Badiou, foi também um frequentador do círculo de intelectuais
formado em torno de Louis Althusser, é o responsável, mais recentemente, por uma
investigação nada menos que brilhante sobre o entrecruzamento histórico em que se implicam
e se definem as noções “esclarecidas” (ou “iluministas”) de sujeito e de cidadão: essa
investigação deu origem a um conjunto de ensaios, depois reunidos no impressionante volume
Citoyen sujet et autres essais de antropologie philosophique [Cidadão sujeito e outros ensaios
de antropologia filosófica], como também deu origem a um verbete a constar do trabalho
coletivo dirigido por Babara Cassin que atende pelo nome de Vocabulaire européen des
philosopihes - le dictionaire des intraduisibles [Vocabulário europeu das filosofias – o
dicionário dos intraduzíveis], verbete dedicado então ao termo sujet. Uma vez que a
investigação de Balibar deve cruzar com a nossa em mais de uma esquina, por ora, deveremos
limitar-nos a reparar no seu zelo etimológico, que reconstitui para a palavra sujet uma dupla
origem, ou bem uma dupla ressonância (Cf. BALIBAR, pág. 67): a palavra evoca prontamente
o termo latino subjectum, que se fez acompanhar, ao longo da história do pensamento ocidental,
de toda uma pompa e circunstância filosóficas; mas ele também ressoa o termo subjectus, que
significa servo ou súdito, na acepção medieval que o equivale a subditus (Cf. BALIBAR, pág.
67), e que designa, na sua descendência moderna, o "(...) sujeito como indivíduo ou pessoa
submetida ao exercício de um poder, para o qual o modelo é, primeiramente, político, e o
conceito, jurídico" (BALIBAR, pág. 42). 7 Como esclarece Balibar na sequência, a propósito
da palavra que deles descende em francês:
A língua francesa (ou franco-inglesa) apresenta aqui, sobre o alemão e
mesmo sobre o latim, uma vantagem propriamente filosófica: a de
reter, na unidade equívoca de um mesmo nome, o subjetcum e o
subjectus, o Subjekt e o Untertan [em alemão, súdito].(BALIBAR, pág.
43).8

7 Balibar vai mais longe, caracterizando as duas ramificações: "De uma, deriva uma linhagem de significações
lógico-gramaticais e ontológico-transcendentais; de outra, uma linhagem de significações jurídicas, políticas e
teológicas" (BALIBAR, pág. 67). Todas essas significações repercutem tanto em Lacan como em Badiou, ainda
que nem sempre da mesma maneira (como, aliás, deveremos reconhecer ao longo desta seção).
8 Reparemos que, diferentemente da palavra que seria o seu correspondente em português, "sujeito", as palavras

em inglês e em francês, "subject" e “sujet”, também podem designar corriqueiramente um assunto, uma matéria,
ou bem um tópico em torno do qual uma discussão se alonga ou se desdobra, significado que é uma das traduções
possíveis da palavra alemã Untertan (esse uso sendo admitido historicamente em português, mas sem desfrutar
atualmente de nenhuma recorrência cotidiana). No entanto, considerando que, na passagem citada, Untertan tem
o significado de súdito, tal como a emprega Kant (Cf. BALIBAR, pág. 78), a palavra portuguesa pode ser
entendida compreender os dois sentidos destacados por Balibar a respeito de suas correspondentes em inglês e em

10
No que diz respeito à componente política do sujet, convém dizer ainda, com o respaldo de
Balibar, que é especificamente depois do acontecimento histórico da Revolução Francesa que
ela pôde conhecer uma deriva e uma ruptura cidadãs (Cf. BALIBAR, pág. 43), e isso porque
esse acontecimento teria autorizado reconsiderar a ideia de subjcetus em seu sentido medieval,
mas sob uma perspectiva totalmente inédita: a de que o poder a que o indivíduo se encontra
submetido é, a partir de agora, o seu próprio, na medida em que ele deve se reconhecer na
vontade geral que o investe da condição de cidadão, instituído como tal pela República
Francesa (Cf. BALIBAR, pág. 51) através da igualdade universal e inalienável dos direitos que
passam a assisti-lo. Espécie de concepção imanentista da legitimidade do exercício da
soberania, ela pretende retirar o sujeito à arbitrariedade de um poder que lhe seria
completamente externo, quase como se lhe fosse transcendente: de outra maneira, pode-se dizer
que o cidadão republicano “esclarecido” só se transforma em sujeito na medida em que deixa
de ser o subjectus (isto é, o servo ou o súdito) do príncipe, que, por sua vez, é a figura clássica
do poder na reflexão política europeia, pelo menos enquanto esta se mantinha na soleira do
Esclarecimento.9 Tocando o cerne mais íntimo do sujeito, nasce, portanto, com a Revolução
Francesa, a noção paradoxal de uma soberania igualitária (Cf. BALIBAR, pág. 52), uma ideia
bastante diferente do “(...) conceito antigo de cidadania, que implicava, pois, ele também, a
ideia de uma atividade, mas não aquela de uma vontade geral” (BALIBAR, pág. 55).
Quanto a Foucault – que vimos ladear Badiou em algumas das principais latitudes da história
contemporânea do pensamento francês –, nós o procuramos para estabelecer algo ligeiramente
mais complicado do que a precisão etimológica providenciada por Balibar (ao mesmo tempo
em que seus respectivos testemunhos relativos à história do pensamento político-filosófico
podem e devem ser entendidos reforçar um ao outro). A localização dessa sua contribuição (ou
daquilo que, para os fins de nossa pesquisa, nós tomamos como tal) é um curso ministrado no
ano de 1983 no Collège de France, cujo nome é “O governo de si e dos outros” – encontrando-
se, mais precisamente, na primeira de suas aulas, que é dedicada a um minucioso comentário
de um célebre texto de Kant, a saber, aquele que atende pelo nome de “Resposta à pergunta: O
que é o Esclarecimento?”. Nesse comentário, ainda que sem dizê-lo explicitamente, antecipa-
se a questão da parresía, que para Foucault é a questão a partir da qual ele poderá abordar o
"discurso verdadeiro na ordem política" (Cf. FOUCAULT, pág. 8), o qual, de sua parte, é
discutido ao longo do curso sob o signo do tema anunciado em seu título, o do governo de si e
dos outros. Diga-se, então, que se trata de uma escolha bastante curiosa, essa que elege um
texto de Kant como objeto de um comentário específico, uma vez que a parresía será
investigada por Foucault em suas muitas fontes clássicas, o que confere a esse texto uma
posição contrastante, bem singular, no decorrer do curso10: essa escolha não apenas situa mais
proximamente dos ouvintes a questão "do discurso verdadeiro na ordem política", posto referir-
se a uma época mais recente e mais pertinente para eles, como também, de certa maneira,
implica o próprio Foucault na prática de uma modalidade de crítica que pode se declarar
tributária do Esclarecimento (Cf. FOUCAULT, pág. 22). Ao reconstituir a amplitude do
questionamento kantiano sobre o Esclarecimento, Foucault pode reencontrar a problemática do

francês: ela apresenta tanto um sentido filosófico-gramatical (por exemplo, de sujeito que é o suporte de
predicados), quanto um sentido político, que pode ser identificado quando se fala de alguém que se encontra
sujeito a uma ordem ou a um poder.
9 Balibar complementa, dizendo que “(...) na história política da Europa ocidental, o tempo dos sujeitos coincide

com aquele do absolutismo” (BALIBAR, pág. 45).


10 Com efeito, o comentário do texto de Kant aparece no curso ministrado por Foucault como um excurso ou uma

epígrafe (Cf. FOUCAULT, pág. 8), pela discrepância relativamente aos outros textos com que ele lida.

11
governo de si e dos outros, que, considerada à luz da soberania paradoxal inventada ou bem
consumada pela Revolução Francesa, vem colorir o sujeito de matizes inteiramente novos.
Fica entrevisto, desde já, o proveito que se pode tirar de uma leitura conjunta de Balibar e de
Foucault, contrariando a impressão de que essa reunião de nomes díspares nada mais fosse do
que um improviso arbitrário: de ângulos consideravelmente diversos, os dois teóricos nos dão
a ver aspectos distintos de uma mesma convergência de questões, a resultar numa nova
problemática. Estamos, assim, às voltas com uma coincidência histórica absolutamente
pertinente para nós, a de que, nas palavras de Balibar, “(...) o momento em que Kant produz (e
projeta retrospectivamente) o ‘sujeito’ transcendental é precisamente aquele em que a política
destrói o 'sujeito' do príncipe, para substituí-lo pelo cidadão republicano” (BALIBAR, pág. 44).
De sua parte, ocupando-se de um texto publicado por Kant em 1784, Foucault logrará mostrar
tanto a importância da Revolução Francesa para o argumento que nele se desenvolve, como a
repercussão do projeto de uma filosofia crítica na elaboração de suas questões e de sua
argumentação. Com efeito, num contexto em que o discurso político tem "(...) essencialmente
como objeto o governo pelo Príncipe" (FOUCAULT, pág. 8), tal como a resposta de Kant à
questão "O que é o Esclarecimento?" aparenta sustentar, é fundamental observar, como o faz
Foucault, que esse texto de 1784 não deixa de ressoar num outro texto do filósofo de
Königsberg, publicado em 1798, texto que trata parcialmente da Revolução Francesa. Como o
diz o próprio Foucault, quando faz valer essa proximidade insuspeita dos acontecimentos do
Esclarecimento e da Revolução:
A única coisa que gostaria de frisar agora é que essa questão tratada
por Kant em 1784, questão que lhe havia sido colocada de fora, pois
bem, Kant não a esqueceu. Kant não a esqueceu e vai levantá-la
novamente, vai tentar respondê-la novamente a propósito de outro
acontecimento, que também foi um desses acontecimentos
autorreferenciados, vamos dizer, e que não cessou de se interrogar
sobre si mesmo. Esse acontecimento, claro, é a Revolução, é a
Revolução Francesa. E em 1798 Kant vai de certo modo dar sequência
ao texto de 1784. Em 1784, ele formulava a questão, ou tentava
responder à questão que lhe formulavam: o que é essa Aufklärung de
que fazemos parte? E em 1798 ele responde a uma questão que ele
próprio se formula. Para dizer a verdade, ele responde a uma questão
que, claro, a atualidade lhe formulava, pelo menos desde 1794, toda a
discussão filosófica na Alemanha. E essa outra questão era: o que é a
Revolução? (FOUCAULT, pág. 16)

Tenhamos em mente que a resposta de Kant, em 1784, estava repleta de contradições, já que,
ao fim, o texto desrespeitava todos os limites que o seu próprio raciocínio havia estabelecido
(Cf. FOUCAULT. pág. ). Isso é pertinente para nós na medida em que o acontecimento da
Aufklärung [Esclarecimento] se via subitamente vinculado pelo filósofo à figura do rei da
Prússia: sem maiores explicações, um processo que, a julgar pelo que dizia Kant nesse mesmo
texto, não poderia jamais depender da autoridade de alguém, precisamente esse processo teria
como um de seus principais agentes a figura soberana de um príncipe. A Revolução Francesa
vai então apresentar-se, num momento posterior, como um melhor candidato para os
agenciamentos do Esclarecimento. E é essa conjunção imprevista que nos interessa, a que,
desde uma questão que não havia sido previamente montada em conformidade com os encaixes
da política, adquire uma nova configuração, uma vez que a Revolução, que é sem dúvida o
acontecimento político da modernidade por excelência, tenha irrompido.

12
Não dissemos, repare-se, que não havia nada de político no questionamento kantiano. A tal
convergência, claro, só foi possível porque o sujeito kantiano apresentava uma certa aptidão
para o tratamento de questões políticas antes mesmo da Revolução, como o prova esse texto
de 1784 comentado por Foucault. Por outro lado, não queremos dizer com isso que ele teria
prefigurado o episódio revolucionário, o que de toda maneira não parece ser o caso. Mas,
mesmo assim, para utilizarmo-nos do vocabulário de Foucault, é inegável que a filosofia crítica
permite uma nova visada das disposições do governo de si e dos outros, a que a Revolução
Francesa decerto concederá uma outra perspectiva, significativamente mais adequada do que a
possibilitada pela benevolência de um rei que, à diferença de outros soberanos, estaria disposto
a respeitar as liberdades religiosas de seus súditos (Cf. FOUCAULT, pág. ). Assim, na leitura
que Foucault faz desse texto de 1784, reconhece-se um mesmo ideal de publicidade que
concorre para o livre exercício da razão, e que, pelo menos desde a Crítica da razão pura,
indispõe a filosofia kantiana contra as autoridades instituídas, como se pode constatar pelo
leitura do famoso trecho de uma nota de rodapé ao prefácio de sua primeira edição:
A nossa época é a época da crítica, à qual tudo tem que submeter-se. A
religião, pela sua santidade, e a legislação, pela sua majestade, querem
igualmente subtrair-se a ela. Mas então suscitam contra elas
justificadas suspeitas e não podem aspirar ao sincero respeito, que a
razão só concede a quem pode sustentar o seu livre e público exame.
(KANT, AXI)

Filosofia vocacionada politicamente, por mais não fosse do que por se prontificar à denúncia
das autoridades que obstam ao livre exercício da razão (o que quer dizer que se a questão do
sujeito não havia sido montada previamente em conformidade com os encaixes da política, ela
permitia ao menos acusar alguns dos desencaixes desta). De sorte que faz sentido retomarmos
aqui a resposta de Kant sobre o Esclarecimento que, como é notório, consiste, em primeiro
lugar, na sua definição como a saída do homem de seu estado de menoridade, estado pelo qual
o próprio homem seria culpado (Cf. FOUCAULT, pág. 25). O estado de menoridade do
homem, por sua vez, é definido pelo filósofo como a “incapacidade de se servir de seu
entendimento sem a direção de outrem” (Cf. FOUCAULT, pág. 25). Nessas duas definições,
transparece muito claramente um certo princípio de autonomia, que, por óbvio, é anterior ao
surgimento da cidadania pós-revolucionária. De um lado, portanto, que é o lado da filosofia
crítica, vê-se preparar a compreensão daquela que seria a atividade própria do Subjekt, este
último encontrando-se implicado no Esclarecimento na medida em que o homem é considerado
por Kant como sendo responsável por seu próprio estado de menoridade porque a causa desse
estado “(...) reside, não numa falha de esquecimento, mas numa falta de decisão e de coragem
para se servir [do seu entendimento (...)] sem a direção de outrem” (FOUCAULT, pág. 25). A
coragem de conhecer, sintetizada no lema Sapere aude [Ousa conhecer], corresponderia,
assim, à prescrição expressa para a consecução do Esclarecimento (Cf. FOUCAULT, páginas
27 e 28).
Como antecipado, o texto vem a desaguar em contradições em nada insignificantes ao fazer
crer que o rei da época, Frederico da Prússia, seria um senhor tão justo quanto a própria razão,
isto é, um senhor a quem a devida obediência não contradiz o exercício do raciocínio, que, em
essência, deveria ser livre e público. De outra maneira, podemos dizer que, nesse momento, o
sujeito kantiano se satisfaz em ser um subjectus, na acepção que o equivale a subditus: ele
continua prestando e recomendando obediência à autoridade do príncipe, posto que esse
príncipe não exige a adesão pública aos dogmas da religião, liberando, assim, de outra parte, o
exercício público da razão (ou seja, o príncipe em questão reconhece a legitimidade de manter

13
disjuntos obediência e razão, o que, em última instância, faria dele uma autoridade razoável).
Mas, em 1798, quando escreve “O conflito das faculdades”, Kant teria retomado a questão. E
a teria retomado de maneira a promover um encontro insuspeito entre os dois determinantes
maiores do sujeito na modernidade filosófica. Pensando nos termos de Balibar, é como se
Foucault, tendo exposto a solidariedade entre os dois textos mencionados há pouco, houvesse
registrado o momento preciso do encontro que Kant teria realizado entre as compreensões
renovadas do subjectum e do subjectus: um pouco como se por força de alegoria, o texto, que
tinha como um de seus temas a importância das relações entre a filosofia e o direito, acaba
nomeando um conflito de faculdades. Ou seja, a escrita desse outro texto permite discernir de
maneira mais evidente o conflito que o final de “Resposta à pergunta: 'O que é o
Esclarecimento?’” fazia apenas intuir e, de certa forma, denegar.
Não há muito mais o que esperar das inclinações revolucionárias de Kant, pelo menos não em
termos de um pensamento político mais consequente ou propriamente revolucionário. É preciso
dizer, no entanto, que o filósofo foi tão longe a ponto de saudar na Revolução Francesa um
acontecimento com um alcance universal, capaz de sinalizar o progresso da humanidade porque
nele se podia discernir um “(...) movimento em direção a uma situação tal que os homens
poderão se dotar da constituição política que querem, e de uma constituição política tal que
impedirá toda guerra ofensiva” (FOUCAULT, pág. 19). E, nesse particular, não podemos evitar
uma precisão do comentário de Foucault, que tem o mérito de destacar a posição inédita do
filósofo ante o seu tempo, dado que, desde a caracterização kantiana da modernidade, coloca-
se em cena uma atualidade “(...) que ela [, a filosofia kantiana,] interroga como acontecimento”
(FOUCAULT, pág. 14). Ainda a respeito da Revolução Francesa, será possível concluir,
portanto, que
esse acontecimento é demasiadamente importante, está
demasiadamente entranhado nos interesses da humanidade e tem uma
influência demasiadamente vasta em todas as partes do mundo, para
não ser recordado aos povos por ocasião de circunstâncias favoráveis e
relembrado quando da crise de novas tentativas desse gênero.
(FOUCAULT, pág. 20)

Notando essa nova maneira de se posicionar em face da atualidade, Foucault nos dá uma
indicação preciosa do porquê desses textos conservarem uma inegável importância para a
tradição de pensamento na qual ele próprio, de certa maneira, pensa se inserir. E ele nos dá essa
indicação ao esclarecer que, com Kant, a filosofia passa a funcionar como “(...) superfície de
emergência de uma atualidade”, como “(...) interrogação sobre o sentido filosófico da
atualidade a que ele pertence”, e como “(...) interrogação pelo filósofo desse ‘nós’ de que ele
faz parte e em relação ao qual ele tem de se situar”, pois, conclui Foucault, “(...) é isso, me
parece, que caracteriza a filosofia como discurso da modernidade, como discurso sobre a
modernidade (FOUCAULT, pág. 14).
Deve causar ainda alguma estranheza que nos ocupemos tão detidamente de autores que, além
de não manterem nenhuma relação direta com Badiou, defendem, quanto a certos tópicos,
posições consideravelmente distintas das dele, para não dizer francamente contrárias (como é
notoriamente o caso com Kant e com Foucault). Ao mesmo tempo, contudo, seria difícil
sustentar que a filosofia de Badiou se localiza num espaço completamente alheio àquele que
Foucault descreve quando reconstitui a problemática kantiana do Esclarecimento. Ainda que
guardem diferenças fundamentais, que logo mais assinalaremos, ainda assim é surpreendente
que Kant, o responsável por inaugurar toda uma nova tradição para a filosofia ao entender o
sujeito como o outro do objeto (Cf. BALIBAR, pág. 73), justamente ele tenha enxergado a
14
Revolução Francesa como um acontecimento. Não é demais lembrar, por exemplo, que o
aludido estado de menoridade, mesmo que seja comparado à infância, não é de maneira alguma
um estado de "impotência natural" (Cf. FOUCAULT, pág. 28): ou seja, apesar de reconhecer
a importância da ciência moderna, e tentando se adequar aos limites de uma investigação
estritamente racional que a leve em consideração, a filosofia proposta por Kant não chega
nunca a tomar o homem como o mero objeto de uma ciência empírica. E, mais uma vez sem
perder de vista a existência de diferenças fundamentais, não é menos impressionante que essa
sua reivindicação de uma investigação racional tenha se dado em acordo com o horizonte de
uma certa universalidade que pretende contemplar a totalidade dos homens (o que não impede,
entretanto, que a humanidade venha a ser percebida como estando intrinsecamente dividida, lá
onde os indivíduos teriam se mostrado como sendo constitutivamente incapazes de satisfazer
certas exigências da razão). Pode-se argumentar, claro, que a subjetividade com que lida a
filosofia de Badiou não é exatamente a mesma colocada em cena por Kant, o que estaria
perfeitamente correto. Porém, faria pouco ou nenhum sentido dizer que elas não guardam
nenhuma relação entre si: do ponto de vista de Badiou, mais do que possível, seria necessário
aceitar que a filosofia kantiana é, sob muitos aspectos, insuficiente, e, quanto a outros, chegaria
mesmo a ser contraproducente; mas, desse mesmo ponto de vista, não há como defender que
uma tal problemática seja integralmente desprovida de valor. Assim, podemos acolher o
seguinte juízo de Étienne Balibar:
Em realidade, não é antes de uma Crítica da razão pura que das Subjekt
(segundo as diferentes qualificações: o sujeito lógico, o sujeito
empírico, o sujeito racional, o sujeito transcendental, o sujeito moral)
torna-se o conceito-chave de uma filosofia da subjetividade.
(BALIBAR, pág. 73).

E se Kant sempre interessou muito pouco a Badiou, o mesmo não pode ser dito de Lacan: o
psicanalista nunca foi estritamente kantiano, isso não há como negar, mas as suas questões
confundem-se mais ou menos com problemáticas gestadas dentro de uma empresa teórica de
caráter marcadamente transcendental (em grande parte, graças ao estruturalismo), sobretudo
quanto às mudanças que a filosofia crítica teria afetado à moral e à ética. Curiosamente, o maior
indício dessa partilha não deve ser procurado nas menções que Lacan faz a Kant ao longo de
seu ensino, a mais notória delas sendo com certeza a localizada no texto “Kant com Sade”.
Dessa assunção, costuma resultar que acabem despistados aqueles que esperam deparar aí
algum testemunho firme de contrariedade, ou mesmo uma qualquer refutação definitiva da
filosofia crítica que teria podido fornecer a psicanálise lacaniana (Cf. JURANVILLE, pág. ),
sobretudo porque existem ambiguidades consideráveis na aproximação então realizada entre o
filósofo alemão e o autor de La philosophie dans le boudoir [A filosofia na alcova]. Com maior
proveito, essas pistas devem ser procuradas, isso sim, na retomada sui generis que o
psicanalista faz do cogito cartesiano. Com efeito, na história recente da filosofia, houve um
processo de transcendentalização do cogito cartesiano que teve em Immanuel Kant o seu mais
ativo colaborador, se não o seu grande inventor (Cf. BALIBAR, páginas 39 e 40). E é através
do prisma dessa transcendentalização que Lacan se sente à vontade para discriminar o que em
Descartes teria supostamente contrariado a novidade de seu cogito, uma vez que, para o
psicanalista, o autor das Meditações metafísicas houvesse inadvertidamente incorrido em uma
substancialização do sujeito moderno.
De sua parte, as relações que Foucault entretém com Lacan e com Badiou são muito mais
complicadas, e demandam considerações melhor nuançadas do que as que podemos realizar
aqui. Mas o mínimo que se pode dizer é que as ideias de Foucault, sobretudo as da “última

15
fase" de sua trajetória intelectual (especialmente ocupadas, diga-se, com os temas da
subjetividade e da verdade), guardam alguma relação com as teorias do sujeito de Lacan e de
Badiou, mesmo que seja uma relação de inversão ou de negação. 11 Sob um outro aspecto,
continuando a tratar das complicações mencionadas acima, pode-se falar ainda alguma coisa
sobre as relações que Lacan manteve para com a componente política do termo sujet. Sem
entrar no mérito de discutir quais eram as suas posições efetivamente políticas, deve-se ter
claro que o psicanalista não esteve de todo subtraído de seu alcance: em pelo menos uma
instância, velha conhecida de Foucault, havia toda uma série de consequências assemelhadas
às determinações dessa componente política, consequências resultantes da dificuldade de
situar-se relativamente àquilo que o autor de História da loucura veio a chamar, em outro curso
ministrado no Collège de France, de poder psiquiátrico. A tese de doutoramento de Lacan traz
alguns indícios dessa dificuldade, quando o então aspirante a psiquiatra, debatendo-se com os
problemas próprios à objetividade de sua disciplina, fala em um ”corpo de delito” como aquilo
de que ela verdadeiramente se ocuparia, em lugar de apreender a singularidade do sofrimento
psíquico dos pacientes. Segundo a observação sempre precisa de Bertrand Olgivie, expressão
”(...) mediante a qual Lacan deixa entrever, sem desenvolver, que a razão profunda é a
finalidade moralizante e repressiva, policial, da psiquiatria que se dissimula por trás do objetivo
apregoado de um conhecimento objetivo” (OLGIVIE, páginas 21 e 22). Objeto que, como tal,
é muito mal conhecido, mas cujo desconhecimento serve muito bem ao objetivo de justificar o
exercício de um poder, ao travesti-lo com uma neutralidade que da ciência só se preocupa em
carregar o nome. De maneira oblíqua, mas nem por isso menos enfática, mesmo depois de
abandonar o terreno da psiquiatria propriamente dita, Lacan contestará reiteradamente a
legitimidade desse poder, como atestam os textos em que ele reflete sobre a direção e o poder
do tratamento analítico ou sobre a formação do analista. Assim, faz todo sentido enunciar que
Lacan e, principalmente, Foucault integram uma geração de intelectuais preocupada em
explicitar certos desmentidos da instituição da cidadania liberal (entendendo-se essa
qualificação em sentido amplo, a partir da qual se constitui o ideário moderno do Estado de
Direito), pelo menos enquanto esta reivindica a prerrogativa de decidir, com base numa suposta
objetividade, se o sujeito constitui de fato uma ameaça para si ou para os demais membros da
sociedade (casos que correspondem, obviamente, a exceções à soberania igualitária e imanente
que tenciona nascer com a Revolução Francesa: não por hipocrisia, note-se, mas porque a sua
própria institucionalização conduz a esses paradoxos, os quais consistem em tentar preservar a
liberdade dos cidadãos assujeitando-os a uma determinada ordem). Por vias diversas, as suas

11 Como se pode depreender desta passagem, em que Foucault elucida qual a implicação de adotar uma das
diretrizes que passaram a orientar a sua investigação: ”E aí o deslocamento consistiu em que, em vez de se referir
a uma teoria do sujeito, pareceu-me que seria preciso tentar analisar as diferentes formas pelas quais o indivíduo
é levado a se constituir como sujeito. E, tomando como exemplo do comportamento sexual e da história moral
sexual, procurei ver como e através de que formas concretas de relação consigo o indivíduo havia sido chamado
a se constituir como sujeito moral da conduta sexual. Em outras palavras, tratava-se aí também de realizar um
deslocamento, indo da questão do sujeito à análise das formas de subjetivação, e de analisar essas formas de
subjetivação através das técnicas/tecnologias da relação consigo, ou, vamos dizer, através do que se pode chamar
de pragmática de si” (FOUCAULT, pág. 7). Nessa passagem, ficam entrevistas programas de investigação
teóricos completamente distintos a respeito da sexualidade, que diferenciam - e em alguns aspectos chegam
mesmo a opor - Foucault e Lacan. Não é por menos que Balibar diz, no mesmo livro que citávamos há pouco:
“Lacan e Foucault desdobram o mais sistematicamente o espectro da subjetividade como processo de sujeição.
Mas um em sentido inverso do outro” (BALIBAR, pág. 81). É bom que se mencione, portanto, que, no rascunho
da aula inaugural do curso ”O governo de si e dos outros”, aula que aconteceu em 5 de janeiro de 1983, Foucault
advoga uma espécie de anti-universalismo, ou de questionamento histórico das pretensões de objetividade do
universalismo, ao defender uma nova abordagem do historicismo, do nominalismo e do niilismo, uma abordagem
que saiba questioná-los e servir-se deles de uma outra maneira que não seja a da recriminação habitual (Cf.
FOUCAULT, nota de rodapé, pág. 7).

16
obras contribuem para o seguinte diagnóstico de Étienne Balibar sobre o caráter paradoxal da
cidadania liberal:
Não somente o liberalismo não pode, assim, “defender” a liberdade dos
sujeitos individuais sem controlá-la ou limitá-la, mas ele não cessa, ao
mesmo tempo, de ameaçá-la, pelo fato de que o espaço que lhe concede
é uma via estreita e incerta entre a Caríbdis da penalização e a Cila da
medicalização. (BALIBAR, pág. 15)

Igualmente reveladora dessa encruzilhada, situada entre a penalização e a medicalização, é a


escrita, por Lacan, de ”Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia”, no ano
de 1950 (que aparece, portanto, apenas quatro anos antes de Maladie mentale et psychologie
[Doença mental e psicologia], primeira obra de Foucault a vir a público, mas que de certa
maneira antecipa o percurso descrito pelo pensamento deste 12, quando o autor de Surveiller et
punir [Vigiar e punir] vem a transpor mais decididamente o estreito que separa a medicalização
da penalização, cingindo-o). Foucault, por sua vez, com sua incomparável sensibilidade para
as derivas históricas, é o autor que mais consequentemente teria captado essas mudanças
paradoxais, que fazem com que a liberdade anunciada e instituída por uma nova organização
sócio-política incorpore maneiras inéditas de sujeição (ou melhor, de assujeitamento) dos
indivíduos.13 Mais uma vez, é a Balibar que apelaremos, agora com o objetivo de situar o
pensamento de Foucault ante o nascimento do que se chama de ”Cidadão Sujeito”:
Toda a obra de Foucault – ou ao menos aquela parte que, por
aproximações sucessivas, se esforça por descrever os aspectos
heterogêneos da grande “transição” moderna entre o mundo da sujeição
e o mundo do direito e da disciplina, da “sociedade civil” e dos
aparelhos de Estado – é uma fenomenologia materialista da
transmutação do assujeitamento, [isto é,] do nascimento do Cidadão
Sujeito. (BALIBAR, páginas 64 e 65)

Como se vê, na circunstância histórica do nascimento desse Cidadão Sujeito, tem-se um


imbróglio em que cada um dos cinco pensadores mencionados até agora (isto é, nesta sub-
seção de nosso trabalho) se encontra enlaçado de maneira singular, e a que cada um, ensaiando
um desenlace quase que impossível, acrescenta o seu próprio nó. Dessa maneira, pode-se
apreciar o fato de que, a despeito de objetivar um princípio de autonomia, Kant nunca chegou
a tomar consciência de que essa autonomia poderia ser perturbada por certos paradoxos, a partir
dos quais o próprio princípio tende a se inverter em seu contrário, a saber, quando se transforma
na justificativa para a sua privação. Isso porque a cidadania liberal, suporte imprevisto que a
subjetividade moderna depara a certa altura de sua história, comportaria uma enorme
contradição, que é a de se realizar através de uma passividade absoluta: uma vez que o cidadão
só é cidadão na medida em que obedece ao poder irrestrito da soberania igualitária, que é o
poder da legislação (Cf. BALIBAR, pág. 57), ele se encontra totalmente sujeito às leis,

12 Não deixemos de reparar, contudo, que, segundo observa Balibar, por essa época (isto é, em , data de publicação
do mencionado texto) Lacan .
13 Um exemplo bastante eloquente, ainda que precoce (porquanto seja pertencente a um momento em que o teórico

ainda não havia se dado conta do alcance do problema com que estava lidando), é a do caráter praticamente
lendário que Pinel assume quando, em meio à Revolução Francesa, liberta os loucos. Pode-se ver bem como existe
uma lucidez no projeto político de Foucault, porque ele fala tanto de Pinel como de Samuel Tuke: cobre-se, pois,
a extensão geográfica do núcleo do Estado liberal na Europa, onde, por meios distintos, logra-se resultados
semelhantes e mesmo convergentes quanto ao ordenamento da sujeição dos corpos.

17
devendo-lhes obediência inexcusável (afinal, desrespeitá-las seria desrespeitar a si mesmo
como sujeito racional e, portanto, autônomo). 14
Por mais que Kant possa ser enxergado como o inventor da subjetividade filosófica moderna,
o seu princípio de autonomia torna-se uma espécie de legado maldito (o que faz questionar não
o princípio em si, mas os termos nos quais Kant acreditava ser necessário exercitá-lo). Assim,
em sequência, desencadeiam-se as rupturas. Admitindo-se, um pouco exageradamente, que
tanto Lacan, Foucault, Balibar e Badiou podem ser ditos descender de Kant – porquanto, cada
um à sua maneira, se posicionem e ajam em vistas da importância da dimensão subjetiva para
o pensamento contemporâneo –, existe pelo menos uma diferença irredutível entre cada um
deles e o filósofo alemão: se este pensava o sujeito como o outro do objeto, o fazia à condição
de que o sujeito fosse sempre enxergado como o sujeito do pensamento, quando este se toma
como o único suporte (subjectum, ou hupokeimenon) pensável dos predicados porque poderia
pensar a si mesmo, e, assim, os predicados seriam os seus pensamentos (Cf. BALIBAR, pág.
75); e é exatamente esse condicionamento que não pode mais ser encontrado em nenhum dos
demais autores mencionados. Não é por outro motivo que Foucault, para se reconhecer como
herdeiro de Kant, tem de estabelecer uma partilha histórica que remonta à filosofia
transcendental como a origem de duas modalidades de crítica: por um lado, a encampada por
uma analítica da verdade (da qual descenderia a chamada filosofia analítica), que seria mais
aparentada à filosofia da ciência e aos problemas que dizem respeito à objetividade do
conhecimento; e, por outro, mais próxima dele próprio, a que inaugura uma tradição de vocação
reconhecidamente política, a colocar “(...) a questão de: o que é a atualidade? Qual é o campo
atual de nossas experiências? Qual é o campo atual das experiências possíveis?" (FOUCAULT,
2010, pág. 21).15 Para Foucault, se não há mais a possibilidade de fiar-se num sujeito que se
pensa a si mesmo como suporte transcendental de todos os pensamentos, continua sendo
possível, entretanto, remontar a Kant como se se tratasse do momento inaugural em que nos
colocaríamos em condições de perceber a relevância de uma “ontologia da atualidade”, uma
“ontologia de nós mesmos".
Como dito acima, não faria nenhum sentido alhear completamente Badiou (e nem Lacan) de
questões dessa ordem: tal como Kant e Foucault, também Badiou indaga conceitualmente a
atualidade de seu próprio tempo, esforçando-se, assim, para discriminar o que neste seriam os
acontecimentos diante dos quais os sujeitos poderiam como que vir à cena. No entanto, como
deve ser possível intuir pelo que foi escrito até aqui, a sua empresa filosófica não tem muito o
que ver com a pergunta “Qual é o campo atual de nossas experiências possíveis?”. Não porque
ele nunca tenha se interessado pelas possibilidades que emergem num determinado horizonte
histórico. Mas, antes, porque, tal como formulada, a pergunta sugere uma limitação do presente

14 Essa coincidência é apenas incidental, porque, na perspectiva kantiana, haveria uma diferença entre legalidade
e moralidade. Como diz Kervegan: ”Em Kant, a distinção entre lei e ética tem sentido apenas com base no só
princípio formal da moralidade: devemos distinguir a conformidade externa de uma ação à norma (legalidade) do
fato de que a obrigação vinculada a uma norma é o motivo para a ação (moralidade)” (KERVEGAN, pág. 288).
A coincidência é devida à convicção de Kant de que a razão é autônoma, mas apenas quando compreendida como
razão prática: ou seja, a razão prática produz o seu próprio objeto, a sua lei. Cf. KERVEGAN, pág. 283. Tanto a
legalidade como a moralidade fundam-se sobre um. mesmo princípio, que é o da auto-determinação da razão
prática. Cf. KERVEGAN, pág. 288.
15 Acreditamos ser pertinente rememorar o fato de que, numa entrevista de 1967, Foucault dizia que Nietzsche foi

o responsável por dar o devido relevo às perguntas "que somos nós hoje?" e ”o que é esse hoje em que nós
vivemos?” (Cf. FOUCAULT, pág. 641). Donde se pode arriscar a seguinte conclusão: nesse curso, que acontece
nos anos de 1982 e 1983, Foucault como que assinala o devir nietzscheano de Kant. Uma tal conclusão ajudaria
a explicar porque o pensador francês pode revisitar o filósofo de Königsberg, mesmo se no curso denominado
”Em defesa da sociedade” ele recusava à perspectiva genealógica o universalismo de uma razão legisladora.

18
que o compreenderia inteiramente dentro dos limites de uma certa circunstância histórica. E só
assim a investigação dirigida por essa pergunta possibilitaria que se enxergue o presente como
se do lado de fora, dando a entender que ele seria passível de uma análise que o discrimina, se
não de maneira exaustiva, pelo menos suficientemente em suas possibilidades. Por sua vez,
Badiou estaria preocupado com as possibilidades que emergem num determinado horizonte
histórico, mas apenas enquanto elas guardam relação com o novo. Como dizia o próprio
filósofo, em Théorie de la contradiction: “A verdadeira questão dialética, na linha de frente,
não é jamais: o que se passa de importante? (...) A verdadeira questão é sempre: o que se passa
de novo?” (BADIOU, pág. 94).
Se, a propósito dessas divergências de historicidade, reenviássemos Badiou e Foucault a seus
antecedentes epistemológicos, veríamos interpor-se entre eles as matemáticas, ou, mais
precisamente, o infinito cantoriano: bastaria lembrar da argumentação de Cavaillès segundo a
qual, se o tempo da criação da teoria dos conjuntos estivesse propriamente limitado pela
cronologia mundana, Cantor jamais poderia ter alcançado a ideia de um infinito atual, pois não
haveria tempo suficiente para que ele o fizesse. 16 Analogamente, para a interrogação que
Badiou faz da atualidade com que ele se defronta, o novo não poderia nunca emergir desde
aquilo que é importante no “campo atual de nossas experiências possíveis". Em vez disso, para
Badiou, ele deveria emergir do impossível, tal como este se coloca enquanto impasse para a
estruturação de uma determinada circunstância. Com efeito, o argumento de Cavaillès é tanto
mais significativo para nós porque, como visto em outro capítulo deste trabalho, ele se constrói
em solidariedade com uma elaborada crítica à teoria do conhecimento presente na filosofia
kantiana. Contudo, não teríamos permissão para ignorar o fato de que, por sua natureza
essencialmente epistemológica, um tal argumento não poderia funcionar aqui como nada mais
do que uma analogia. Cabe então recordar que, igualmente por recurso ao infinito, e a valer-se
de uma crítica até mais elaborada a Kant do que a realizada por Cavaillès, haveria uma outra
figura histórica do pensamento capaz de abrir um caminho para um tratamento conceitual da
subjetividade política: nenhuma outra senão aquela representada pela filosofia de Hegel. E nós
podemos, assim, retomar mais firmemente o curso de nosso trabalho: Badiou, diferentemente
de Foucault, tem em Hegel (ou melhor, na tradição dialética que dele descende) uma mediação
inescapável da interrogação da atualidade política de seu próprio tempo, a partir da qual a
problemática kantiana da subjetividade teria sido transformada decisivamente.
É muito claro que, a propósito de questões não de todo coincidentes (incluída a de uma
compreensão bem ampla da subjetividade), mas, ainda assim, num sentido não muito distinto,
Lacan pode ser dito encontrar-se na linha de descendência de Hegel. E, mais uma vez, isso faz
reverberar no psicanalista uma significação política do sujet. Já não deve causar em nós
nenhuma grande comoção, por exemplo, o fato de que a dialética do senhor e do escravo seja
considerada desempenhar um papel nada menos que fundamental para o psicanalista. Pois bem,
apesar do nome pelo qual ela ficou conhecida em francês (e em português), devemos nos
lembrar que, em seu construto teórico (pelo menos tal como ele consta da Fenomenologia do

16 Seguramente, acusar Foucault e os pós-estruturalistas de fomentar o relativismo pós-moderno é um erro


grosseiro. No entanto, a intuição em que se ampara grande parte do pensamento de Foucault, de que as melhorias
técnicas contribuem para formas inéditas de subjetivação, : por si só, a prática científica não consegue produzir
melhorias políticas. Ela não absolve o pensador de reconhecer a universalidade da prática científica. Muito pelo
contrário, . Como o observa Balibar : “(...) parece que a evolução tecnocrática e tecnológica das sociedades
contemporâneas conduz a uma expropriação tendencial da função judiciária, e, mais geralmente, da capacidade
de julgar dos cidadãos” (BALIBAR, pág. 356). Mesmo para combater isso que muitas vezes se revela como uma
efetividade nefasta. A passagem pode ser interpretada como um efeito negativo da técnica na vida humana. Ou
ela pode ser interpretada como o indício material de que o modelo de soberania não funciona tal como se imagina.

19
espírito), Hegel utilizava, não as palavras Meister e Sklave, mas Herr [senhor] e Knecht [servo]:
pensando a questão nos termos do sujet, essa dialética faz remontar necessariamente a uma
determinada circunstância histórica de sujeição política (na verdade, como o revela o
vocabulário hegeliano, ela remontaria a mais de uma), no caso (isto é, no caso de o filósofo ter
se utilizado da palavra Knecht), precisamente aquela circunstância a que a Revolução Francesa
parecia estar destinada a colocar um fim (Cf. BALIBAR, pág. 239). Atualmente, circunstância
que poderia ser considerada finda, mas em que a psicanálise ainda faz pensar, posto que ela
lida com um sujeito que muitas vezes se define por uma espécie de obediência, ao concorrer
ativamente para a sua completa sujeição a um grande Outro, e a fazê-lo porque, de certa
maneira, ele a deseja, exatamente tal como acontecia à figura histórica do servo (BALIBAR,
pág. 47). A certa altura de seu ensino, através da mediação de Kojève, uma vez que houvesse
aceito o modelo dessa dialética para pensar a luta de puro prestígio e reconhecimento radicada
na negatividade do desejo humano, era como se Lacan incorporasse o laborioso processo de
libertação política do homem moderno como um dos principais expedientes de sua clínica (o
que não é necessariamente uma forma de submeter a clínica à política, mas, em outro sentido,
é também uma forma de enxergar em que medida a política seria afetada do desejo e da palavra,
para-além de suas determinações estritamente “materiais” ou “econômicas”).
O que é dizer muito sobre a problemática do sujeito no ensino de Lacan, pelo menos quando
ela é considerada em sua ascendência dialética, porque o homem que surge ao fim desse
processo em que se confrontam Herr e Knecht – um homem como que triunfante em seu
conceito – aparenta corresponder à epítome do sujeito hegeliano: trata-se, pois, de um sujeito
que chega como que a uma realização final de si mesmo, que é a de uma espécie de igualdade
que ele vem a gozar junto a si, a qual seria resultante desse processo em que labora o negativo,
processo de confrontação da alteridade tendente a um retorno, ou bem a uma reconciliação do
homem com o seu outro (como se este fosse ou viesse a ser ele próprio). É o que, à diferença
de Kant, Hegel chama de sujeito, porque se trata de um processo semovente 17 (Cf.
ZAMBRANA, pág. 352), investido da força de resolver as contradições que o ameaçam desde
o seu interior. Assim, tal como para o servo, em princípio sujeito à arbitrariedade de um
senhor18, mas que pode entrar numa dialética com este seu outro de forma a provar-se digno de
seu reconhecimento (isto é, ao provar-se tanto como aquele que reconhece quanto como aquele
que deve ser reconhecido em sua humanidade; e, aliás, que só é capaz de reconhecer o seu
outro na medida em que é reconhecido por ele); tal como esse servo, ao sujeito do inconsciente,
igualmente, estaria disponível a possibilidade de percorrer o caminho que lhe indicam as
contradições de seu desejo, contradições que o predam desde dentro, mas que deixariam
vislumbrar quase que o prenúncio de uma solução dialética ao serem externadas e dialogadas
com o seu outro (ou seja, com esse outro específico que seria o analista, que é aquele que vem
a ocupar o lugar de um espelho vazio). Todo um entroncamento da psicanálise lacaniana, mais
evidente em suas primeiras arborescências teóricas (cujo impulso germinativo é muitas vezes
de natureza declaradamente filosófica), pode ser reconhecido brotar a partir dessa raiz dialética.
No entanto, se essa breve recapitulação de um motivo dialético permite-nos adivinhar muito
sobre certos desenvolvimentos do ensino de Lacan, ela, de maneira bastante óbvia, não nos

17 Este trecho da Fenomenologia do espírito aponta exatamente nesse sentido: “Aliás, a substância viva é o ser,
que na verdade é sujeito, ou – o que significa o mesmo – que é na verdade efetivo, mas só na medida em que é o
movimento do pôr-se-a-si-mesmo, ou a mediação consigo mesmo do tornar-se outro. Como sujeito, é a
negatividade pura e simples, e justamente por isso é o fracionamento do simples ou a duplicação oponente, que é
de novo a negação dessa diversidade indiferente e de seu oposto” (HEGEL, pág. 35).
18 Essa situação, frisemos, faz com que o homem experimente uma contradição consigo, estando, assim, impedido

de corresponder ao seu conceito.

20
permite antecipar o que haveria de novo em seu ensino: como se sabe, apesar do entusiasmo
com que acolhe a dialética do senhor e do escravo em algumas de suas primeiras formulações
teóricas, ao longo de sua trajetória intelectual, o psicanalista torna-se cada vez mais crítico à
filosofia de Hegel. As críticas a essa filosofia podem ser detectadas muito cedo em Lacan, pelo
menos desde o primeiro ano de seu seminário (Cf. seminário 1, pág. 301). E, seguindo o rastro
dessas pistas, podemos concluir que as sínteses dialéticas, que, segundo Hegel, fariam retornar
ao começo, nunca disseram grande coisa a Lacan – provável motivo pelo qual, no final de seu
ensino, elas deverão ser terminantemente rejeitadas como um horizonte em que a psicanálise
jamais poderia se encerrar. Como diz uma passagem que citamos na seção anterior deste
trabalho: “(...) quando um faz dois, não há retorno jamais. A Aufhebung é um desses bonitos
sonhos da filosofia” (LACAN, pág. 115). De todo modo, sem nos determos ainda nas
consequências dessa caracterização da Aufhebung como nada mais do que um “bonito sonho
da filosofia”, não podemos deixar passar o fato de que, comparativamente à filosofia de Kant,
a dialética hegeliana tem de ser vista reposicionar decisivamente a subjetividade para a
psicanálise (o que, por óbvio, não implica num simples cancelamento do legado kantiano).
Contrastando com o que víamos acontecer naquela espécie de intersecção entre os pensamentos
de Lacan e de Foucault, em que havia uma componente de caráter predominantemente crítico
(isto é, crítico a uma certa condição paradoxal resultante da instituição da cidadania liberal
porque discriminaria como que o terreno de seu condicionamento a priori), a ascendência de
Hegel sobre o psicanalista permite entrever uma atividade ou bem um processo através do qual
o sujeito não se limita a ser apenas o sujeito do pensamento e nem se condena à passividade
(ou, como vimos, à menoridade) por transgredir o correto exercício da razão. Tampouco se
trata, como sugerido pela proximidade com Foucault, de uma subjetividade que devesse ser
discriminada no interior de um campo atual de possibilidades (no caso, o campo atual
providenciado pelo paradigma da cidadania liberal, tal como conformado por uma série de
práticas discursivas heterogêneas que situariam e modificariam um determinado horizonte de
realidades quase-ideais).
O que se insinua para o psicanalista é uma dimensão prática que tem que ver com a verdade,
dimensão que se abre ao sujeito porque, para-além da atualidade histórica de sua situação
específica (o que não significa, entretanto, uma completa indiferença a essa situação), este
experimenta algo de excessivo, algo de infinito, ou seja, algo que tem a ver com a verdade
porque o sujeito vem a testemunhar uma existência que não se restringe inteiramente à ordem
daquilo que numa certa circunstância lhe seria dado vivenciar como indivíduo ou mesmo como
sujeito (no sentido em que Foucault às vezes emprega o termo, isto é, como existência histórica
condicionada pela experiência feita possível por um campo múltiplo de determinações práticas,
dentre as quais se deve contar o que o pensador entende como verdade). 19 Não por menos, a

19 Nós forçamos aqui a noção de subjetividade no pensamento de Michel Foucault num sentido com que ela não
deve e não pode ser identificada, ou pelo menos não de maneira a compreender inteiramente as suas
potencialidades: isto é, como se a subjetividade foucaultiana nada mais fosse que o campo de uma determinação
extrínseca do indivíduo humano por uma série de práticas discursivas que incidiriam sobre o seu corpo. Ou seja,
nós apreendemos essa noção de uma forma tal que ela não pode ser apreciada em toda a sua dimensão, em especial
quando ela vem a diferir do que seria uma simples sujeição do homem a uma determinada ordem. No entanto, a
última fase de seu pensamento (a qual compreende os acima referidos cursos ministrados no Collège de France)
deixa bastante claro que a noção de subjetividade operante em Foucault ultrapassa de muito essa concepção
analítica, como que votada preferencialmente a reconstituir o condicionamento histórico das várias modalidades
do fenômeno da sujeição humana. E, como notado por Sergei Prozorov, isso se dá porque a perspectiva então
estabelecida por Foucault para apreender as relações entre verdade e subjetividade não é de maneira alguma a de
uma determinação externa que recairia sobre os dois elementos como se a encerrar totalmente o seu horizonte de
possibilidades: “Falar numa história política da verdade não é dissolver os discursos de verdade em relações
previamente [existentes] de poder ou nas racionalidades do governo, privando-os, assim, de sua consistência e

21
autonomia, mas, ao contrário, é demonstrar os efeitos desses discursos nas práticas sociais ou na constituição da
relação do sujeito a si mesmo“ (PROZOROV). Essa diferença é fundamental porque, ao contrário do que fazem
crer alguns críticos de Foucault (dentre os quais pode-se mencionar, quanto a certas intervenções, o próprio
Badiou), uma tal concepção de subjetividade não implica em uma completa passividade dos homens em face dos
ordenamentos em que eles porventura se encontrem situados: ”Enquanto Foucault tem sido - e, frequentemente,
ainda é - lido como se a assinalar os efeitos opressivos da verdade, sejam [eles] de ordenamento, de
homogeneização, ou de nivelação, no curso Subjetividade e verdade observamos a função de facilitação,
capacitação, e até mesmo de emancipação de um discurso de verdade” (PROZOROV). Bem a propósito, diga-se
que o texto de Prozorov que acabamos de citar, de nome ”Why is there truth? Foucault in the age of post-truth
politics” [”Por que há verdade? Foucault na época de uma política da pós-verdade"], discute justamente a noção
de verdade elaborada por Foucault nos cursos do Collège de France, e o faz de forma a estabelecer um contraponto
às noções de Badiou de sujeito e de verdade. Prozorov dá, assim, uma contribuição simplesmente brilhante e
mesmo essencial para uma boa discussão sobre a relação entre duas concepções distintas de verdade nascidas do
pós-estruturalismo - a contrariar, portanto, a opinião corrente segundo a qual o pensamento contemporâneo francês
teria sido capaz apenas de fomentar um relativismo irresponsável, supostamente cúmplice do que se chama hoje
de ”pós-verdade”. Ademais, esse texto previne contra alguns dos possíveis equívocos que os partidários de Badiou
poderiam cometer a respeito de Foucault, especialmente quando Prozorov se preocupa em mostrar que as
características que Foucault reconhece como sendo próprias dos discursos de verdade de alguma maneira se
adequam à noção correspondente em Badiou. Contudo, de nossa perspectiva, a sua exposição apresenta ainda uma
insuficiência: ela não faz o caminho de volta, evitando, pois, confrontar Foucault com os traços definidores que
Badiou reconhece como sendo próprios da verdade. Do que se segue que, mesmo tendo contribuído para diminuir
os mal-entendidos, não fica claro nesse texto o porquê de Badiou não reconhecer à compreensão foucaultiana o
estatuto de verdade, favorecendo, assim, a falsa impressão de ser um mero capricho do filósofo francês. Por
conseguinte, continua aberta a questão de saber se uma disputa entre Foucault e Badiou a respeito da verdade
baseia-se em algo mais do que num simples equívoco terminológico (ainda que Prozorov tenha feito o bastante
para demonstrar que os partidários de uma e outra noção perdem muito em ignorar-se). Quanto à noção de verdade
de Badiou e o que ela pode dizer de Foucault, a diferença mais significativa entre os dois teóricos parece consistir
numa das virtudes que, para o primeiro, as verdades apresentariam, a saber, a de transformar toda uma
circunstância: aos olhos de Badiou, uma verdade não é dotada apenas de uma relativa força emancipadora,
comportando, por outra, a dimensão daquilo que é propriamente novo, ao estabelecer uma abertura efetivamente
infinita. Se em seus grandes tratados de ontologia Badiou vai recorrer às matemáticas para pensar a verdade e o
sujeito, não é com o objetivo de demonstrar a fatalidade da verdade, e sim porque as matemáticas têm na
demonstração um proceder que, longe de sempre conduzir a um resultado único, possibilita a repetição ordenada
de transformações absolutas, elas mesmas passíveis de novas transformações. Ou seja, em acordo com Foucault,
uma demonstração não pode ser tida como se fosse completamente imune às contingências, a sua enunciação
encontrando-se dependente de várias delas (por exemplo, os materiais empregados para a sua escrita numa
determinada época, a notação matemática então adotada, a competência do matemático que a escreve, etc.); no
entanto, uma vez realizada, a demonstração efetua uma abertura para-além de todas as contingências em meio às
quais surgiu (o teorema de Pitágoras, por exemplo, deixa de depender em absoluto do triângulo que, na ocasião,
o matemático possa ter desenhado para expor a sua prova). Isso porque, para o “último" Badiou (por exemplo, o
Badiou do seminário L’immanence des vérités, proferido em 2012), o que se repete com uma verdade não é uma
presença concreta, ou ainda uma idealidade que pairasse incólume sobre o mundo, mas sim a interrupção de uma
repetição: depois de provado, o teorema de Pitágoras sempre será capaz de interromper a experiência, inúmeras
vezes repetida por toda sorte de homens, de não apreender a relação necessária que, num plano euclidiano, mantêm
entre si os lados de um triângulo retângulo. É por isso que, à diferença de Foucault, Badiou restringe
consideravelmente o campo das modalidades de verdade, reduzindo-as a apenas quatro: a arte, a ciência, a política
e o amor. Ou seja, ele o faz porque, na sua perspectiva, são basicamente essas as modalidades em que a verdade
faz valer a sua força infinita de transformação: jamais ocorreria a Badiou, como ocorreu a Foucault (segundo o
que Prozorov expõe em seu texto), encontrar na economia (considerada como prática discursiva capaz de
transformar o horizonte dos sujeitos) uma verdade, porque, mesmo que esteja investida de alguma capacidade
emancipadora, ela não a faz valer de maneira universal (isto é, ela não interrompe nunca a circunstância em que
a atribuição daquilo que é humano em política se vê reiteradamente limitada pela existência da propriedade
privada). A partir dessa diferença, pode-se ensaiar uma crítica a Foucault, que continua a valer mesmo com os
reparos conceituais providenciados por Prozorov: quando Foucault fala de subjetividade, não se sabe exatamente
se ele o faz como o pesquisador excepcional que indubitavelmente era, ou como o proponente de uma prática que
reatuliza a capacidade dos leitores que ele interpela com seus livros. Tomemos como exemplo a sua História da
sexualidade, que trata precisamente de formas completamente outras de subjetividade relacionadas ao sexo (ou
seja, trata de um tema caro a Badiou por causa de Lacan): não é de maneira alguma claro se o que ele intenciona
com esse trabalho é possibilitar efetivamente uma nova relação dos sujeitos com o sexo, ou se, contrariamente a
essa primeira intenção, ele acaba por compor uma espécie de fabulação literária sobre uma subjetividade que não
pode mais existir, e que deixa em larga medida inalteradas as subjetividades existentes.

22
psicanálise lacaniana pôde se medir com a filosofia de Hegel: isso porque, como bem observa
Jean-François Kervégan (que nos previne, assim, indiretamente, contra a interpretação de
Kojève20), trata-se de uma filosofia “(...) em que a subjetividade é entendida não como uma
determinação antropológica, mas como a vitalidade mesma do conceito” (KERVÉGAN, pág.
xxvi). Vitalidade que não é adventícia, como a de uma pulsação vinda de fora, que seria o
equivalente de uma vida que só pode ser elogiada pelo filósofo quando submetida aos ditames
de sua representação, tal como se, por exemplo, a apreciação estética só encontrasse a sua
verdadeira satisfação ao se realizar como uma filosofia da arte. 21 Em outras palavras, essa
vitalidade do conceito não é o resultado de um ajuizamento externo à própria coisa, como se a
sua vida fosse entendida irradiar para o mundo inanimado dos objetos desde o exercício da
razão a que se dedica o sujeito transcendental: concentrando-nos num mesmo exemplo,
diríamos que as verdadeiras obras de arte não precisaram esperar por nenhuma filosofia para
que fizessem experimentar uma alegria e um pensamento singulares. No conceito hegeliano,
que opera para além da representação, desvaneceriam, assim, as oposições entre sujeito e
objeto, bem como as que separam o finito do infinito: um tal conceito não corresponderia a um
movimento representado somente dentro dos limites da instância do sujeito, mas, isso sim, a
um processo que concerne à própria realidade, na superação das contradições que lhe seriam
intrínsecas. Tem-se, pois, uma concepção distinta de subjetividade, que de certa forma continua
a entender o sujeito como o outro do objeto, mas que, mesmo assim, vai além dessa oposição
estanque, prolongando-se como algo mais do que uma antinomia da razão 22: por conseguinte,
uma concepção que impele ao movimento, admitindo, dessa maneira, a emergência do novo, o
qual coincide com a efetividade do sujeito em sua passagem à concretude objetiva. O caso não
é apenas o de a realidade mostrar-se adequada ao conceito, mas, de maneira um tanto mais
surpreendente, trata-se de que o conceito, diferenciando-se e desdobrando-se, faça-se realidade,
e uma realidade adequada a si mesma. No entanto, ao recusar que haja retorno após o um ter
se feito dois, o psicanalista teria traçado como que um limite a partir do qual, na melhor das
hipóteses, Hegel tem de lhe restar permanentemente dividido.
Nós nos colocamos agora em melhores condições de entender, portanto, como as seguintes
palavras do prefácio da Fenomenologia do espírito reverberam tanto nas ideias de Lacan como
nas de Badiou: “Segundo minha concepção – que só deve ser justificada pela apresentação do
próprio sistema –, tudo decorre de entender e exprimir o verdadeiro não como substância, mas
também, precisamente, como sujeito” (HEGEL, pág. 34). 23 Por um lado, existe aí uma
reivindicação da subjetividade tão enfática que chega mesmo a se contrapor à filosofia
kantiana, ao denunciar toda uma série de ocasiões em que, a despeito de suas intenções, ela
teria dado lugar a um exercício unilateral da razão. Isso porque Hegel, longe de desprezar o
projeto crítico, reconhece a importância e o alcance dessa enorme reviravolta que teria
experimentado o pensamento filosófico (qual seja, a desencadeada pelo que se chama de

20 Na citação que se faz logo mais, quando Kevérgan desvincula o conceito hegeliano de qualquer ”determinação
antropológica”, ele tem em vistas, naturalmente, a concepção kantiana do homem, que é uma concepção marcada
de finitude. No entanto, a assertiva de Kevérgan atinge indiretamente a compreensão kojèveana de Hegel, de matiz
antropológico, posto que, nessa compreensão, haveria como que uma deificação do homem. e duas grandes
interpretações da filosofia hegeliana que se tornaram hegemônicas na França das décadas de 30, 40 e 50, a de
Alexandre Kojève e a de Jean Hyppolite .
21 A recusa de todo normativismo. Cf. KÉRVEGAN, pág. xvii.
22 Lembremos, com a ajuda de Kervégan, que, “(...) em Hegel, razão é o nome filosófico para o processo através

do qual subjetividade e objetividade, pensamento e realidade mundana, sobrepõem-se infinitamente sem nunca
ser completamente idênticos, o que seria a morte do pensamento” (KERVEGAN, pág. 20).
23 Essas palavras também servem de contraste com o espinosismo de Althusser.

23
“revolução copernicana”), o que não o impede, entretanto, de reprovar-lhe as contradições, ou,
de maneira mais precisa, a sua patente incapacidade de lidar com elas. Dessa maneira, por um
só momento, reparemos uma vez mais em como foi importante o passo dado por Kant ao
conceber o sujeito como o outro do objeto: com essa expressão, vê-se bem o que pretendia o
filósofo de Königsberg, a saber, empreender uma busca consequente por uma espécie de lugar
não-objetivo onde deparar o pensamento. É como se Kant estivesse a se perguntar, diante das
façanhas inauditas da física newtoniana: “onde o pensamento realmente ocorre, já que, de
maneira comprovada, segundo o que podemos constatar a partir da ciência mais desenvolvida
de que se tem notícia, ele não ocorre propriamente dentro dos limites do mundo fenomênico,
que é o mundo que eu experimento através da só mediação de meus sentidos e do hábito?”. A
Crítica da razão pura esforça-se, pois, em responder à pergunta sobre como são possíveis os
juízos sintéticos a priori. Na complicada resposta formulada por Kant, contudo, Hegel não
pode enxergar senão uma limitação inadmissível, posto que o sujeito, tal como o pensa essa
filosofia, vem tingir tudo o que lhe é dado conhecer com a sua própria finitude. Disso se segue
uma de suas consequências inadvertidas, tal como acusada pelo autor da Ciência da lógica: “A
crítica kantiana – contrariamente ao que ela visava, acrescenta ainda Hegel – finitiza o absoluto
e, simultaneamente, absolutiza o finito” (NOBRE). O que antes parecia provar-se como uma
autêntica humildade, a saber, aquela a animar o ato mesmo de confessar-se incapaz de conhecer
a coisa-em-si (ou, no vocabulário hegeliano, o absoluto), tende a converter-se, na verdade, no
seu completo oposto, que seria a arrogância de estabelecer o finito conhecível pelo sujeito
transcendental como sendo um limite que a razão só excederia ao restringir-se a desempenhar
o papel de um princípio regulador do pensamento. E é por meio de inversões dessa ordem que
Hegel entende deparar as contradições subjacentes à filosofia de Kant. Dessa maneira, para
escândalo dos zelosos guardiões da letra kantiana, o inventor da filosofia transcendental podia
ser denunciado por um suposto psicologismo: isso porque, se, para Kant, o pensamento não se
confunde com a dimensão da psicologia íntima de um indivíduo, ainda assim ele só pode
exercitar-se como a atividade individual de um sujeito pensante. A filosofia hegeliana, por sua
vez, possibilitava uma compreensão alargada da subjetividade, que concerne variadas
modalidades de atividade do espírito (entre as quais é preciso dar lugar de destaque à arte, à
religião, ao direito e à filosofia), e que se estende no tempo e no espaço para-além de qualquer
delimitação prévia da experiência que essas duas formas da intuição tornariam possível ao
entendimento: apesar de compreender o eu como instância privilegiada da negatividade que
lhe seria característica, a subjetividade, para Hegel, não se confunde com os domínios deste
(Cf. , por exemplo, Hegel – a ordem do tempo, pág. , sobre o eu como figura do negativo).24
Por outro lado, no entanto, a passagem com que abrimos o parágrafo anterior, extraída à
Fenomenologia do espírito, adverte que o tratamento subjetivo proposto pela filosofia
hegeliana só poderia justificar-se após a exposição de seu caráter sistemático (e substancial).

24 É importante que se diga que, mesmo que não corresponda a uma noção trivial do eu, porque eivada de
negatividade, a centralidade conferida por Hegel a esse conceito pode ser tida como responsável por um de seus
maiores erros no que diz respeito aos desmentidos que a etnologia contemporânea seria capaz de lhe deparar (Cf.
SMITH, pag. 14). É possível contrapor a isso a passagem, citada em outra nota de rodapé deste trabalho (Cf), em
que Lacan se empenha em desfazer a impressão de que a frase do Bororo ”Eu sou uma arara” estaria calcada numa
pretensa incapacidade do indígena de se reconhecer como um sujeito distinto do mundo que o circunda. A rigor,
para Lacan, a estrutura de identificação manifesta nos enunciados "Eu sou uma arara" e “Eu sou um homem“ é
basicamente a mesma. Nesse sentido, a psicanálise, especialmente a lacaniana (por ser imensamente devedora da
antropologia estrutural), estaria capacitada a desvelar uma espécie de narcisismo cultural que permeia a filosofia
hegeliana, a qual, em muitas ocasiões, demonstra não conseguir desvincular-se de uma fantasia em que a
liberdade, se não tem morada exclusiva no continente europeu, tende a nele renascer como se se tratasse de uma
destinação privilegiada.

24
O que é particularmente revelador quando se considera as relações que Lacan mantinha com
essa filosofia, porque, como observado na seção anterior, o seu ensino nunca chega a conformar
um sistema. Ao nos apercebermos disso, alcançamos o que provavelmente é um dos melhores
ângulos para apreciar a recusa do psicanalista daquilo que ele entende como sendo uma
Aufhebung: as sínteses operadas pela dialética tornam-se para ele intoleráveis devido a essa
capacidade deslumbrante, quase fantástica (para não dizer, de maneira mais óbvia, fantasiosa),
do discurso hegeliano de se justificar como que por inteiro, em uma totalidade que pode ser
tanto enciclopédica como lógica. Do ponto de vista da psicanálise lacaniana, que nunca se
coloca completamente a salvo do equívoco, é preciso introduzir alguma descontinuidade para
achegar-se da subjetividade em sua concretude. Assim, não nos seria difícil indicar o passo
seguinte para o argumento que viemos desenvolvendo até aqui, qual seja, o de mostrar em que
é que Lacan e Badiou acreditam haver um deslize quanto ao registro subjetivo na filosofia do
próprio Hegel. Para ambos, isto é, tanto para Lacan como para Badiou, pode-se dizer que Hegel
providencia um modelo de atividade subjetiva que não o reduz ao ato de se tornar sujeito da
legislação do conhecimento (que, bem entendido, não é unicamente o ato pelo qual o sujeito
devém uma instância ativa, mas é também um ato em que aceita-se a razoabilidade de sua
legislação, sujeitando-se a ela). No entanto, também para ambos, essa atividade não coincide,
por exemplo, com a de um servo que, trabalhando para um senhor, dá início a uma dialética
capaz de solucionar a contradição que a existência dos dois coloca ao conceito de homem 25, ao
dividi-la em partes que, como tais, não podem se harmonizar, mas que, de alguma forma,
encetam uma movimentação em direção à reconciliação de suas diferenças. Uma tal síntese,
especialmente aos olhos de Badiou, não poderia ir muito além da fábula, porque, quanto à
matéria específica de sua dialética, ela insiste em mascarar as violentas descontinuidades que
conseguiram realmente anunciar uma possível reconciliação do homem consigo mesmo, e que
nada tinham que ver com a mediação entre, de um lado, os senhores e, de outro, os servos.
Haveria, assim, na filosofia de Hegel, uma tendência para escamotear a concretude do sujeito.
E é imprescindível observar que uma dessas escamoteações operadas pelo sistema hegeliano –
escamoteação específica, que de certa maneira se faz evidente tanto para Lacan como para
Badiou, pela sensibilidade que cada um deles desenvolveu para questões dessa ordem – seria a
que uma tal filosofia faz recair sobre a ciência moderna, desconhecida pelo filósofo alemão em
sua dimensão subjetiva na medida em que essa ciência teria se mostrado capaz de efetuar uma
série de transformações intensivas, sobretudo por intermédio do recurso às matemáticas. 26

25 De maneira deliberada, nós cometemos aqui um equívoco: na filosofia hegeliana, os conceitos a que se associa
a dialética do senhor e do escravo são o de consciência e de espírito, o que lhe permite conferir efetividade ao
homem apenas de forma colateral, quando muito. Em nossa exposição escolhemos referir com prioridade o
homem, no entanto, porque a apropriação lacaniana desse construto teórico, como mencionado várias vezes neste
trabalho, é mediada por Alexandre Kojève, que o aborda do ponto de vista de alguma coisa da ordem de uma
”antropologia político-existencial”. Assinalar a origem dessa abordagem é importante tanto porque ela explica
como Lacan recebe a dialética hegeliana num primeiro instante, como também pelo motivo de que ela ajuda a
entender o que, num momento posterior de seu ensino, o psicanalista deverá rejeitar no pensamento de Hegel (às
vezes, identificando erroneamente o filósofo alemão com a leitura que dele faz Kojève). Quanto a esse segundo
momento do diálogo do psicanalista com Hegel, podemos imaginar o seguinte: como a reconciliação que a
consciência experimenta ao mediar as categorias do senhor e do escravo mostra-se no mínimo insuficiente para
entender as várias modalidades de dominação política existentes (inclusive a da própria escravidão, sob a forma
que esta contraiu durante a emergência do capitalismo), ela passa a suscitar no psicanalista um ceticismo para
com a capacidade da dialética de explicitar a pertinência de uma efetiva reconciliação.
26 Um episódio bem representativo desse desconhecimento é aquele em que Hegel ridiculariza os astrônomos de

sua época por cogitarem a existência de um oitavo planeta para o sistema solar, quando, segundo pensava o
alemão, a filosofia já havia concluído existirem apenas sete planetas e nenhum a mais (Cf. NEWMAN, páginas
313 e 314).

25
A despeito de suas afinidades com o idealismo alemão, que são múltiplas e incrivelmente
variegadas, Lacan e Badiou, de maneira mais ou menos velada, compartilham uma mesma
crítica à sua empresa conceitual, que é a da denúncia de uma espécie de cegueira em que ela se
manteve no que diz respeito ao estatuto das matemáticas. É claro que, de acordo com Kant, a
ciência moderna só foi capaz de lograr os seus enormes avanços graças à estrutura do
pensamento disponibilizada por aquilo que ele entendia ser uma subjetividade transcendental,
o que acabava emprestando às matemáticas um significativo parentesco com os juízos
sintéticos a priori (a ponto de que, no início da Crítica da razão pura, eles sejam
exemplificados com a equação 5 + 7 = 12). Mas essa compreensão teve como consequência o
localizar as matemáticas dentro dos limites estreitos das formas puras da intuição (quais sejam,
o espaço e o tempo). 27 Mesmo Hegel, versado, como o demonstram certas passagens da Ciência
da lógica, em algumas das grandes inovações matemáticas de seu tempo, mesmo ele não
hesitava em excluí-las do puro pensar, atrelando-as às determinações naturais da intuição,
como figuras que, em sua conformação genérica, sempre fazem repontar uma certa
exterioridade do espírito a si mesmo (ou seja, como figuras em que a subjetividade se veria
flagrantemente limitada por não comportarem toda a novidade de que a negatividade é capaz).
Em dependendo das evidências a que conduzem as suas demonstrações (sejam as evidências
dos desenhos da geometria ou das grandezas da aritmética e da álgebra), as matemáticas
descobririam igualmente a sua pobreza intrínseca, que, para o filósofo alemão, condena o
pensamento a uma espécie de movimentação superficial, por mais profundas que se queiram
as suas investigações. A essa exterioridade - acrescentaria Hegel - faz-se acompanhar a
inadequação das matemáticas para pensar o infinito, contrariamente à aparência de que elas
corresponderiam à disciplina melhor equipada para fazê-lo, uma vez que lidam com medidas
passíveis de infinita adição ou subtração, bem como de infinita multiplicação ou divisão: o
problema, justamente, é que, ocupando-se de elementos passíveis de indefinido acréscimo ou
decréscimo, as matemáticas possibilitariam pensar apenas um mau infinito, que se aprisiona
numa reiteração estéril em vez de franquear o novo. Só que, quanto a esse aspecto em
particular, não podemos deixar de assinalar o fato de que, relativamente à posição de Hegel,
Lacan e Badiou devem ser designados como pensadores pós-cantorianos: ou seja, eles se
qualificam como pensadores cientes da revolução realizada por Cantor, que consistiu, como já
sabemos, na rigorosa formulação conceitual de um infinito atual. Dessa maneira, sob uma
perspectiva muito específica, o infinito também pode ser entendido separar Lacan e Badiou da
filosofia de Hegel.
Mas essa separação é válida somente na medida em que Hegel não admite uma vinculação mais
profunda entre as matemáticas e a subjetividade: diante da evidência trazida pela invenção
cantoriana, era preciso concluir que não havia nada no discurso matemático que o tornasse

27 Carl Friedrich Gauss, homem de um brilhantismo tal que o colocaria em larga vantagem numa disputa pela
honra de ser considerado o maior matemático do século XIX (sendo referido algumas vezes como “o príncipe dos
matemáticos"; Cf. NEWMAN, pág. 294), não por acaso nutria um certo desprezo pelos grandes nomes do
idealismo alemão. Em correspondência, ele certa vez disse a seu interlocutor: “Você vê esse mesmo tipo de coisa
[incompetência matemática] em filósofos contemporâneos como Schelling, Hegel, Nees von Essenbeck e seus
seguidores” (pág. 314). E o autor da Crítica da razão pura, que parece ter sido acolhido de maneira mais favorável
pela posteridade da filosofia das matemáticas, não despertava uma maior confiança em Gauss: ”Mesmo com o
próprio Kant isso não costuma ficar muito melhor; em minha opinião, sua distinção entre proposições analíticas
e sintéticas é uma dessas coisas que ou incorrem numa trivialidade ou são falsas” (pág. 314). O comentário de
Eric Temple Bell a respeito dessa passagem é preciso, por indicar que o matemático tinha as suas razões para
suspeitar de algumas limitações do idealismo alemão, ainda que isso não o eximisse de ser "indevidamente
desdenhoso": “Quando escreveu isso (1844), Gauss há muito se encontrava em completa posse de uma geometria
não-euclidiana, ela mesma uma refutação suficiente de algumas das coisas que Kant disse sobre [o] ’espaço’ e [a]
geometria, e ele talvez tenha sido indevidamente desdenhoso” (NEWMAN, pág. 314).

26
essencialmente avesso à infinitude do conceito. Em outras palavras, desmentindo Hegel, para
esses teóricos, fazia-se necessário estabelecer que a subjetividade descrita pelo filósofo alemão
de certa maneira havia sido reencontrada no infinito pensado pelas matemáticas.28 O que
suscita a impressão de que, a propósito desse tópico, é como se, para eles, fosse mandatário ser
mais hegeliano do que o próprio Hegel. 29 Ou seja, longe de anular a relevância da dialética
hegeliana, a tarefa que se impunha aos dois era a de encaminhar o seu impulso propriamente
racional por novas rotas. E, para tanto, mais do que desejável, tornava-se-lhes quase que
obrigatório evitar o monstruoso arrecife do sistema hegeliano, onde todo novo pensamento
parecia vir apenas para naufragar. Talvez seja esse, afinal, o sentido maior da prevenção de
Lacan contra a Aufhebung hegeliana: nessa recusa, existe um protesto contra a falsa
organicidade em que ela não raras vezes transmuta a contradição e a dialética. Não nos custa
lembrar, assim, que, em Lacan, não existe propriamente uma doutrina da natureza, ainda que
haja considerações pontuais sobre dinâmicas naturais (especialmente quando o registro
imaginário está concernido): antes, a totalidade da natureza cede lugar às disposições
conceituais resultantes de transformações intensivas operadas pelas ciências modernas (ou, no
caso específico da psicanálise, referem-se as descontinuidades formalizadas por aquilo que
Lacan chama de matemas). Ainda que Hegel tenha podido escrutinar a Natureza sob a
perspectiva da negatividade, evitando problemas que assombravam a concepção antropológica
de Kojève (e, consequentemente, que também assombravam as ideias de Lacan, pelo menos
numa determinada fase de seu ensino), existe um afã classificatório em seu pensamento que
acaba refluindo sobre o mundo empírico, como se a filosofia estivesse em posição de antecipar
como o ente natural, em sua efetividade própria, deveria aparecer para a razão. Para o
psicanalista, entretanto, não há nenhum movimento de ascensão do negativo que, desde as
determinações mais pobres e imediatas, incluídas as determinações exteriores e finitas da
natureza, pudesse ser apreendido conceitualmente como realização melhor acabada na
consciência de si e no saber absoluto: não é incidental, por exemplo, que lhe reste como questão
a suscetibilidade do corpo à ação simbólica da palavra. E, aliás, como psicanalista, essa
suscetibilidade nunca vem a ser teorizada diretamente, a somatização consistindo como que o
rés-do-chão de sua apreensão conceitual: como vimos, para Lacan, o corpo, enquanto é Um,
não é nunca visado como a totalidade orgânica de um indivíduo. Em Hegel e em Lacan, faz-se
percursos topológicos 30, mas não das mesmas coisas, ou não a propósito dos mesmos corpos.
Tal e qual, a abordagem que Badiou propõe do sujeito não é nem sistemática (no sentido de
perfazer uma totalidade que se quer absolutamente coerente e fechada) e nem pretende
desfrutar da desmesurada organicidade em que se compraz o conceito hegeliano. Em franca
oposição às incursões “naturais”, é importante que se diga que, caso o sintagma “corpo
político" conserve alguma relevância para o pensamento de Badiou, ele jamais será empregado
no sentido de um agregado de indivíduos considerados quanto a suas necessidades e limitações

28 Como pudemos apreciar um pouco mais detalhadamente através do comentário do pensamento de Jean
Cavaillès, as relações entre as matemáticas e a dialética devem ser compreendidas em sua subversão em pelo
menos dois sentidos. O primeiro, claro, é o que destacamos aqui, a saber, o de que as matemáticas sejam capazes
de conceituar o infinito. O segundo, menos óbvio, é de que o próprio movimento de desenvolvimento das
matemáticas possa ser pensado segundo uma dialética. Nas palavras de Slavoj Zizek: (ZIZEK, pág. ).
29 Cabe recorrer aqui às palavras muito precisas de Slavoj Zizek: ”Aqui (como alhures), e como é sempre o caso

em um desconhecimento [misrecognition] propriamente dialético, o que Hegel não vê não é simplesmente uma
dimensão totalmente além de seu alcance, mas a própria dimensão 'hegeliana' do fenômeno analisado” (ZIZEK,
pág. 457).
30 A afirmação pode soar exagerada no caso de Hegel. Mas Paulo Arantes dizia exatamente isso, num período

isento de qualquer influência de Lacan ou de Badiou (como o serão, aliás, todos os períodos de seu pensamento).

27
anatômico-fisiológicas31 (aspecto que o diferencia significativamente da tradição moderna da
ciência política que, com Thomas Hobbes, inaugura como que uma abordagem racional dos
afetos sociais e do exercício do poder que se deve aplicar a eles). Mas, mais importante,
comparativamente a Hegel, não existe em seu pensamento uma reflexão política que justifique
a existência positiva do direito, mesmo se a fazê-lo através da negatividade do conceito: como
Lacan - quem, deliberadamente ou não (isso pouco importa), evitava restabelecer o percurso
que leva das figuras da natureza ao eu como instância privilegiada da negatividade própria à
subjetividade -, Badiou também evita realizar a passagem que, desde o direito abstrato do
indivíduo como existência assegurada em suas relações com a propriedade, atravessa a família
e a sociedade civil em suas respectivas concretizações da eticidade, para alcançar, enfim, o
Estado como efetiva realização da liberdade humana.
Convém dizer, assim, que, até agora, tentamos sintetizar a démarche hegeliana do sujeito em
referência à acepção mais clássica do conceito, que é a de um subjectum. A partir de então,
deveremos nos demorar um pouco mais detidamente junto ao subjectus tal como o dá a ver a
dialética, a evidenciar, por exemplo, a maneira como Hegel, em radical contraste com Kant,
entendia ser adequado posicionar-se diante do acontecimento crucial de sua época, que foi a
Revolução Francesa. O que é muito oportuno porque, de certa forma, para o Badiou dos anos
1970 e 1980, as limitações subjetivas da filosofia hegeliana podem ser demonstradas a
propósito do subjectum na medida exata em que se apresentam primeiramente em sua
incapacidade de apreciar tanto a concretude histórica do subjectus como a sua abstração. E
temos aqui o motivo maior que permite compreender a singularidade de Badiou em relação a
Lacan: apesar de não perder de vista as muitas implicações políticas do ensino do psicanalista,
o filósofo parece ter se vinculado ao tema do sujeito por outras vias, que não lhes seriam de
todo estranhas, mas que restam incompreensíveis se não se atenta para a sua especificidade
(vias que, logo mais, nós tentaremos indicar). E, nessa seara - que, por enquanto, é onde eles
parecem encontrar-se mais próximos um do outro - trata-se, na verdade, como veremos logo
mais, do lugar onde eles deverão mostrar-se irredutivelmente distantes.
Como indicado mais de uma vez, a dialética do senhor e do escravo comporta uma interpretação
política, providenciando-se, assim, uma via de acesso à compreensão hegeliana do subjectus.
E, através dessa interpretação, ela pode ser dita lembrar, ainda que muito vagamente, aquilo o
que o Badiou dos anos 1970 chamava de invariantes comunistas: em nosso imaginário, o
escravo hegeliano (ou aquilo que se traduz como tal) pode muito bem assumir o porte de um
Spartacus; ou seja, ele se presta a ser representado como uma personagem que, a despeito de

31Isso não quer dizer, contudo, que a dimensão do indivíduo simplesmente não exista para Badiou. Quer dizer,
antes, que, para ele, essa dimensão não está dotada da virtude de fazer política (ou, para nos adequarmos ao
vocabulário de sua filosofia "madura", o indivíduo não é o lugar de nenhuma verdade). Uma tal distinção ainda
pode ser verificada em suas obras tardias. Em Logiques des mondes, por exemplo, a ideia de corpo não tem jamais
um sentido orgânico, mas, isso sim, uma acepção axiomática. Como explica então o próprio Badiou: “A mais
significativa divisa de Logiques des mondes é certamente a de produzir uma nova definição dos corpos,
entendidos como corpos-de-verdade, ou [como] corpos subjetiváveis“ (BADIOU, pág. 44, grifo do autor); No
entanto, a sua compreensão, como entrevisto acima, não é a de os indivíduos absolutamente não existam. E, na
entrevista que o filósofo concedeu a Peter Engelmann, intitulada , ele é bastante claro quanto à impossibilidade
de apagar o registro da individualidade. É por isso que Badiou diz, ainda na supracitada entrevista: "(...) eu
desconfio da fórmula 'o indivíduo se torna sujeito’. Eu prefiro dizer ‘o indivíduo se incorpora a um sujeito'"
(BADIOU, pág. 29). Se o indivíduo pudesse simplesmente se tornar sujeito, transfigurando totalmente a sua
constituição mais íntima e fazendo-se, assim, homogêneo ao infinito, não haveria nenhuma dificuldade em
corresponder àquilo o que uma verdade dele exige, pois, por meio dessa transfiguração, ele agora seria uma
espécie de divindade. Um sujeito, entretanto, se revela quando, em face de uma verdade, há a laboriosa construção
de uma fidelidade, ou seja, quando há um esforço reiterado e continuado para efetivamente conceder a ela um
lugar no mundo.

28
encontrar-se alienada de sua liberdade, contradiz ativamente a sua situação, fazendo, assim,
com que a história se movimente em direção à efetivação da universalidade. Em larga medida,
isso se deve à dinâmica dessa dialética, a qual confere um papel fundamental à parte
subordinada: ainda que por um breve período, o escravo (ou, na verdade, o servo) é entendido
ser o portador da verdade, na medida em que se transforma na parte ativa da dialética que faz
inverter as respectivas determinações (quais sejam, as de senhor e de escravo) e as conduz a
uma nova etapa. De toda forma, contrariando a lógica dos invariantes comunistas, a essa
dialética faltaria um elemento absolutamente imprescindível: a revolta (que, lembre-se, ao
contrário da vontade do escravo de preservar a si mesmo que o condiciona à sua posição, trata-
se de uma forma de se expor à morte). E, dessa perspectiva, poderíamos concluir que Badiou,
tanto quanto Lacan, acabava tendo de desconfiar da pertinência do sistema hegeliano no que
diz respeito à sua capacidade de expor conceitualmente as novidades históricas que emergem
no campo da política. Proceder dessa maneira, no entanto, seria equivocado, para dizer o
mínimo. Isso porque a dialética do senhor e do escravo de maneira alguma pode ser entendida
encerrar o essencial da filosofia hegeliana em seus desdobramentos políticos. Ela não diz quase
nada, por exemplo, do posicionamento de Hegel em face do acontecimento histórico da
Revolução Francesa: assim, como essa dialética poderia ser suficiente para indicar as
limitações subjetivas de uma tal filosofia se ela obviamente encontra-se em falta para com o
próprio capítulo histórico que redimensiona o subjectus? Mirando como que as discrepâncias
que fazem com que Hegel e Badiou não possam ser vistos coincidir em suas respectivas
concepções de subjetividade, é mais do que razoável que tentemos estimar a que distância o
filósofo alemão pode ser localizado da tradição política igualitária que ganha um novo impulso
com a Revolução Francesa (como se sabe, tradição em que Badiou se insere muito
decididamente).
Quanto ao aspecto em particular sobre o qual nos debruçamos, nós poderíamos antecipar sem
maiores rodeios a razão da discordância fundamental entre Badiou e o filósofo alemão e, dessa
forma, declarar muito prontamente: Hegel não era um pensador revolucionário. Contudo, essa
antecipação, ainda que em sua essência não esteja incorreta, seria muito apressada. De fato,
nunca haverá uma ocasião em que Hegel se aplique a pensar uma estratégia revolucionária para
a derrubada do poder instituído, assim como tampouco existirá a circunstância de ele
recomendar as revoluções como uma solução prática para os problemas políticos enfrentados
por quaisquer sejam os povos (em especial, o alemão). O que não quer dizer, porém, que, em
sua apreciação conceitual da história política, os episódios revolucionários sejam entendidos
como eventualidades completamente desprovidas de razão. Muito pelo contrário, quando fala
da razão na história, o filósofo costuma lhes dar acolhida sumamente favorável. E ele o faz de
tal maneira, com tamanha constância e método, que pôde mesmo suscitar este juízo enfático
de autoria de Domenico Losurdo: “(...) não existe revolução na história da humanidade que não
tenha sido apoiada e celebrada por esse filósofo que também tem fama de ser um incurável
homem da ordem” (LOSURDO, pág. 155). Não se pode ignorar, é bem verdade, que tanto o
juízo quanto o livro em que Losurdo o emite dão a entender que o autor carregou nas tintas,
pintando Hegel indevidamente, como se se tratasse de nada mais que um precursor do
materialismo histórico. Mas a verdade é que Hegel estava dotado de uma sensibilidade muito
aguda para questões desse gênero, tendo se pronunciado sobre eventos históricos os mais
diversos, sempre a captar quanto a eles a dimensão das forças sociais em ação. De sorte que,
se não com Losurdo, haveria ainda a possibilidade de nos fazermos acompanhar por Stathis
Kouvelakis:

29
O mínimo que se pode dizer (...) é que Hegel mostra entender a
dimensão social da revolução, e que ele apreende sua importância
inerente, assim como sua dinâmica de classes. De fato, o mesmo vale
para a sua posição diante de todos os levantes populares que pontuam
a história, contrapondo os plebeus aos patrícios na Roma antiga, os
camponeses suíços ou alemães aos aristocratas ou reis estrangeiros, ou
os artesãos holandeses à monarquia espanhola. (KOUVELAKIS)

E, quanto ao caso específico da Revolução Francesa, seria inadmissível desconsiderar a sua


importância, inclusive formativa, para a filosofia hegeliana. Assim, imbuídos do desejo de
eliminar qualquer viés em nossa argumentação, ainda que estivéssemos inclinados a nos
dispensar da companhia de Losurdo e de Kouvelakis, poderíamos convocar Joachim Ritter,
que não demonstra nenhum grande interesse em localizar Hegel em relação à tradição marxista
(ainda que nada faça para se opor a essa localização). Com Rietter, ainda poderíamos dizer que,
para Hegel,
a Revolução Francesa é aquele evento em torno do qual todas as
determinações da filosofia em relação a seu tempo encontram-se
aglomeradas, com a filosofia a marcar o problema através de ataques e
defesas à Revolução. Reciprocamente, não há outra filosofia que seja
uma filosofia da Revolução no mesmo grau e com a mesma
profundidade, em sua mais íntima pulsão, que a de Hegel. (RITTER,
pág. 43).

Sendo consequentes com nossa exposição, somos levados a pontuar que não é totalmente
original uma tal celebração desse episódio revolucionário em sua importância para a
modernidade: como mostrado há pouco, Kant já havia restabelecido alguma razão à apreciação
do acontecimento histórico da Revolução Francesa. Mais precisamente, no que diz respeito a
ela, poderíamos declarar que, para Kant, o devido exercício da razão implicava em enxergá-la
como um acontecimento de consequências importantíssimas para o progresso da humanidade.
Mas, sem provocar grandes surpresas, ele o fazia evitando transgredir os limites de sua
consideração subjetiva, como trata de assinalar Foucault: a Revolução Francesa, em si mesma,
não era tida pelo filósofo como um acontecimento propriamente racional. Em vez disso, ela
não seria mais que um signo, ou bem uma ocasião extrínseca, totalmente contingente, mesmo
que extraordinária, para que os sujeitos capazes de servir-se de seu entendimento sem a direção
de outrem pudessem pensar certos problemas e, assim, contribuir para que a humanidade
estivesse melhor preparada em seu questionamento sobre o significado da liberdade política. 32
Como o diz Foucault: “O importante na Revolução, portanto, não é a própria Revolução, que,
de todo modo, é um desperdício, mas o que acontece na cabeça dos que não fazem a Revolução,
ou em todo caso que não são seus atores principais” (FOUCAULT, pág. 19). Com Kant, por
conseguinte, a Revolução assume as dimensões de um enorme espetáculo, em si mesmo
desproporcional e repleto de irracionalidade, mas que tem pelo menos a virtude de chamar a
atenção de quem verdadeiramente interessa, ao colocar um problema legítimo para os que
fazem uso da razão. Por seu turno, Hegel encontrará nesse posicionamento mais uma ocasião
para explicitar as inconveniências de uma filosofia que tem de se restringir a conceber o sujeito
como um mero espectador do mundo: dessa maneira, a disposição crítica se prontificava, da
forma a mais contraditória, a desconhecer sobejamente a força de que o sujeito estaria investido
em sua capacidade de afetar a própria objetividade. Antes de indicarmos mais precisamente as

32E é só assim que a universalidade se perfaz: “Em que momento nós nos constituímos como sujeito universal? Pois
bem, quando, como sujeito racional, nós nos dirigimos ao conjunto dos seres racionais” (FOUCAULT, pág. 35).

30
limitações subjetivas de Hegel, aproveitemos, pois, uma última oportunidade para enfatizar
como foi decisivo o legado dialético de uma subjetividade que nunca deixa de aspirar à
concretude.
A compreensão hegeliana da subjetividade, que se quer liberta da rigidez kantiana, mira, assim,
a esfera prática da ética, a contestar qualquer separação estrita entre moralidade e legalidade:
ela não saberia contentar-se em circunscrever o espaço da razão prática com a só medida do
compasso individual de um sujeito, ainda que se trate de conceber esse sujeito sob a forma de
uma generalidade que supostamente o tornaria apto a agir enquanto personagem
universalmente reconhecível na razoabilidade de suas ações. De acordo com Hegel, não há
porquê e nem como sustentar uma razão tão débil que não possa laborar no mundo a lei de sua
ação: em outras palavras, não existe nenhuma razão a partir da qual manter uma separação
intransponível entre a moralidade e a legalidade, ou entre a convicção mais íntima do sujeito e
a efetivação concreta de sua ação no mundo. Devemos insistir, pois, que essa outra
compreensão estabelece para a subjetividade a força de vincar o mundo na concretude de suas
realizações. A seguinte definição de Rocío Zambrana, com sua enumeração de alguns dos
avatares possíveis para essas realizações, assinala precisamente a pertinência da concepção de
uma subjetividade que é racional na própria medida em que é capaz de atualizar a si mesma:
“Coisas, eventos, ideias e instituições podem ser ditas formas de subjetividade, uma vez que a
racionalidade que elas expressam é o resultado de sua própria atualização” (ZAMBRANA,
pág. 363). Partindo de uma concepção de subjetividade que reivindica a concretude e a virtude
de atualizar a si mesma, não chega a ser tão surpreendente, assim, que em sua crítica à
moralidade kantiana um dos argumentos de Hegel consista em discernir nesta um déficit de
subjetividade. Como explica Sally S. Sedgwick:
nessa sua interpretação [isto é, de Kant por Hegel], seguia-se que Kant
encontrava-se em falta, não por falhar em formular cuidadosamente o
conteúdo do imperativo categórico e, então, sua completa especificação
na forma de uma doutrina dos deveres, mas por presumir que qualquer
especificação [dessa natureza] poderia ser levada a efeito
objetivamente. (SEDGWICK, 1988, pág. 90)

O formalismo vazio dessa moralidade não estaria dissociado da falta de objetividade de sua
ética: é porque se pretende como delimitação estrita da razão prática em sua atuação
exclusivamente individual que a moralidade kantiana estaria defasada tanto em seu aspecto
subjetivo como em seu aspecto objetivo. Ansiando realizar-se como atividade individual de um
sujeito que adota uma máxima tal que a sua ação devesse como que se tornar, por sua vontade,
uma lei universal, essa concepção “psicológica" não é suficientemente subjetiva porque o seu
campo de atuação estaria fundado sobre um desconhecimento constitutivo da singularidade da
situação com que a razão prática deveria confrontar-se: confina-se, pois, o próprio subjetcum
de sua matéria à pura inércia. Em sua pressuposição de que haveria uma espécie de protocolo
único, completo em suas prescrições, a fornecer, dessa maneira, como que o espaço total da
modalidade de ação moral do sujeito em relação aos outros seres racionais, não é tanto o seu
formalismo que incomoda Hegel (Cf. KERVÉGAN, pág. 291), característica que, mal ou bem,
demonstra haver aí uma vontade de fazer valer a universalidade do pensamento; antes, o que o
incomoda é a qualidade desse formalismo, posto ele conduzir a um imperativo desprovido de
qualquer mobilidade ou capacidade de atualizar-se: tem-se, por assim dizer, um formalismo
estacionário, atemporal, estanque, que, dessa maneira, em vez de revelar a sua validade
irrestrita, através do confronto efetivo com as particularidades (e eventuais singularidades) sob

31
as quais a moralidade aparece no mundo, indica faltar-lhe a negatividade que lhe permitiria
escandir-se como processo e como história.
Ou seja, o ponto de Hegel não é o de que fosse necessário substituir a moralidade kantiana por
uma casuística qualquer, o que decerto teria como sua consequência necessária somente a
rendição do pensamento ao mais confuso emaranhado de particularidades, a razão a encontrar-
se então inevitavelmente perdida em meio à infinitude de contingências com que o sujeito
moral viria a ser confrontado quando instado a agir. Em vez disso, o problema consiste em que,
admitida a existência de um ato moral com um alcance que tende à universalidade, ele nada
conseguisse afetar à matéria mesma sobre a qual deveria incidir. O solipsismo que assombra
uma moralidade dessa espécie não tarda a se apresentar: sem prestar contas ao mundo, ela
encerra-se em si mesma, dando margem a que a sua lei não desfrute de nenhuma validade a
não ser quando referida ao sujeito que a toma como diretriz de sua ação. Segundo advertia
Hegel, uma tal lei moral já não saberia distinguir o bem do mal. Isso porque a tentativa de
formalização que a anima não passaria de uma miragem, uma vez que a sua inescapável
dependência em relação a uma instância individual faria com que a moralidade kantiana se
arriscasse a recair em nada mais que numa casuística: mantendo uma irredutível estranheza
entre as regras a guiar o ato moral e os fatos empíricos que providenciariam a sua ocasião, ela
não teria outro lugar onde se amparar senão na convicção do sujeito que ousa transpor essa
distância, circunstância que acabaria por oferecê-lo desarmado às particularidades que
poderiam ser alegadas determinar essa convicção. Deveria tratar-se, pois, na filosofia kantiana,
de um sujeito que só é capaz de assegurar a si mesmo a validade de sua ação quanto mais
alheado ele se encontra (ou quanto mais alheado ele acredita se encontrar) da circunstância em
que é chamado a intervir – mas que, assim, estaria impossibilitado de ver que após a sua ação,
mesmo que ele não tenha conseguido efetuar esse distanciamento, nem por isso lhe seria mais
difícil fabricar a impressão de que o seu ato pôde satisfazer as imperiosas exigências da razão
(o que, aliás, não representa nenhum problema para Kant). Visando ultrapassar essas
contradições, por sua vez, Hegel não deixa de interrogar a moralidade em sua jurisdição
conceitual, mas o faz num contexto muito mais amplo, em que ela é situada relativamente à
concretude da liberdade humana. O que quer dizer que, em contraste com Kant, a moralidade
reencontra a esfera da política como horizonte de sua efetiva atualização. E com isso prepara-
se o seguinte juízo de Kouvelakis, a matizar as diferenças entre Kant e Hegel no que diz respeito
à recepção filosófica da Revolução Francesa:
Assim, a crítica de Hegel põe à prova o que pode ser designado como
a ilusão política kantiana de uma consciência espectadora, a qual,
supostamente, se coloca de fora de um processo que afeta somente sua
disposição interior – uma ilusão que é co-extensiva à disjunção radical
que essa consciência estabelece entre liberdade e causalidade (a
revolução é um signo, mas não uma causa do progresso).
(KOUVELAKIS)

Nós entramos agora no âmbito da teorização empreendida por Hegel em sua inovadora
Filosofia do direito. Vê-se bem que esse passo segue-se a todo um longo percurso em que o
sujeito mobilizado pela filosofia crítica podia apresentar-se em sua disponibilidade para
assumir um posicionamento com um significado propriamente político. Mas, justamente
porque Kant descobria essa aptidão política para o sujeito, ele será reprovado pela inaptidão
com que ensaia depreender aquelas que seriam as suas consequências teóricas e práticas. Isso
porque a sua concepção de subjetividade deparava um limite que seria da ordem do
impraticável, ou que demandaria urgentemente a instituição de uma nova prática, a incidir tanto

32
do lado do sujeito como do cidadão. Pelo menos é isso o que seria necessário concluir se
aceitamos o diagnóstico de Hegel, o qual possibilita uma abordagem consideravelmente
distinta das relações entre razão e prática moral, a conferir-lhes um alcance que, aos olhos de
Kant, aparentava transgredir qualquer limite aceitável quanto ao correto exercício do
pensamento. Não pode ser indiferente, portanto, que, de maneira notória – sobretudo se
adotamos mais firmemente o ponto de vista “assistemático" de Lacan e de Badiou –, a Filosofia
do direito de Hegel tenha ganhado a fama de ser como que um dos lugares onde a organicidade
de seu sistema se torna mais problemática. A bem conhecida frase enunciada em sua
introdução, que propõe uma escandalosa convertibilidade entre o real e o racional (ou, mais
precisamente, entre wirklich e vernünftig), seria a medida perfeita da megalomania que
acabaria por tornar essa filosofia totalmente disfuncional (isto é, precisamente enquanto ela
acreditasse abarcar a totalidade da existência). O problema, no entanto, é que, mesmo que essa
obra possa ser considerada fornecer as evidências que constituiriam como que a base material
do caso que Badiou deverá mover contra o filósofo alemão, ela não incorre exatamente no erro
de emprestar razão até mesmo àquelas coisas que mais obviamente estariam dela destituídas:
para Hegel, a Wirklichkeit, melhor traduzida como efetividade, não coincide de maneira alguma
com a Realität, que é a realidade propriamente dita (o que, a propósito, é esclarecido por Hegel
ele mesmo na introdução de Filosofia do direito). Como sabemos desde o breve comentário
realizado neste trabalho sobre a doutrina hegeliana do tempo (Cf. capítulo), essa filosofia não
chega a cometer o absurdo de justificar cada ocorrência insignificante da história como se
dotada plenamente de sentido pela marcha triunfante do espírito: o sistema hegeliano nunca se
propôs a desaparecer com o aspecto inescapavelmente contingente da passagem temporal,
senão que ele a percebe exatamente em sua dimensão de desaparição. Disso se segue que não
é toda circunstância histórica a que podem ser atribuídas a efetividade e a racionalidade de um
verdadeiro acontecimento. Como a temporalidade do conceito não é idêntica à temporalidade
mundana, ocorre de os acontecimentos serem relativamente raros, o que lhes dá um ritmo
completamente outro, porque compassado com a eternidade do espírito: “mil anos são para ti
como um dia que passa,” diz Hegel (citando uma passagem bíblica), na Introdução à história
da filosofia, a propósito do espírito mundial e de sua caminhada lenta, paciente e resoluta.
A impossibilidade de sobrepor o tempo do conceito e o tempo do mundo nos é muito útil nesse
contexto porque ela ajuda a entender que, ao contrário do que propagou uma certa lenda,
bastante difundida entre os seus críticos, Hegel de maneira alguma poderia ser considerado o
“filósofo do Estado prussiano” (Cf. KERVEGAN, pág. ; Cf. também HEINRICH, 2018, pág.
188). A não ser por má fé, a sua filosofia nunca poderia ser reduzida a um elogio estúpido da
realidade existente, como se ela estivesse sumamente preocupada em deduzir e, assim,
justificar o atual estado de coisas a que foi conduzido o mundo.33 A formulação segundo a qual

33Como veremos no prosseguimento deste capítulo, a crítica a Hegel como um pensador que teria acabado por
justificar o estado de coisas em que se encontrava o seu mundo tem uma relevância inegável, sobretudo a partir
de Marx. Mas, quanto a isso, não se pode negligenciar a natureza dialética desse aspecto ”positivo“ da filosofia
hegeliana, que é o da tentativa de mapear as forças e os movimentos presentes no mundo moderno que abririam
para a universalidade, e que, por sua relação com a dialética, não coincidem de forma alguma com a totalidade de
práticas correntes em seu século (por onde se pode ver que Hegel está de fato concernido pela reconstituição que
Foucault realizou a propósito da filosofia kantiana e de sua aptidão para discriminar a atualidade de seu tempo,
mas que ele se insere aí de maneira tal que faz valer uma diferença mínima, em que a positividade só se alcança
por meio da negatividade, isto é, em que a finitude das práticas existentes pode ser criticada segundo o critério
imanente de uma infinitude que faz com que elas venham a ser ultrapassadas por elas mesmas em direção a uma
reconciliação ulterior). Ou seja, trata-se do que Kervégan chama de ”vitalidade mesma do conceito”, designando-
se assim a virtude do conceito de fazer com que o homem experimente uma nova vida. Tendo em vista a maneira
como Hegel se apropria do liberalismo econômico (apropriação que se dá pela oposição que este permite à
organização do mundo antigo quando concebe o mercado como mediador das necessidades humanas), ao mesmo

33
o Estado é a realização efetiva da liberdade humana, ainda que deva soar muito estranha para
um leitor do século XXI (isto é, um leitor muito provavelmente ciente das experiências
catastróficas dos chamados "estados totalitários", que pareciam aspirar justamente a uma
realidade tal em que o Estado efetivamente desfrutasse de uma espécie de estatuto ideal), não
deve ser interpretada como se a conferir legitimidade absoluta a todo e qualquer estado
existente. Ou pelo menos não de maneira proposital: o intento da Filosofia do direito nada tem
que ver com a tarefa inglória de provar que toda revolta confina com a injustiça e, portanto,
que a sua emergência deve ser sufocada e expurgada com o aval inequívoco da razão. Não
custa recordar que, como visto há pouco, Hegel estava longe de ser alguém que se limitasse a
nutrir desprezo pelos levantes populares. Ao contrário, sendo-lhes de alguma maneira
favorável, ele era perfeitamente capaz de reconhecer as injustiças perpetradas pelo Estado sob
as suas mais diversas formas, quer as características do ancien régime, quer as que pululam
numa Europa pós-revolucionária que era essencialmente convulsiva porque assombrada pelos
fantasmas da utopia democrática e da restauração monárquica. Certamente, por dar voz a um
pensamento tão adstrito ao tema da universalidade, às vezes a sua filosofia causa a impressão
de contentar-se com um tolo elogio da história como processo inexorável de revelação da
verdade, processo em que o indivíduo perderia completamente a sua vez. É o que sugere, por
exemplo, o parágrafo final do prefácio à Fenomenologia do espírito:
Vivemos aliás numa época em que a universalidade do espírito está
fortemente consolidada, e a singularidade, como convém, tornou-se
tanto mais insignificante; em que a universalidade se aferra a toda sua
extensão e riqueza acumulada e as reivindica para si. A parte que cabe
ao indivíduo na obra total do espírito só pode ser mínima. Assim ele
deve esquecer-se, como já o implica a natureza da ciência. Na verdade,
o indivíduo deve vir-a-ser, e também deve fazer, o que lhe for possível,
mas não se deve exigir muito dele, já que muito pouco pode esperar de
si e reclamar para si mesmo. (HEGEL, pág. 70)

Desde essa visão como que sinóptica do espírito, seríamos levados a acreditar que a filosofia
hegeliana não pode senão tornar-se míope para a individualidade dos cidadãos. Mas existem
contrapontos que podem lançar uma outra luz sobre a natureza das relações entre Estado e
indivíduo em Hegel, como, por exemplo, o seguinte parágrafo da Filosofia do direito:
“Frequentemente se disse que o fim do Estado é a felicidade dos cidadãos e isso é certamente
verdadeiro: se eles não se sentem bem, se o seu fim subjetivo não é satisfeito, se não acham
que o Estado como tal é a mediação dessa satisfação, o Estado repousa sobre bases frágeis”
(HEGEL, pág. 41). Como se pode ver muito claramente, na perspectiva de Hegel, o Estado só
logra superar a sua instabilidade se puder mediar a contento a satisfação individual de seus
cidadãos: com certeza, o Estado não tem a função prioritária de satisfazer as vontades deste ou
daquele indivíduo, o que não significa, entretanto, que, por mirar o universal, ele disponha de
um salvo-conduto para desrespeitar os cidadãos em seus direitos individuais; mais do que isso,
como mostra a passagem citada acima, ele tem a obrigação de concorrer para a satisfação de
suas expectativas subjetivas. De sorte que a filosofia hegeliana do direito não deve ser

tempo em que critica e ensaia ultrapassar essa corrente de pensamento, Pierre Rosanvallon pode dizer do filósofo
alemão: “Para ele, não é mais questão simplesmente de criticar o mundo antigo; ele quer tornar o mundo moderno
vivível“ (ROSANVALLON, pág. 172). O que significa que, mesmo tendo aceito o mercado como mediador
indispensável das necessidades humanas, Hegel entende que essa instância não é suficiente para organizar as
relações sociais, e que é preciso conduzir a política por outros meios: ou se vai além do mercado (ainda que através
dele), ou a modernidade não conseguirá sustentar a si mesma, sendo incapaz, portanto, de fazer viver na
universalidade do conceito.

34
confundida com uma recomendação pobre e abstrata de obediência à potência incontestável do
Estado moderno.
A compreensão inovadora que comporta a Filosofia do direito a respeito do estatuto conceitual
da política abre uma fresta para que entendamos um pouco melhor as complexas relações entre
Hegel e Kant. Como indicado acima, o pensamento de Hegel não se quer apenas como uma
crítica à filosofia do sujeito, mas como a sua efetiva atualização. Isto é, ele não opõe à
individualidade do sujeito transcendental uma qualquer universalidade genérica que, pela
suposta prerrogativa que lhe garantiria uma verdade eterna e transcendente, fosse instituída em
completa indiferença às demandas do exercício da crítica. A denominação proposta por Karl
Popper, de um “inimigo da sociedade aberta”, quando referida a Hegel, não funciona senão
como uma triste caricatura: isso porque, sob qualquer ângulo que se queira apreciar a questão,
seria bastante questionável negar o fato de que a sua filosofia nasce justamente em
reconhecimento da importância crucial ou relativa das várias modalidades subjetivas que
consolidaram o arcabouço moderno da crítica, desde a contestação dos dogmas religiosos,
passando pela instituição da ciência moderna e pela radicalização romântica da valoração
estética, até alcançar as reivindicações do cidadão liberal. Em termos estritamente políticos,
esse reconhecimento pode ser identificado numa das transições mais significativas que o
pensamento de Hegel experimenta em seu amadurecimento: trata-se, pois, da transição em que
se substitui o ideal de eticidade da antiguidade clássica, entusiasticamente acalentado em seus
escritos de juventude, pela indispensabilidade da sociedade civil como uma realidade
conceitual sem a qual a liberdade moderna não poderia jamais aflorar (para o que, diga-se de
passagem, contribuiu enormemente a leitura que o filósofo realizou dos grandes autores da
economia política britânica). 34
Se quiséssemos pensar o problema em termos mais ou menos alegóricos, nos conviria até
mesmo o caso de Sócrates, que, sendo a personificação do pensar filosófico a entrar em violenta
colisão com a autoridade do antigo direito ático, talvez correspondesse melhor ao período em
que Hegel mirava a pólis grega como paradigma da liberdade política. Decerto, se apreciamos
a questão através do prisma hegeliano, concluiremos que Sócrates só pôde cumprir o seu
destino ao aceitar a punição que lhe foi decretada injustamente pela cidade de Atenas: o que
quer dizer que, quando se dedica a explicar a importância histórica do firme posicionamento
moral do criador da maiêutica, ao reconhecer alguma legitimidade ao Estado em seu poder de
estabelecer o que possui validade no próprio campo da ética, a filosofia hegeliana poderia ser
interpretada como se estivesse autorizando a eliminação do indivíduo em favor do universal,
ou mesmo como se ela permanecesse irredutivelmente cega para a circunstância em que, sendo
injustos as leis ou os costumes aceitos por todos os cidadãos, o indivíduo que lhes move
oposição é que deveria ser reconhecido como portador da justiça. Mas a referida colisão entre
particular e universal não acontece sem que o próprio exemplo dado por Sócrates, que o eleva
à categoria de welthistorische Person [“pessoa da história mundial”] (Cf. HEGEL, pág. 441),
transforme significativamente a noção de justiça da pólis, pavimentando um novo caminho
para a universalidade por meio de uma singularidade. De outra maneira, com esse caso, torna-
se evidente que a consideração hegeliana da moralidade não visa constranger o sujeito a trair a

34A apropriação hegeliana da economia política britânica é de tal maneira importante e de tal maneira competente
que ela inaugura quase que um capítulo à parte da história da filosofia. Não é por acaso que Pierre Rosanvallon,
em seu Le libéralisme économique - historie de l'idéé de marché [O liberalismo econômico - história da ideia de
mercado], dedica todo uma seção a Hegel, chegando mesmo a declarar o seguinte: ”A filosofia hegeliana pode
também ser entendida como um trabalho sobre a economia política inglesa. Ele é um dos únicos filósofos, senão
o único, a compreender-lhe o verdadeiro alcance” (ROSANVALLON, pág. 167).

35
sua própria consciência e a manter-se calado em face das arbitrariedades do Estado. É bem
verdade que Sócrates ainda localiza-se dentro das coordenadas da eticidade clássica, posto que
ele tenha aceito de bom grado a sua morte como consequência de ter desrespeitado a lei da
pólis. No entanto, longe de conceder legitimidade irrestrita a essa autoridade, o fato de que
Sócrates tenha sucumbido diante dela explicita a necessidade da criação de novos parâmetros
a partir dos quais restituir-lhe alguma validade. Superando a unilateralidade da filosofia crítica,
tem-se, assim, um jogo dialético de pressuposições e atualizações que afetam tanto o sujeito
como o objeto: o Estado ainda não é verdadeiro se não é capaz de acolher efetivamente o tipo
de empresa reflexiva levada a cabo por Sócrates (que, por sua vez, de certa maneira, só foi
possível porque havia um Estado em Atenas); e, de sua parte, Sócrates não pode ainda alçar-se
à categoria de um universal se a liberdade de sua indagação filosófica, sendo de início restrita
a um indivíduo, não penetra a própria matéria ética do convívio humano. Como o diz muito
bem Kervégan: “A adesão não coagida do sujeito é pressuposta pela ação a clamar atualidade
e racionalidade; ao mesmo tempo, se alguém fosse limitar a si mesmo ao ponto de vista de um
dever abstrato, a subjetividade não seria alcançada em sua completa concretude, a qual é
política” (KERVÉGAN, pág. 328).
Colocando-nos a trabalhar momentaneamente num registro em que prevaleceria ainda a
oposição estanque entre individualidade e universalidade, seria possível entender que a
vinculação de Hegel ao episódio histórico da Revolução Francesa o torna cúmplice da violência
das massas e do terror promovido pelo Estado na sequência de seus acontecimentos,
indispondo-o, portanto, à instituição de uma rule of law que de fato merecesse o seu nome. De
acordo com essa compreensão, mesmo que indiretamente, Hegel seria ainda um inimigo da
sociedade aberta, por transigir com o obscurantismo e com o autoritarismo de um Estado que
não se dá a ver completamente em suas leis. Nesse sentido, a oposição entre individualidade e
universalidade poderia traduzir-se como oposição entre direito civil e direito constitucional,
aproveitando-se, então, para designar como seus respectivos porta-vozes Kant e Hegel. E, a
bem da verdade, na seguinte passagem de seu livro, Kouvelakis parece respaldar essa leitura:
“Então, ele [Hegel] rejeita esse tipo de visão liberal – especialmente a de Kant – que subordina
a lei constitucional à lei civil – ela mesma definida intrinsecamente em termos de
individualismo proprietário – e trata a segunda como objetivo último da primeira”
(KOUVELAKIS). Mas, sem negar o papel preponderante que desempenham na modernidade
a instituição do direito civil e mesmo o individualismo proprietário, se Hegel rejeita uma visão
estritamente liberal, inclinada a entender a função do Estado basicamente como a de preservar
os homens “da fraude e da violência mútuas” (Cf., por exemplo, LOCKE, pág. 168), ele o faz
por dois motivos em especial.
O primeiro deles é o de que, historicamente, a confrontação dos interesses de certos indivíduos
com o arbítrio do Estado nem sempre esteve alinhada à efetivação da universalidade do
direito35, muitas vezes servindo tão somente à manutenção de seus privilégios, sobretudo
quanto à disposição mesma da propriedade privada (e, apesar de exagerar quanto ao lugar de

35 Convém ter presente que, de acordo com Rosanvallon, existe uma tendência do liberalismo de rejeitar o
pensamento de Maquiavel. Ora, é Maquiavel quem mostra como, para governar, o príncipe depende, não da
aristocracia, mas do povo. Por vias indiretas, o monarca às vezes . Como explica Losurdo, em contraste com a
tradição liberal, para Hegel “(...) o progresso também pode ser representado pelo príncipe” (LOSURDO, pág.
157). Ironicamente, o que parece admitir uma relativa precisão na leitura que Losurdo faz de Hegel (relativa,
dizemos, porque ignora a tentativa do filósofo alemão de conservar o momento de verdade do liberalismo), o
conduz a flertar com o estalinismo, quando o teórico se põe a ignorar a componente marxista de crítica da forma-
Estado, que não é apenas crítica ao estado burguês.

36
Hegel na antecipação do materialismo histórico, Losurdo percebe isso muito bem ao comparar
criteriosamente as interpretações da história política feitas por Hegel com aquelas realizadas
pelos principais nomes do liberalismo). Ou seja, a propriedade privada, que, no enquadre da
teorização hegeliana, pode ser entendida concretizar-se em sua forma abstrata no direito
romano, não deteria a força de estender os domínios de nenhuma rule of law, nem mesmo a de
sua lei, a não ser por meios sumamente violentos e contrários a qualquer dignidade humana
que se pretendesse assegurar com o próprio direito (o que pode ser observado na Roma antiga,
onde se institui o direito à propriedade ao mesmo tempo em que se admite que o próprio homem
figure como uma propriedade quase que completamente desprovida de direitos 36). Em suma, o
que isso quer dizer é que não há a possibilidade de o direito à propriedade assumir a sua
conformação verdadeira (isto é, quando finalmente se encontra dotado da capacidade de
acolher o mais perfeitamente possível a universalidade) se não houver um horizonte em que
ele ultrapasse as suas determinações imediatamente particulares, tais como as de classe, fé,
nacionalidade etc. 37 Esse primeiro motivo não diz respeito tanto aos preceitos do liberalismo –
os quais, sob algumas de suas formulações mais rigorosas, propõem muito enfaticamente a
tolerância como um princípio maior a orientar o governo –, mas concerne, isso sim, à sua
incapacidade de situar-se historicamente.

36 Faz-se imprescindível observarmos, no entanto, que essa não é uma condição própria do mundo antigo, e nem
mesmo uma condição que reproduza categorias políticas que lhes seriam exclusivas, dado que a escravidão no
Atlântico inicia um capítulo inédito de sequestro e de seres humanos que , em grande parte motivados pela
lucratividade dos negócios a que . Com muito bom senso, Alfredo Bosi, em sua breve resenha do livro de Losurdo,
avalia a possível contribuição de José Carlos Maritátegui a uma tal empreitada crítica, posto que este houvesse
desvendado “(...) a estreita relação entre a política liberal-oligárquica, que regia o Peru após a Independência, e a
brutal exploração do índio nos latifúndios da região serrana” (BOSI, pág. 274). Essa correlação, , indica que o
nascimento da modernidade europeia tem na descoberta da América um de seus marcos decisivos, posto que em
toda a sua extensão ela é caracterizada pelo extermínio e sujeição dos povos indígenas e pelo emprego de trabalho
negro escravo. A posição de Hegel quanto à dominação dos povos não-europeus é ambivalente, como o é (et pour
cause) a sua relação com o liberalismo. Um ótimo contraponto à ideia de que a filosofia hegeliana nada mais seria
que uma defesa velada da empresa colonial europeia pode ser encontrado no impressionante livro de Susan Buck-
Morss, Hegel and Haiti. Mas esse contraponto não consegue absolver totalmente a filosofia hegeliana diante da
acusação de que ela só é capaz de tolerar a participação dos povos não-europeus na universalidade do espírito à
condição de eles se adequarem a padrões culturais que lhes seriam de tal maneira estranhos que lhes trariam
enorme violência (sem falar que não a absolve de maneira alguma quanto aos momentos em que Hegel justifica
e elogia a dominação de povos não-europeus por europeus, como ele de fato a propósito da dominação dos
indianos pelos britânicos). Nessa mesma linha de pensamento, existe uma elaboração discursiva, encontrada em
alguns dos maiores teóricos do liberalismo (podendo-se citar, entre os seus exemplares mais sofisticados, Alexis
de Tocqueville e John Stuart Mill), que entende como necessária a dominação dos povos ditos bárbaros para a sua
posterior civilização: de acordo com essa visão, a sua subjugação é admitida como uma etapa histórica que não
pode deixar de ser galgada para que eles, os povos bárbaros, venham finalmente a desfrutar do direito de se
organizarem como uma nação e de serem reconhecidos como estando propriamente dotados de razão. Essa versão
atenuada de racismo (atenuada, obviamente, quando comparada com uma forma de racismo para a qual a
assimilação dos povos não-europeus aos domínios da razão é completamente impossível, forma que teve
ocorrência, por exemplo, na África do Sul e no sul dos Estados Unidos, onde a segregação foi de tal maneira
violenta que chegou a proibir expressamente a relação amorosa entre pessoas de diferentes raças, concretizando-
se institucionalmente como apartheid e como conivência com o linchamento) uma tal versão, dizíamos, não é por
isso menos contraditória, e, sem sombra de dúvida, fornece a ocasião para estabelecer uma oportuna crítica à
tradição do universalismo em que se insere Hegel: não será a universalidade a que aspira a sua filosofia um ideal
necessariamente falso, posto que, para realizar-se, ela tem sempre de fazer violência às diferenças existentes? Cf.
o livro de Kevin Anderson.
37 Como esclarece, sempre de maneira muito perspicaz, Jean-François Kervégan, o que está em causa é a ”(...)

eliminação do privilégio, da lex privata, como fonte e fundação do direito” (KERVÉGAN, pág. 35). É preciso
lembrar, por exemplo, que o privilégio incide ainda sobre as relações comerciais : uma das mais comuns eram as
proibições de vestuário, que estabeleciam que determinadas pessoas não podiam usar joias em lugares públicos,
mesmo que detivessem legalmente a sua posse.

37
Assim, de um ponto de vista histórico, é o mercado, tal como instituído na modernidade
europeia, que é percebido como esse horizonte em que uma espécie de universalidade da
propriedade privada teria emergido. Aqui, apresenta-se explicitamente a indispensabilidade da
sociedade civil como realidade conceitual sem a qual a liberdade moderna não poderia aflorar:
ao satisfazer as necessidades dos indivíduos sem geri-las ou governá-las diretamente, o
mercado, suposto conformar-se por pessoas que se associam livremente, promoveria uma
dignidade do trabalho que elevaria este último acima das particularidades dos homens que
contraem relações nesse espaço. Em flagrante contraste com a exclusividade reclamada pelas
facções religiosas, que sempre trazem consigo a ameaça intolerável da guerra civil, o espaço
secular do mercado abrigaria todos os povos e crenças, concorrendo para uma prosperidade da
sociedade que, a princípio, independe de os seus membros pertencerem a esta ou àquela
nacionalidade, de professarem esta ou aquela fé, etc. Tendo em vista esses domínios, não seria
difícil sustentar que a mão invisível de que falava Adam Smith providencia um eminente
modelo para aquilo o que Hegel chamava de astúcia da razão (Cf. ROSANVALLON, pág. 164;
Cf. também KERVÉGAN, páginas 358 e 359): dispensada de orientar-se por uma direção
prévia, a razão ainda assim produziria alguma harmonia (ou bem ela vem a se comprovar na
harmonia resultante de uma organização sem qualquer direção prévia). Mas Hegel compreende
muito bem que o mercado é uma realização histórica, em vez de ser uma inevitável destinação
da natureza humana, como parecem acreditar os partidários do liberalismo econômico. Nas
palavras de Pierre Rosanvallon: “Ele [Hegel] pode ultrapassar o horizonte liberal da
representação da sociedade como mercado porque compreende historicamente essa
representação” (ROSANVALLON, pág. 172). De acordo com Hegel, não só a propriedade
privada não pode ser entendida como um direito cuja validade corresponderia à de uma simples
universalidade genérica (que, como tal, tem de se mostrar totalmente abstrata), como o próprio
mercado, que é o espaço em que a propriedade adquire a sua forma mais perfeita, não pode ser
enxergado como um meio suficiente (ou, de maneira mais sóbria e pragmática, como um meio
apenas inexcedível) para que o mais completo desenvolvimento da sociabilidade humana tenha
lugar. Com o que alcançamos o segundo motivo pelo qual o filósofo alemão não desejava que
a sua perspectiva fosse restringida pela visão liberal: se ainda tem uma aspiração ao universal,
a sociedade civil de maneira alguma pode ser abandonada à sua própria sorte.
A percepção crítica de Hegel para com o liberalismo faz menção, portanto, às limitações
históricas deste: se, para o filósofo, a sua teoria e prática de fato franqueiam um certo limiar da
modernidade política, elas não podem, contudo, ultrapassar esse limiar e nela instalar-se
efetivamente. Com efeito, não há como sustentar que a concepção política de Hegel tenha se
conformado exatamente aos princípios que o liberalismo clássico defendia (assim como a sua
concepção de Deus não é exatamente a protestante, a sua concepção de arte não coincide de
forma alguma com a romântica, e a sua concepção de ciência não corresponde à newtoniana).
Sem manter-se indiferente a eles, a marcha conceitual hegeliana, no entanto, encaminha-se para
a exposição de sua unilateralidade. Assim, tal como no liberalismo, o mercado também era
apreendido pelo filósofo em sua capacidade de agir como um verdadeiro fiandeiro para a
complexa tapeçaria da sociedade moderna. Mas, como não pode escapar a Hegel, apesar de ser
um fiandeiro tão diligente, trata-se igualmente de um fiandeiro enganador tal qual o era
Penélope (com a diferença de ser uma fiandeira maquinal, automática e cega): o que ele cose
no espaço aberto onde as mercadorias são trocadas, ele também descose no confinamento em
que a divisão social do trabalho encontra morada. E a prosperidade então alcançada – num
primeiro instante, prosperidade indiferente à nacionalidade dos que para ela trabalham – não
deixa de ser a prosperidade de uma nação (como objetivado e rubricado, aliás, por Adam Smith
no título de sua magnum opus), o que mais uma vez vem opor as nacionalidades e estimular as

38
guerras entre os estados que as representariam. Por isso é que a função do direito constitucional
não pode ser apenas a de tornar possível o direito civil, afinal, o direito civil não dispõe dos
meios necessários para garantir a coesão da sociedade de que ele mesmo pretende ser a lei
(pois, mesmo se a guerra entre as nações não puder ser completamente removida do horizonte
da modernidade – como, aliás, Hegel acreditava ser o caso –, o Estado é o lugar onde deveria
efetivar-se a motivação dos indivíduos de serem algo mais do que indivíduos, ou seja, cidadãos
dispostos a sacrificar-se em nome da liberdade secundada pelo Estado). Deixando-nos guiar
por Kervégan, diremos, pois, que, de acordo com a filosofia hegeliana, o Estado
tem uma missão social: assegurar que o universal exerça sua influência
sobre o particular. Mas sua missão própria, política, é a de promover a
unidade do particular e do universal dentro do elemento da
universalidade. (...) Claro, o estado não é a negação da lei – ou, antes,
dos direitos de indivíduos e grupos sociais –, mas, muito pelo contrário,
a condição última de sua atualidade. Mas essa tarefa está longe de
exaurir seu conceito, e Hegel constantemente trabalha para denunciar
o erro que consiste em fazer do estado o mero garantidor das operações
da lei privada e o vigia noturno da sociedade civil. (KERVÉGAN, pág.
47)

Desde essa perspectiva, pode-se mesmo vislumbrar uma crítica mais geral ao liberalismo,
entendido agora, não em sua acepção preferencialmente britânica, mas num sentido
consideravelmente mais amplo, que é o de defesa irrestrita das liberdades dos indivíduos. Essa
tradição, que se diversifica historicamente por meio de suas experimentações regionais,
encontrando-se enraizada em alguns acontecimentos históricos sumamente relevantes para a
concretização da liberdade em sua universalidade, é ao mesmo tempo conservada e superada
pela filosofia hegeliana (ou seja, ela é aufgehoben, para utilizarmos a palavra que Lacan passou
a evitar em determinada fase de seu ensino). E a sua superação, que é onde a crítica a essa
tradição tem de despontar mais visivelmente, consiste, como antecipado há pouco, em
estabelecer que o liberalismo jamais poderia fornecer a medida exata da lei pela qual se rege a
sociedade moderna.
A isso é preciso acrescentar o detalhe, nada menos que fundamental, de que a via legalista não
condiz propriamente com a tarefa a que se propõe a filosofia hegeliana do direito: diante das
insuficiências do liberalismo, Hegel não cogita a redação de um código que, de maneira mais
eficaz, soubesse justificar e, assim, proteger a condição dos indivíduos enquanto cidadãos (isto
é, como sujeitos impreterivelmente respeitados em seus direitos). Irrealizável sem a mediação
da subjetividade dos indivíduos, não é sem provocar alguma estranheza que se conclui que o
Estado, para o filósofo alemão, não deveria ser entendido efetivar-se por completo na garantia
escrita dos direitos individuais dos cidadãos. Na formulação precisa de Kervégan:
Assim, o objetivo da recusa de dar ao estado uma sustentação legal não
é apenas o de distinguir entre lei pública e privada; é também o de
autorizar o estado, entendido como realização política da liberdade
objetiva, a ser o garantidor externo, totalmente legítimo, da lei e de suas
atualizações. (KERVÉGAN, pág. 48)

Para que valide a lei, o Estado não pode ser completamente validado por ela. Solução
contraditória (ou bem solução que toma partido pela contradição), mas a que não falta
coerência, pois, entre outras coisas, ela implica numa retomada da crítica à limitação intrínseca
à filosofia kantiana da moralidade. Mais uma vez com a ajuda de Kervégan, perceberemos
claramente que, se Hegel não descarta a lei como terreno de emergência da liberdade, ele

39
tampouco a entende como se a delimitar-lhe totalmente o campo de sua efetivação, posto que
isso seria incorrer de novo no mau formalismo de Kant: “Eu disse que, para Hegel, não há
liberdade contra a lei - mas tampouco pode a liberdade ser adquirida pela lei sozinha, porque
não pode haver ultrapassagem formal do formalismo” (KERVEGAN, pág. 42). É nesse sentido
que se deve entender a contraposição realizada por Kervégan a um mito algo persistente em
meio aos críticos de Hegel, segundo o qual o filósofo alemão não teria verdadeiro apreço pela
lei: “Se há um antilegalismo em Hegel, ele só pode ser o que chamei de antilegalismo fraco -
isto é, a rejeição do argumento de que a ordem legal é auto-suficiente; um argumento que foi
apoiado pelos positivistas e sistematizado por [Hans] Kelsen” (KERVEGAN, pág. 27). Não é
difícil ver, portanto, que, contrariamente à aparência de que teria contribuído para subtrair ao
liberalismo o seu efetivo amparo legal, Hegel satisfaz um certo anseio presente nessa tradição,
mas num sentido não previsto por ela: a partir de então, o liberalismo não figura apenas como
um meio propriamente racional de fazer com que se torne tolerável o mal necessário do
governo, mas como um momento fundamental para que advenha efetivamente o reino da
liberdade (reino que seria, afinal, o Estado moderno). Fosse o caso de um simples ataque do
pensador alemão à disposição legal que se consolida nessa tradição, disposição atinente aos
chamados “direitos negativos”, ficaria por compreender como o registro da lei ainda preserva
uma dignidade tão alta em sua filosofia: “De outra maneira, como nós deveríamos explicar o
fato de que Hegel, a despeito de sua aguda consciência dos limites da ‘lei em sua estreiteza
legal’, escolhe o próprio termo para designar metonimicamente a esfera inteira do espírito
objetivo?” (KERVÉGAN, pág. 27).
Nem legalista e nem antilegalista (ou pelo menos não em sentido “forte"), Hegel visa a
legitimidade do Estado como se este fosse um campo de atualização da sociedade civil, campo
que estaria de alguma maneira pressuposto a ela, mas que, reciprocamente, em sua
conformação moderna, tem necessariamente de ser mediado pela mão invisível do mercado,
suposta alcançar as inúmeras necessidades que levariam os indivíduos a se procurarem e a se
movimentarem uns em relação aos outros. É possível declarar, portanto, que a filosofia do
direito hegeliana não se estrutura a partir de um escalonamento de instâncias que, por sua maior
proximidade com a efetividade do conceito, viriam a anular as instâncias “anteriores” ou
“inferiores”. Como esclarece a seguinte passagem de Kervégan, o jogo de atualizações e
pressuposições posto em causa nessa filosofia é muito mais complicado: “ainda que o espaço
político institucional esteja baseado na fluidez do mundo social, para que este não sucumba em
meio às contradições que o animam, ele requer a mediação daquilo que ele medeia"
(KERVÉGAN, pág. 276). De sorte que conserva a sua pertinência dizer que, como
antecipávamos, o Estado não se realiza apenas no código de suas leis escritas, mas também, e
sobretudo, na sedimentação dos costumes, das práticas e das crenças que caracterizariam uma
determinada nação, e que, assim, providenciaram a esta última como que a base natural da
emergência da liberdade concreta (Cf. KERVÉGAN, pág. 338). Havíamos dito que a sociedade
civil não pode ser abandonada à sua própria sorte, o que não deve nos despistar quanto ao fato
de que, para Hegel, é a partir dela (bem como da outra instância "menor" da eticidade,
correspondente à família) que surgiriam as modalidades de ação específicas cuja universalidade
o Estado se encarrega de adensar e contrapor à tendência desagregadora da própria sociedade
civil. A esse propósito, em sua argumentação, Kervégan defende que a mediação entre as duas
instâncias (a saber, entre sociedade civil e Estado) dar-se-ia por meio de instituições (Cf.
KERVÉGAN, pág. ), tais como o casamento, as corporações, as assembleias representativas
etc. Em cada uma delas, acumular-se-iam as disposições subjetivas as mais diversas e mais
apropriadas a uma determinada realidade (donde emerge o proverbial caráter de um
determinado povo), possibilitando, pois, que desenvolva-se como que organicamente todo o

40
arranjo institucional responsável por conferir unidade e efetividade à vida política. E
compreende-se, enfim, porque o Estado, correspondendo à objetividade da liberdade, não logra
objetivar-se por completo, quer no arbítrio de um soberano absoluto 38, quer num código de leis
que objetivasse compreender toda a vida dentro de si: isso se deve a que as instituições nunca
ultrapassam a condição de uma existência apenas “simbólica”. O que significa que parte de sua
força derivaria, claro, de uma capacidade prescritiva, ao poder amparar o sujeito através da
concretude de hábitos que lhe permitiriam dar corpo à sua liberdade, mas que só se efetivam
realmente por meio da aquiescência dos indivíduos a uma potência externa que, no entanto,
revela-se também como sendo interna, porque não existiria sem a vontade deles (o que,
segundo Kervégan, tem por consequência que a eticidade, concretizada em sua forma mais
desenvolvida nas instituições, não possa ser considerada ainda como a vida ética propriamente
dita).
Pode parecer um cacoete que teríamos contraído involuntariamente ao longo desta nossa breve
exposição sobre a subjetividade política em Hegel, mas a insistência em situar o filósofo
relativamente ao liberalismo não é de maneira alguma despropositada. Ela possibilita, por
exemplo, matizar a contraposição de Domenico Losurdo à representação de Hegel como um
“incurável homem da ordem" (Cf. LOSURDO, pág. 155). Se por ordem entende-se a
esclerosada ordem monárquica do antigo regime, então, de fato, Hegel não se conforma a essa
ridícula representação de um incurável homem da ordem. Mas o juízo está incompleto se se
desconsidera que, na filosofia hegeliana, a “(...) história não admite, pois, nem Restauração
nem Utopia” (ARANTES, pág. 314). Claro, como tende a fazer o próprio Losurdo, se
estivéssemos considerando Hegel como o mais eminente percursor de Marx e da tradição
política que dele descende, seríamos obrigados a lembrar que o materialismo histórico entendia
a si mesmo como um ferrenho opositor do que se chamava então de socialismo utópico, o que
pode muito bem ser interpretado como a reivindicação de um legado que lhe teria sido
transmitido pela doutrina hegeliana do tempo e da história. Contudo, cometeríamos um erro
inadmissível se ignorássemos que a resposta de Hegel, duplamente negativa, a opor-se tanto às
vias falsas da Restauração quanto da Utopia, uma tal resposta não pode ser vista coincidir
realmente com a que mais tarde formulará Marx. Detalhe que é imprescindível observar
porque, em alguns aspectos, a sua resposta alinha o filósofo alemão à tradição liberal-
conservadora de viés francamente contra-revolucionário. O que se diz de maneira muito
desajeitada, um tanto equivocada, a bem da verdade, porque o filósofo alemão não chega
propriamente a integrar as fileiras dos que comemoram ou ainda dos que simplesmente aceitam
com resignação a violenta supressão dos levantes populares, capítulo histórico que mergulhará
a Europa do século XIX num tétrico banho de sangue. De qualquer modo, continua sendo
verdade que o que Hegel pretende é tornar obsoleto o expediente desordeiro das revoluções, e
a fazê-lo por meios que seriam essencialmente estranhos à radicalidade dos revolucionários:
em sua visão, a reconstrução da sociedade intentada pelos jacobinos, por exemplo, jamais
poderia alcançar os pretendidos resultados porque ela ignora completamente a dimensão prática
das instituições, que não obedece diretamente a nenhum arbítrio, depreendendo a sua
efetividade de arranjos como que estabelecidos “inconscientemente” (ainda que eles só se
realizem de fato quando aceitos conscientemente pelos indivíduos que então se tornam
cidadãos de um Estado desejado por eles como o único e verdadeiro lugar em que a sua
liberdade pode florescer). 39 Retomando o exemplo privilegiado que se marca através da data

38Slavoj Zizek costumar lembrar o papel diminuto que Hegel reserva ao monarca:
39À diferença da tradição liberal-conservadora de crítica à Revolução Francesa, inaugurada com as reflexões
sobre a Revolução Francesa de Edmund Burke, Hegel se esforça reiteradamente para estabelecer uma

41
de 1789, diremos que a ferida descoberta pelo acontecimento da Revolução Francesa, a expor
como nunca antes a mácula de um mundo injusto que não tinha mais como se sustentar, essa
ferida não podia cicatrizar por meios propriamente revolucionários. Quanto a esse aspecto,
pode-se apelar tranquilamente à sensatez daquele mesmo Kouvelakis que há pouco nos dava o
testemunho sobre a aptidão sócio-histórica das análises hegelianas. Com ele, veríamos, pois,
que o filósofo alemão não acreditava que à Revolução pudesse suceder diretamente uma
sociedade que em sua conformação política se encontrasse propriamente adequada às
exigências da universalidade, posto que a sublevação da ralé nada mais fosse que o índice de
uma violenta dissolução que não comportaria uma recuperação imediata:
Dentro da moldura das categorias de Hegel, é literalmente impensável
que qualquer coisa seja atribuída a um “ponto de vista de classe”; a
irrupção da “ralé”, um verdadeiro anti-povo, é para Hegel sintomática
da dissolução do vínculo social, e não abre para nenhuma forma de
universalidade. (KOUVELAKIS)

Atentando à diferença apontada acima, entre Hegel e Marx em suas respectivas tentativas de
evitar as falsas destinações da modernidade política – tanto as que impõe a Restauração quanto
aquelas com que faz sonhar a Utopia (as quais, reciprocamente, também são imposições desta
e sonhos daquela) –, a questão deve ser reconduzida ao posicionamento do primeiro dos dois
no que diz respeito à democracia. Reparemos que, de maneira um tanto quanto anacrônica, essa
é uma das razões, e talvez a principal, para que Popper enxergasse Hegel como um inimigo da
sociedade aberta (Cf. KERVÉGAN, pág. ): sem poder antecipar o grande papel a ser
desempenhado pelos mecanismos de representação característicos das democracias
contemporâneas, o filósofo alemão teria acabado por descobrir uma via que justifica a
instituição de regimes autocráticos ao se posicionar, aberta e nominalmente, contra o que se
chamava então de democracia. Ora, mas, como faz notar muito criteriosamente Kervégan,
quando fala em democracia, Hegel não tem como seu referente aquilo que essa palavra hoje
evoca para nós, referente que de todo modo ainda não existia, ou pelo menos não sob a forma
com que ele recupera a sua pertinência para a teoria e para a prática políticas, através daquilo
que passa atualmente como um ideário “democrático” (isto é, ideário necessariamente mediado
pelo conceito de representação parlamentar proporcional, referida à população, que,
considerada em sua “totalidade”, por sua vez, passa então a ser investida do direito ao voto); o
filósofo pensava, isso sim, na sua forma clássica, cuja relevância política de alguma maneira a
Revolução Francesa reatualiza para a modernidade: trata-se do modelo de um governo
genuinamente democrático, ou seja, um governo em que todos os cidadãos participam das
decisões políticas mais importantes, a exemplo do que tentaram fazer os jacobinos com a sua
constituição de 1793 (Cf. KERVÉGAN, pág. 263). Tendo isso em vista, o ponto de Hegel,
precisamente, é o de que se a Revolução Francesa reatualiza de fato a questão sobre a
viabilidade de um governo democrático para a modernidade, não é senão para evidenciar a sua
completa impossibilidade. Como esclarece Kervégan, detalhando o motivo de a sociedade civil
transformar a liberdade moderna numa realidade com estatuto conceitual completamente
distinto da dos antigos:
Fundamentalmente, o projeto democrático em sentido estrito é
incompatível com a maneira através da qual o mundo moderno
diferencia-se entre o social e o político, especialmente à luz do

consideração racional de uma vida plena que teria lugar no período posterior a um tal acontecimento histórico.
Ou seja, sem desprezá-la, como estariam inclinados a fazer os que , Hegel . O juízo, como diz Paulo Arantes, é
magro, mas, na medida em que refrata todo um espectro presente , ele .

42
desenvolvimento de uma economia de livre empresa [free enterprise],
com o seu mandato a exceder os limites territorialmente fechados do
estado. (KERVÉGAN, páginas 275 e 276)

Para Hegel, o acontecimento histórico da Revolução Francesa (que também concretizará a


ocasião para uma declaração universal dos direitos do homem e do cidadão) tornava-se então
passível de um escrutínio baseado em dois critérios principais; e, após um tal escrutínio, o que
restaria de legítimo na Revolução seria o duro golpe desferido por ela contra o absolutismo,
golpe que reverbera em toda a Europa. Nas palavras sempre prestativas de Kervégan: “[aos
olhos do filósofo,] a Revolução tem uma orientação liberal, bem como uma democrática, e, no
final, Hegel considera que a primeira é o seu legado mais durável” (KERVEGAN, pág. 263).
A mudança de paradigma responsável por afetar as concepções políticas de Hegel, que é
rastreável na substituição do modelo da sociabilidade da pólis clássica pela referência
inescapável à sociedade civil como um meio necessário para a consecução da liberdade
moderna, uma tal mudança comprova a relevância do duplo critério aludido acima, uma vez
que a idealização da democracia antiga houvesse sido inspirada no acontecimento da
Revolução Francesa (Cf. KERVÉGAN, pág. 263). Em confronto com os impasses de seu
próprio tempo, mas sem nunca perder de vista o fatídico ano de 1789, Hegel virá a modificar
as suas aspirações políticas de maneira a exigir uma atividade qualitativamente distinta daquilo
que designamos anteriormente como sendo um Cidadão Sujeito. Certamente, o filósofo se
entrega a essa tarefa exercitando a sua crítica para com os dois critérios disponíveis, quer se
tratasse do democrático, quer se tratasse do liberal (o que não significa que, na análise do
filósofo, um desses critérios não possa mostrar-se mais apto que o outro para discriminar a
singularidade da liberdade modernidade). De sorte que, com essa filosofia – que tende sempre
a ser duplamente criteriosa, e, assim, duplamente crítica (ou seja, a realizar-se como uma
filosofia que compreende uma outra modalidade de reflexão que não a de uma consciência
auto-centrada) –, tem-se uma tentativa de conferir substância a um novo cidadão, qual seja, o
subjectus de um Estado que não pode existir indiferentemente à vontade dos indivíduos, os
quais, por sua vez, gozam da condição de indivíduos dotados de uma vontade particular
somente por serem cidadãos de um Estado. Em Hegel, por conseguinte, o Cidadão Sujeito pode
ser designado à condição de evidenciar um processo em que se recuperem esses dois momentos
contraditórios de sua determinação última. Como assinala Kervégan: “Assim, o indivíduo é
ambos, cidadão (Staatsbürger) e sujeito (Untertan)” (KERVÉGAN, pág. 269). E, dessa
maneira, deve-se entender que Hegel não estava movendo guerra à ideia de uma soberania
popular, mas, como é usual em sua filosofia, em vez disso ele entendia ter encaminhado a
rigorosa demonstração da unilateralidade das concepções teóricas que lhe serviriam de base:
digamos assim, ao expor as respectivas limitações de Adam Smith e de Jean-Jacques Rousseau,
comparando e contrapondo os princípios teóricos de cada um, o filósofo alemão colocava-se
em posição de reclamar uma nova concepção de soberania, uma em que fossem relevantes as
ideias de uma mão invisível a guiar o mercado de modo a satisfazer as necessidades individuais
e, por outra, a de uma vontade geral atinente ao bem comum. Ou, a recorrer ao comentário
habitual a que agora sujeitamos o nosso trabalho: “Assim, seria uma simplificação dizer apenas
que Hegel rejeita a soberania popular; seria mais preciso dizer que ele rejeita as interpretações
desfigurantes e paralelas que democratas e liberais fazem dela” (KERVÉGAN, pág. 271). Do
que se segue que, de acordo com a filosofia hegeliana do direito, o povo pode efetivamente ser
dito soberano, mas somente na medida em que é considerado ser idêntico ao Estado moderno
(Cf. KERVÉGAN, pág. 272).

43
Não se pode negar que Hegel lidava de uma forma bastante característica com a contradição
própria à emergência histórica de um Cidadão Sujeito: reconhecendo-lhe a importância, o
filósofo alemão acreditava poder justificá-lo no desconcertante processo em que se articulam
as suas determinações contraditórias. E esse é provavelmente um dos motivos para que ele
tenha como que devolvido a Kant o ônus de não ter apreendido satisfatoriamente uma tal
natureza compósita em que viriam entrelaçar-se o singular e o universal. Devolução que
poderia ser reconhecida na surpreendente identificação de uma unilateralidade que afetaria
tanto os revolucionários franceses – os quais pretendiam recriar a realidade dispondo
unicamente da magra provisão de uma nova constituição –, como também a lei subjetiva a que
o imperativo categórico recomendava uma obediência inexcusável. É como se em ambos, tanto
na moralidade kantiana como no terror revolucionário, Hegel desvendasse a mesma indiferença
quanto a permitir que o mundo inteiro pereça apenas para que se faça enfim a justiça: os dois
exemplos corresponderiam a figuras da liberdade subjetiva, não totalmente simétricas uma à
outra, mas imbuídas, ainda assim, de um princípio igualmente abstrato, que declara uma
absurda prevalência do sujeito sobre o objeto de sua legislação, como se ela devesse dar-se em
absoluto desconhecimento de um pelo outro. O gesto de Hegel é tanto mais surpreendente
porque o seu posicionamento político, que aparentava engajá-lo mais proximamente na
sequência dos eventos da Revolução Francesa, sugeria que, em suma, o erro de Kant havia
consistido em assumir uma tão grande distância em relação a esse acontecimento. Se esse era
de fato o seu erro, a sua consequência mais séria, no entanto, correspondia à de que, alheando-
se, Kant não conseguia confrontá-lo de modo apropriado. Ou seja, é porque não se aproximou
o bastante da Revolução e de suas consequências históricas que o filósofo de Königsberg, no
momento de elaborar a sua relevância conceitual, não conseguiu manter-se afastado dela tanto
quanto seria desejável. Donde se segue essa performance inacreditável, de uma verdadeira
pirueta dialética, com a qual Kant e Robespierre, depois de sofrerem uma vertiginosa
reviravolta, veem-se situados quase que no mesmo plano, um ao lado do outro, e se não postos
exatamente na mesma altura, pelo menos a encontrar apoio na sua inesperada contra-parte: é
como se o receio a paralisar a filosofia crítica, traduzível na pretensa inacessibilidade da coisa-
em-si, a prevenisse de perceber quando a subjetividade de fato reverbera no mundo –
reverberação cujos resultados parecem ainda mais calamitosos se a subjetividade não sabe
tomar para si a parte que lhe cabe nesse mundo, que é, afinal, um mundo para o qual ela mesma
tem de concorrer. Assim, através de um encontro pontual, descoberto pelo escrutínio da
especulação hegeliana, haveria uma comunicação entre o formalismo vazio da filosofia
transcendental e o niilismo terrorista dos jacobinos.
Mas esse gesto também pode ser visto como uma inesperada confirmação da seguinte
declaração de Kouvelakis, segundo a qual, tal como Kant, também "(...) o pensamento
hegeliano nunca foi [capaz] de superar uma ambiguidade fundamental, um misto de fascinação
e repulsa diante do fenômeno revolucionário” (KOUVELAKIS). Ambiguidade que, de alguma
forma, desde o ponto de vista franqueado por uma filosofia da subjetividade, parece indicar
que a questão da idealidade política depara no pensamento hegeliano uma tendência de
retroceder a um ponto aquém do projeto crítico de Kant (afinal, projeto que predispõe a
denunciar as autoridades que não se submetem publicamente ao exercício da razão). Ou pelo
menos a impressão é a de que Hegel traiu o potencial crítico da negatividade que o sujeito porta
em seu âmago: em sua tentativa de discriminar a efetividade do conceito, à força de pensar a
sua virtude de se concretizar no mundo, Hegel como que se prontifica a justificar o presente tal
como ele se mostra em toda a sua positividade. Ele se arrisca, pois, a deixar que se
sobreponham, mesmo que contra a sua intenção, as temporalidades do mundo e do conceito: a
solução hegeliana, a proceder por meio da famigerada Aufhebung, acaba reportando-se a toda

44
uma série de circunstâncias mundanas que em nada fazem ver a universalidade pretendida por
sua filosofia. Um pouco de través, a bizarrice dessa solução teórica vem a lume a partir do fato
de que a filosofia do direito de Hegel concebe uma universalidade que só pode traduzir-se na
multiplicidade das particularidades do caráter de cada um dos vários estados nacionais.
Mas, feliz ou infelizmente, quando se trata de Hegel, nada é tão simples que não dê lugar a
uma contradição e ao movimento. Assim, ao contrário do que se costuma dizer, a última palavra
do filósofo alemão sobre a situação política de seu tempo seria a de que...não existe uma última
palavra a ser proferida como se a expressar a destinação desse mundo através de um juízo
perene. A creditar o que dizia o filósofo no final de sua vida, não se encontrava à vista nenhum
fim da História, nem próximo, nem remoto (Cf. KOUVELAKIS, seção ). E isso, afinal, se deve
também à supracitada ambiguidade do filósofo alemão quanto à sua acolhida do acontecimento
político mais importante de sua época. Se bem que Hegel não conceda mais uma saída
autenticamente democrática, a sua concepção teórica, mesmo que admita e proclame o Estado
como realização da liberdade em-si e para-si, não se atreveria jamais a desprezar a força
subjetiva a que a Revolução serviu de esteio: no entendimento do filósofo, o período turbulento
que se segue a esse acontecimento não encontrará nenhum termo efetivo se as soluções tentadas
nesse sentido não estiverem à altura das contradições então desnudadas por ela. O que quer
dizer que, potencialmente, pelo que reconhece como sendo efetivo e racional na realização do
Estado moderno, a filosofia de Hegel ainda poderia contribuir para a crítica a todo e qualquer
estado existente.40
De todo modo, tendo optado pela defesa de um Estado que, em sua essência, faria predominar
uma vertente liberal (em significativo contraste, portanto, com a realidade dos estados
existentes em sua época), a filosofia do direito de Hegel tornava-se vulnerável a um incômodo
dilema: ou ela endossa o mundo tal como ele se apresenta, ou continua a propor como medida
da liberdade um Estado inexistente. Dessa maneira, o argumento utilizado para desbaratar a
unilateralidade da moral kantiana ameaçava voltar-se contra o próprio Hegel, na medida em
que também a sua concepção de liberdade poderia mostrar-se "(...) impotente a ponto de não
ser senão um ideal, um mero dever que não existiria na realidade, mas se encontraria não se
sabe onde" (HEGEL, apud ARANTES, pág. 311). De outra maneira, dir-se-ia que a Aufhebung
hegeliana, que se queria ao mesmo tempo como superação e como conservação, não parecia
suficientemente capacitada para decidir o que superar e o que conservar da realidade histórica
com a qual se confrontava: como manter um Estado que, no mais das vezes, revela-se como
uma realidade profundamente marcada por autoritarismos típicos de uma estrutura
remanescente do ancien régime, e, ainda por cima, a fazê-lo em nome da liberdade? Se a
migração em massa dos alemães para nações com um mercado mais desenvolvido não poderia
nunca ser tida como uma solução minimamente séria para esse problema, então a única saída
restante era a de fomentar o desenvolvimento da sociedade civil em sua própria localidade e

40Em verdade, contrariando a tese . Ela contribui, por exemplo, para uma espécie de sublevação . David Strauss.
Cf. HEINRICH. sobretudo quando, pelo testemunho de uma carta de Schelling a Hegel, somos dados a conhecer
que "(...) para mim também [isto é, para Schelling] os conceitos ortodoxos sobre Deus deixaram de existir" (e
diga-se, ainda, que, na sequência dessa mesma carta, Schelling atribui a Espinosa a superação de uma concepção
personalista de Deus, no mesmo ato em que faz uma sutil precisão quanto à sua própria concepção não-
personalista). Uma observação pontual de Günther Anders: ”Quando Hegel, vindo da escola teológica de
Tübingen, substitui o conceito joanino de espírito pelos elementos emprestados à 'razão' e ao 'Iluminismo’, ele
aniquila o conceito de Deus que, ao que parece, quer salvar. No fundo, pode-se considerar toda filosofia alemã,
de Lessing a Hegel - esse estranho fenômeno intermediário entre religião e ciência (que, por exemplo, mal existiu
na França-de-duas-vias - só religiosa ou naturalista - e começa a nascer só hoje, sob a influência da filosofia
existencial alemã) -, como um processo em que a religião foi aniquilada pela salvação e salva pela aniquilação”
(ANDERS, pág. 99)

45
promover, assim, o assentamento de uma base mais firme para a emergência do Estado em sua
verdadeira efetividade.
Com efeito, é logo após tomar esse caminho, de crítica e de tentativa de reforma de um estado
existente, que Marx, quando se encontrava ainda em vias de superar a condição de ser apenas
mais um “hegeliano de esquerda” (ou, a seguir uma outra designação terminológica que
também se aplicava a ele, a de “jovem hegeliano”), virá a colocar à prova a filosofia do direito
de seu antigo mestre. E é a Marx, afinal, que deve ser atribuído o essencial da crítica à dialética
hegeliana quando esta é considerada em sua defasagem subjetiva relativamente ao campo da
política – crítica cujo núcleo nós entendemos constituir a base da investigação concernente ao
sujeito empreendida por Badiou na década de 1970. Não é por menos que, justamente quanto
à pertinência de uma "dialética sem Aufhebung”, Vladimir Safatle indique Marx como o
nascedouro de uma tradição que, originada desde a reinvenção da dialética pelo idealismo
alemão, contrapõe-se ao impulso hegeliano de adesão ao presente, impulso que ficava
entrevisto de alguma maneira na prescrição de uma equivalência entre o todo e o verdadeiro
(como reza em alemão a cartilha do espírito: Das Wahre ist das Ganze):
Sabemos como cabe a Marx a compreensão precisa de que a dialética
se organiza a partir de uma crítica da falsa totalidade. O Capital é um
modo de reprodução material da vida que se impõe globalmente em
toda extensão, adaptando-se a configurações específicas e arcaísmos
locais. (SAFATLE, pág. 34)

É notório, certamente, que, tal como dá a entender essa passagem que acabamos de citar, a
maturidade da compreensão marxista da dialética, onde a limitação da componente liberal do
Estado moderno parece ficar mais do que evidente, essa maturidade pode ser considerada
materializar-se apenas nas últimas obras de Marx, especialmente em O Capital: é aí que se
disponibiliza todo um novo ferramental teórico a possibilitar uma análise global dos efeitos
gerais de um desenvolvimento contraditório que necessariamente resulta do progresso
capitalista, pois com ele se confunde. E, ao contrário do que estipulava Althusser, essa
compreensão teria, sim, uma raiz hegeliana, uma vez que o tratamento dialético criado pelo
filósofo – visível, por exemplo, em seu argumento segundo o qual haveria uma espécie de
clivagem entre o social e o político na modernidade – antecipava de muito a problemática
marxista. Segundo o que diz Kervégan:
Não há dúvida de que o argumento de Hegel não tinha os objetivos
revolucionários dos escritos de Marx; os jovens hegelianos castigaram-
no por sua tendenciosidade e inclinações conservadoras. Mas a maneira
dialética a partir da qual ele concebeu o conceito de bürgerliche
Gesellschaft [sociedade civil] faz a crítica marxiana da sociedade –
entendida como sociedade burguesa no lugar de sociedade civil –
teoricamente possível e, simultaneamente, permite a invenção de uma
política revolucionária que procura superar a redução do político ao
estado, a qual tem o seu ponto de culminância exatamente com Hegel.
(KERVEGAN, pág. 119)

Como observado acima, além de não perder de vista a separação entre o social e o político que
seria característica da modernidade, Hegel percebia muito bem a tendência desagregadora que
a sociedade civil traz consigo, a ponto de declarar que, por mais próspera e rica que ela seja,
ela nunca é próspera e rica o bastante para erradicar a pobreza que ela mesma engendra (Cf.
HEGEL, pág. ): o que nos traz de volta à ferida descoberta pela Revolução Francesa, porque
essa tendência, de criação de uma massa de miseráveis descontentes não só com a sua situação

46
material, mas com a posição marginal que passam a ocupar no ordenamento ético em que suas
vidas se encontram situadas, alimenta um niilismo que todo e qualquer Estado tem sérias
dificuldades para suportar sem ceder de súbito à sublevação da “ralé”. De maneira que uma
contradição maior vem alojar-se na filosofia do direito hegeliana, contradição que Marx saberá
explorar muito bem em suas teorizações mais consequentes, e que seria relativa às tendências
nutridas pela disposição concorrencial da sociedade civil. Através dessa contradição é que
ficaria bastante clara aquela que é muito provavelmente a maior insuficiência da filosofia do
direito de Hegel:
Qual dos dois aspectos da competição apaixonada – [podendo ser
entendida] como uma provedora de coesão e como uma força destrutiva
– é decisiva em última instância? Hegel parece vacilar em sua resposta
a essa pergunta, e sua incerteza talvez seja de fato a cruz da inteira
doutrina do espírito objetivo. (KERVEGAN, pág. 360)

Observa-se, portanto, quase como se pela evidência de um fio vermelho que percorresse a
tradição dialética em suas mais variadas incursões políticas, o tema que, de uma ou de outra
maneira, ata o elemento subjetivo que predisporia à revolução aos agravos de um mundo que
se pauta inteiramente pela produção e pelo intercâmbio de mercadorias. No entanto, para
alcançarmos o momento exato em que Marx se dá conta de como se enodam dialeticamente os
dois elementos, não seria preciso recorrer aos seus trabalhos de maturidade. Ou seja, antes
mesmo da análise propriamente objetiva da exploração e da opressão capitalistas, cuja
formulação melhor acabada talvez possa ser enxergada na formulação do conceito de mais-
valia, a trajetória intelectual do jovem Marx, desde suas primeiras intervenções públicas como
editor da Rheinische Zeitung [Gazeta Renana], permite verificar uma hipótese defendida por
Kouvelakis, a qual consiste em afirmar que “(...) Marx voltou Hegel contra ele mesmo”, ou
bem que “ele elaborou uma crítica hegeliana de Hegel” (KOUVELAKIS). É a partir dessa
“crítica hegeliana de Hegel”, exatamente, que podemos insistir que a tradição em que Badiou
se insere tenta conservar a vitalidade do conceito superando a organicidade do sistema.
Sobretudo porque nos escritos do jovem Marx – diferentemente da portentosa objetividade sob
a qual, em seus trabalhos de maturidade, ele deverá apresentar a realidade histórico-conceitual
do capitalismo – haveria o primado de uma vertente subjetiva: o Marx de Badiou é, por assim
dizer, o negativo do Marx de Althusser, como se a sua investigação cuidasse de incidir
preferencialmente do lado inexplorado – que, para o seu antigo mestre, era também o lado
equivocado – do chamado corte epistemológico. 41 E, afinal, é através dessa "crítica hegeliana
de Hegel” que devemos compreender a verdadeira dimensão daquela afirmação feita por
Badiou em Le noyau rationnel de la dialectique hégélinne, de acordo com a qual Marx não é
nem o Mesmo de Hegel, nem o seu Outro, mas o divisor do filósofo alemão (Cf. BADIOU,
(1977)/2012b, pág. 210).
Como havíamos antecipado, o que num primeiro momento o jovem Marx entende como um
caminho para superar o atraso alemão é uma saída obviamente inspirada pelo hegelianismo,
qual seja, a de uma mediação do Estado pela sociedade civil (isto é, mediação a ser realizada
de maneira tal que o Estado se torne o fim para o qual concorre a sociedade civil). No entanto,
ela apresenta já algum tom de crítica à concepção hegeliana, dado que a resolução política, tal
como imaginada pelo filósofo alemão, será parcialmente recusada: a recusa de Marx baseava-

41Tentamos explicar aqui a estranha ausência de uma referência mais substancial ao ”velho” Marx nos textos de
Badiou da década de 70. Como inspiração para , devemos referir o texto ”Dialética sem Aufhebung”, de Vladimir
Safatle, texto que depois foi tranformado em um capítulo do livro Dar corpo ao impossível.

47
se em que as corporações (em alemão, Stände)42, às quais Hegel concedia uma especial
importância na tarefa de propiciar uma convivência liberta das divisões suscitadas pela
sociedade civil, fossem entendidas não corresponder a nada de outro senão a instituições
diretamente oriundas do feudalismo, onde toda sorte de práticas arcaicas teimavam em
perpetuar-se, entre as quais se tornava manifesta uma pronunciada queda pela burocracia a
mais ineficaz (Cf. KOUVELAKIS, pág. 95). Dessa maneira, como que a combinar o ideal de
exercício público da razão a que aspirava a crítica kantiana à pretensão de concretude da
dialética de Hegel, o jovem Marx enxerga na liberdade de imprensa a instituição mais
promissora do ponto de vista da capacidade de promover a efetividade do Estado através dos
expedientes da sociedade civil. Como o elucida Kouvelakis:
Isso em que Marx apostava por essa época é o desenvolvimento da
imprensa como instrumento privilegiado, quase exclusivo até, de
intervenção sobre a cena pública. É que, num contexto de repressão
imediata de toda mobilização popular autônoma, a imprensa encarna
precisamente esse princípio de publicidade que é o único [a encontrar-
se] à altura do combate dos profundos mecanismos de contrapeso do
poder absolutista. (KOUVELAKIS, pág. 94)

Um tal período corresponde ao que se pode designar como sendo o “liberalismo renano” de
Marx (Cf. KOUVELAKIS, pág. 92). Não por menos, as primeiras intervenções públicas do
jovem pensador concretizam-se em grande parte como textos que defendem com inegável ardor
a liberdade de imprensa (Cf. MARX, ), num embate em que a condição de atraso da Alemanha
relativamente às potências europeias centrais é constantemente tematizada e em que os
princípios do Iluminismo são evocados para movê-la adiante. Revelando ainda uma outra
pequena mas significativa diferença quanto à filosofia do direito de Hegel, percebe-se nesses
escritos a expectativa de realização de demandas propriamente democráticas. Por isso,
Kouvelakis pode dizer: “Marx não faz segredo de sua desconfiança para com uma ‘oposição
liberal' que ostenta sua inabilidade para defender as demandas democráticas as mais
elementares” (KOUVELAKIS). Como o atesta a redação da famosa série de artigos sobre o
furto de madeira na província do Reno (Cf. MARX, pág. 7, 2017) – a qual denunciava como a
modificação do estatuto da propriedade afetava aqueles a quem antes era concedido o direito
de recolher madeira nos bosques, posto que ela não se encontrasse ainda dotada de valor
comercial (do que resulta, aliás, o exercício de uma das funções estatais em que continuamente
esbarra o liberalismo, que, como já sabemos, é a da penalização indiscriminada dos cidadãos a
quem caberia resguardar os direitos individuais) –, por essa época, na perspectiva de Marx, a
imprensa deveria conceder voz ao povo, funcionado como o seu mediador perante o Estado:
“Para dizê-lo de outra maneira, a imprensa é o meio central através do qual se constitui o povo
enquanto povo, no processo mesmo que o conduz em direção ao Estado” (KOUVELAKIS,
páginas 95 e 96).
Contrariando o que sustentam certas leituras de Marx (Cf. KOUVELAKIS, pág. ), que veem
nele um ímpeto de simplificação a atuar no sentido de apagar tudo que é da ordem do político 43
– como se estivesse desde sempre prenunciado um movimento em que, mais tarde, essa ordem
viesse a ser completamente engolfada pelas determinações econômicas, posto que o que se
chama depois de infraestrutura da sociedade fosse entendido compor-se basicamente de suas
forças e de suas relações de produção –, é preciso observar que as suas primeiras indagações

42 A seguirmos a leitura de Kervégan, haveria um equívoco em identificar as corporações com o correspondente


medieval, porque os Stände de que fala Hegel .
43 A leitura de Claude Lefort envereda nesse sentido.

48
teóricas nascem em meio a questões políticas candentes de seu tempo. Com absoluta certeza,
ficará com as mãos abanando qualquer pessoa que se aventure a procurar um único tratado de
política que seja cuja autoria pudesse ser atribuída a Karl Marx. Mas, tal como acontece à
filosofia do direito hegeliana, o seu pensamento não se ocupa propriamente de ajuizar o mundo,
como se o Estado fosse uma invenção solitária do filósofo, passível de realização desde que se
adequasse ao modelo por ele planejado em sua cabeça. Como já sabemos, a subjetividade com
que lida a dialética, a qual se vale de uma vitalidade própria do conceito, não é a de uma
individualidade ensimesmada que desejasse plasmar o mundo à sua própria imagem; antes,
trata-se de um subjectum, isto é, um “suporte”, real e lógico (digamos, uma ideia, uma forma,
uma instituição etc.), em que teria lugar um processo de atualização da razão a ocorrer por
intermédio da superação de seus próprios impasses, e que só admite a ação do indivíduo na
medida em que este saiba concorrer para essa superação e para essa atualização. E, apesar de
os seus fins serem mais radicais porque mais democráticos que os objetivados por Hegel, a via
que Marx vislumbra nessa época como sendo adequada à atualização e à superação dos
impasses com que se havia o regime prussiano em vigor na Renânia não era ainda uma via
revolucionária. Em verdade, referindo-nos ao momento inicial em que Marx faz sua aparição
como intelectual público (mesmo que, por motivos práticos, fosse uma aparição mediada pelo
anonimato), torna-se inevitável dar notícia da natureza reformista 44 dessa sua empreitada: “Não
se trata, é preciso sublinhá-lo, de uma estratégia revolucionária, mas de um reformismo radical,
que integra os compromissos necessários, e se concebe como a última chance de resolução
gradual e produtiva da crise antes de uma (nova) revolução” (KOUVELAKIS, pág. 97).
O que se segue a esse reformismo, no entanto, é a frustração praticamente total de seus
propósitos: a relativa liberalidade do governo prussiano não dura mais do que o auspicioso
porém breve ano de 1842 (estendendo-se, no máximo, até o início de 1843). Após uma
significativa atividade de crítica ao regime político vigente, vem a decisão deste de fechar os
jornais onde as vozes dissidentes haviam ressoado com maior intensidade, como os Deutsche
Jahrbücher für Wissenschaft und Kunst [Anais Alemães de Ciência e Arte] (Cf. HEINRICH,
2018, pág. 316), onde se fazia ouvir Arnold Ruge (um dos maiores interlocutores de Marx por
essa época, que, pouco depois, viria a ser com ele o co-fundador dos Deutsch-Französischen
Jahrbücher [Anais Franco-Alemães]); decisão que talvez possa ser considerada ecoar a
denúncia de Bruno Bauer por ateísmo, resultando na sua expulsão da cátedra de teologia da
universidade de Bonn, em 1841 - episódio que repercute negativamente nas ambições
profissionais do próprio Marx, que se vê impossibilitado de galgar a carreira acadêmica em seu
país -, e a evidenciar, assim, que o Esclarecimento, na Alemanha, não se encontrava de maneira
alguma imune ao poder de uma série de forças regressivas e obscurantistas. E, como seria de
se esperar, Marx não foi uma exceção à decisão do regime prussiano de limitar drasticamente
a liberdade de imprensa, como nos relata Kouvelakis: ”Finalmente, em 21 de janeiro de 1843,
na sequência de uma série de artigos de Marx em colunas da Rheinische Zeitung sobre a
condição dos viticultores de Mosel, bem como de seus ataques ao despotismo russo, foi tomada
a decisão de fechar o jornal“ (KOUVELAKIS).

44 Aparentemente, por essa época, não há nada que distinga a atuação de Marx da de muitos de seus
contemporâneos, porque essa era a escolha de todos que, a despeito de seus anseios de modernização da
Alemanha, não quisessem condenar-se à ação clandestina, à prisão ou ao exílio. Mas, sem perdermos de vista essa
proximidade, vale prestarmos atenção ao reparo de Kouvelakis: "No entanto, sua originalidade vis-à-vis seus
contemporâneos reside no fato de que ele deu expressão teórica ao seu método, [alcançando] até mesmo suas
próprias aporias e contradições" (KOUVELAKIS).

49
O “liberalismo renano” de Marx encontrava-se, pois, diante de um limite inultrapassável, uma
vez que todos os meios que ele considerava viáveis para que fosse alcançada a efetividade de
um Estado moderno na Alemanha houvessem sido obliterados, e obliterados por obra e vontade
do próprio estado que o pensador teria pretendido reformar. Nas palavras de Kouvelakis: “Ao
eliminar os raros fóruns remanescentes para [a] expressão pública, o governo não deixou para
o projeto reformista, que inspirou os intelectuais (Marx incluso), nenhum espaço para
manobra” (KOUVELAKIS). Como o indica ainda Kouvelakis, historicamente, três alternativas
surgem como reposta a esse impasse: a retirada da esfera da política para a contemplação
intelectual a mais etérea e abstrata; a adoção de uma postura crítica, mas fundamentalmente
pessimista, que desacredita qualquer mudança significativa em matéria de política; e, a única
alternativa que tenta manter em seu horizonte a plenitude das demandas de uma política feita
em acordo com a razão, o radicalismo dos revolucionários. Assim, confrontado com as
insuficiências patentes da filosofia do direito de Hegel, Marx como que se vê sem saída; ou
melhor, optando pela perspectiva revolucionária, ele se vê liberto da circunstância sem saída
que o Estado demonstrava representar para o processo de objetivação da liberdade humana (em
especial, no caso alemão), podendo, assim, ver muito além de seus estreitos limites. E, no
entanto, de forma talvez inesperada, muito embora ela houvesse começado com o projeto
reformista do “liberalismo renano”, é apenas por meio do radicalismo revolucionário que a tal
“crítica hegeliana de Hegel” realmente poderá tomar forma: Marx entende que é somente ao
entrar em contradição aberta com Hegel, ou bem ao fazer com que o filósofo se volte contra si
mesmo no movimento em que se expõe uma contradição insanável pelos meios que ele próprio
entendia serem adequados à efetividade e à racionalidade do espírito, é somente assim que se
pode colocar o seu pensamento à prova de maneira verdadeiramente consequente. Se a filosofia
hegeliana se queria mais do que uma recomendação abstrata de ajuizamento do mundo, então
restava a ela reconsiderar a componente democrática que impulsionava a liberdade na aurora
da modernidade, sendo, assim, provocada a tomar uma nova posição em face dela.
A obra que representa uma ruptura inicial de Marx com Hegel e com os jovens hegelianos – na
verdade, um manuscrito, dito manuscrito de Kreuznach, que por muito tempo permaneceu sem
ser publicado, vindo a sê-lo somente muitos anos depois de sua redação e mesmo da morte de
seu autor – não poderia ter um nome mais apropriado: Crítica da filosofia do direito de Hegel.
É nessa obra, portanto, que se pode vislumbrar uma decisiva reviravolta, a dar-se, entre outras
coisas, pela denúncia de uma inversão que a filosofia hegeliana, encontrando-se perigosamente
inclinada à metafísica, afetaria ao sujeito: "O importante é que Hegel, por toda parte, faz da
Ideia o sujeito e do sujeito propriamente dito, assim como da ‘disposição política’, faz o
predicado" (MARX, pág. 32). A formulação, apesar de breve, estaria repleta de consequências,
como o prova a sequência do pensamento de Marx. Por exemplo, a partir dessa evidência, não
seria de maneira alguma ocioso entregar-se ao exercício de buscar saber como essas palavras
ainda reverberam no prefácio à segunda edição de O Capital, em que Marx, ao mesmo tempo
em que acusa a sua dívida para com o velho mestre, reitera as suas diferenças em relação à
maneira deste de conceber a dialética e o movimento da Ideia:
Por sua fundamentação, meu método dialético não só difere do
hegeliano, mas é também a sua antítese direta. Para Hegel, o processo
de pensamento, que ele, sob o nome de ideia, transforma num sujeito
autônomo, é o demiurgo do real, real que constitui apenas a sua
manifestação externa. Para mim, pelo contrário, o ideal não é nada mais
que o material, transposto e traduzido na cabeça do homem. (MARX,
pág. 140, 1996)

50
De sorte que faz todo sentido perguntarmos: contrariando frontalmente as admoestações de
Althusser, essa obra inicial, é ela que deveríamos ver como tendo começado o processo de
reversão do idealismo da dialética hegeliana em um renovado materialismo, capaz, enquanto
tal, de penetrar a concretude da existência positiva da sociedade e das relações que lhe seriam
fundamentais?
Nós nos guardaremos de dar uma resposta definitiva a essa questão, tendo sugerido o bastante
com o destaque que demos para a importância desse impulso teórico inicial. Diremos, no
entanto, que a elaboração de Crítica da filosofia do direito de Hegel causa, por bons motivos,
a impressão de determinar desde já como deverá processar-se a relação de Marx com o seu
velho mestre: não teria ficado claro a partir de então que a dialética, sob os cuidados desse novo
artesão da contradição, passa a preocupar-se mais do que nunca com a positividade dos
fenômenos sociais, evitando a todo custo fazer abstração da atividade humana sensível? Afinal,
lembremos, um dos eixos da mencionada crítica é o que se articula pela denúncia da
subordinação, na filosofia do direito de Hegel, da instância real da sociedade civil à
mistificação representada pelo Estado. Por conseguinte, é como se a dialética materialista,
prenunciada pelo gesto de ruptura de Marx, fizesse prevalecer o empirismo sobre a especulação
metafísica em que derrapava o idealismo de Hegel. Com efeito, manuseando um sofisticado
mecanismo de inversões retóricas, que apresenta também consequências lógicas muito graves
(atinentes, por exemplo, à posição devida ao sujeito no processo dialético), Marx declara, a
respeito tanto da maneira como a filosofia hegeliana concebe os momentos do processo
dialético quanto da justeza conceitual que ela pôde alcançar para a categoria do Estado: "[Na
filosofia hegeliana,] O momento filosófico não é a lógica da coisa, mas a coisa da lógica. A
lógica não serve à demonstração do Estado, mas o Estado serve à demonstração da lógica"
(MARX, pág. 36). Não seria difícil interpretar essa passagem numa chave exclusivamente
positivista, como se se entendesse que toda coisa factualmente existente estivesse em vias de
ser sacrificada pela filosofia hegeliana no altar de uma Ideia que seria uma deidade
completamente cega às necessidades dos homens, a revelar-se, no fim das contas, como nada
mais que a obra de um pensamento que fantasia com simetrias puramente especulativas: dessa
forma, a categoria hegeliana do Estado não alude a nada que exista realmente, mas a uma
abstração que, enquanto é dita corresponder à universalidade do espirito, satisfaz apenas as
exigências de coerência e de sistematicidade de uma filosofia em tudo alheia à realidade. E, a
bem da verdade, uma tal interpretação não estaria inteiramente incorreta.
De fato, o materialismo de Marx não se concretiza em sua forma conceitual mais acabada sem
uma denúncia de uma mistificação que se encontraria atuante no sistema hegeliano. Se
recorremos mais uma vez ao prefácio da segunda edição de O Capital, não poderia nos escapar
a referência à “mistificação” que a dialética teria sofrido “nas mãos de Hegel”; ou mesmo a
menção ao “núcleo racional” da dialética hegeliana (de onde sai, afinal, o título do livro de
Badiou citado há pouco), que seria preciso extrair de seu “invólucro místico” (Cf. MARX, pág.
140). É importante, contudo, perceber que – como na passagem citada há pouco, em que Marx
acredita ter feito descer a Ideia hegeliana até o plano da matéria, localizando-a agora, transposta
e traduzida, dentro dessa espécie de câmara escura ou mesmo na inscrição dessa sorte de códice
a que corresponderia a cabeça dos homens45 – a denúncia do misticismo de Hegel sugere estar

45Das limitações epistemológicas de Marx decorreria uma concepção de ideologia que, apesar de não encontrar-
se completamente definível segundo o aspecto que destacamos a seguir, ainda assim compreende um caráter de
”falsa consciência": nesse sentido, a sobriedade ”científica" de um socialismo que teria ultrapassado as falsas
promessas da utopia deverá atribuir a possibilidade de uma emancipação humana ao processo histórico de
desenvolvimento das forças produtivas. Descobre-se, assim, a apologia ao trabalho: a falsa consciência é uma

51
como que amparada numa concepção um tanto quanto ingênua concernente às relações entre
pensamento e realidade. Ela às vezes parece ir longe demais em seu ataque contra a metafísica,
ignorando que o próprio Hegel nunca advogou a existência de uma realidade separada,
absolutamente transcendente e, por conseguinte, em tudo estranha à realidade mundana. Com
justiça, o teor dessa denúncia faz indagar se Marx não teria avaliado o seu velho mestre segundo
um critério que lhe seria completamente extrínseco e, dessa forma, se ele não teria produzido
uma crítica totalmente inadequada a seu método dialético.
Sem perder isso de vista, considerando a perspectiva daquilo o que a reformulação teórica que
a Crítica da filosofia do direito de Hegel acaba por cobrar às ideias até então defendidas pelo
próprio Marx, seria interessante repararmos em como ele se desprende do tema da
“espiritualização”. Antes, quando ele ainda depositava todas as suas fichas na liberdade de
imprensa, a espiritualização não era entendida como um expediente alheio às lutas materiais,
servindo, em vez disso, ao reconhecimento de que seu alcance poderia e deveria ultrapassar as
restrições de sua imediatez local: dessa maneira, é como se a imprensa livre fornecesse ao
Estado a ocasião para que ele efetuasse o processo de reconhecimento da negatividade que o
habita, ou bem da negatividade em redor da qual a sua efetividade deveria estabelecer-se, uma
vez que os seus limites fossem instados a expandir-se para incorporar o que antes não havia
sido contemplado pela sua pretensa universalidade. A nos valermos do esclarecimento de
Kouvelakis, isso
significa reconhecer que ela [a materialidade] pertence a um “sistema
de necessidades” e, consequentemente, a uma cultura que lhe confere
seu caráter universal e sua objetividade. Nesse sentido, “espiritualizar”
a luta material significaria integrá-la, pela via da mediação da imprensa
livre, numa rede de conexões sociais mais extensa que faria possível a
auto-reflexão e o reconhecimento de certas "formas e "ideias" através
das quais a luta material pode representar-se, libertando-se das
restrições gerais que a engendraram. (KOUVELAKIS)

Espiritualizar era, assim, uma maneira de concorrer para a mediação entre as instâncias da
sociedade civil e do Estado, através de práticas concretas que possibilitariam superar as
limitações de determinados conflitos sociais ao conferir a eles o relevo de universalidade que
lhes permitiria chegar a um desfecho adequado, propriamente democrático. A partir da Crítica
da filosofia do direito de Hegel, no entanto, não há recomendação de espiritualizar nada,
porque, dadas as circunstâncias que seriam próprias do atraso alemão, nada se mostre passível
de espiritualização: doravante, esse processo é visto como uma mistificação que indevidamente
conduz às regiões etéreas da abstração filosófica, como se a perfazer unicamente uma falsa
consciência-de-si, porque o processo em questão estaria inevitavelmente descolado de toda e
qualquer realidade da atividade sensível humana. O novo ângulo sob o qual Marx aprecia o
espírito hegeliano não parece, portanto, ser totalmente estranho à dialética do filósofo alemão,
confirmando as nossas expectativas de agora há pouco?
O problema, entretanto, é que o trecho citado acima – em que se diz que, em Hegel, o momento
filosófico não é a lógica da coisa, mas a coisa da lógica – não coloca em cena somente o que
passaria como o “positivismo” de Marx. O que ele aponta também é para a incoerência que
esse aparente zelo da lógica hegeliana necessariamente implica quando opta por uma falsa

inconsciência da dependência da sociedade em relação ao trabalho e à sua necessidade inultrapassável. Badiou,


bem prevenido quanto a essas limitações, é capaz de ressaltar um outro aspecto da ideologia, prioritariamente
subjetivo e político, como deveremos ver no prosseguimento desta seção.

52
coerência, fabricada às expensas da empiria. Assim, de fato, haveria, por um lado, a detecção
de um alheamento de Hegel às positividades a que sua filosofia indiretamente se refere, como
no caso da sociedade civil, entrevista pelo filósofo, mas não percebida por ele em toda a
amplidão de sua existência histórico-conceitual. Mas constatá-lo não basta para apreender o
teor da crítica de Marx a seu velho mestre, porque, por outro lado, haveria também uma
insuficiência lógica, que faz com que a filosofia hegeliana socorra-se de uma intuição empírica
não mediada pelo conceito com o único intuito de camuflar a falta de articulação desse
pensamento, especialmente no que diz respeito ao estatuto teórico do Estado. Como o diz muito
bem Kouvelakis: “Mais precisamente, ele [Marx] mostra que Hegel não estabelece para o
conceito o movimento contraditório do real, mas que, de fato, ele se submete a esse real,
contentando-se em lhe dar uma aparência de dedução dialética a partir do conceito”
(KOUVELAKIS, páginas 98 e 99). E quanto a isso, Kouvelakis e Safatle, de forma muito
perspicaz, fazem notar de igual maneira o inesperado posicionamento de Marx, a contrastar
significativamente com o pretenso positivismo que animaria a sua dialética materialista:
“Somos até tentados a dizer: segundo Marx, o problema com a filosofia hegeliana não é sua
demasiada abstração, mas seu demasiado realismo” (SAFATLE, 2019b, pág. 123). 46 Tal como
o materialismo do Marx “maduro” não se resume à exposição do sistema de produção e
circulação de mercadorias em sua estrita positividade – e, para constatá-lo, não é necessário ir
além do primeiro capítulo de O Capital, onde o autor, ao indicar que nada existe na composição
física ou química dos avatares materiais dos valores de uso que explique o seu valor de troca,
deverá tratar, então, do fetichismo das mercadorias assinalando as suas “argúcias teológicas e
sutilezas metafísicas" (MARX, 1996, pág. ) –, a sua primeira crítica a Hegel se vale de uma
visada altamente subjetiva, isto é, ela se faz a partir de um subjectum que não encontrava na
dialética hegeliana o seu desenvolvimento lógico adequado. Esclareçamos, pois: não é que para
o Marx de 1843 a meta da espiritualização seja absolutamente indesejável. Em lugar disso, a
questão consiste em que limitar-se ao desejo de que a espiritualização finalmente ocorra, ou
mesmo acatar à sua expressa prescrição filosófica, venha a ser o caminho mais certo para torná-
la impraticável. Ao fazer sonhar que o Estado possa ser alguma outra coisa que não a realidade
histórica que se apresenta então sob esse nome, evita-se perceber que ele é já a materialização
de uma situação sem espírito.
Assim, da maneira como Marx o lia, Hegel quereria escrever a “biografia da Substância
abstrata, da Ideia” (Cf. MARX, pág. 58), a que até poderia ser atribuída alguma realidade, mas
nunca qualquer efetividade. Afinal, desse modo, também a filosofia hegeliana, tal como a
filosofia crítica de Kant, terá incidido num formalismo que impede pensar o movimento real
de contradição entre forma e matéria. Ou melhor, o seu formalismo é de uma espécie

46 O que Kouvelakis reitera: “Contrariamente a uma maneira corrente de ver as coisas à época, segundo Marx,
Hegel não peca por excesso de especulação, mas antes por empirismo” (KOUVELAKIS, pág. 99). É preciso dizer
também que o efeito místico denunciado por Marx deixa ver o quanto a crítica do Estado deve ao seu antigo
projeto, compartilhado com os hegelianos de esquerda, de uma crítica da religião, por exemplo, quando depara o
espanto diante da possibilidade de reencontrar na pessoa empírica do soberano a encarnação da Ideia: "Uma outra
consequência dessa especulação mística é que uma existência empírica particular, uma única existência empírica,
é concebida como a existência da Ideia em contraste com as demais. Produz, em seguida, uma impressão profunda,
mística, ver uma existência particular posta pela Ideia e encontrar em todos os níveis um Deus feito homem"
(MARX, pág. 59). Por outra, cabe lembrar, com a ajuda da detalhada biografia escrita por Michael Heinrich, que
o primeiro contato de Marx com a filosofia hegeliana de certa maneira antecipa a crítica que ele fará à inclinação
”empírica“ desta. Antes de acolher o pensamento de Hegel, com o que relutou bastante (Cf. HEINRICH, 2018,
pág. 230), Marx teria escrito um epigrama satírico que sintetiza muito bem a posição que ele acreditava ser
atribuível à dialética: "Kant e Fichte adoram o Éter percorrer/ E por lá uma terra distante encontrar,/ Mas eu
[Hegel] só quero, habilidoso, compreender/ Aquilo que na rua eu possa encontrar!" (HEINRICH, 2018, pág. 231).

53
ligeiramente distinta, bem particular, posto que ele faz menção a uma formalidade existente,
aceita pela especulação filosófica à força de reconhecer a sua evidência empírica, que nada
mais é que a da coagulação formal do Estado, na medida em que este é representação formal,
e apenas formal, dos interesses do povo. Posta ao lado dos interesses reais a que dá lugar – bem
como a colocar de lado os interesses reais a que não pode reconhecer um lugar –, vem instalar-
se qualquer coisa como uma mascarada, uma formalidade, uma mera cerimônia:
O Estado constitucional é o Estado em que o interesse estatal, enquanto
interesse real do povo, existe apenas formalmente, e existe como uma
forma determinada ao lado do Estado real; o interesse do Estado
readquiriu aqui, formalmente, realidade como interesse do povo, mas
ele deve, também, ter apenas essa realidade formal. Ele se transformou
numa formalidade, no haut goût da vida do povo, numa cerimônia. O
elemento estamental é a mentira sancionada, legal, dos Estados
constitucionais: que o Estado é o interesse do povo ou o povo é o
interesse do Estado. (MARX, pág. 83)

Na modernidade (ou, mais especificamente, numa Alemanha que não consegue acertar o passo
com a modernidade política, que de alguma maneira encontrava-se operante nas potências
europeias centrais), a universalidade existe apenas como uma cerimônia quase que inteiramente
desprovida de sentido. E, assim, intui-se que essa cerimônia serve a propósitos particulares, e
não pode deixar de servir a eles porque ela tem como sua maior função disfarçar a centralidade
de um vínculo social em especial, vínculo que se mostra absolutamente incapaz de existir sob
uma condição propriamente universal por corresponder, em essência, à forma genérica do
privilégio. Esse vínculo, contraditoriamente perpassado de desagregação, não é nenhum outro
senão o da propriedade privada, entrevista por Marx como a forma que tendem a assumir todos
os demais privilégios, mesmo em organizações sociais mais antigas tais como a estruturada
pelo feudalismo. Como diz o próprio Marx na Crítica da filosofia do direito de Hegel:
Frequentemente se disse que, na Idade Média, cada forma de direito,
de liberdade, de existência social, aparece como um privilégio, como
uma exceção à regra. Nesse caso, não se podia desconsiderar o fato
empírico de que esses privilégios todos aparecem na forma da
propriedade privada. Qual é o fundamento geral dessa coincidência?
Que a propriedade privada é a existência genérica do privilégio, o
direito como exceção. (MARX, pág. 124).

A descoberta dessa senha, que podemos representar como esse momento crucial em que se
descerra com a categoria da propriedade privada uma “existência genérica do privilégio” e,
consequentemente, o grande segredo das limitações democráticas intrínsecas à sociedade
moderna, fica mais clara num outro trabalho de Marx, escrito logo na sequência da redação de
Crítica da filosofia do direito de Hegel: trata-se do opúsculo intitulado Sobre a questão judaica,
publicado nos Anais Franco-Alemães em 1844 a propósito de uma polêmica que, dentre outros,
é levada adiante por Bruno Bauer, polêmica encetada a respeito da emancipação política dos
judeus na Alemanha. Nesse artigo, Marx contesta veementemente a posição de Bauer, que seria
a de que os judeus deveriam abandonar o seu particularismo e sectarismo “judaicos” antes de
reivindicarem a sua condição genérica de homens e, por conseguinte, de cidadãos do Estado
alemão: uma tal visão sugeriria haver como que uma predisposição dos judeus que os torna
essencialmente avessos ao potencial universalista da cidadania moderna, como se eles se
constituíssem como um grupo que resistisse absolutamente aos esforços de racionalização da
organização sócio-política vigente. Por sua vez, sem se preocupar especificamente com o

54
mérito de uma matéria abstrata como o seria necessariamente a pretensa disposição ou
indisposição essencial dos judeus para serem assimilados pelo Estado moderno, Marx ataca o
problema por um outro ângulo: o que ele contesta é que o Estado moderno, tal como teria sido
conformado pelas grandes revoluções liberais, esteja dotado da capacidade efetiva de assimilar
os grupos que ainda não puderam aceder a uma existência política plena.
A questão em torno da qual se estrutura o texto de Marx é de suma importância no que diz
respeito ao Esclarecimento e a suas pretensões políticas (mesmo se indiretas), vindo a mobilizar
o próprio núcleo daquilo que Balibar chama de Cidadão Sujeito. Não nos custa nada lembrar
que ninguém menos que o proponente da questão, Kant ele mesmo, havia publicado o seu
“Reposta à pergunta 'o que é o Esclarecimento?'” na revista (a saber, a Berlinische
Monatsschrift) em que, dois meses antes, quando o filósofo de Königsberg estava ainda a
concluir a redação de seu texto, Moses Mendelssohn publicara um outro texto que almejava
estabelecer em linhas gerais uma resposta a essa mesma pergunta, isto é, a pergunta relativa ao
teor do Esclarecimento (Cf. FOUCAULT, pág. 10). Muito embora não tenha podido ler o texto
de Mendelssohn antes de terminar o seu próprio, Kant encontrava-se bastante afinado com os
propósitos que orientavam a formulação da questão pelo pensador de origem e fé judaicas. Isso
porque, ainda que tenham sido escritos em completa ignorância um do outro, os dois textos
miram um mesmo objetivo: de acordo com Foucault, objetivo que visa “(...) não só a
possibilidade, não só o direito, mas a necessidade de uma liberdade absoluta, não só de
consciência mas de expressão em relação a tudo o que poderia ser um exercício da religião,
considerado como um exercício necessariamente privado” (FOUCAULT, pág. 11). Ou seja, tal
como teria dado fortes indícios o próprio Mendelssohn pelo menos desde a data de 1755 (Cf.
FOUCAULT, pág. ), ano em que, através de suas interlocuções públicas com Gotthold Ephraim
Lessing, havia deixado em estado de verdadeira estupefação o círculo dos intelectuais alemães
esclarecidos, por ter-se mostrado um homem que fora capaz de cultivar-se sem mestre em
muitas ciências e, ao mesmo tempo, um homem que tinha de ser considerado bem localizado e
radicado em sua comunidade religiosa, dessa mesma maneira, dizíamos, o exercício público da
razão deveria ser autorizado em sua total independência da problemática da fé. Aliás, o caso
de Mendelssohn é de um simbolismo todo particular porque, aos olhos de Kant, é como se, sob
certos aspectos, a Hacalá (isto é, o “Esclarecimento judaico”) que ele punha em marcha
houvesse se antecipado à Aufklärung “cristã". Como recapitula Foucault, o tal caso inspira um
elogio de Kant a Mendelssohn, porque Mendelssohn mostrou bem,
frisou bem que o uso da religião tinha de ser necessariamente um uso
privado, que não podia de maneira nenhuma exercer nem proselitismo
(...) nem autoridade sobre essa comunidade de ordem privada no
interior da sociedade. E essa atitude do pensamento judaico em relação
à religião judaica, em todo caso essa atitude do pensamento de um
judeu em relação à sua própria religião, deve servir, diz Kant, à atitude
que todo cristão deveria ter em relação à sua própria religião.
(FOUCAULT, páginas 11 e 12)

Após essa breve consideração histórica, que ainda guarda a sua pertinência quanto às
complicações da modernidade política em referência às quais tentamos situar a nossa discussão,
percebemos um deslocamento de posições que não se orienta propriamente segundo um
progresso linear e contínuo: ao avaliar a questão da emancipação judaica com a régua do
Esclarecimento, o posicionamento de Bauer parece aferir um retrocesso quando considerado
em relação ao de Kant. No entanto, esse posicionamento de Bauer, simétrico porque
aparentemente oposto ao do filósofo de Königsberg, não denuncia simplesmente uma regressão

55
política, mas coloca em causa uma verdadeira dificuldade prática e conceitual, expressa como
um impasse teórico que deverá ser superado pelo jovem Marx. Isso porque, por um tempo
considerável, na Alemanha das décadas de 1830 e 1840, o combate no campo das ideias
religiosas assumiu a função aproximada de um verdadeiro conflito político: num período em
que o Estado se encontrava muito mais próximo da religião do que é o uso atualmente, qualquer
declaração que destoasse dos princípios doutrinários melhor aceitos pelas autoridades colocava
sob ameaça os seus fautores, especialmente se estes fossem funcionários públicos, sujeitos
então à dispensa de suas atribuições pelo Estado. Assim, por exemplo, Bruno Bauer, David
Strauss e Ludwig Feuerbach, que haviam sido empossados como professores universitários na
mesma década, viriam todos a pagar por suas elaborações teóricas em matéria de teologia,
tendo todos os três sido impedidos de lecionar pelo resto de suas vidas (Cf. HEINRICH, 2018,
pág. ). Os chamados “hegelianos de esquerda”, assim designados de acordo com o que propôs
David Strauss (Cf. HEINRICH, pág. ) – que o seriam por assumir, em teologia, uma concepção
crítica quanto aos problemas relativos à história factual da religião, fazendo-o com o amparo
do dispositivo conceitual hegeliano – vinham a ser associados, dessa maneira, à designação de
“jovens hegelianos”, supostamente partidários do progresso político porque desapegados do
conservadorismo dos mais velhos. E Marx esteve situado aí por algum tempo, tendo eleito seu
ateísmo, ainda que muito brevemente, como uma das principais armas de seu arsenal crítico.
Como nos informa Michael Heinrich na imponente biografia que ele dedicou ao pensador
alemão, apesar de nunca terem sido publicados os manuscritos onde esse embate viria a ser
levado a efeito (manuscritos que, afinal, não foram sequer conservados), o jovem Marx,
visando uma estreita colaboração com Bauer e Feuerbach, havia se empenhado nesse caminho,
de incisiva crítica filosófica à religião: “Assim, Marx planejou a publicação de pelo menos
cinco textos filosófico-religiosos entre o início de 1840 e a primavera de 1842” (HEINRICH,
pág. 360).
Uma vez que tenhamos em mente que, na Alemanha da década de 1840, não estavam dadas as
condições para que a religião fosse considerada uma questão de natureza estritamente privada,
veremos que a divergência entre Bauer e Kant tem de ser atribuída à impossibilidade, manifesta
na época, de manter a religião dentro dos limites da simples razão. E onde a concepção kantiana
havia fracassado, a filosofia da religião de Hegel oferecia-se como uma alternativa, posto que,
à diferença do deísmo ou do ateísmo professados pelos iluministas, ela compreendesse a
religião como um campo em que a razão, além de não encontrar-se ausente ou apartada, era
reconhecida como sendo partícipe e beneficiária de alguns de seus maiores progressos. Não
pode nos passar despercebido, afinal, que a edição dos cursos sobre a Filosofia da religião de
Hegel tenha ficado aos cuidados de Bauer (Cf. HEINRICH, pág. 348). E, sobretudo, não pode
nos escapar que, nas Lições sobre a filosofia da religião, Hegel desenvolva uma relação
conceitual entre a religião cristã e o laço ético que viria a atar a comunidade humana:
A consciência da comunidade que faz, assim, a transição do homem
puro e simples ao Deus-homem – à intuição, à consciência, à certeza
da união, da unidade da natureza divina e da natureza humana –, é isso
por meio do quê a comunidade começa e se constitui a verdade sobre a
qual a comunidade é fundada. (HEGEL, pág. 242)

É claro que o grande filósofo responsável por reinventar a dialética para a modernidade não
deve ser visto como o proponente do que seria apenas uma outra teocracia, que acontecia de
estar assentada em novas bases somente por causa do Zeitgeist. É bem verdade que, sob um
certo aspecto, a sua filosofia apresenta-se de fato como uma teodiceia. Mas uma teodiceia em
que Deus viria a ser pensado adequadamente apenas pela filosofia, a qual era entendida

56
desfrutar de uma evidente vantagem sobre a religião (ainda que esta não esteja propriamente
excluída do movimento do conceito: o ponto, justamente, é que ela o alcançaria por outros
meios, a saber, pelos meios próprios à representação). Num contexto em que Estado e religião
estariam intimamente entrelaçados, a concessão desse privilégio do pensamento filosófico
sobre a representação religiosa terá rendido a Hegel a suspeita de panteísmo, o que, a despeito
do prestígio que ele gozava na década de 1820, era o bastante para ameaçar o seu cargo como
professor universitário (Cf. HEINRICH, 2018, pág. 308). Não obstante a complexidade da
situação – ou, ao contrário, a contribuir para que a suspeita de seus opositores aumentasse, e a
situação se tornasse ainda mais complexa –, o filósofo não abria mão de suas convicções
políticas. Assim, como se pode constatar pelo seguinte trecho da Filosofia do direito, Hegel
aponta que uma certa religiosidade não convém à efetividade do Estado, a não ser que ela seja
reconduzida para dentro de certos limites, presumivelmente de ordem privada:
Daqueles que buscam o Senhor e afiançam, em sua opinião inculta,
possuir tudo imediatamente, ao invés de se impor o trabalho de alçar a
sua subjetividade ao conhecimento da verdade e ao saber do direito
objetivo e do dever, deles só pode provir o destroçamento de todas as
relações éticas, a insensatez e a abominação. Estas são consequências
necessárias da disposição de ânimo religiosa que insiste em se ater
exclusivamente à sua forma e que se volta contra a realidade efetiva e
contra a verdade existente na forma do universal, isto é, das leis. Não é
necessário contudo que esta disposição de ânimo passe dessa maneira
à realização efetiva; ela pode, com o seu ponto de vista negativo,
restringir-se também a algo puramente interno, conformar-se às
instituições e leis, e dar-se por satisfeita com a resignação e com o
suspirar ou com o desprezar e o desejar. Não é a força, mas a fraqueza
que fez da religiosidade em nossos tempos uma forma polêmica de
piedade, esteja ela ligada a uma verdadeira carência ou também,
meramente, a uma vaidade não satisfeita. (HEGEL, pág. 50)

E, especificamente quanto à emancipação política dos judeus, fazendo frente ao anti-


semitismo, Hegel afirmava categoricamente a importância da cidadania moderna, uma
conquista que ele sustenta mesmo contra à “grita” que se lhe opõem na época. Ou pelo menos
é isso o que consta da longa citação que fazemos a seguir:
Por mais que se tivesse o direito formal de ser contra a concessão de
direitos civis aos judeus, visto que eles deviam encarar-se não apenas
como um grupo religioso particular, mas como pertencentes a um povo
estrangeiro, a grita, que se elevou contra essa concessão deste e doutros
pontos de vista, levou ainda menos em conta que eles são, antes de mais
nada, homens e que esta não é uma qualidade trivial, abstrata, mas que
ela implica que, graças à atribuição dos direitos civis é, muito mais, a
auto-estima de valer como pessoa detentora de direitos na sociedade
civil-burguesa o que se torna real, e que desta raiz infinita, livre de tudo
o mais, resulta a equiparação exigida do modo de pensar e da
disposição de ânimo. Não fosse assim, a separação de que se acusa os
judeus ter-se-ia, ao contrário, mantido e seria imputada com razão ao
Estado excludente como culpa e reprovação, pois ele teria com isso
desconhecido o seu princípio, a instituição objetiva e a potência desta.
A afirmação dessa exclusão, que se supunha ter razão no mais alto grau,
revelou-se, também, na experiência, como a mais insensata, e o modo

57
de agir do governo, ao contrário, como sábio e digno (HEGEL, páginas
52 e 53)

Mesmo que, em última instância, as suas consequências políticas não difiram em quase nada –
ambos os pensadores tendo conclamado a alguma independência entre o exercício público da
razão e uma devoção piedosa à religião –, as ideias de Kant e de Hegel inspiram estratégias
diversas quanto à maneira de se posicionar ante o saber e a fé: se é verdade que nenhuma das
duas filosofias ataca propriamente a legitimidade da religião, enquanto Kant propõe uma
separação clara a indicar a impossibilidade de que a jurisdição do saber alcance os domínios
da fé, Hegel dissolve as oposições entre os dois num processo dialético, em que não se pode
mais conceber um saber que se contraponha unilateralmente à fé, e nem uma fé que se queira
absolutamente livre do saber. Desta última concepção se depreende muito claramente que a
razão não possa mais manter-se alheia à religião. E, contraditoriamente, quando ela se vê
impedida de professar qualquer indiferença àquela que supostamente seria a sua contraparte, a
razão depara a ocasião para assumir uma atitude muito mais combativa: doravante, uma vez
que entrem em conflito, ela deverá investir furiosamente contra a religião, transformando-se
em sua crítica aberta e impiedosa. De sorte que uma certa descendência de Hegel envereda por
um ateísmo cuidadosamente balizado pelo movimento do conceito: prenunciada pelo grande
trabalho de Strauss intitulado A vida de Jesus, obra que descreditava o valor historiográfico
dos relatos bíblicos, ela vinga especialmente em Feuerbach e em Bauer, que não fazem segredo
algum de seu ateísmo e se esforçam para pensá-lo nos termos de uma nova filosofia do homem.
Assim, aquele que foi o principal colaborador de Marx no projeto de uma crítica filosófica da
religião, a saber, Bruno Bauer, pode ser visto trilhar um caminho muito característico à
intelectualidade alemã. Convém dizer que, antes filiado a uma concepção teológica
relativamente conservadora, que celebrizou o seu autor através de uma polêmica contra o livro
de David Strauss sobre a vida de Jesus Cristo, Bauer radicaliza progressivamente as suas ideias,
vindo a exigir, quase que paralelamente a Kant e a Hegel, que o Estado mantivesse distância
da ciência (isto é, no vocabulário que à época encontrava-se tomado de hegelianismo, o
pensamento filosófico), mesmo que à ciência coubesse sempre estar do lado do Estado (Cf.
HEINRICH, 2018, pág. 348). E faz-se necessário reparar que, durante o período em que tornou-
se conhecido graças à polêmica com Strauss, Bauer mostrava-se consequente para com a
interpretação hegeliana, como se pode ver com a ajuda de Michael Heinrich:
Segundo Bauer, o Antigo Testamento seria dominado pela lei de
Moisés, mas a consciência legal seria uma consciência servil, sobre
cuja base uma teocracia teria sido estabelecida; já o cristianismo do
Novo Testamento, como na tradição hegeliana, seria a religião da
liberdade. (HEINRICH, 2018, pág. 347)

Na sequência da radicalização de suas ideias, antes mesmo de escrever os seus textos mais
críticos (tais como Crítica da história evangélica de João), Bauer, que possivelmente foi
influenciado por Marx nesse quesito (Cf. HEINRICH, 2018, pág. 364), vivencia o
desparecimento de qualquer fé que ele pudesse alguma vez ter professado, o que o engajará
num aguerrido combate filosófico que reconhece como uma das principais tarefas da “ciência”
a estrita refutação conceitual da teologia. Isso não impede, contudo, que alguns traços de sua
antiga concepção teológica tenham se mantido presentes, tais como o da distinção intra-
religiosa aludida há pouco, que permitiria reconhecer ao cristianismo um impulso universalista,
capaz de prenunciar a liberdade política moderna, em oposição ao suposto particularismo da
religião judaica (traço que, parece-nos, mantém-se negativamente, porquanto, se na versão
mais radical de seu pensamento o cristianismo não deverá continuar gozando dessa qualidade
58
de propagação da universalidade – por ser, afinal, uma religião –, o judaísmo, em sua visão,
seria ainda mais irracional e sectarista do que o credo de Cristo). Depois de se estabelecer na
cidade de Bonn, em sua correspondência com Marx, Bauer insiste para que o amigo se junte a
ele, pressionando-o para tomar parte num conflito com uma repercussão que, a seu ver, seria
nada menos que histórica: “Em certo sentido, essa contínua pressão por parte de Bauer se devia
a sua convicção, expressa diversas vezes, de que a colisão entre a Igreja e a ciência
desencadearia uma crise política e social de dimensões históricas” (HEINRICH, 2018, pág.
361). Fica apenas entrevista, portanto, essa possibilidade, nunca concretizada, de que o jovem
Marx, na época com um doutorado ainda por concluir, houvesse assumido o cargo de professor
da universidade de Bonn e, dessa maneira, de que ele houvesse cerrado fileira com Bauer num
front alemão do Esclarecimento, tendo sido declarada aí uma guerra aberta contra toda e
qualquer concepção religiosa ou formulação discursiva minimamente suspeita de teologia.
Contudo, a escrita de Sobre a questão judaica (e também a de Crítica da filosofia do direito de
Hegel) – escrita que se dá anos depois de Bauer mudar-se para Bonn – se não coloca um fim
definitivo ao projeto de uma crítica filosófica à religião, relativiza consideravelmente a sua
importância. Como se pode concluir por sua argumentação, a partir de então, é como se o só
projeto de uma crítica da religião houvesse se tornado um empecilho para estabelecer de
maneira adequada os propósitos pelos quais um pensamento verdadeiramente consequente tem
de se pautar se quiser estar à altura da práxis: como deverá ficar patente, quando escreve essa
obra, Marx já não acredita que a crítica ao domínio das ideias religiosas baste à exposição das
contradições de que padece uma razão que ainda não foi capaz de se efetivar no mundo. Dessa
maneira, apesar de reconhecer alguma originalidade aos questionamentos de Bauer, Marx não
pode deixar de notar os impasses nos quais eles se enredam: isso porque esses questionamentos
erram o verdadeiro alvo, reiterando uma falsa solução, que seria a de prescrever a superação
da religião, em vez de discernir o núcleo real da matéria em causa. A bem da verdade, sob uma
certa perspectiva, a problemática de Bauer teria dado lugar a uma pergunta justamente
enunciada em seu questionamento: sendo a religião um fator reconhecidamente
particularizante, o qual resulta na limitação da universalidade da razão, não caberia dizer que
onde ela ainda se faz presente, tanto nas instituições como nos indivíduos, ela necessariamente
obsta ao progresso, impedindo que venham a ser racionais como tais o povo e o Estado que
nela procuram abrigo? Ou, como Marx sumariza a posição de seu antigo colaborador:
“Enquanto o Estado for cristão e o judeu judaico, ambos serão igualmente incapazes tanto de
conceder quanto de receber a emancipação” (MARX, pág. 34). Conclusão que decorre da nova
forma – que, de acordo com Marx, foi descoberta por Bauer – de perguntar sobre a emancipação
judaica: “Ele pergunta: como são constituídos o judeu a ser emancipado e o Estado cristão que
deve emancipar?” (MARX, pág. 34). Por meio desse entendimento, como deve ser óbvio, a
emancipação humana só poderia tomar corpo com a superação histórica da religião (superação
que pode muito bem ser entendida como uma tarefa que cada indivíduo deve tomar a peito).
Mas, indo além do questionamento sobre a constituição de quem deveria ser emancipado e de
quem deveria emancipar, Marx acrescenta uma outra pergunta, na tentativa de superar a
unilateralidade que ele acredita atravessar a elaboração do problema tal como imaginada por
Bauer: quando se fala da emancipação dos homens, é preciso perguntar-se também “de que
tipo de emancipação se trata?” (MARX, pág. 36). Eis aí o ponto cego da argumentação de
Bauer: ao deixar que a sua crítica vise apenas o Estado cristão – tido por ele, de maneira
parcialmente correta, como sendo incapaz de emancipar os judeus enquanto homens –, Bauer
não critica o Estado como tal. O que, por outro lado, significa que ele não pôde dar a ver em
que é que a emancipação política se relaciona com a emancipação humana (Cf. MARX, pág.
36). De sua parte, tendo indicado a necessidade de evidenciar como (não) se relacionam os

59
dois tipos de emancipação, Marx pode enunciar muito claramente a seguinte pergunta: “o ponto
de vista da emancipação política tem o direito de exigir dos judeus a supressão do judaísmo e
do homem de modo geral a supressão da religião?” (MARX, pág. 37)
Limitando-se a preparar o momento em que a empresa teórica de Bauer será classificada e
escanteada como nada mais do que uma ideologia alemã dentre outras, Marx até concede que
em seu país a questão judaica é ainda uma questão teológica. Mas isso somente porque na
Alemanha não haveria um Estado na acepção moderna da palavra (Cf. MARX, pág. 37). Para
ele, a questão muda completamente de figura se é apreciada através do prisma daquilo que a
emancipação política realmente pôde concretizar na modernidade, lá onde ela de fato foi levada
a cabo, a saber, nas nações que passaram por um autêntico processo revolucionário,
especialmente a França e os Estados Unidos. Nessas nações, a emancipação política, se bem
que implicada na conquista do Estado de uma efetiva independência da religião, não fez com
que o domínio das ideias religiosas desaparecesse por completo. Antes, ela produz uma
realocação em que a religião não se torna necessariamente mais fraca, adquirindo, isso sim,
uma nova configuração. E é dessa forma que, mesmo sendo o “único lugar em que a questão
judaica perdeu seu sentido teológico e se tornou uma questão realmente secular"(cf. MARX,
pág. 37), "a América do Norte é sobretudo a terra da religiosidade, como confirmam a uma só
voz Beumont, Tocqueville e o inglês Hamilton" (MARX, pág. 38). 47 Passa-se, pois, a uma
constatação fundamental: "A emancipação política em relação à religião não é a emancipação
já efetuada, isenta de contradições, em relação à religião, porque a emancipação política ainda
não constitui o modo já efetuado, isento de contradições, da emancipação humana" (MARX,
pág. 38). De outra maneira, valeria dizer que é o Estado moderno que se torna um Estado livre,
desobrigado de prestar contas às doutas autoridades da religião, antes mesmo - e de maneira
independente - de o próprio homem ter-se tornado livre, tanto dela como de outras
determinações que continuam a denunciar a sua limitação enquanto ser racional.
Isso significa que a pergunta formulada por Marx, a qual registramos no final do penúltimo
parágrafo, tem de ser respondida com uma negativa: seria não só abusivo, mas verdadeiramente
contraproducente que o Estado exigisse dos judeus ou mesmo dos homens em geral que, para
acederem à condição de cidadãos, eles devessem abdicar da religião que professam. Mas isso,
entenda-se bem, não porque a religião tenha deixado de ser concebida como uma limitação,
como um real obstáculo para a liberdade humana, e sim porque a espécie de libertação que
tornaria a religião perfeitamente desnecessária como vínculo comunitário não poderia jamais
ser realizada por intermédio do Estado moderno. Ao contrário do que propagam certas
representações desorientadas, as quais talvez tenham ficado mal acostumadas a pintar Marx
como uma besta-fera do ateísmo militante, o pensador alemão não faz tanto caso da crítica da
religião (pelo menos não em seus principais escritos), além de não prescrever, de maneira
alguma, que o Estado imponha sua irreligiosidade goela abaixo daqueles que viriam a ser os
seus súditos: em definitivo, o seu pensamento político não é o precursor de qualquer
legitimação dos “crimes de pensamento” de que fala George Orwell em 1984. A sua atitude
revela-se completamente outra, por exemplo, a contrastar radicalmente com a de Bauer. Como
se pode ver, Marx não busca descobrir o conteúdo teológico secretamente encerrado nas
instituições do direito, mas sim o seu enraizamento material: “Não transformamos as questões
mundanas em questões teológicas. Transformamos as questões teológicas em questões
mundanas. Tendo a história sido, por tempo suficiente, dissolvida em superstição, passamos

47 Marx talvez tenha antecipado a análise de uma situação em que a religião contrai relações novas com o mercado,
situação em que haveria não a redução da religião ao mercado, mas em que ela se veria grandemente influenciada
pela natureza concorrencial .

60
agora a dissolver a superstição em história” (MARX, pág. 38). Dessa maneira, Marx esboça
uma teoria da religião como suplemento para uma carência cuja raiz seria na verdade material
(diga-se de passagem, teoria apenas esboçada): "Para nós a religião não é mais a razão, mas
apenas o fenômeno da limitação mundana" (MARX, pág. 38). Ou, de maneira explícita, tal
como ele formula a questão num conhecido trecho da introdução à Crítica da filosofia do
direito de Hegel (que foi escrita depois tanto desta mesma Critica... quanto de Sobre a questão
judaica): “A miséria religiosa constitui ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o
protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo
sem coração e a alma de situações sem alma. A religião é o ópio do povo” (MARX, páginas
145 e 146). Nesses termos, a “(...) crítica da religião é, pois, o germe da crítica do vale de
lágrimas, do qual a religião é a auréola” (MARX, pág. 146). Ou seja, ela é o germe porque a
crítica da religião antecipa (enquanto deve ser sucedida por) um desmascaramento da “auto-
alienação humana nas suas formas não-sagradas” (Cf. MARX, pág. 147), essa última, sim,
sendo uma empresa crítica dotada da virtude de apontar por qual direção deve encaminhar-se
a emancipação humana.
É necessário ter muito claro que Marx nunca ignorou os progressos da emancipação política
realizados pelas grandes revoluções burguesas, tendo se mantido bastante consciente das
movimentações táticas que a circunstância estruturada em torno do Estado moderno requer
mesmo daqueles que reivindicam a emancipação humana para-além dos limites da mera
emancipação política. 48 Com efeito, o pensador alemão reconhece prontamente esses
progressos, que, a seu ver, podem ser identificados no processo efetivo de destituir a religião
do estatuto de um eixo fundante, tido como se fosse primeiro em sua suposta capacidade de
reunir em seu redor a comunidade humana - eixo que, por meio do Estado (ou mais
precisamente, por meio das relações que o Estado recomenda aos homens que entretenham uns
com os outros), teria sido deslocado e transformado então em apenas mais uma diferença
interior à comunidade (Cf. MARX, páginas 41 e 42). Mas, de maneira a aprofundar a
componente democrática dessas grandes revoluções liberais (sobretudo da Revolução
Francesa), para Marx, uma tal ideia não poderia efetivar-se senão "(...) declarando a revolução
como permanente” (Cf. MARX pág. 42). E, de certa forma, ainda que as suas consequências
não sejam de maneira alguma equivalentes (afinal, a menção a uma "revolução permanente"
não deixa de aludir positivamente aos jacobinos e ao terror revolucionário), isso dá-se em
consonância com a disposição anti-utópica da filosofia hegeliana: uma crítica do Estado, tal
como pensada por Marx, é necessariamente uma crítica das limitações das revoluções
burguesas, e isso tanto do ponto de vista do que elas realizaram, como do ponto de vista dos
meios que os seus principais atores entenderam por bem empregar para alcançar o que
esperavam realizar (isto é, os meios disponibilizados pelo Estado). Quanto a esse ponto, com a
competência habitual, Kouvelakis faz um ótimo balanço, a sopesar desde o reconhecimento da
importância histórica das revoluções burguesas até a inesperada convergência com Hegel:
O grande mérito da Revolução Francesa, ele [Marx] diz, é que ela criou
instituições representativas baseadas no sufrágio universal e na
igualdade de todos os cidadãos perante a lei, e esse avanço é
irreversível. Apreender tanto a sua importância quanto os seus limites

48 A bem da verdade, no que diz respeito à necessidade de mover-se taticamente em vistas do Estado moderno,
recordemos que, tal como nos é dado saber por sua correspondência com Arnold Ruge, Marx havia redigido uma
“(...) petição requerendo os direitos cívicos dos judeus de Colônia”. Cf. BENSAÏD, in MARX, pág. 22. Cabe
lembrar ainda que Marx, em seu exílio auto-imposto, emigrou para a Inglaterra porque lá, país em que o
capitalismo assume a sua forma clássica, à diferença da Alemanha e da França, o direito de organização estava
assegurado.

61
é, ipso facto, definir o conteúdo e os objetivos de qualquer nova
revolução, os quais terão de tomar as coisas lá onde a revolução
precedente as deixou. (...) Porque, Marx diz, a Revolução Francesa não
foi capaz, tanto quanto Hegel, de resolver o problema da transição da
sociedade civil para o estado – e Hegel já tinha entendido esse fracasso
em fazê-lo, no constante atraso que o separou do acontecimento,
mesmo que aquele [fracasso] o vincule a ela. (KOUVELAKIS)

Contudo, como não deve ser difícil de ver a essa altura (e como esclarece o próprio Kouvelakis
no prosseguimento de sua argumentação), diferentemente de Hegel, Marx entende que as
revoluções burguesas – e, mais uma vez, a Revolução Francesa em especial, devido à
radicalidade com que alguns de seus principais atores aderiram à universalidade de seus
propósitos – colocaram corretamente a questão. Em particular, essas revoluções teriam
colocado corretamente a questão de como deve proceder a crítica do Estado enquanto tal, já
que, doravante, o Estado é discernido de forma muito clara em sua clivagem relativamente à
sociedade civil. Ou, de outra maneira, diremos que, com a Revolução Francesa, descortina-se
uma outra divisão do sujeito moderno, que não coincide com aquela que faz entrar em
contradição o sujeito da enunciação e o sujeito do enunciado, e que compõe um dos aspectos
principais da divisão subjetiva de que ocupou-se muito especificamente Alain Badiou nas
décadas de 1970 e 1980.
Com Marx, portanto, pode-se perceber que, antes de corresponder de forma adequada à sua
dupla determinação, como queria Hegel, o indivíduo, na modernidade política, se divide em
cidadão (Staatsbürger) e sujeito (Untertan), perfazendo um estranhíssimo compósito, um ser
terrestre-celestial que, assim, daria lugar a uma contradição inconciliável. Nas inspiradas
palavras de Marx:
Onde o Estado político atingiu a sua verdadeira forma definitiva, o
homem leva uma vida dupla não só mentalmente, na consciência, mas
também na realidade, na vida concreta; ele leva uma vida celestial e
uma vida terrena, a vida na comunidade política, na qual ele se
considera um ente comunitário, e a vida na sociedade burguesa, na qual
ele atua como pessoa particular, encara as demais pessoas como meios,
degrada a si próprio à condição de meio e se torna um joguete nas mãos
de poderes estranhos a ele. (MARX, pág. 40)

E, a bem da verdade, o que se chama de indivíduo na modernidade política nada mais é que a
circunstância em que o burguês, em sua prática e aspirações cotidianas, tem de apresentar-se
como se a desvelar a verdadeira estrutura de uma cidadania formal, motivo pelo qual Marx
enfatiza que o “(...) homem real só chega a ser reconhecido na forma do indivíduo egoísta, o
homem verdadeiro, só na forma do citoyen abstrato” (MARX, pág. 53). Ou pelo menos é o
que mostra a breve análise das constituições da França revolucionária de 1793 e de 1795
empreendida por Marx em Sobre a questão judaica (Cf. MARX, pág. 47 a pág. 51): o homem
universal de que elas falam e que pretendem resguardar em seus direitos de cidadão o seria de
acordo com os critérios de uma liberdade alcançável unicamente por meio da afirmação de um
exercício privado da fé, ou bem da contenção do indivíduo em seus próprios limites e da
possibilidade dele desfrutar de sua propriedade como bem entender (as suas crenças incluídas
no cômputo); assim como o seria de acordo com o critério de uma segurança [surété] cuja
justificava fundamental corresponde à de estabelecer que “(...) o conjunto da sociedade só
existe para garantir a cada um de seus membros a conservação de sua pessoa, de seus direitos
e de sua propriedade” (MARX, pág. 50). Contraditoriamente, esse indivíduo não deixa de ser

62
um homem “(...) privado de sua vida individual real e preenchido com uma universalidade
irreal” (MARX, pág. 41). Isso porque o que está em questão não é a possibilidade de o burguês
constituir a verdadeira substância da universalidade própria ao cidadão moderno, e sim o
inevitável desmentido de que uma tal coisa ocorra. O que acontece pelo simples motivo de que,
ao passo em que o burguês tenta lhe fornecer essa pretensa substância, a cidadania moderna se
vê tomada de uma vacuidade inultrapassável: quase como se numa lógica de matrioska – que
são aquelas famosas bonecas russas que contêm outras tantas bonecas dentro de si, elas mesmas
contidas e continentes –, a cidadania moderna não poderia ser muito mais do que um invólucro,
na melhor das hipóteses, continente do direito à propriedade privada e das determinações
particulares que acompanhariam esta última; mas, paradoxalmente, a depender das
circunstâncias, suscetível de ser contida por ambas. Em todo caso, a sua organização é a de
uma divisão mais ou menos intransponível, ajustável (como se disse: podendo estar contida
pelas particularidades ou contê-las) porque mantida numa relação inorgânica. 49 A contradição,
claro, resulta de a propriedade privada não ser passível de universalização; ou, de outra
maneira, a contradição resulta do fato de que a propriedade privada dificilmente poderia ser
instituída com um alcance universal sem que nenhuma das restrições particulares por ela
implicadas sobrevenha à cidadania (pois, dessa maneira, forma e conteúdo seriam adequados
um ao outro). E a sofística do mundo político moderno consiste precisamente nisso, a saber,
em que o burguês tenha se transformado na medida de todas as coisas – ou melhor, em que ele
se tenha transformado na medida de todos os homens: “(...) o homem como bourgeois é
assumido como homem propriamente dito e verdadeiro” (MARX, pág. 50).
De seu ponto de vista limitado, Bauer não conseguiu enxergar que, a propósito da questão
judaica, o que entrava em cena não era nenhuma sofística pessoal, como pretensamente seria o
caso se cada um dos judeus que estivesse a reivindicar os seus direitos cívicos sem, contudo,
abdicar de sua religião houvessem encontrado nisso uma oportunidade de se aproveitar da
constituição política moderna para fazer uso de um discurso dúplice, ao exigir do Estado uma
laicidade de que eles mesmos teriam se desobrigado (o que causaria a impressão de eles terem
preservado, contrariamente ao teor dessa mesma constituição, o que acabaria passando por um
privilégio); o que há, na verdade, é a sofística do próprio Estado político (Cf. MARX, pág. 41),
enquanto a sua existência viria a atestar apenas uma libertação parcial e abstrata da religião (a
qual equivale, na prática, à possibilidade de crer nela em privado). Assim, reiteremos: por
maiores que tenham sido os seus progressos, o Estado moderno não seria capaz de ultrapassar
um determinado limite. De fato, ele serve como um meio para libertar os homens da religião,
ao permitir que estes assumam uma outra relação para com ela; mas ele o faz de uma maneira
necessariamente parcial, inaugurando com isso uma outra contradição, ou bem deslocando as
velhas contradições para outros lugares. Tendo isso em vista, a reformulação do papel a ser
desempenhado pela crítica deverá ter um amplo alcance. O que reverbera na interpelação que
Marx ensaia fazer dos judeus (entendidos, obviamente, não como grupo religioso, mas como
grupo cujos membros ainda não puderam aceder ao estatuto de cidadãos plenos dentro do
estado alemão), interpelação que, como tinha de ser, acaba soando muito distante da de Bauer:
Não estamos, portanto, dizendo aos judeus, como faz Bauer: vós não
podeis vos tornar politicamente emancipados sem vos emancipar
radicalmente do judaísmo. Estamos lhes dizendo, antes: pelo fato de
poderdes vos emancipar politicamente, sem vos desvincular completa
e irrefutavelmente do judaísmo, a emancipação política não é por si

49O que admite duas monstruosidades gêmeas: o de que apenas o “cidadão” possa ser proprietário, ou bem de que
o proprietário seja o único cidadão.

63
mesma a emancipação humana. Se vós, judeus, quereis vos emancipar
politicamente sem vos emancipar em termos humanos, então a
parcialidade e a contradição não se acham apenas em vós, mas também
na essência e na categoria da emancipação política. (MARX, pág. 46)

Na interpelação de Marx, verifica-se uma atitude diversa, tendente ao universalismo porque


motivada pela compreensão de que todos, não importa se judeus ou cristãos, encontram-se
excluídos da emancipação humana – e seriam todos mantidos nessa situação de exclusão
precisamente devido às limitações da emancipação política representada e concretizada pelo
Estado moderno. Ademais, por ser uma crítica do Estado enquanto tal, ela também se desdobra
em crítica das tentativas de mobilizar os instrumentos tornados disponíveis por esse Estado
para realizar a pretendida emancipação humana. E um curioso paralelo pode ser traçado desde
esse amplo tracejado que a crítica desenha para si, posto que a via de Bauer tenha dado indícios
de ser tão coercitiva quanto o fora a experiência do terror revolucionário (afinal, o seu ateísmo
cívico não deixa de ser uma versão muito mais radical e impraticável do culto ao Ser Supremo
defendido por Robespierre). Portanto, sob um certo aspecto, também vale para Bauer o que
Kouvelakis conclui a propósito da crítica que Marx dedicou aos jacobinos:
a fase jacobina da Revolução – e a sentença jacobina que “declarou a
Revolução como sendo permanente” – podia somente prolongar,
através de meios coercitivos, o “ato sensacional” alcançado no registro
político; para ir mais fundo, ela teria de transcender os seus próprios
limites internos. (KOUVELAKIS)

Esses limites internos têm que ver, naturalmente, com a materialidade que percorre toda a
extensão do problema da emancipação humana. Assim, convém captarmos aqui as linhas gerais
de uma brilhante análise que, um pouco por obra do acaso, estaria apenas esboçada na direção
materialista que Marx tentou imprimir à sua empresa crítica: ela consistiria na investigação da
situação sócio-histórica do judeu para, só então, compreender o que efetivamente moveu
obstáculo a que ele se emancipasse. Bem entendido, não a situação do judeu sabático, como
Bauer acreditava ser o caso, mas a do judeu cotidiano (Cf. MARX, pág. 56), que tem de ganhar
a sua vida num mundo em que prevalece o uso prático que o burguês lhe emprestou. E, de
acordo com Marx, ao adotar essa perspectiva, a emancipação dos judeus (como a de todos os
homens) teria de mostrar-se realizável unicamente através de sua emancipação em relação ao
dinheiro e aos negócios, sendo essas duas circunstâncias dois momentos fundamentais de sua
separação como grupo social que viria pôr-se à parte dos demais homens. 50 Com essa

50 Não podemos falhar em observar que, ao longo de sua vida, Marx teria feito uma série de declarações carregadas
de racismo e de anti-semitismo, sobretudo em sua correspondência com Engels (Cf. ANDERSON, pág. ).
Geralmente, essas são declarações contraditórias, onde ficam visíveis, certamente, os preconceitos de sua época,
mas que não deixam de entrar em conflito com as ideias e com a vida do pensador alemão - como o atesta, aliás,
a sua ascendência judaica (ainda que, na prática, Marx nunca tenha professado a religião de seus antepassados).
Essas declarações fazem aparições insidiosas, por exemplo, como acontece na última parte de Sobre a questão
judaica, em que, de maneira um tanto aleatória (portanto, a indicar a presença de alguma formação ideológica),
os judeus são associados ao trato com o dinheiro. Não obstante a constatação desse fato, nós evitaremos aqui
qualquer discussão mais aprofundada sobre o teor do anti-semitismo de Marx, como se se tratasse de absolvê-lo
ou de condená-lo diante de algum tribunal. Para uma boa discussão da (ir)relevância dessa questão, recomendamos
o texto "’Na e pela história.' Reflexões acerca de Sobre a questão judaica", de Daniel Bensaïd. Mas, mesmo que
não acreditemos ser relevante estabelecer em que medida Marx poderia ser considerado um anti-semita, ficaria
ainda uma outra pergunta: qual é o grau de convergência do anti-capitalismo, tão importante no pensamento de
Marx, e do anti-semitismo moderno, de alguma maneira presente no pensador alemão? Uma análise que opte por
uma compreensão material da situação sócio-histórica dos judeus tenderia a perder de vista essa convergência?
Ao contrário, uma explicação material não precisa ser uma explicação genérica, podendo admitir, portanto,
diferenciações qualitativas. A caracterização mais precisa do anti-semtismo moderno, como distinguido com

64
prevenção, os judeus poderiam, enfim, ser apreciados em sua verdadeira existência histórica -
o que testemunha um posicionamento teórico fundamentalmente estranho a qualquer ilusão
quanto a caracterizar a religião ou mesmo a etnia judaicas como elementos eternos e imutáveis.
Donde a afirmação categórica de Marx: "O judaísmo não se conservou apesar da história, e sim
através da história. (...) É das suas próprias entranhas que a sociedade burguesa gera
continuamente o judeu” (MARX, pág. 57). Essa visão, a um só tempo materialista e capaz de
acolher demandas universais, permite discernir o judeu, não como um simples resto anacrônico,
que não teria podido ainda assimilar-se à ordem política moderna, mas como uma existência
histórica que, contraditoriamente, essa mesma ordem sócio-política produz e reproduz (e, como
sabemos, trata-se, aí, de uma existência histórica que, a certa altura, essa ordem sócio-política
virá a rejeitar violentamente, e com uma violência inédita). Com isso, prenuncia-se a análise
mais madura que Marx fará do sistema capitalista, atinente ao caráter desigual e combinado de
seu desenvolvimento global (Cf. BENSAÏD, pág. ): repare-se, pois, que, desse ponto de vista,
ainda que o capitalismo não possa ser visto como tendo originado certas categorias da divisão
social, é ele que as reproduz, e as reproduz com um marcado caráter de resto, por exemplo,
como terá acontecido historicamente à mulher, ao judeu, ao colonizado, etc. 51 Por conseguinte,
existe nesse processo um traço próprio de um construto, porque nele se traduz uma infausta
tentativa de animar o inanimado (no caso de seu trabalho maduro, o quase-vivente Capital) -
um pouco como se se tratasse da confecção de um Golem, esse artifício quase-vivente
conjurado para auxiliar e defender a comunidade em meio à qual ele ”nasce”, mas que, sendo
inevitavelmente levado ao descontrole, acaba por representar uma verdadeira ameaça para ela.
Ou, para dizê-lo com a elegância de Marx, tal como expressa numa famosa frase do prefácio à
primeira edição de O Capital: o morto tolhe o vivo.

muito apuro por Postone, não corresponde a de um racismo entre outros: se o racismo normalmente relega o objeto
de seu ódio a uma posição inferior, o anti-semitismo projeta no judeu um poder difuso, invisível, não "enraizado",
imaginando-o como membro de um grupo de conspiradores e mesmo de senhores do mundo (Cf. POSTONE, pág.
89). Aliás, Postone sempre fez notar que, à esquerda do espectro teórico e político, existe um risco de perder de
vista a especificidade do anti-semitismo e do Holocausto por causa de uma adesão imediatista a um universalismo
de ocasião, apoiado na identificação com as vítimas do momento, esse próprio universalismo sendo incapaz de
prevenir-se contra as armadilhas da formação ideológica do anti-semitismo moderno (Cf. POSTONE, ). o que é
o oposto de nos emanciparmos do judeu para que libertemos a nossa sociedade de um dinheiro e de um negócio
alienantes; . A análise é centrada no conceito marxiano de fetichismo, a qual reproduz num outro nível a divisão
entre concreto e abstrato próprio da cidadania moderna (Cf. POSTONE, pág. 90; Cf. também pag. 94). ”as
características específicas do poder atribuído aos judeus pelo anti-semitismo moderno - abstratividade,
intangibilidade, universalidade, mobilidade - são todas características da dimensão de valor das formas sociais
fundamentais que caracterizam o capitalismo” (POSTONE, pág. 91). Para o anti-semitismo moderno, os judeus
são o próprio capitalismo (Cf. POSTONE, pág. 93). Sob esse aspecto, mesmo que estejamos falando apenas de
suas intenções, o fascismo tem de ser visto como o negativo do comunismo. A nossa opção de referir a questão
judaica não é incidental. A razão para tanto é um efeito curioso, realmente macabro: o de que a impossibilidade
de perfazer o Estado moderno em seu papel de garantidor de direitos individuais tenha sido mais mortífero para
essas populações do que a situação anterior. A dificuldade histórica consiste, então, em deparar alguma solução
política que seja considerada inequívoca do ponto de vista de seus efeitos de universalidade. Mas não seria
excessivo dizer que Marx opera numa zona cinzenta, . Como a abstração característica da emancipação política
se encadeia com a abstração do valor sob o capitalismo: ”Nesse sentido, na sequência de sua emancipação política,
os judeus constituíram o único grupo na Europa que preencheu a determinação de uma cidadania como pura
abstração política” (POSTONE, pág. 94).
51 O princípio materialista presente nesse momento inicial parece guiar Eric Williams em seu clássico Capitalism

and slavery [Capitalismo e escravidão]. Lê-se num trecho: ”Aqui, então, se encontra a origem da escravidão
negra. A razão foi econômica, não racial; tinha a ver não com o trabalhador, mas com o quão barato era o trabalho”
(WILLIAMS, pág. 50). Marx deixou bastante claro que a escravidão no Atlântico não era um vestígio de outros
tempos, mais arcaicos, mas uma autêntica criação da modernidade. a urgência de um trabalho :“Ademais - Marx
argumenta repetidas vezes - a escravidão moderna capitalista foi mais dura que as formas antigas, mesmo as mais
opressivas, por causa da pressão pela criação de valor“ (ANDERSON, pág. 169).

65
Essa aptidão para apreender a condição de compósito da sociedade moderna – a qual é captada
em diferentes instâncias de maneira a desvendar uma forma inédita, própria a essa sociedade,
em que se imbricam o abstrato e o concreto – pode ser entendida estar presente já na Crítica
da filosofia do direito de Hegel. Assim, por meio da crítica ao "empirismo” de Hegel, Marx
como que dava a ver o aspecto monstruoso do Estado concebido pelo filósofo alemão: uma
monarquia constitucional que, nos tempos do republicanismo ressurgente, faz com que o seu
construto teórico pareça trair um plano de composição simultaneamente moderno e gótico –
um pouco como se ele fosse um correlato, em teoria política, daquela criatura imaginada por
Mary Shelley em seu mais célebre romance. 52 Pois, recapitulemos, a doutrina hegeliana do
direito ousava conservar à testa do Estado essa relíquia de que a Revolução Francesa havia se
dispensado tão brutalmente: a cabeça de um rei (relíquia, aliás, de que a nação onde surgiu e
prosperou o liberalismo não foi capaz de livrar-se completamente). E, coisa ainda mais
espantosa, ela o fazia como se reencontrasse nessa cabeça - que nada mais era que a
culminância das linhagens sucessivas das quais ela descenderia -, quase como se coroada pelo
espírito, uma verdadeira razão do Estado, que se encontrava, então, respaldado pela efetividade
do conceito. De sua parte, o importante para Marx não era apenas evidenciar o ridículo de
algumas dessas formulações, mas expor, de igual maneira, a sua pertinência, que não coincide
com aquela que lhes reconhecia o seu autor, mas que se mantém obliquamente, pelas
contradições reais a que elas dão um certo relevo, mesmo que através das distorções de uma
filosofia tida como repleta de metafísica. 53 Por exemplo, a sua leitura registrada acima, do
direito na idade média como exceção, tem de ser reconhecida falar mais sobre a Alemanha de
seu tempo do que sobre o feudalismo propriamente dito: a passagem em que, a partir da idade
média, a propriedade privada é vista como ”existência genérica do privilégio“ encontra nesse
período histórico somente uma evidência suplementar, prestando-se, antes, a explicitar a
insuficiência conceitual da filosofia do direito de Hegel quando esta se limita a racionalizar as
estruturas jurídicas existentes. Contudo, na perspectiva de Marx, se bem considerada, através
das lentes de seu particularismo alemão, essa filosofia também consegue expor como estariam
divorciados o Estado e a moral na modernidade: ”É, antes, um grande mérito de Hegel, ainda
que inconsciente sob um certo aspecto (...), ter apontado à moral moderna o seu verdadeiro
lugar” (MARX, pág. 123). Isso porque, ao designar na propriedade privada o princípio da
personalidade abstrata, ela tem de colocar em questão, por intermédio de seu confronto com a
realidade alemã, o caráter abstrato e, no limite, ilusório das garantias do próprio direito. O que
ocorre porque, na Alemanha, o estatuto jurídico da propriedade privada tinha de funcionar
como um índice da permanência das instituições feudais no privilégio que elas continuavam a
marcar - pois, quanto à discussão conduzida por Marx nessa passagem, percebe-se esse efeito

52 Vale lembrar que o romance Frankenstein teve uma de suas inspirações nos experimentos com eletricidade
conduzidos por Luigi Galvani no final do século XVIII, que descobria, dessa maneira, a possibilidade de estimular
os nervos dos membros decepados de uma rã morta, recriando, pois, num cadáver, movimentos que seriam
atribuíveis a um ser vivo: desde a descoberta desse impulso “moderno” da eletricidade, a escritora imagina a
possibilidade de rearranjar as partes de diversos cadáveres e dar-lhes nova vida. De maneira semelhante, Hegel
teria encontrado no impulso da constituição política moderna uma forma de conferir nova vida à autocracia do
estado prussiano, que, afetado das reviravoltas de seu tempo, passou como que à existência de uma criatura anfíbia,
ou melhor, de um morto-vivo, ao mesmo tempo novo e velho. Por mera curiosidade, diga-se que a Filosofia do
direito foi publicada apenas três anos antes do romance de Mary Shelley.
53 A nossa constatação talvez pareça exagerada, como se tivéssemos entrevisto nesse primeiro lampejo crítico do

pensador alemão a luz de uma fulguração ulterior. Mas é o próprio Marx quem a formula muito expressamente
na Introdução à Crítica da filosofia do direito de Hegel: “Se, pois, o status quo do sistema político alemão exprime
a consumação do ancien régime, o cumprimento do espinho na carne do Estado moderno, o status quo da ciência
política alemã exprime a imperfeição do Estado moderno em si, a degenerescência da sua carne” (MARX, pág.
152).

66
a propósito de uma instituição em particular, a saber, a do morgadio, que, de acordo com o que
acabava por estabelecer a filosofia de Hegel, seria uma condição para o exercício do poder
legislativo, contrariando, portanto, a universalidade pretendida por esse poder. Nesse quadro,
as meras reformas institucionais dificilmente poderiam bastar àquela situação, já que, antes de
corresponder ao objetivo de democratizar a Alemanha, elas continuariam servindo à
particularidade dos poderes instituídos (em verdade, esse o único motivo para que fossem
admitidas por eles); e esse dado, somado à ocasião em que é movido a refletir sobre as
limitações da emancipação política possibilitada pelo Estado moderno, fará com que o
pensador alemão encontre no atraso uma espécie de verdade do progresso, lógica mais tarde
desenvolvida com consequências nada menos que dramáticas. Dessa maneira, Marx terá sido
capaz de reconstituir percursos não-orientáveis da razão, onde viria enodar-se o próprio
Esclarecimento: a sua empresa crítica não se limita a mostrar como a Alemanha encontrava-se
defasada em relação à modernidade europeia, prontificando-se, por outra, a mostrar como a
própria modernidade encontrava-se defasada em relação a si mesma 54, quer no centro ou na
periferia de sua expansiva geografia (que, a mais e mais, coincide com a geografia mundial, ou
é vista constituí-la propriamente).
Certamente, não caberia dizer que Marx sempre obteve os mesmos resultados quando se pôs a
trabalhar com esse novo operador lógico – ainda mais se se trata desse período inicial, em que
o tal operador existe unicamente em seus primeiros lineamentos, e de forma incipiente, senão
patentemente incompleta (isto é, incompleta do ponto de vista daquilo que ele virá a realizar).
Afirmar categoricamente uma tal constância equivaleria a concluir que foi concedido ao
pensador profetizar o destino do mundo desde a sua província alemã. Tanto no tempo como no
espaço, entretanto, Marx estava ainda muito distante de sua concepção do capital como valor
que se valoriza a si mesmo (concepção a partir da qual podem desenvolver-se mais
radicalmente as consequências de um desenvolvimento global que seria sumamente
contraditório no conjunto de seus efeitos): sem o episódio crucial de seu auto-exílio, que o leva
primeiro a Paris, e depois a Londres, não podia completar-se ainda a trajetória da elaboração
de alguns de seus mais importantes conceitos. Entre um e outro instante, portanto, o
deslocamento, tanto físico como teórico, se faz imprescindível para a consumação de seu
aparato conceitual: depois de instalado na Inglaterra, com a sua militância junto ao movimento
organizado dos trabalhadores e as suas longas incursões na Biblioteca Britânica, Marx pôde
apreender toda uma outra faceta do mundo moderno. Assim, com a elaboração de O Capital e
das obras que lhe seriam contíguas na sua produção, o pensador alemão coloca em causa a
especificidade da propriedade privada nessa época histórica denominada capitalismo. Com o
que ele faz valer uma outra divisão correspondente a um núcleo dialético ainda mais promissor
em seu poder de análise do mundo moderno, que seria aquela a distinguir o valor de uso e o
valor de troca como determinações essenciais, porém, contraditórias da categoria elementar do
capitalismo, qual seja, a mercadoria. Uma elaboração como essa, a culminar, por exemplo, na
ideia formidável de um fetichismo das mercadorias, não estava desde sempre prevista pelo
instante inaugural da crítica que Marx endereçou a Hegel em sua juventude. Entretanto, a
relação entre esses dois momentos – que são dois momentos em que, de maneiras diversas,
afirma-se o imbricamento moderno do concreto e do abstrato – não pode ser concebida nem
como uma ruptura absoluta, e tampouco como se fosse de pura indiferença. Não podemos nos
esquecer que O Capital não é exatamente um tratado de economia, mas, antes, uma radical
54Na seção anterior deste trabalho, dedicada quase que exclusivamente a Lacan, explicamos que essa era uma das
principais dimensões da descoberta freudiana: o sintoma enquanto índice da defasagem da razão em relação a si
mesma, posto que ele acuse onde a razão faz claudicar. A esse propósito, existe um belo texto de Slavoj Zizek
que trata : ”Como Marx inventou o sintoma?”.

67
crítica à economia política. O que significa que não existe nesse extremo da produção
intelectual de Marx nenhuma redução do político à esfera sócio-econômica, como se a política
pudesse traduzir-se inteiramente como demanda de redistribuição equânime de renda. Na
crítica da economia sempre está compreendida a expectativa de libertar a dimensão do político
dos entraves que lhe impõe a forma mercadoria. Assim, se as elaborações conceituais mais
tardias de Marx não devem ser entendidas derivar completamente das mais antigas, elas pelo
menos devem ser apreendidas como se a estruturar-se na tentativa de situar aquelas e
providenciar-lhes uma resposta que esteja à sua altura (ou, alternativamente, a evitar que lhe
sejam dadas falsas respostas 55). Da mesma forma, aquilo que do tratamento dialético
dispensado à análise do sistema produtor de mercadorias se encontrava de alguma forma
prenunciado nas primeiras concepções materialistas do pensador alemão tampouco diria
respeito à redução da política à supressão da propriedade privada 56, ou bem à perspectiva de
que o Estado desaparecesse para dar lugar a um mundo de trocas perfeitas e, portanto, justas.
A seguinte elaboração de Kouvelakis, irretocável, nos encaminha justamente nessa direção, ao
apontar as principais implicações teóricas e práticas do pensamento revolucionário do jovem
Marx:
Mas disso [isto é, da explicitação da limitação que a propriedade
privada significaria para a emancipação política moderna] decorre
necessariamente um abandono do político pelo social, como mantém
[a esse respeito] uma certa doxa? A resposta é não, e num duplo
sentido. Para começar, o estado político “desaparece” somente na
medida em que é uma entidade separada, um poder que adquiriu
autonomia e clama representar a totalidade. Ele é “dissolvido” no
processo constitutivo da “verdadeira democracia”. A dupla prioridade
defendida por Marx – da democratização sobre a democracia, e da
prática sobre as instituições – é levada à sua conclusão lógica pela
“verdadeira democracia”, a qual redefine a política em termos de poder
constituinte, ou [nos termos d]o poder expansivo de transformar o real.
Em outras palavras, Marx não é em nenhum sentido um “liberal
invertido” que prediz a absorção da política pela sociedade civil
restaurada na transparência de seu princípio básico; ele é um pensador
de condições eminentemente políticas constitutivas de sua
expansividade, da abolição da separação entre o estado (meramente)
político e a sociedade civil. (KOUVELAKIS)

Se, mesmo guiando-se pelo horizonte prático de um governo proletário, o pensamento de Marx
não se traduz nunca na redação de um tratado sobre a melhor maneira de conduzir um tal
governo, é porque esse pensamento adquire feições decididamente metapolíticas (as quais
Kervégan entende, por boas razões, remontar a Hegel; Cf. KERVÉGAN, pág. ).57 O que não

55 Afinal, como diz Marx numa carta a Ruge, essa tarefa deve corresponder a de uma "(...) crítica inescrupulosa
da realidade dada" (MARX, pág. 71). Inescrupulosa, entenda-se, porque não mede as suas consequências, e nem
se intimida face à oposição que provoca nos poderes instituídos.
56 Se a supressão da propriedade privada pode ser entendida como conditio sine qua non da verdadeira política,

nem por isso uma deve ser confundida com a outra. Esse o provável motivo para que, em uma carta, Marx tenha
dito a Ruge que ”(...) comunismo e supressão da propriedade privada não são de maneira alguma idênticos”
(MARX, pág. 71).
57 Esse princípio metapolitico está sintetizado de maneira magistral num trecho de uma carta de Marx a Ruge:

”Nada nos impede, portanto, de vincular nossa crítica à crítica da política, ao ato de tomar partido na política, ou
seja, às lutas reais, e de identificar-se com elas. Nesse caso, não vamos ao encontro do mundo de modo doutrinário
com um novo princípio: 'Aqui está a verdade, todos de joelhos!’ Desenvolvemos novos princípios para o mundo
a partir dos princípios do mundo. Não dizemos a ele: 'Deixa de lado essas suas batalhas, pois é tudo bobagem; nós

68
chega a ser uma cessão à utopia, utilizando-se essa palavra no sentido de corresponder a uma
fabulação que absolutamente não teria lugar no mundo, como seria o caso, digamos, com a
Icária de Étienne Cabet, sorte de epokhé da sociedade moderna58 imaginável apenas se se
admite que as circunstâncias políticas reais teriam deixado de valer para uma determinada
localidade (a qual se presta, assim, a ser imaginada como uma ilha ou uma fortaleza). Em
contraposição às fabulações utópicas, a metapolítica de Marx configura-se a partir daquilo que,
numa dada circunstância, ao mesmo tempo em que deve ser considerado existir de alguma
maneira, não encontra realmente um lugar na ordem das coisas então estruturada. Nas palavras
esclarecedoras de Kouvelakis:
O governo proletário não é um estado ideal a ser realizado no futuro,
não [é] uma versão negativa da monarquia burguesa; ele é aquilo que,
na sociedade burguesa (coroada [na Alemanha] com um rei pertencente
ao ancien régime), confronta essa sociedade com sua própria
impossibilidade, sua pura diferença. (KOUVELAKIS)

Na sociedade moderna, centrada em torno da categoria da propriedade privada, essa existência


impossível de ser situada, porque sempre deslocada relativamente à posição que lhe seria
assinada, só pode ser a do proletariado: tendo de ocupar o lugar daqueles que não têm lugar, ao
mesmo tempo em que é impelido a uma sorte de deslocamento contínuo (posto que, para
sobreviver, ele tenha de “se virar”), ele impeliria a sociedade a uma transformação sem
precedentes. Como o diz Marx, na Introdução à Crítica da filosofia do direito de Hegel:
“Quando o proletário exige a negação da propriedade privada, apenas estabelece como
princípio da sociedade o que a sociedade já elevara a princípio do proletariado e o que este já
involuntariamente encarna enquanto resultado negativo da sociedade" (MARX, pág. 156). A
existência desse princípio negativo no seio da sociedade moderna fornece a ocasião para
repensar em que medida a filosofia viria a deparar a efetividade do conceito de liberdade nas
práticas correntes da (meta-)política, a ponto de dar ensejo à formulação de um novo imperativo
categórico, como consta da mesma Introdução mencionada há pouco:
A crítica da religião alemã termina com a doutrina de que o homem é o
ser supremo para o homem. Termina, por conseguinte, com o
imperativo categórico de derrubar todas as condições em que o
homem surge como um ser humilhado, escravizado, abandonado,
desprezível (...). (MARX, pág. 151)

Ainda que, por herança do estruturalismo, os termos sob os quais se pensa a emancipação
humana talvez não coincidam de todo com o que viria a elaborar em seguida o jovem Marx
(por exemplo, nos Manuscritos econômico-filosóficos)59, a tradição política a que Badiou tenta
dar continuidade é precisamente essa que, em oposição a toda forma de opressão e de
exploração, estabelece um novo imperativo categórico: ao pensador francês, na década de
1970, o espírito desse novo imperativo inspirará a proposta teórica de discernir através das

é que proferiremos o verdadeiro mote para a luta’. Nós apenas lhe mostramos o porquê de ele estar lutando, e a
consciência é algo de que ele terá de apropriar-se, mesmo que não queira" (MARX, pág. 72). A metapolítica de
Marx, tanto como a metapsicologia de Freud, é uma elaboração conceitual que indica como um novo sujeito não
pode ser compatível com uma metalinguagem.
58 Balibar é quem fala das utopias como uma epokhé. Cf. BALIBAR, pág. .
59 As primeiras obras de Marx, como se sabe, foram bastante influenciadas pelos ”ideólogos alemães", seus antigos

colaboradores, Bruno Bauer e Ludwig Feuerbach. Os dois – como deixamos entrever – trabalham com uma noção
de crítica da religião que a enxerga como uma falsa mediação do homem consigo mesmo. Badiou quer pensar o
homem como ser genérico, mas sem recuperar a discussão de Marx sobre o homem em suas relações com a
natureza

69
situações históricas o que ele chama então de “invariantes comunistas”, compreendendo numa
mesma série de acontecimentos a revolta dos escravos liderados por Spartacus, a revolta de
camponeses encabeçada por Thomas Münzer, a Comuna de Paris, a Revolução Russa e, mais
próxima dele mesmo porque pertencente à sua época, a Revolução Cultural Chinesa. Como
advertido acima, trata-se da mesma tradição teórica que se inicia com a exposição das
limitações da cidadania moderna, ao explicitar a divisão política que atravessa o sujeito depois
da Revolução Francesa. Para ela, o subjetcus, mesmo depois de ser metamorfoseado pela
compreensão de uma soberania pós-revolucionária, ainda carrega em si a marca da servidão.
Contudo, para essa tradição, não se trata propriamente de enxergar na cidadania assegurada
pelo Estado uma mera ilusão, ou bem uma modalidade inconsciente das práticas de coação dos
indivíduos pelos poderes instituídos: ela não é apenas a ocasião de o indivíduo ser interpelado
por esses poderes, a corresponder integralmente, nesse caso, às diferentes maneiras de ele ser
condicionado de acordo com as práticas que tomam corpo nos aparelhos ideológicos do Estado
– cuja matriz, se não pode ser localizada na religião cristã, encontra nela um exemplo em que
a sua estrutura se faria particularmente explícita (Cf. ALTHUSSER, pág. ). Recapitulando a
forma como Marx pensava a ideologia (tachada por Althusser como se informada
completamente por um método “positivista-historicista”; Cf. ALTHUSSER, pág. 125), a
divisão ideológica diria respeito, não à (falta de) exatidão com que a realidade é percebida pelos
diferentes atores sociais, e sim – e em primeiro lugar – às lutas políticas antagônicas a que a
sociedade moderna serve de palco.60 Obviamente, o ponto de Marx não era o de estabelecer
que as ideias não têm parte nas práticas históricas de exploração e de dominação de classe: ele
diz muito explicitamente em A ideologia alemã que as “(...) ideias da classe dominante são, em
cada época, as ideias dominantes” (ENGELS & MARX, pág. 47), as quais, segundo ele, têm
de apresentar-se como sendo de interesse comum de toda a sociedade, quando, na verdade, elas
favoreceriam apenas uma determinada classe. Entretanto, se as ideias têm realmente parte
nessas práticas, a sua efetividade continua sendo limitada: a escrita dessa obra em particular,
em co-autoria com Engels, dá-se em resposta àquilo que se entende como a ineficácia da prática
crítica dos ideólogos alemães (entre os quais eram listados Bauer e Feuerbach), que,
acreditando em demasia na capacidade das ideias de dominar e determinar a história humana
(ou seja, acreditando em demasia que era preciso falar a ”língua“ das ideias), não se tornavam
capazes de opor à fraseologia instituída senão uma outra fraseologia (Cf. ENGELS & MARX,
pág. 84). Dessa forma, de maneira significativamente distinta, ao perguntar sobre as relações
entre a filosofia e a realidade alemãs, Marx quer indicar justamente como poderiam prevalecer
ideias radicalmente diferentes e mesmo opostas às ideias vigentes. Ou seja, por meio de uma
exortação à prática política, da organização da única classe com um potencial verdadeiramente
revolucionário porque a única passível de universalidade, é que Marx esforçava-se por pensar
a viabilidade da transformação do mundo e das ideias que este sustenta: segundo ele, para levar
adiante o combate subjetivo prescrito por uma crítica que desejava estabelecer o livre exercício
das forças criativas que seriam devidas ao homem, era preciso recuperar a sua dimensão
eminentemente prática porque inescapavelmente política. 61 E, quanto à produção intelectual de

60 Concordam, surpreendentemente, Althusser e Ruy Fausto: o Marx da Ideologia alemã é positivista-historicista


(Cf. Marx: lógica e política, tomo III).
61 No prefácio de Théorie du sujet, Badiou dá a impressão de defender uma posição semelhante à dos ideólogos

alemães. Ele diz, então, que “(...) da carência de pensamentos ambiciosos resultam inevitavelmente uma política
medíocre e uma ética desvalorizada [dévaluée]” (BADIOU, pág. 10). De fato, ele o diz, mas apenas para concluir,
logo em seguida, o oposto, aproveitando a ocasião para espezinhar os professores universitários satisfeitos com a
sua atuação "ideal": “Sem dúvida, seria o inverso. Da renúncia prática ao universalismo igualitário infere-se

70
Badiou na década de 1970, a escrita (em co-autoria com François Balmès) de De l’idéologie é
nada mais que uma primeira tentativa de, com um certo amparo na história prática do marxismo
e das lutas populares contra a opressão e a exploração - amparo que possibilita destacar a
primazia das revoltas de massas para a constituição de uma história política universal -, refletir
quanto a como se dá a escansão dessa batalha subjetiva, que é relativa a algo simplesmente
irrepresentável (ou inobjetivável) de acordo com os parâmetros práticos disponibilizados pela
ideologia dominante (Cf. BADIOU & BALMÈS, pág. 127).
Pelo que foi desenvolvido até aqui, nós agora podemos dizê-lo muito claramente: do ponto de
vista da tradição inaugurada por Marx, a batalha política onde a filosofia deve intervir pode ser
dita subjetiva não somente por aquilo que seria a sua repercussão sobre a subjetividade dos
homens (o que, segundo o jovem Marx, teria consequências que abarcam até mesmo as
experiências de ordem estética) 62, mas especialmente porque, nela, estaria em questão o
subjetcum do proletariado. Isto é, estaria em questão a existência, tanto empírica como lógica,
de uma classe detentora do potencial de efetivar a universalidade da liberdade política humana.
Sob esse aspecto - o qual Badiou, a partir da década de 70, tenta trazer à luz em suas
consequências lógicas mais radicais e propriamente caras à práxis revolucionária -, o
proletariado não corresponderia de maneira alguma à figura de uma simples permuta, como se
ele repousasse sobre uma pobre combinatória que pretendesse reverter a totalidade do mundo
estruturado em torno da categoria da propriedade privada de maneira a favorecer, enfim, os
despossuídos. Mais uma vez, Kouvelakis é quem nos indica o caminho a ser seguido, ao
explicar o que advém de conceber o proletariado como a ”corporificação da impossibilidade
de uma completa totalidade”:
Em outras palavras, poderia o proletariado ser, não uma figura invertida
da totalidade, mas a corporificação da impossibilidade de uma
completa totalidade, o absoluto movimento de mediação, o lugar vazio
designando o vão irredutível na ordem existente? Se sim,
“proletariado” nomeia aquilo que previne a totalidade de jamais
alcançar um fechamento, porque ele aponta, precisamente, para o
antagonismo dentro da totalidade, um antagonismo que não pode ser
superado enquanto essa totalidade se desenvolve dentro de seus
próprios limites. (KOUVELAKIS)

Não caberia dizer, portanto, que o mundo por vir deve ser criado à imagem e semelhança do
proletariado, e isso pelo simples motivo de que a sua imagem, tal como refletida no espelho do
capitalismo, é sempre impedida de coincidir com a silhueta daquilo que, nessas circunstâncias,
se reconhece efetivamente como estando dotado de um porte humano. Antes, é a sua atividade
produtora, verdadeiro sustentáculo do capitalismo, que se torna depositária da expectativa de
que as limitações da representação política moderna possam, por fim, ser superadas: os
responsáveis pela construção desse mundo que vem a existir sob a égide do capitalismo –
mundo que, de alguma maneira, é inédito em várias de suas realizações materiais –, eles é que
deveriam estar em condições de reconstruí-lo.
Portanto, o que mais uma vez se delineia, desde o subjectum do proletariado, é uma radical
crítica ao Estado moderno. E, para alguém que teve no Maio de 68 a experiência mais decisiva
de sua formação política, não admira que as limitações do Estado moderno continuem a

obrigatoriamente que aqueles saberes especiais onde encantoa-se o pensamento, pelo menos fora dos muros do
cretinismo jornalístico, não asseguram senão os vencimentos do serviço público” (BADIOU, pág. 10).
62

71
representar um problema insolúvel se mantido dentro dos limites dessa forma de dar corpo à
liberdade humana. Na época desse acontecimento (que teve lugar apenas um mês após o
assassinato de Martin Luther King Jr.), há não muito tempo, a mais longeva democracia do
mundo ainda era oficialmente um país segregado (deixando de sê-lo somente com o Civil
Rights Act, que data de 1964). E, como mostra uma passagem de Théorie de la contradiction,
Badiou não se esquecia que o movimento pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos,
que conseguira avançar o difícil passo de forçar a democracia norte-americana em direção
àqueles que supostamente seriam os seus fundamentos, havia sido saudado por Mao Tsé-Tung
em uma assim denominada “Declaração para apoiar os afro-americanos em sua justa luta contra
a discriminação racial praticada pelo imperialismo americano”. Lê-se na citação que, então,
Badiou fazia de Mao: “O execrável sistema colonialista e imperialista, cuja prosperidade
começou com a escravidão e o tráfico dos negros, desaparece com a emancipação completa
dos negros" (MAO, apud in BADIOU, pág. 73). O que, certamente, leva a pensar na
proximidade histórica, tanto biográfica quanto espaço-temporal, de Badiou com a permanência
do passado colonial europeu: nascido em Rabat, então capital de um Marrocos que ainda era
um protetorado da França imperialista, uma de suas primeiras experiências políticas -
experiência também decisiva, mas não tão decisiva quanto a de 68, por não corresponder
exatamente à percepção “positiva” de que a política, entendida num sentido pleno, seria
efetivamente possível - é aquela providenciada pela oposição popular à guerra da Argélia,
brutalmente reprimida pelo estado francês (brutalidade sem comparação possível, no entanto,
com a repressão sofrida pelos colonos argelinos). Portanto, não nos esqueçamos que, na
segunda metade do século XX, o significado de subjectus conserva também uma proeminente
faceta colonial, pois ele designa igualmente – mesmo que não de igual maneira63 – os súditos
das extensões imperiais que os europeus ainda mantinham além-mar (dado que os impérios no
continente europeu - ou pelo menos na Europa central - houvessem soçobrado com a primeira
guerra mundial, ou, no máximo, com a tentativa fracassada e suicidária de instituir um terceiro
Reich).

63 Quanto a essa questão, é importante recapitularmos a existência de uma espécie de fantasma que assombrava
os colonizadores europeus: o da legião de seres humanos a quem não seria possível reconhecer qualquer igualdade
política porque, se houvesse representação proporcional nos domínios europeus de além-mar, então, devido à
enorme desproporção populacional entre uns e outros territórios, aqueles que se queriam senhores se veriam
privados de seu poder decisório. Um argumento que Carl Schmitt, com o habitual despudor (e a consequente
disposição de reconhecer fatos desagradáveis), usava para defender que o fundamento do que se chamava então
de democracia era nada menos que a desigualdade dos súditos dos Impérios europeus: “Será que o Império
Britânico se baseou nos direitos universais e iguais de voto de todos os seus habitantes? Nessas bases ele não teria
se mantido nem uma semana; os negros, em sua mais absoluta maioria, teriam suplantado os brancos. Mesmo
assim, o Império Britânico é uma democracia. Algo semelhante ocorre com a França e outras potências”
(SCHMITT, páginas 11 e 12). “O governo da França não quer saber do direito de voto porque ele enviaria cem
deputados daqui [, da Argélia,] ao parlamento. Os europeus daqui não querem saber de igualdade porque seriam
engolidos. Oito para um, e tantas crianças” (JENNI, pág. 485). Por sua vez, o domínio colonial contra-pesava a
desvantagem numérica com uma compensação no registro bélico, pelas baixas que causava do outro lado. No
livro A arte francesa da guerra, de Alexis Jenni, o narrador - que é instigado pela transmissão televisiva da
primeira guerra do golfo a se confrontar com o passado recente, ainda que desconhecido, de guerras travadas pela
nação francesa (destacando-se o arco que leva da resistência à ocupação alemã, passando pela guerra da Indochina,
até a guerra da Argélia) -, observa a cifra que identifica a economia das guerras da civilização contra os bárbaros:
“Nas guerras assimétricas, as únicas de que o Ocidente participa, a proporção é sempre a mesma: nunca menos de
dez para um” (JENNI, pág. 21). “A verdadeira bravura militar de povos cultivados é o estar-pronto para o sacrifício
a serviço do Estado, de sorte que o indivíduo só constitui um dentre muitos. Não a bravura pessoal, mas a inserção
no universal é, aqui, o que há de mais importante. Na Índia quinhentos venceram a vinte mil, que não eram
covardes, mas que somente não tinham esta disposição de ânimo de atuarem cerrados em união com os demais”
(HEGEL, pág. 134).

72
Nesses dois exemplos – o da luta dos negros nos Estados Unidos para terem os seus direitos
mais básicos reconhecidos pelo estado e o dos colonos que se insurgem contra a sua sujeição a
um governo estrangeiro, intentando, dessa maneira, constituir para si mesmos um novo estado
-, depara-se uma complexa situação política a ser analisada tanto nas evidências empíricas
quanto nas implicações lógicas de sua circunstância local. Poder-se-ia concluir, a partir de
algumas das premissas da tradição comunista que expomos até agora, que ambas as
reivindicações estariam atravessadas de uma limitação política insuperável. Mas, desde o novo
imperativo categórico divisado pelo jovem Marx, pode-se ensaiar a apreciação dessas questões
de um ângulo franqueado pela universalidade, pois trata-se de duas situações particularmente
oportunas para observar como a representação política moderna existe em descompasso
relativamente à integração do gênero humano à atividade tida de maneira global como
estritamente necessária para a subsistência de todo e qualquer indivíduo (exceto, é claro,
daqueles que seriam os detentores dos meios de produção), a saber, o trabalho. Donde se segue
a importância crucial da pergunta “onde se encontra o proletariado?” – pergunta que, como
vimos, em Théorie du sujet, Badiou diz não ser respondível “(...) nem pela empiria de uma
designação, nem pela transparência de uma reflexão” (Cf. BADIOU, pág. 296). Dotando essa
pergunta do devido relevo, nota-se que as virtudes requeridas para a análise da realidade
existente não coincidem com aquelas requeridas pela direção de uma nova política. É por isso
que, em De l’idéologie, Badiou e Balmès dão destaque à vocação e à dedicação militantes de
Marx e Engels: "Durante toda a sua vida, Marx e Engels conceberam a si mesmos como
dirigentes do partido trabalhador internacional e foram parte integrante [partie prénante] de
todas as fases de sua organização" (BADIOU & BALMÈS, pág. 196). Ao lado do grande
analista do sistema produtor de mercadorias, faz-se necessário discernir o perfil de um
observador atento às contradições políticas locais, sempre pronto a tomar conhecimento e
partido quanto aos mais diversos levantes contra a opressão e a exploração que aconteciam
mundo afora. Como mostrado cuidadosamente por Kevin Anderson em Marx at the margins
[Marx nas margens], em seus artigos publicados em jornais, sobretudo os escritos para a New
York Tribune, vê-se o pensador alemão tecer críticas com um alcance político que excede os
limites geográficos das potências centrais da Europa, estendendo-se sobre os mais variados
tópicos, desde o tráfico negreiro e a guerra civil norte-americana, até a guerra do ópio (tópico
que, depois da escravidão no Atlântico, era o que mais despertava a sua ira contra os poderes
imperiais do Ocidente), passando pela dominação dos britânicos na Índia. 64 Ainda que, como
documentado por Anderson no mencionado livro, haja de fato uma série de limitações pessoais
do pensador alemão (limitações de certa maneira condicionadas pelas circunstâncias históricas,
as quais se traduzem como preconceitos contra determinadas etnias e nacionalidades), o
imperativo categórico que a certa altura Marx entende orientar uma teoria e uma prática
realmente comprometidas com a emancipação humana demonstra repetidas vezes a sua aptidão
para o universal; e isso sem limitar-se à ideia de exportar para o resto do globo o que se entendia
então como um progresso que seria devido exclusivamente à indústria dos europeus (afinal,
acusa-se enfaticamente a mentira desse progresso), em vez disso, deixando lugar, em suas
elaborações conceituais mais complexas, para uma concepção não-totalizante da história
humana.65

64 Se os seus textos contra a dominação britânica na Índia, ou pelo menos alguns deles (especialmente os escritos
em 1853), parecem ser menos apaixonados que as invectivas contra o tráfico negreiro e a Guerra do Ópio é porque
, mas também porque, num primeiro momento, Marx é tributário da
65 Em contraposição à exposição da história de A ideologia alemã, a introdução de um "modo de produção

asiático", se bem que deva ser reconhecido como uma (denominada, aliás, segundo uma perspectiva obviamente
europeia), sinaliza uma compreensão multilinear da história (Cf. ANDERSON, páginas 155 e 156). Nos

73
Em conformidade com essa concepção não-totalizante, o processo revolucionário que seria
realmente capaz de efetivar a emancipação humana não pode ser pensado como uma destinação
infalível da História. Com a teorização crítica de Marx, o acontecimento revolucionário tende
a perder qualquer caráter propriamente fatalista 66 porque não se pretende como a realização de
um ideal desde sempre pairando sobre o mundo, a aguardar somente o momento de sua
aterrissagem, momento que, sendo adiável ou retardável, no final das contas tinha de ser
inevitável. Em lugar de pensar a revolução como um acontecimento à prova de qualquer
fracasso, ou como um acontecimento que nenhum fracasso conseguiria impedir, Marx pensa o
fracasso como a exposição dos limites internos de um acontecimento revolucionário. Ou, de
outra maneira, ele pensa a dimensão do fracasso como o lugar de sua escansão. Como vimos
há pouco, existe um movimento, tipicamente dialético, a partir do qual o pensador alemão
consegue como que voltar a “revolução permanente” contra aqueles que originalmente
conclamaram a ela; mas, exatamente por ser dialético, não se trata ai unicamente de uma
recriminação feita contra os jacobinos, e sim da percepção de que algo adveio graças à
singularidade de sua tentativa de corresponder politicamente à universalidade posta em causa
pela Revolução. Dessa maneira, se alguma necessidade histórica pode ser atribuída ao
acontecimento revolucionário, essa necessidade tem de ser retroativa, criada apenas pela falta
que deixa atrás de si o último grande processo revolucionário (que, no caso do jovem Marx,
tinha sido a Revolução Francesa). Como o explica Kouvelakis:
Assim, Marx redefiniu a incompletude da Revolução inacabada: não
foi uma pausa momentânea num avanço linear em direção a uma
verdade última, mas uma necessidade que teria sido retroativamente
constituída pelo fracasso [daquilo] o que a Revolução ela mesma
entendia como seu propósito inerente. (KOUVELAKIS)

Em seu livro, quando aborda essas consequências realmente surpreendentes da teoria da


revolução de Marx, Kouvelakis refere-se prioritariamente ao autor de Crítica da filosofia do
direito de Hegel e Sobre a questão judaica. Ou seja, ele refere-se a um período a propósito do
qual seria presumível a continuidade de uma concepção ainda demasiado hegeliana,
possivelmente tributária de um desenvolvimento unilinear do espírito do mundo, em contraste
com as formulações teóricas mais tardias de Marx, que estariam abertamente dispostas a ter
em conta o descontínuo e o multi-linear.67 Com efeito, numa carta endereçada a Ruge, datada
de 1843, Marx teria dito: “A razão sempre existiu, só que nem sempre na forma racional”
(MARX, pág. 71). O dar forma racional à razão, não seria isso uma maneira de recapitular o
movimento dialético que conduz do em-si ao para-si, efetuando, assim, quase que a passagem
hegeliana da natureza à consciência? Que o problema seja colocado aproximadamente nesses
termos, isso não deve causar nenhum espanto, considerando que a dialética continua operante.

Grundrisse, a classificação de três formas antigas de comuna: asiática, greco-romana e germânica (Cf.
ADNERSON, pág. 156). Caracterização que admite formas mais despóticas ou mais democráticas (Cf>
ANDERSON, pág. 157). ”Marx não sugere aqui que os clãs asiáticos estavam num estágio mais primitivo do que
os greco-romanos. Em vez disso, uma estrutura multilinear está fortemente implícita” (ANDERSON, pág. 158).
O foco no desenvolvimento do capitalismo, que faz com que essas comunas apareçam como formas de pensar as
organizações pré-capitalistas, dá origem a uma atenção desigual, por exemplo, no caso da comuna germânica.
Uma intensificação da crítica de Marx à sociedade burguesa e uma maior sensibilidade à legitimidade de modos
de vida comunitários e não-ocidentais (Cf. ANDERSON, pág. 162).
66 Assinale-se, no entanto, que é essa apenas uma das tendências discerníveis no pensamento de Marx. A bem da

verdade, coexistem em suas formulações teóricas tendências contrárias. É fundamental que se perceba que Badiou
quase nunca fale da tradição da crítica da economia política, o que pode ser visto tanto como uma força quanto
como uma fraqueza de suas teorizações.
67 Nós estamos apenas desfazendo um semblante, . A seguirmos Ruy Fausto, as concepções de história de Marx

são aquelas que mais obviamente se inspiram na lógica hegeliana, especialmente a dos Grundrisse.

74
Mas, com Marx, se admitimos a hipótese de que o dar forma racional à razão leva a uma
situação histórica propriamente espiritualizada, trata-se, então, de uma situação em que o
espírito cedeu o seu lugar de sujeito ao homem (como indicam, aliás, trechos de obras suas que
citamos aqui, obras escritas em períodos diversos de sua produção intelectual). O que, antes de
perfazer-se como uma submissão do pensamento hegeliano a uma antropologia qualquer, vem
expor um movimento de subtração à filosofia de Hegel da certeza que ela esperava assegurar a
si mesma por intermédio de uma espécie de reflexão pura. No que diz respeito a Badiou, por
sua vez, o filósofo francês, marcado pelo advento do estruturalismo, deverá fazer esse pequeno
reparo a Marx68, o qual consiste em indicar que a designação empírica – do homem ou de
qualquer coisa que o valha – jamais bastaria para suportar a verdade lógica posta em causa pelo
proletariado: quando expõe a divisão do subjectus moderno (isto é, quando expõe o caráter
irreconciliável de sua dupla determinação), o subjectum do proletariado nem por isso se
apresenta como uma substância inteiriça, tendo de expor-se ainda a certas divisões, como a que
opõe a sua representação dentro da ordem capitalista ao irrepresentável das práticas
comunistas, ou ainda àquela que separa a revolta das massas e a direção do partido.
É a isso que responde, em última instância, a formulação dos chamados invariantes comunistas.
A universalidade não é mais a do espírito, mas a das ideias postas em prática pelas massas, as
quais possibilitam vislumbrar o horizonte de toda a história dos oprimidos, sem que haja,
contudo, a totalização da história humana como uma sucessão previamente estabelecida de
etapas ou de modos de produção mais ou menos tipificados. As ideias anti-proprietárias e anti-
estatais que os caracterizam, ideias entrevistas nas práticas históricas de resistência à opressão
e à exploração, não prometem nenhuma vitória infalível, atestando, inversamente, quase que
uma tendência à imobilidade69, a comprovar-se no reiterado resultado do fracasso: "Essas
ideias são invariantes nisso em que, para surgir, não esperam que exista uma classe capaz de
dirigir sua materialização" (BADIOU & BALMÈS, pág. 168). Eles permitem, assim, fazer uma
distinção quanto ao pensamento das massas, sem que haja ainda qualquer classe que esteja em
condições de organizar a sua lógica. De outra maneira, eles podem ser ditos nomear a
contradição inevitável entre as massas e o Estado, este último ocupando sempre o lugar de vigia
dos interesses de uma determinada classe dominante. 70 Pensando essa diferença irredutível,

68 O reparo nunca é feito diretamente. Mas existe de fato uma tendência empiricista no pensamento de Marx com
qual Badiou não comunga. Certamente, quando fala da realização do homem, o pensador alemão não se refere ao
homem empírico, que em nada faz pensar no comunismo. Talvez de ordem epistemológica, o recurso às
matemáticas.
69 Assinar-lhes uma imobilidade completa seria bastante impreciso, no entanto, porque, mesmo que, quanto a uma

determinada circunstância, não consigam colocar um fim à opressão e à exploração, eles movem a história da
política, inclusive a das ideias das classes dominantes.
70 Caso não tenha ficado claro, elucide-se que a universalidade concernida pelo “imperativo categórico” dos

comunistas é aquela que torna possível a superação de qualquer forma de servidão. O que, no registro das práticas
políticas, pode muito bem equivaler à superação da circunstância histórica de organização dos homens através da
mediação de um Estado cujo poder se encontra separado deles. Bem entendido, não apenas a mediação oferecida
pelo Estado moderno, mas por quaisquer Estados, compreendendo-se nessa categoria analítica mesmo as suas
formas passadas e mais distantes geograficamente, desde o milenar império chinês até o Japão feudal, passando
pelos incas, maias, astecas, bem como pelo reino de Benin, o império Sangai, ou ainda os califados, os sultanatos,
etc.: como se pode ver, um tal imperativo não é de maneira alguma eurocêntrico. A destacar o aspecto passivo
nele implicado, o seu conteúdo pode ser enunciado da seguinte forma: onde quer que haja Estado, lá haverá
opressão e exploração de uma classe por outra. De maneira um tanto quanto surpreendente, a premissa aí expressa
é articulável à inovadora perspectiva de um pensador que, além de ser um dos maiores etnólogos do século XX,
foi também um perspicaz teórico político, quem seja, Pierre Clastres, que, como se sabe, sempre foi muito crítico
ao marxismo e a seus partidários. É ele, afinal, o responsável pela declaração, pouquíssimo generosa, que
sentencia: “pode-se sem dificuldade tomar em bloco a abundante produção dos etnomarxistas como um bloco
homogêneo igual a zero” (CLASTRES, 2014, pág. 199). Em ensaio intitulado ”A questão do poder nas sociedades
primitivas”, Clastres propôs uma definição simples, mas que não deixa de ser sumamente relevante para o

75
problema que o mencionado imperativo envolve em sua própria essência: ”as sociedades primitivas são sociedades
sem Estado, são as sociedades cujo corpo não possui órgão separado do poder político” (CLASTRES, 2014, pág.
137). Pode-se dizer, portanto, com Clastres, que as sociedades primitivas (em especial, as sociedades ameríndias, às
quais ele se dedicou como estudioso) não estão diretamente concernidas pelos invariantes comunistas, pois elas não são
sociedades divididas politicamente. Observemos, assim, que, ao recapitular as suas elaborações teóricas num texto
escrito especialmente contra os etnomarxistas, Clastres fazia ver que a raiz das questões relativas à opressão e à
exploração de classe não é econômica, mas, isso sim, ela é basicamente política: ”onde identificamos um exercício
efetivo do poder por uma parte da sociedade sobre o resto, estamos confrontados com uma sociedade dividida,
isto é, uma sociedade com Estado (...). A divisão social em dominantes e dominados é, de uma ponta a outra,
política, ela reparte os homens em Senhores do poder e Súditos do poder. A economia, o tributo, a dívida, o
trabalho alienado aparecem como signos e efeitos da divisão política segundo o eixo do poder (....). Mas
permanece, irredutível, esse ponto central: assim como não se pode pensar a sociedade indivisa sem a ausência
do Estado, tampouco se pode pensar a sociedade dividida sem a presença do Estado. E refletir sobre a origem da
desigualdade, da divisão social, das classes, da dominação, é refletir no campo da política, do poder, do Estado, e
não no campo da economia, da produção etc. A economia engendra-se a partir do político, as relações de produção
vêm das relações de poder, o Estado engendra as classes” (CLASTRES, 2014, páginas 208 e 209). Esse é um
aporte teórico fundamental, porque é preciso que concluamos, com o auxílio indispensável dos grandes etnólogos,
que, assim como os etnomarxistas nada teriam a ensinar sobre as sociedades primitivas, também os comunistas
não têm muito o que ensinar a essas sociedades quando o assunto é política (mesmo porque, se consequentes, eles
não devem ensinar nada a ninguém). Aliás, uma das críticas possíveis aos processos revolucionários do século
XX, a dar prosseguimento ao trabalho propriamente político empreendido desde Marx, deve compreender de igual
maneira a crítica à apropriação do Estado pelo partido comunista e de sua tentativa de “proletarizar“ as sociedades
indígenas (crítica que já está esboçada, para não dizer efetivamente começada, na obra de um dos maiores
etnólogos de nossa época: Eduardo Viveiros de Castro). Entenda-se, portanto, a radicalidade do problema: disso
se segue que as sociedades primitivas não podem ser consideradas existir numa espécie de "proto-comunismo",
como faziam crer alguns dos escritos de Marx, Engels e cia. Certamente, os comunistas têm muito mais a aprender
com as sociedades primitivas do que as sociedades primitivas com os comunistas. Não é à toa que a descoberta
do continente americano tenha ocasionado, na Europa, toda uma série de devaneios que flertavam com o
maravilhoso, os quais encontravam-se dotados de um alcance mais ou menos político, resultando, por exemplo,
num famoso ensaio do cético Michel de Montaigne (grande amigo, lembremos, do autor do Discurso sobre a
servidão voluntária) sobre uma viagem dos indígenas brasileiros à França, ou ainda nos sonhos com um ”bom
selvagem” que acalentou Jean-Jacques Rousseau (que, diga-se, é ninguém menos que o grande teórico da
soberania igualitária). Isso quer dizer que as sociedades indígenas representam uma exceção ao comunismo? Esse
seria o caso, realmente, se a universalidade que o comunismo coloca em causa fosse pensável exclusivamente
como uma enorme fagocitose, que mais cedo ou mais tarde viria a englobar toda a humanidade num único "modo
de produção". Ao deslocar a questão para o seu núcleo verdadeiramente político - como o faz, aliás, Alain Badiou
-, percebe-se que essa não é a única saída: o problema, então, não seria o de forçar as sociedades primitivas a se
adequar a um determinado regime de produção econômica, mas o de pensar maneiras para que nem a exploração
e nem a opressão ressurjam nos eventuais encontros que possam manter entre si dois modos de vida
essencialmente distintos. Se as sociedades primitivas não podem ser ditas comunistas, isso se deve, não às relações
secretamente opressivas e exploradoras que elas preservariam em seu interior por encontrarem-se num estágio
inferior ou atrasado da produtividade econômica, mas, antes, à inexistência de uma ”verdade" em suas práticas
políticas: os ”primitivos“ organizam a sua sociedade contra a emergência do Estado, o que, de certa maneira, faz
com que tangenciem os invariantes comunistas; mas eles o fazem sem nunca transpor o limiar da universalidade.
No dizer de Viveiros de Castro, os homens dessas sociedades ”votam com os pés”: a dissidência sempre encontra
no nomadismo um expediente que a previne da estabilidade instável do Estado. O que quer dizer que, em vez de
dar forma ao comunismo, elas habitam como que o informe do anarquismo (informe que, explique-se, está muito
longe de transparecer uma incapacidade de se organizar). Assim, a “circunstância primitiva“ é uma evitação
perpétua da exploração e da opressão, não a sua interrupção. Nela, os homens vivem numa extrema particularidade
que permite, paradoxalmente, efetuar uma partilha generalizada do ”humano”: em contraste máximo com a
sociedade capitalista, em que as coisas circulam como mercadorias para que devolvam aos homens a sua imagem
refletida de proprietários em potencial, nas sociedades primitivas, são as humanidades que circulam para que os
homens não se hipostasiem em coisas. Aqui existe, pois, uma relação dissimétrica: nas situações limítrofes em
que se confrontam as sociedades com e sem Estado, podem-se ver traçar uma miríade de circuitos nômades em
que também os descontentes para com a ”civilização“ conseguiriam ingressar (essa era, com efeito, a solução
imaginada por Oswald de Andrade: virar índio); não é de maneira alguma evidente, no entanto, que, em direção
contrária, o nomadismo possa interromper o conjunto de práticas postas em marcha pelo Estado (especialmente
as práticas relacionadas à circulação das mercadorias, coetâneas do Estado moderno). De outra maneira, podemos
dizer que as sociedades primitivas dão a ver muito claramente que o Estado não é uma realidade inevitável da
política; elas não dão a ver, contudo, nenhuma maneira de fazer com que deixem de existir os Estados que vigoram
na modernidade, os quais não repousam apenas na objetividade de sua eficácia, mas dependem, em verdade, de

76
entre as massas e as classes, impede-se que estas sejam como que deduzidas daquelas. Tal
como dissemos em outro capítulo, as revoltas lideradas por um Spartacus ou por um Thomas
Münzer não prefiguram o movimento operário moderno: eles podem até ser tidos como se a
formar uma mesma série de acontecimentos, mas o que um acontecimento lega ao posterior
são os problemas, não as respostas (e um só pode ser visto como resposta ao anterior ao ser
percebido retroativamente). Uma nova resposta é uma nova prática coletiva, a qual corresponde
à superação imprevista das limitações lógicas do momento anterior. E a tradição na qual
tentamos situar o pensamento de Alain Badiou é sobretudo uma tradição revolucionária porque
configura a série de acontecimentos pertinentes para a história política através da escansão das
práticas coletivas que tentaram dar uma forma efetiva aos invariantes comunistas. Isso explica
a menção restritiva em suas obras da década de 1970 a alguns poucos nomes, a limitar-se a
algumas poucas pessoas que teriam sido verdadeiramente importantes para a sequência efetiva
das práticas revolucionárias - justificando, talvez, a presença acintosa de Stálin e a ausência
ultrajante de Rosa Luxemburgo. Ao ignorar toda uma constelação de autores fundamentais para
o marxismo, tanto dentro como fora da França, vê-se que Badiou pretendia, com as suas obras
mais panfletárias e militantes dos années rouges, não uma acumulação enciclopédica dos
saberes dialéticos, mas um breviário das transformações qualitativas do estado de coisas
vigente no mundo da política.
Não é menos difícil dar a ver a relevância do pensamento de Alain Badiou se se tem o cuidado
de reportá-lo ao tempo em que teriam sido publicados os seus textos mais radicais dos années
rouges, posto que, ainda que seja muito claro que o seu era um esforço de responder às

uma série de processos subjetivos que vinculam os homens a essa objetividade. Por isso dissemos que as referidas
práticas políticas não contêm uma "verdade": não porque não correspondam a modos de vida verdadeiramente
autênticos (sendo, aliás, do ponto de vista dos próprios invariantes comunistas, muito mais autênticos do que os
que vigoram no mundo ”civilizado”); mas porque não abrem para uma efetiva possibilidade de que toda e qualquer
humanidade possa viver de maneira igualmente autêntica. É compreensível, portanto, que a contra-parte dos
sonhos que os ocidentais tiveram a propósito das sociedades primitivas seja uma incompreensão do estatuto
positivo de suas práticas políticas: frequentemente, como advertido por Clastres, os ocidentais só conseguem
enxergar essas sociedades pelo que elas não possuiriam, como se fossem sociedades deficitárias, incompletas,
essencialmente pobres. Para o modo de vida que vige nas sociedades ocidentais, é bastante comum que o sonho
de liberdade política suscitado pelo encontro com as sociedades primitivas se transforme num pesadelo, a saber,
o pesadelo da escassez material. Mas essa miragem distorcida, que faz com que as sociedades primitivas sejam
enxergadas através de um prisma economicista ou produtivista, ainda faz menção a um problema de raiz política:
como elas poderiam ser concebidas como o futuro da humanidade se não se encontra à vista nada que seja capaz
de interromper a marcha tresloucada do ”progresso“ moderno (que ameaça, aliás, a existência das próprias
sociedades primitivas)? Uma infeliz confusão, que identifica o comunismo à postulação de uma História universal.
Aquilo que Clastres não entendeu em Marx: a sua crítica é pertinente na medida em que o argumento de Marx
depende de uma referência materialista ao desenvolvimento das forças produtivas, suposta possibilitar a superação
das contradição das relações de produção; mas ela acaba perdendo de vista o impulso propriamente político do
pensamento do alemão, o etnólogo não alcança a radicalidade de sua crítica à economia política, que consiste em
criticar a falsa universalidade do Estado moderno em referência às práticas que lhe , que é a falsa universalidade
do capital. A trajetória de Marx, no entanto, mesmo que compreenda elementos que favorecem essa interpretação,
aponta noutro sentido: o que fazer quando, em face de circunstâncias históricas em que, tem de se confrontar ao
poder de restauração do Estado, que é, afinal, um determinado estado vigente de coisas? O Estado moderno tende
a reconfigurar a questão em outros termos, porque deixa margem, com a Revolução Francesa, para uma
perspectiva universal, ainda que impraticável como tal. A Revolução Haitiana é a demonstração disso. (Ainda que
Badiou insista em mover-se dentro das balizas antropológicas de Marx e, sobretudo, Engels). Como Lacan era
interessante por não fingir depreender uma nova teoria da política, Badiou é mais interessante do que Althusser
por não falar das sociedades indígenas utilizando-se de categorias marxistas. Uma contribuição inédita no sentido
de antecipar uma colaboração entre duas tradições de pensamento tão distintas que se acostumaram a se enxergar
como opostas é dada por Vladimir Safatle em “Crítica da autonomia: liberdade como heteronomia sem servidão” .
Uma outra feliz conjunção de questões pode ser encontrar na bela conferência de Rodrigo Nunes, ”O luxo do
comunismo”. A política, tal como Clastres dá a vê-la, não é uma política da verdade do múltiplo, mas contra o
Um, isto é que, o nega, mas que não deixa de referir-se a ele.

77
injustiças de um sistema global tornadas evidentes pela permanência de certas práticas
coloniais, ele já fosse convocado, nessa época, a defender-se diante das acusações de
cumplicidade com o totalitarismo: afinal, que tradição de pessoas verdadeiramente importantes
para a sequência efetiva das práticas revolucionárias pode ser essa que elenca a personagem
histórica de Joseph Stálin? A seguinte passagem de Théorie de la contradiction, se não
demonstra essa cumplicidade (como, de fato, não o faz), tem pelo menos de ser entendida como
a comprovação da falta de disposição de seu autor de defender-se claramente dessas acusações:
“A verdade marxista não é uma verdade conciliante. Ela é, por ela mesma, ditadura, e, se
preciso, terror” (BADIOU, pág. 12). Diga-se, então, o óbvio, que o próprio Badiou atesta, nessa
e em muitas outras passagens: a práxis que se orienta pela superação das contradições próprias
ao subjectus moderno, superação que atenderia pelo nome de comunismo, essa práxis decorre
de uma concepção fundamentalmente antagônica da política, disso não pode restar dúvida. Mas
uma tal concepção nada tem que ver, por exemplo, com a ideia de Carl Schmitt segundo a qual
o Estado encontraria nos inimigos e na guerra as verdadeiras circunstâncias de sua definição:
a definição do comunismo (que, lembremos, é irrepresentável como tal) depende, sim, da
oposição que a resistência move às práticas históricas de dominação e exploração de classe,
uma vez que sem a referência do elemento deslocado que ela traz à cena não há a possibilidade
de entrever uma outra realidade; mas a oposição movida pela resistência não basta à definição
do comunismo, porque ele não se limita a ser a simples ausência do seu outro (no caso, o
capitalismo). Se não faz grande coisa para evitá-lo (pelo que poderia ser justamente criticada),
a passagem supracitada de Théorie de la contradiction tampouco está autorizando a
perseguição e o extermínio dos indivíduos classificados como pertencentes à burguesia: a
erradicação da burguesia, que não deixa de ser um dos objetivos pelos quais se guia a práxis
revolucionária dos comunistas, não pode ser entendida de maneira alguma como a erradicação
física dos burgueses. Por sua vez, a menção a Stálin – menção que, em Théorie du sujet, em
vez de ser integrada ao corpo do texto, relega o líder soviético ao índice onomástico 71 - é uma
exigência da dialética. Para todos os efeitos, a catástrofe estalinista é uma demonstração muito
clara de que o governo proletário não poderia jamais consistir na simples permuta de uma classe
por outra: ocupar o lugar do domínio estatal não é suficiente para promover a verdadeira
emancipação humana. Contudo, se não lhe dá prosseguimento, ainda assim, essa permutação
dos lugares é um índice de que teria passado a operar de outra maneira a dialética entre
deslocamentos quantitativos e transformações qualitativas característica da luta de classes: o
elemento algébrico da recombinação das posições que as classes ocupavam relativamente uma
à outra faz menção a uma transformação qualitativa irrepresentável. Sendo assim, essa permuta
é o momento, e apenas um momento, de um processo dialético que a ela não se limita. A recusa
de prestar contas à pretensa instância superior do totalitarismo não é uma recusa de reconhecer
os fracassos ignominiosos do estalinismo, como se esses fracassos fossem em tudo
desculpáveis em nome da justiça inatacável dos comunistas. Antes, ela é a tentativa de pensar
efetivamente a insuficiência desse momento de permuta que, por ser um momento da dialética
em que o subjectum do proletariado divide o subjectus moderno, não poderia ser encerrado em
nenhuma totalidade: o regime de Stálin tendo nascido da impossibilidade de o Estado
determinar por completo os seus súditos enquanto tais (isto é, porque nasceu da Revolução
Russa, insurgência múltipla contra as injustiças do exercício do domínio de classe representado
pelo estado czarista), seria uma ilusão acreditar que a crítica ao totalitarismo do Estado basta

71 Naturalmente,se Stálin encontra-se no índice onomástico, é porque ele também aparece no livro. Mas a presença
no índice onomástico, advertida desde o prefácio de Théorie du sujet, indica que a sua presença é extremamente
reduzida, porque, em contraste, Badiou explicam que “(...) não figuram nesse índice aqueles nomes cujo uso é de
tal maneira permanente que sua numeração seria incongruente“ (BADIOU, pág. 11).

78
para fazer oposição à sua força e ancoramento subjetivos. Tal como para o Marx que criticava
os ideólogos alemães e sua batalha ilusória no campo das concepções religiosas, para Badiou,
contrapor-se a Stálin não equivale nunca a combater com a fraseologia liberal a fraseologia de
um “estado total”. 72 Na sua perspectiva, ou dá-se uma forma propriamente racional à política,
ou ela deforma-se em inúmeras catástrofes, tais como a estalinista (ou, de outra maneira, pode-
se dizer que não é a tentativa, reputada como insensata, de fazer uma política verdadeiramente
democrática o que desencadeia o estalinismo, e sim o fracasso em fazê-lo).
Com efeito, a recuperação consequente do legado revolucionário da tradição marxista não
poderia deixar de referir aquele que Badiou designa, em Théorie de la contradiction, como
“(...) o dirigente do primeiro Estado da ditadura do proletariado” (BADIOU, pág. 29). Uma tal
menção, no entanto, não acarreta o endosso do estalinismo: em verdade, se Stálin é apresentado
nesse livro (ao lado de Engels, Lênin e Mao) como um teórico da contradição de tal maneira
importante que seria preciso mencionar tanto o homem como algumas de suas ideias, isso
ocorre apenas com o objetivo de expor as suas insuficiências conceituais no que diz respeito às
exigências da práxis revolucionária. Em verdade, o livro de Badiou se pretende como um meio
de estabelecer uma crítica efetiva à teoria da contradição estalinista, bem como de quaisquer
outras teorias que, tendo obtido “êxito" no mundo, não puderam ainda corresponder à
efetividade de seu conceito (essa, afinal, a justificativa para que as palavras êxito e exitosos
aparecessem há pouco entre aspas). Para tanto, é inevitável reconhecer que Stálin de alguma
maneira participou do embate subjetivo no campo da política a que deu lugar a Revolução
Russa, não podendo ser tido como um mero desvio infeliz ou fortuito desta última. Decerto,
isso tampouco quer dizer que o regime de sangue e aço de Stálin fosse a destinação inevitável
de outubro de 1917. De qualquer forma, do fato de que o estalinismo tenha podido seguir-se à
Revolução Russa, conclui-se que os processos revolucionários não garantem nenhuma certeza
quanto aos bons resultados que pretendem alcançar – como, aliás, estaria previsto por sua
natureza subjetiva, não assimilável a ciências de quaisquer ordens. O cálculo racional não
deveria proibir, portanto, de maneira expressa, o envolvimento com o espírito revolucionário e
o (in)consequente entorpecimento das faculdades analíticas que ele necessariamente afetaria?
A convicção que move a tradição em que Badiou tenta se situar, no entanto, é a de que
justamente o processo revolucionário possa ser concebido como a crítica, no campo da política,
das insuficiências de uma razão que se queira apenas como o cálculo que ordena o mundo
segundo os critérios de otimização de tudo aquilo que já se conhece (pelo que podemos reiterar:
o comunismo não seria nunca uma forma de distribuir de maneira mais eficaz os bens de
consumo). Por mais razoável que possa parecer, essa ideia que se faz da razão, como um cálculo
que saberia dispor da melhor maneira dos recursos que lhe são postos à mão, demonstra ser
incapaz de corresponder à verdade que ela mesma apregoa para si, e isso em mais de um
sentido: a incapacidade dela não é só a de fazer valer a sua ordem no mundo, mas é também, e
principalmente, a de evitar os piores ordenamentos desse mundo.
Uma política feita segundo essa ideia da razão, que tem de reduzir-se a promover um bom
governo dos homens (em verdade, o melhor possível, nas circunstâncias dadas), uma tal
política tem de se haver, em primeiro lugar, com uma limitação pedagógica: ela se esquece,
como advertia Marx na terceira das onze teses sobre Feuerbach, que “(...) o próprio educador
tem de ser educado” (MARX & ENGELS, páginas 537 e 538). Ou seja, esperar que os homens

72Cf. a nota ”h” de Le noyau rattionel de la dialétictique hégélienne, em que Badiou polemiza com os nouveaux
philosophes - em especial, com André Glucksmann - sobre o papel que o texto supostamente desempenharia na
realização das catástrofes totalitárias: "Não haveria história, portanto, senão como estratégia do texto" (BADIOU,
pág. 248)

79
racionais e esclarecidos (presumivelmente, alguns poucos), uma vez que tenham sido
investidos na posição de educadores, possam finalmente ensinar, tanto às pessoas como às
coisas (que passam a existir quase que num mesmo plano), qual o novo lugar que lhes é devido,
isso equivale a esquecer que a própria prática da educação é condicionada pelas práticas
materiais em seus pressupostos políticos: de onde vêm esses novos homens que seriam os
responsáveis por conduzir a humanidade a uma nova etapa do mundo, se não do velho mundo
de que era preciso evadir-se? E como poderão eles, homens egressos de um velho mundo,
transmitir a sua mensagem a uma nova humanidade, se essa humanidade, no momento de ser
interpelada pela nova pedagogia, continua sendo a velha humanidade que se divide de todas as
maneiras imagináveis, sobretudo entre dirigentes e dirigidos? Se não houver o reconhecimento
de uma capacidade ativa dessa mesma humanidade de emancipar-se sem ser exclusivamente
dirigida pelo conhecimento de outrem, haverá inevitavelmente o obstáculo de uma educação
imperfeita, a qual tem sempre de lidar com o fato de que o sucesso do aprendizado também
está condicionado praticamente.
O defeito da pedagogia que subjaz à concepção calculadora da razão mostra-se em suas duas
faces: por um lado, a sua eficácia sempre esbarra em métodos de controle, posto que aqueles
que não se adequam ao seu processo devem ser de alguma maneira forçados a fazê-lo; por
outro, o controle é um índice da ineficácia que lhe seria inerente, ao evidenciar que, por si só,
a educação não basta, e que educar toda a gente pode muito bem revelar-se uma tarefa das mais
violentas (e, por conseguinte, menos emancipatórias). Contradizendo a educação recomendada
pelo conjunto de saberes próprios a uma determinada situação (na medida em que esse próprio
conjunto não contradiz efetivamente as segregações políticas vigentes), haveria um princípio a
ser entrevisto nas lutas populares de resistência à opressão e à exploração, princípio que o
marxismo adota como uma de suas máximas: no que concerne à política, as massas não
necessitam ser educadas, porque é aquilo o que elas pensam (a saber, que elas não podem e não
devem ser sujeitas a uma ordem que as explora e que as oprime, o que, como foi dito, fica
entrevisto nas revoltas populares) que determina o que é racional do ponto de vista de uma
verdadeira emancipação humana. De sorte que, para a tradição revolucionária em questão, o
trabalho de direção política das massas pensantes não coincidiria nunca com o de uma
elucidação do melhor papel que elas poderiam desempenhar num dado ordenamento sócio-
político73 - assim como a psicanálise não pode ser uma aula ministrada ao sujeito sobre o devido
lugar que ele teria de ocupar naquilo que, num certo contexto, se entende como sendo uma
relação sexual saudável. Antes, a direção política tem de aprender com as massas aonde ela
pode e mesmo aonde ela deve ir. Pode até parecer que não existe nada de mais irracional do
que essa atitude: como confiar-se ao que supostamente pensam as massas revoltosas que, no
momento da sublevação, aparentam encontrar-se transidas unicamente de uma sede de sangue
assassina contra aqueles a quem, muitas vezes de maneira equivocada, elas culpariam por suas
desgraças? Contudo, se não dão a ver imediatamente a racionalidade de sua prática, os levantes
populares pelo menos podem ser vistos desmentir a pretensão da razão calculadora de antecipar
todas as situações em que o melhor estado possível para uma certa totalidade de indivíduos
poderia ser assegurado.
Pois essa é a segunda e definitiva limitação de uma tal maneira de conceber a razão: depois de
desaconselhar aos seres racionais o engajamento revolucionário, ela não consegue prevenir-se
desse engajamento senão por meio da violência (a qual, supostamente, tratava-se de evitar), e

73Essa, aliás, é uma das patentes limitações da concepção estalinistas de contradição: a expectativa de induzir
uma classe revolucionária a partir da . Para essa concepção, o proletariado é quase que fabricável na grande
indústria, junto aos .

80
isso de maneira a ocasionar transformações sociais que podem muito bem ser piores e mais
violentas do que as que se pretendia evitar. A história da luta de classes indica que, para evitar
mudanças sociais drásticas, uma tal concepção não se intimida em recorrer às forças policiais
para garantir a ordem; e, quando se encontra prestes a perder o controle sobre essas mesmas
forças, ela não percebe como a revolução pode estender-se à própria polícia (quer porque a
polícia venha a ser mobilizada e talvez até instrumentalizada pelos dirigentes revolucionários,
quer porque uma revolução conservadora veja na polícia a única força capaz de transformar o
estado de coisas no sentido por ela desejado 74). O que quer dizer que ela se coloca numa posição
em que não é capaz de perceber como o exercício dos poderes instituídos, respaldado pela sua
prudente vigilância, tem a sua eficiência estreitamente atrelada à violência do Estado, e como
é nesta que ela também encontra um limite, já que a própria violência depende da disposição
subjetiva das pessoas para praticá-la ou mesmo para suportá-la (como é notoriamente o caso
da guerra, civil ou nacional). Por avalizarem essa concepção de razão, as ideias liberais, se bem
que participem do momento de verdade de reconhecer universalmente os direitos do homem e
do cidadão, não abarcam os domínios descobertos para a subjetividade pelos tempos modernos,
uma vez que se veem obrigadas a conceber o sujeito que não se adequa à sua estreita visão de
mundo como um simples resto, uma pobre excrescência - resto que, se não deve ser eliminado,
tem de ser mantido sob controle dentro dos limites da civilidade e da tolerância burguesas. 75
As consequências políticas da racionalização econômica da vida, longe de serem inócuas,
seriam desastrosas. Que se argumente que uma tal racionalização não pôde ser conduzida da
maneira correta senão há muito pouco tempo, ou pelo menos não antes de o mundo sair da pior
de suas guerras e a democracia parlamentarista apresentar-se como uma forma amplamente
aceita de governar os homens (segundo alguns, em prevenção, justamente, contra as
monstruosidades do totalitarismo). Ainda assim, restaria o fato de que, na história, a liberdade
prometida pelo mercado (tal como vem sendo teorizada desde os grandes nomes da economia
política clássica), não só esteve muito proximamente vinculada aos expedientes securitários do
Estado moderno, como não foi capaz de debelar algumas das piores forças destrutivas que este
nutria em seu âmago: em verdade, o horizonte concorrencial engendrado por esse mesmo
mercado poderia ser enxergado fomentar outras tantas disposições votadas à destruição (a qual
tem o seu alvo nos outros, prioritariamente, mas que também pode ser voltada contra si mesmo,
como o prova a tendência suicidária que o nazi-fascismo exacerba). Continuaria valendo,
portanto, a cegueira histórica que Hegel acabou por acusar no liberalismo, cegueira que parece
dizer respeito à auto-compreensão de sua efetividade: essa veneranda tradição do pensamento
político ocidental, ao desacreditar a importância histórica até daqueles processos
revolucionários feitos em nome de um grande número de princípios que lhe seriam muito caros
(como seria o caso com a Revolução Francesa), dificulta sobremaneira a tarefa de desvendar
em que é que ela teria contribuído efetivamente para a edificação das instituições que diz
prezar. Certamente, se o liberalismo político goza hoje de uma situação relativamente
consensual, não foi através de uma educação geral dos homens que ele a alcançou (apesar de o
consenso teórico que hoje vige em torno dele certamente influenciar essa situação). Assim,
tem-se uma pista de que a concepção da razão como simples cálculo escamoteia de forma
reiterada a sua pressuposição política: mesmo que se queira como dispensação da
irracionalidade da política e absoluta libertação dos homens para que eles venham a instalar-se

74 A proposta de uma diferença do nazismo e do estalinismo, baseada em algo que não seja o conceito de
totalitarismo.
75 Se limitamos ao caso dos pobres, que não são propriamente , : a única política que lhes resta é a da caridade.

Uma questão de valores: mesmo os que, pelas razões mais diversas, falham em , são tidos como indesejáveis, e a
tolerância passa a ser e a sua punição.

81
plenamente no campo das práticas calculáveis (e, portanto, racionais) de satisfação de suas
necessidades – campo que, para ela, teria se materializado de maneira mais ou menos perfeita
no mercado mundial –, mesmo assim essa concepção pressupõe a decisão política (e, portanto,
subjetiva) de instituir um tal mercado, porque os homens não nascem burgueses e é preciso
condicioná-los a sê-lo. Quando verifica que nem todos vêm ao mundo calculistas (ou melhor,
quando se depara com o fato de que os homens não são todos capitalistas natos), essa concepção
não demora a assumir, é claro, uma posição defensiva, decretando irracionais os que não
conformam-se a essa regra, a repassar-lhes, assim, o fatal prejuízo de sua inaptidão para
existir.76 No entanto, por sempre escamotear as suas pressuposições políticas, de seu próprio
ponto de vista, ela acaba tornando-se cega e mesmo impotente diante da relevância de uma
efetividade política que possa contrapor-se à emergência dos episódios em que o
descontentamento subjetivo quanto a um determinado estado de coisas (que, sob o liberalismo,
tende a assumir a condição mágica de ser o estado o "menos pior possível") vem sinalizar a
necessidade de uma mudança sócio-política drástica.
A concepção da razão como simples cálculo, se não se iguala à ideologia alemã, nem por isso
poderia ser tida como menos ideológica quanto à maneira como entende poder transformar o
mundo: com a contribuição dada por Marx ao explicitar as limitações intrínsecas da
emancipação política moderna, compreende-se que, muito embora tenha resultado de um
processo generalizado de secularização, ela descobre o seu conteúdo irredutivelmente
ideológico em matéria de política pela fé inabalável que vota ao Estado, mesmo que o faça
depois de muito desconfiar de seus arcanos.77 Mas – para falar como Walter Benjamin – é
preciso “(...) escovar a história a contrapelo” (BENJAMIN, 1987, pág. 225), e manter que
apenas "(...) em virtude dos desesperançados nos é concedida a esperança" (BENJAMIN, 2009,
pág. 121), pois, mesmo para os que defendem que hoje vivemos no melhor dos mundos
possíveis (ou no menos pior dos mundos habitáveis), deve ser de alguma maneira óbvio que
não chegamos a esse estado de coisas por termos seguido um plano que a razão há muito havia
esboçado no interior de algumas cabeças geniais e que não pôde ser implementado antes pelo
simples detalhe de que impediam-no a ignorância e o medo do comum dos homens: numa
realidade tão refratária aos planos, ainda convém referir as relativas conquistas políticas do
gênero humano à luta dos oprimidos, por mais não fosse que pelo motivo de que essas lutas é
que abriram um espaço onde a acolhida de novas ideias se tornou possível (de outra maneira,
essas ideias seriam tidas como impraticáveis e excessivamente radicais). 78 O que se reflete no
fato de que não existe propriamente uma linha de progressão contínua que faça descender sem
mediações o Estado de direito na atualidade daquele que provavelmente seria imaginado como
um de seus antecessores diretos, qual seja, o Estado europeu no século XIX: a democracia não
é uma imponente árvore ancestral que, mesmo sob a ação contínua das intempéries, houvesse
sido cultivada no velho mundo com progressivo zelo. Quem queira retraçar o seu
”desenvolvimento“, impossível de ser apreendido por uma concepção linear e progressiva do
tempo, deverá necessariamente considerar a história das lutas e das catástrofes que atravessam

76 Uma passagem de A ideologia alemã ironiza justamente , ao referir a (MARX, páginas 46 e 47).
77 A famosa frase de Thomas Paine é uma síntese perfeita dessa contradição: . Entende-se que sociedade civil e
estado não são idênticos, e isso a ponto de que a primeira nunca possa curar-se de sua desconfiança para com este
último . Mas algum estado deverá resultar desse embate, a sociedade civil podendo esperar apenas que o estado
seguinte seja melhor do que o seu antecessor. Possivelmente, existem gradações . A permanência, na estrutura do
Estado, de uma componente teológica, como se pode ver com a ajuda de Giorgio Agamben.
78 Para todos aqueles que gostam de imaginar uma história sem processos revolucionários, é realmente difícil de

entender que desenvolvimento linear é esse com que sonham, quando as democracias liberais não passam a existir
na Europa senão antes de 1919.

82
e acometem o Estado moderno. E, consequentemente, não podem ficar de fora as revoluções,
que são um momento histórico muito singular no plano da política, pois nelas convergem como
que num único circuito o que seria percebido como as lutas imanentes e as catástrofes externas
(o que, em termos próprios à filosofia, pode-se entender como a evidência, no plano da política,
de como inexistem tanto a pura imanência quanto uma exterioridade absolutamente
transcendente). Se pensamos na Europa do período posterior à Revolução Francesa, quando
logo mais o continente veria as forças das velhas monarquias orquestrarem-se num sacro
concerto contra a sua música infernal de sedução e sedição, não deveríamos ter nenhuma
dificuldade em admitir que ela foi tragada por uma época histórica de violência sem
precedentes, dando lugar, antes mesmo das incursões imperiais de Napoleão Bonaparte, à
primeira guerra total de que se tem notícia. 79 Mas, ao fazer triunfar a restauração do ancien
régime, a contra-revolução prepara a sequência da pior das guerras totais, criando uma situação
em que os homens encarregados de governar as potências europeias - certamente, todos eles
pessoas muito razoáveis, conhecedores dos meandros do poder e das sutilezas que a sua direção
requer - não pudessem evitar um conflito completamente irracional, mesmo contra os seus
próprios intentos.80 Segue-se, assim, um episódio inacreditável da história da Europa,
caracterizado pelo domínio de nações prósperas que, não obstante, vêm atolar-se na lama das
trincheiras (verdadeiras fossas paramentadas, então, com duas das maravilhas técnicas criadas
pela democracia norte-americana, a saber, o arame farpado e a metralhadora 81). E, tendo
escolhido a guerra em vez do socialismo 82, só depois da catástrofe mundial da guerra é que
uma relativa perspectiva de democratização social viria a temperar decisivamente o Estado
europeu83 (num primeiro instante, timidamente, e depois, com a segunda guerra mundial, como
se a assumir a forma de um grande plano de contenção).
Assim, através de um breve vislumbre da história recente do mundo “civilizado”, torna-se
compreensível a necessidade, em política, de uma efetiva prática crítica ao domínio de uma
razão estritamente baseada no cálculo. Por intermédio desse aporte, pode-se dizer que a
tradição em que Badiou tenta se inserir é uma tradição que pondera a urgência das revoluções
que deveriam ter ocorrido, ou bem daquelas que deveriam ter prosseguido. Por contraditório
que isso possa parecer – porque, de fato, é da efetividade da contradição que se trata –, ponderar
as revoluções que deveriam ter ocorrido, ou bem aquelas que deveriam ter prosseguido, não é

79 Para afirmá-lo, apoiamo-nos no livro de David Bell, .


80 Nós não estamos dizendo aqui que o conflito da primeira guerra mundial fosse um conflito absolutamente
inevitável, ou mesmo um conflito perfeitamente antecipável pela teoria marxistas da história. O curioso dessa
guerra é que ela tenha sio provocada por cirunstâncias , e que os tenham tentado evitá-la.
81 Recapitulamos aqui o dizer satírico de Kurt Vonnegut que, no texto Do you know what ?, escrito após a segunda

guerra do golfo (2001 - ), constatava: ”A guerra é agora uma forma de entretenimento televisivo, e o que fez a
Primeira Guerra Mundial tão particularmente capaz de entreter foram duas invenções americanas: o arame farpado
e a metralhadora”. Cf. A man without a country. Mas o arame farpado é não só uma criação da democracia norte-
americana, como, de certa forma, pode ser visto como uma de seus elementos constitutivos. Cf.
82 Lembremos do que diz um historiador insuspeito de ser militante do comunismo, Fernand Braudel: ””.
83 Um grande historiador da democracia grega clássica, o italiano Luciano Canfora, nos recorda desse fato (mas

que ele também comenta a propósito da França, da Alemanha e da Itália): ”A Inglaterra [de antes da guerra] dispõe
de um mecanismo eleitoral em que o sufrágio universal não se aplica. Na Inglaterra, só é eleitor quem for
proprietário de uma casa, ou titular do aluguel; os outros não votam. Isso exclui uma grande quantidade de pessoas
que não estão nem numa, nem noutra categoria. Naturalmente, pode-se dizer que o hábito político inglês era, já
há dois séculos, absolutamente orientado para uma prática liberal, mas esse sistema coexiste, dentro da estrutura
social e política da Grã-Bretanha, com um conservadorismo substancial, de modo que – conforme diz um
historiador indiano muito espirituoso, um certo Panikkar – ainda no final do século XIX a palavra democracia era
considerada uma palavra desagradável e malvista, na linguagem política britânica. O ancien régime só terminou
na Grã-Bretanha após a Primeira Guerra Mundial, quando, finalmente, o Partido Trabalhista conseguiu a maioria
parlamentar e tornou-se governo" (CANFORA, páginas 52 e 53).

83
o mesmo que subordinar a razão a um mero dever-ser abstrato: se a história seguiu um
determinado curso, seria imprudente concluir que ela o fez sem qualquer razão, tornando-se
obrigatório aos seus estudiosos o trabalho de reconstituir-lhe (pelo menos) alguma coisa que
vagamente se assemelhe a uma sequência causal de eventos; no entanto, da mesma maneira,
seria imprudente confundir a razão que se lhe concede então com a fatalidade de um “tinha de
ser exatamente assim!”. A dialética convém muito pouco à pasmaceira de um ser que fosse
sempre idêntico à sua aparição no mundo. Mas é fundamental que se diga, todavia, que a
diferença que a contradição insere na consideração dialética da causalidade histórica não é a
de uma variação qualquer, que multiplicasse indefinidamente o reino dos possíveis em infinitas
miragens a desfilar no labirinto de espelhos das fabulações humanas. Ela nada tem que ver,
digamos, com o devaneio de um homem que, sendo muito pobre, imagina por um instante
como seria deleitável a sua vida se ele fosse podre de rico: isso é sem dúvida uma diferença, e
uma a que a vida do homem em questão não permaneceria de maneira alguma indiferente se a
sua história fosse outra; mas essa diferença não altera a própria lógica que estrutura a existência
tanto desse como dos demais homens (pois é razoável imaginar que, se fosse ele o rico, haveria
outros homens para servi-lo). O que o trabalho de discernir as forças antagônicas do presente
visa, por sua vez, é a possibilidade de interromper a continuidade de certos processos que,
mesmo que tenham sido desencadeados por motivos identificáveis e pensáveis em sua
densidade e existência reais, não podem ser concebidos como sendo inevitáveis. Para evitar a
catástrofe da primeira guerra mundial, por exemplo, os comunistas podem sustentar que a
organização do proletariado internacional era uma força - a única verdadeiramente eficaz, a
propósito - capaz de contrapor-se à militarização crescente dos impérios coloniais da Europa
de fins do século XIX.84 E mesmo a tragédia do movimento socialista alemão - na véspera da
primeira guerra mundial, o mais organizado de toda a Europa, a gozar, inclusive, de uma
relativa proeminência política e da capacidade de se contrapor à empresa beligerante do estado
alemão, oportunidade que ele, infelizmente, veio a desperdiçar - tangencia o contra-factual: ao
invés da presença, é a ausência de uma política que estivesse à altura da universalidade exigida
por aquele momento histórico que vai redundar no encaminhamento da catástrofe. 85
Falar em comunismo na década de 1970 (como ainda hoje) não era simplesmente uma aposta
no incerto - aposta que, pela suposta ignorância que demonstraria quanto aos desastres políticos
ocasionados por uma tal ideologia, atestaria apenas a irresponsabilidade de quem se dá ao
trabalho de fazê-lo. Muito pelo contrário, falar em comunismo era uma maneira de tentar
colocar em cena um pensamento votado a uma prática política de interrupção das tendências
destrutivas presentes nesse tempo histórico que se caracteriza pelo capitalismo. Trata-se, pois,
de uma prática que visa, sobretudo, a interrupção de uma tendência suicidária presente na
sociedade moderna, tendência em que mesmo a civilização que ela edificou violentamente vê-

84Um aspecto da subjetividade, que é o da memória ser apreciável desde uma estrutura lógica. O livro de Adam
Hochschild, O fantasma do rei Leopoldo. Depois de fazer campanha contra a guerra, ele - tanto quanto o seu
companheiro irlandês - se revelou um advogado de causas perdidas. Aquele breve triunfo, bem documentado e
conhecido na época, foi soterrado pela primeira guerra mundial. Como se a vala não fosse grande o bastante, ela
ainda dividia a memória dos mortos, como se não houvesse sido um genocídio o massacre perpetrado pelos
alemães contra os herrero. Em contraste, a Revolução Russa faz memória ao dar prosseguimento a uma sequência
lógica, posta que tenha contradito a própria tragédia da segunda internacional, morta no instante exato em que as
delegações de cada país votaram a favor dos créditos de guerra. Não é tanto que escrevam uma história dos
vencedores, mas que só possam escrever uma história de nós mesmos como uma história da vitória. Nesse sentido,
a Revolução Russa continua sendo um acontecimento excepcional.
85

84
se ameaçada de aniquilação pela própria violência que torna operante.86 E não podemos deixar
de frisar que o jovem Marx já estava mais ou menos ciente disso.87 Na Introdução à Crítica da
filosofia do direito de Hegel, ele advertia que "(...) o alemão encontrar-se-á ao nível da
decadência europeia, antes de alguma vez ter atingido o nível da emancipação europeia"
(MARX, pág. 153). Ou seja, para o Marx de 1843, se o alemão não adota o expediente
revolucionário que permitiria interromper de uma vez por todas as tendências obscurantistas e
retrógradas de seu estado nacional, estas retornariam ainda piores, sob uma forma em que
ficaria bastante explícito o seu descompasso relativamente aos princípios mais básicos da
emancipação política moderna. Aspecto que Kouvelakis observa muito bem, ao se aplicar a ler
o surgimento e o desenvolvimento do pensamento de Marx tendo em conta os fracassos
revolucionários de 1848. 88 Com essa leitura, Kouvelakis também faz repontar a ausência
desesperadora de uma verdadeira revolução política na história da Alemanha:
Na Alemanha, tudo se resumia a sufocar a democracia revolucionária
no berço. O desfecho foi um compromisso entre a burguesia e o ancien
régime, seguido pela unificação do país sob a [palavra de ordem do]
“Blut und Eisen” [“Sangue e Aço”]; as últimas consequências foram o
militarismo, duas guerras mundiais e uma barbaridade inimaginável a
que ela deu lugar. (KOUVELAKIS)

Não seria nenhum exagero dizer que a palavra de ordem do Blut und Eisen se prolonga e deita
raízes com a ideologia nazista do Blut und Boden [Sangue e Solo], de uma forma tal em que
ela viria a sedimentar-se na própria subjetividade dos alemães. Nesse arco descrito pela história
política da Alemanha na época que se segue ao Esclarecimento – arco que culmina nas ruínas
do estado moderno89 –, observa-se que, desde a escrita de Sobre a questão judaica até o

86 Aqui reverberam, certamente, as célebres palavras de Aimée Césaire, quando o poeta, em seu Discours sur la
colonisation, aplicava-se a argumentar que os valores europeus relativos ao domínio sobre os ”povos não-
civilizados“ há muito preparavam a ascensão de Hitler: "Colonização: cabeça-de-ponte numa campanha para
civilizar a barbárie, da qual pode emergir a qualquer momento a pura e simples negação da civilização"
(CÉSAIRE, pág. 40). A citação de Walter Benjamin há alguns parágrafos não foi gratuita. A sétima das chamadas
teses sobre a história.
87 Existe uma ambiguidade no pensamento , que já foi o tema de várias reflexões. Ofuscando a ideia de interrupção,

existe uma ideia muito presente de progresso, de etapismo, de evolucionismo, e, às vezes, até de messianismo.
88 Como o próprio Kouvelakis explica: “não me parece desprovido de sentido examinar sob esse ângulo os escritos

posteriores a 1850; ler em outros termos o Capital, como uma longa meditação, elevada ao nível do conceito,
sobre a derrota revolucionária de [18]48. Um pouco como foi possível ler a Fenomenologia do espírito, de Hegel,
e mais largamente o idealismo alemão, como uma vasta reflexão sobre a Revolução francesa e suas
consequências” (KOUVÉLAKIS, páginas 91 e 92).
89 A bem da verdade, o nazi-fascismo pode ser entendido como a última etapa de um processo de auto-implosão
do Estado moderno. Esse processo, como deve ter percebido Franz Rosenzweig, com a primeira guerra mundial .
Em que seu Hegel e o estado, que tanto contribuiu para renovar a compreensão da filosofia hegeliana do direito,
Rosenzweig : “O presente livro, que remonta, em suas primeiras partes, ao ano de 1909, estava praticamente
pronto quando do início da guerra. Eu não pensava, naquela época, ter necessidade de lhe apor palavras prévias.
Hoje tal é inevitável. O leitor tem que, antes de tudo, saber que ele só pôde ser completado em 1919. Hoje eu não
teria empreendido a sua escrita. Eu não sei de onde pode se tirar, hoje, a coragem para escrever história alemã. À
época em que o livro foi concebido, havia esperança de que a sufocante estreiteza interna e externa do Estado de
Bismarck se abriria no sentido de um Império capaz de respirar livres ares mundiais. Este livro deveria, na medida
em que um livro é capaz disso, preparar, dentro de suas possibilidades, para tal. A dura e limitada ideia de Hegel
sobre o Estado, que mais e mais tornou-se dominante ao longo do século que se despede, engendrou o ato histórico
de 18 de janeiro de 1871 'como um raio desde as nuvens’. Essa ideia deveria, em seu devir através da vida de seu
pensador, desagregar-se sob os olhos do leitor, para permitir a percepção de um futuro alemão mais vasto tanto
interna quanto externamente. Algo diferente aconteceu. Um campo de ruínas indica o lugar onde outrora havia o
Império. (...) Esse livro, que eu não mais teria escrito hoje, não pude igualmente modificar. Era somente possível
publicá-lo como ele uma vez fora na sua origem e objetivo: uma testemunha do espírito de pré-guerra, não do

85
holocausto, expõe-se, aberta e cruamente, a decadência europeia. Nesse contexto, entende-se
porque, para Badiou, a única guerra verdadeiramente antagônica, em oposição às guerras
entregues à estupidez do particularismo nacional, seria aquela engajada pela subjetividade
irrepresentável das práticas comunistas.
Atingindo o extremo de nossa exposição, podemos dizer que, como o título deve tornar muito
claro, Théorie du sujet é uma obra privilegiada para dar-se conta daquilo o que motiva a
interrogação subjetiva de Badiou, mesmo (ou especialmente) quanto à situação histórica
específica desde onde o filósofo pretende apresentar a pertinência de suas teorizações. Para
constatá-lo, não é preciso nem mesmo transpor o seu umbral. O prefácio desse livro condensa
magistralmente a dificuldade de seu escopo conceitual, entre outras coisas, quando realiza uma
breve escansão da história nacional da França, bastante atípica por dar-se como uma sequência
histórica que, em princípio, quereria desmentir o seu estado de nação:
Esse país não teve, desde pouco mais de um século, senão três títulos
de glória para apresentar, três momentos de existência real, três figuras
de universalidade possível: a Comuna de Paris, em 1871, a Resistência,
entre 1941 e 1945, e o levante dos jovens e dos trabalhadores em maio-
junho de 1968. (BADIOU, pág. 13)

A tais glórias, no entanto, a história teria aposto a dificuldade de dar-lhes prosseguimento,


numa dialética em que cada uma delas poderia ser emparelhada com um momento de abjeção:
“triunfo de Versalheanos depois da Comuna, guerras coloniais depois da Liberação, e,
minúsculos, os nouveaux philosophes depois do estabelecimento dos intelectuais
revolucionários nas fábricas” (BADIOU, pág. 13). Ademais, deveriam ser acrescentadas
também as catástrofes das duas grandes guerras: “As duas Grandes Guerras Mundiais foram
desastrosas, o povo tendo se batido quando não deveria (1914 - 1918), e não tendo se batido
quando deveria” (1939 - 1940)” (BADIOU, pág. 12). Daí a conclusão grave, que prescreve à
filosofia a tarefa de pensar as condições para que não tenha mais lugar nada que se pareça com
essas catástrofes: “A filosofia não vale a pena sequer por uma hora se ela não esclarece o
engajamento, mesmo restrito, de quem, portando a memória da existência, visa a interditar o
retorno das cinco catástrofes ou do que quer que seja que se lhes assemelhe” (BADIOU, pág.
13). Assim, é bem óbvio que, mesmo que entre Marx e Badiou interponham-se episódios
históricos e acontecimentos tão significativos a ponto de modificar a própria dimensão de certas

‘espírito' de 1919. Apenas pelo acréscimo de uma segunda epígrafe e alguns complementos claramente
perceptíveis acreditei poder caracterizar o trágico momento de seu aparecimento. Que eu edite o livro apesar de
tudo, decorre essencialmente do fato de que a Academia de Ciências de Heidelberg, através da generosa garantia
de co-edição, me afiançou a confiança de que, se este livro em nada serve mais à vida alemã, é possível que pelo
menos sirva de algum modo à ciência que sobrevive à destruição da vida" (ROSENZWEIG, pág. 57). O
testemunho de Rosenzweig é interessantíssimo porque, a sua interpretação sendo muito influenciada pela de seu
mestre, , ela sugere que, após a primeira guerra mundial, uma certa interpretação da filosofia hegeliana do direito
se torna absolutamente inviável. A nova ordem mundial, posterior à queda do muro de Berlim e da derrocada do
império soviético, suscitará uma nova acolhida do pensamento político hegeliano, de maneira a plasmá-lo segundo
o espírito ”democrático“ do tempo que a anima (ou seja, implicando um esquecimento da exaltação que o filósofo
se permitia dos valores guerreiros do espírito do mundo, reconhecíveis nas nações modernas europeias). As
democracias parlamentaristas não são o lugar dessa rememoração: mesmo se realizando como estados em existe
aproximadamente uma , eles não são capazes de conceber a sua existência histórica, as violências que eles
pressupõem . O esquecimento do nazismo na Alemanha . As consequências disso são inúmeras, destacaremos
duas: 1) a necessidade, para a teoria crítica, de contestar a capacidade dessa ordem de se manter "pacífica"; 2) o
imperativo, para a hipótese comunista, de pensar não só para-além do paradigma de um “socialismo de caserna“,
mas de uma militância que não demande o engajamento de um soldado, de um combatente, de um guerrilheiro.
Nesse sentido, precisamente, é que Badiou faz uma intervenção, analisando um poema de Wallace Stevens e de
G. M. Hopkins.

86
questões caras à razão – resuma-se a distância entre os dois da seguinte forma: duas grandes
guerras e duas grandes revoluções –, o francês tem de ser visto retomar a sequência inaugurada
pelo pensamento do alemão, a partir da crítica que este elaborou à emancipação política
moderna (e não é por acaso que a Revolução Francesa não se encontre figurada na lista
mencionada acima: muito claramente, não porque não seja importante, mas porque a sua crítica
é o pressuposto da empresa metapolítica de Marx). Pois a escansão da história francesa
proposta por Badiou começa exatamente pela única organização comunista de que Marx e
Engels tiveram notícia em vida: aquela que fazia oposição prática tanto a Bismarck como a
Louis Bonaparte, a qual vem a efeito na sequência de uma guerra insensata travada entre a
França e a Prússia. Justamente esse acontecimento político, que não é nenhum outro senão o
da Comuna de Paris, havia fomentado uma nova expectativa, ou bem realimentado a velha
expectativa dos comunistas quanto ao novo, vindo a representar um alento em meio à atmosfera
sufocante das campanhas militares nacionais. Como se sabe, a expectativa de Marx e dos
demais membros do diretório da Internacional Comunista não se cumpriu, qual fosse, a
expectativa de que a “aliança das classes trabalhadoras de todos os países" viesse a "matar a
guerra" entre as nações europeias (Cf. MARX, pág. 25). Mas o não cumprimento dessa
expectativa não comprova o seu fracasso irredimível, pois, em sua essência mesma, ela
continua solicitando o ato de uma aposta, uma vez que o seu lance de dados não pretende abolir
o acaso: o que ele almeja é fornecer uma saída de emergência para uma circunstância em que
a sensatez do cálculo de enxadrista oferece-se primeira e quase que exclusivamente aos
insensatos que acreditam poder governar os homens como simples coisas, ou como uma
matéria totalmente objetivável. E, no aludido prefácio, Badiou reitera a sua convicção de que,
afora essa expectativa e o ato que ela requer, "(...) todo o resto fará, futilmente, naufrágio”
(BADIOU, pág. 14). Isso porque tanto ele como os possíveis destinatários dessa mensagem –
que aparenta flutuar dentro de uma garrafa apenas para aqueles que não acreditam que todos
embarcaram juntos –, tanto um como os outros, dizíamos, vivem num “(...) mundo que de novo
lança-se à guerra, se não existe pelo menos uma vontade fixa, coletivamente submissa, à altura
de sua tarefa, [a saber, a] de imprimir contra a corrente nem que seja um único gesto de direção
à[quilo] o que poderia nos desafogar” (BADIOU, pág. 14).
A aposta no ato solicitada pela expectativa dos comunistas é o melhor índice de que o registro
da subjetividade é que providencia o lastro de toda a teorização de Badiou. Consequentemente,
não espanta que esse elemento conceitual venha a ser tido como mais uma ótima evidência do
paralelismo que se pode traçar entre o filósofo e o psicanalista. Mas esse ato e a expetativa que
ele deseja avalizar estavam imbuídos de um espírito marcadamente beligerante: ao conclamar
a esse ato, reavivando a expectativa que o suporta, o filósofo espera contribuir para que seja
colocada em marcha uma guerra de que a psicanálise não saberia muita coisa. Guerra que diz
respeito ao sujeito, certamente, mas que deteria o mérito de ser a única guerra verdadeiramente
antagônica em matéria de política, e que, como tal, muito pouco ou nada teria que ver com o
gozo do sujeito do inconsciente. Assim, para os que não tomam parte nessa guerra, resta uma
observação amarga, que nada mais é que a caracterização geral da irresponsabilidade dos
intelectuais franceses quando eles acreditaram encontrar-se situados para-além dos domínios
da ideologia e do engajamento prático que poderia mover alguma oposição a eles:
Esses intelectuais franceses que nunca cessaram de cuspir sobre si
mesmos, sobre as "ideologias", sobre o marxismo, sobre os Mestres,
sobre sua experiência a mais incontestável, e que caucionaram o
informe e o múltiplo, o espontâneo e a memória em migalhas, os
direitos e os gozos [jouissances], os trabalhos e os dias, [eles] tiveram
uma penosa responsabilidade: a do irresponsável. (BADIOU, pág. 13)

87
Se Lacan pode ser elencado como um desses intelectuais - como de fato parece ser o caso, pela
breve referência que a passagem faz aos “Mestres” em que esses intelectuais teriam cuspido e
aos "gozos" que eles teriam caucionado -, persiste o questionamento: porque Lacan pode ser
dito tão importante para o Badiou das décadas de 1970 e 1980, se o sujeito que o psicanalista
interroga não se faz enunciar a propósito de um problema que coincidiria com as questões a
que se dedica o filósofo?
*
Como não poderia ser de outra maneira, a nossa exposição obedece a um movimento
essencialmente contraditório: tão logo tenhamos explicitado os indícios de uma espécie de
congruência do "método” que o registro subjetivo clama em diferentes circunstâncias, nos
vimos obrigados a explicar igualmente que o encaminhamento subjetivo do filósofo continua
a opô-lo ao psicanalista. No entanto, deve existir um motivo para que os dois falem de um
sujeito, e um após o outro, um a exemplo do outro. Esse motivo, nós entendemos poder
encontrá-lo nas relações que cada um dos dois, Lacan e Badiou, acreditam ser necessário
sustentar entre sujeito e verdade. Porque, tal como a importante consequência depreendida por
Jean-Claude Milner a respeito do ensino de Lacan 90, também em referência à metapolítica dos
comunistas vale dizer que, nas práticas cotidianas em que pesam os pressupostos da divisão do
subjectus moderno, “o silêncio não existe”: a despeito do que recomenda a prudência de quem
se condiciona a calar-se lá onde nada de razoável poderia ser dito, a ideologia dominante que
se impõe pelas inúmeras modalidades de exploração e opressão de classe multiplica-se numa
sucessão indefinida de monstruosidades, as quais persistem mesmo em face daquele que parece
ser o mais razoável dos cálculos. E é porque não cessa o dizer do isso (bem como não cessa a
produção de construtos ideológicos) que o analista (e o comunista) orienta(m)-se pela
obrigação de sempre dizer a verdade; mas, segundo o que estabelecia uma conhecida
formulação de Lacan, “não toda”, no entanto, “porque dizê-la toda não se consegue”, é
"impossível, materialmente” (LACAN, 2003, pág. 508). O que podemos interpretar como o
processo, eminentemente subjetivo, de uma verdade ineludível, porque, em resposta a um isso
sempre falante, ela não poderia calar-se, nunca; mas trata-se também, contraditoriamente, de
um processo em que a verdade não deixa de se eludir, por que ela não se dá a ver inteira em
nenhuma objetividade. Donde a pertinência de falar em um sujeito, mesmo que a propósito de
matérias distintas. Pois, se, desde a perspectiva de Badiou, não podemos enxergar na
psicanálise o lugar de emergência da verdade da política, nada nos impede de vê-la como o
lugar da emergência de uma nova política da verdade.
E, a bem da verdade, a psicanálise terá representado esse lugar não só para Badiou, mas para
toda uma geração de intelectuais: era como se, desde o seu gesto nada menos que
impressionante de devolver às histéricas o dom do logos, Freud houvesse restabelecido contra
o mutismo geral que prevalece na ciência moderna um novo sítio para a verdade, sítio em que
a verdade se mostrava tanto mais persuasiva por revelar-se mesmo em confronto com as
agruras da loucura e os constrangimentos do sexo. E na França do século XX 91 - como viria a
constatar mais tarde o próprio Badiou, em seu ensaio “L’aventure de la philosophie française”
(Cf. BADIOU, páginas) -, a psicanálise, se não é aceita unanimemente como um dos mais
eminentes modelos para a inquirição sobre a verdade, continua sendo digna, num grande

90 ”Ora, o axioma de Lacan, é que o silêncio não existe. Nunca, isso não se cala. Eis o que é preciso entender no
’isso fala’” (MILNER, 2003, pág. 23).
91Um exemplo com quem já estamos familiarizados, o de Gaston Bachelard. No Brasil, a coisa não é diferente. Dois
de nossos maiores filósofos: Newton da Matta e Bento Prado Jr.

88
número de casos, de pelo menos ser transformada segundo novos critérios e exigências
adotados por uma série de teóricos que acreditavam ser necessário superar os seus impasses ou
limitações locais. Mesmo alguns de seus mais acerbos críticos, como o seriam Deleuze e
Guattari, dão a entender - por óbvia influência da emergência histórica da psicanálise - que um
elemento propriamente clínico constitui uma das dimensões fundamentais do pensamento
contemporâneo: como a conformação do termo talvez baste para evidenciar, a esquizonálise
pretendida pelos dois, se bem que esteja votada a esquizofrenizar o psíquico em explícita
oposição àquela que seria a empresa edipiana de Freud, não elimina de todo o proceder
analítico. Por sua vez, Lacan pode ser considerado um dos mais consequentes pensadores da
prática inventada por Freud em suas relações com a verdade, como se torna muito claro nas
suas reiteradas aproximações com a filosofia. É em nome da verdade (em todo caso, em nome
de uma certa verdade), por exemplo, que na segunda sessão do segundo ano de seu seminário
veríamos o psicanalista recorrer a Sócrates e a Platão (ou melhor, nós o veríamos recorrer ao
Sócrates que Platão faz falar). Ele explicava, então, o seguinte:
No fim das contas, para Sócrates, mas não forçosamente para Platão,
se Temístocles e Péricles foram grandes homens é que eram bons
psicanalistas. Encontraram no registro deles o que quer dizer a opinião
verdadeira. Eles se acham no âmago deste concreto da história onde
um diálogo se acha entabulado, quando no entanto nenhuma espécie de
verdade pode ser deslindada sob a forma de um saber generalizável e
sempre verdadeiro. Responder o que convém a um acontecimento na
medida em que é significativo, em que é função de uma troca simbólica
entre os seres humanos (...), é fazer a boa interpretação. E fazer a boa
interpretação no momento necessário é ser bom psicanalista. Não estou
dizendo que o político seja o psicanalista. (...) Mas para Sócrates, o
bom político é o psicanalista. (LACAN, seminário 2, pág. 31).

Se bem que trate da opinião verdadeira, que seria o significado preciso de ortodoxa, a passagem
acima cuida sobretudo da singularidade da verdade que se desdobra na análise, verdade que,
como vimos em outros capítulos, não é compreensível nos termos de nenhuma representação
ou mesmo de um saber científico.
Como já sabemos, as relações entre psicanálise e filosofia no ensino de Lacan são complicadas
o bastante para que as sentenças há pouco citadas não possam ser consideradas como se dotadas
de um valor absoluto e constante. De qualquer modo, elas dão testemunho de uma maneira
muito específica de compreender o estatuto da verdade na psicanálise - e a fazê-lo com
particular interesse para nós, porque vinculam, ainda que de uma forma bastante remota, um
tal problema ao campo da política. Observando o caráter móvel dos conceitos lacanianos,
caberia perguntar, naturalmente, se essas sentenças mantêm a sua importância quando o
psicanalista alinha o seu ensino ao ideal de uma “anti-filosofia” - sendo previsível que pelo
menos alguma coisa teria de mudar nas conclusões a que elas levariam, por exemplo, quanto a
tomar Sócrates como uma espécie de garantidor espiritual da prática analítica. No mínimo, é
preciso reparar que o endosso de Sócrates condiz mais propriamente com uma determinada
época do ensino do psicanalista, época em que, “(...) para Lacan, dialética, diálogo,
intersubjetividade e reconhecimento eram termos convergentes" (SAFATLE, 2006, pág. 46).
Ou seja, quando a prática analítica era pensada como uma modalidade específica do diálogo,
sendo então passível da designação de uma "maiêutica analítica" (LACAN, 1998, pág. 112).
Mas a correlação do bom político com o bom psicanalista, a dar-se por meio de uma estranha
incursão na história da filosofia antiga, não deixa de ser extremamente sugestiva, pelo que
permite entrever da inesperada extensão com que a subjetividade é vista recobrir a vida humana
89
em sua vasta existência simbólica. E mesmo num “ponto de viragem” como aquele
representado pelo sétimo ano do seminário, em que estaria prenunciado o momento de
superação da intersubjetividade como móvel fundamental da práxis clínica, mesmo ali a
psicanálise parece situar-se numa encruzilhada muito semelhante da história da razão, posto
que ela é entendida descender dos questionamentos éticos que, em sua origem, teriam graves
implicações políticas. Referindo-nos a esse segundo momento, talvez não conviesse mais dizer
que o bom político é o psicanalista. Mas ainda seria preciso dizer que a boa psicanálise
corresponde a uma boa política da verdade, porque houve, da parte de Freud, uma retomada
das articulações lógicas, silogísticas, "(...) que sempre foram praticadas pelos éticos nesse
mesmo campo" (LACAN, pág. 42), retomada que, se não pode ser dita coincidir com o que
teorizavam os filósofos antigos, de toda maneira tem de ser compreendida reatualizar as suas
questões, dotando-as de uma nova importância. O que quer dizer que, com a psicanálise, a
filosofia como que ganha uma nova vida.
A partir de Lacan, portanto, a psicanálise é pensada efetivamente como um campo privilegiado
para apreciar os desdobramentos e reviravoltas da história da razão e, em especial, da história
da filosofia. Comprovam-no os incríveis torneios de erudição que tinham lugar em seu
seminário, a revolutear incessantemente em torno de nomes tão célebres como Santo
Agostinho, Pascal, Aristóteles, Frege, dentre muitos outros. Decerto, se formos consequentes,
diremos que a situação é um tanto mais complexa, porque, no ensino de Lacan, a psicanálise
também pode ser entendida reviver na filosofia: mais de uma vez, é da filosofia que provém o
impulso capaz de mover e desviar a psicanálise dos obstáculos que a manteriam separada do
sujeito e da verdade. Dessa forma, o psicanalista tem de ser visto proceder um pouco como
Marx, que criticava duramente a filosofia e a sua indisposição para transformar o mundo, mas
não sem encontrar nessa mesma filosofia o próprio impulso da crítica que permitia constatar a
ausência da transformação mundana de que o pensamento tem de se ressentir. Paralelo que
permite enxergar como que uma mesma tentativa de evadir-se da jurisdição de um pensamento
estritamente filosófico (ou ainda, de um pensamento que, exigente de um selo oficial para a
filosofia, perigava ver-se limitado ao âmbito acadêmico): tanto a partir do marxismo como da
psicanálise lacaniana, a filosofia é posta a operar fora da própria filosofia. É assim que se
justifica a inserção de um elemento heteróclito na consideração histórica da razão que
permitirá, num momento posterior, a enunciação do ideal de uma “anti-filosofia”: pode-se ver,
pois, com o auxílio de uma nova perspectiva (a saber, aquela franqueada pelo gozo do sujeito
do inconsciente), que alguma coisa faltava à filosofia para que ela correspondesse efetivamente
aos seus anseios; ou se trata, então, de se colocar na posição de perceber a inaptidão da filosofia
para lidar com a dimensão específica de uma falta. Em seu Lacan e a filosofia, Alain Juranville
trata de explicitar precisamente as consequências do embate desses dois discursos, o analítico
e o filosófico, de maneira a mostrar que o primeiro reposiciona o segundo, e que o segundo não
deixa nunca de dar relevo ao primeiro. Uma dessas consequências, bem esmerada na
elaboração do autor, é uma espécie de visada retrospectiva que a análise autorizaria lançar sobre
a filosofia, como se a enxergá-la agora por um outro prisma, um em que seria discernível a
busca por algo que falta a ela e que é, portanto, objeto de um desejo:
De um lado, o discurso filosófico assume a situação originária do
questionamento em seu aspecto e coloca o ser do homem como desejo
– falta radical do bem absoluto e, ao mesmo tempo, visada desse bem
como ideal. De outro lado, ele quer que essa situação de desejo tenha
absolutamente um sentido, que seja o lugar de uma plenitude. Que a
atividade filosófica traga positivamente algo de essencial.
(JURANVILLE, páginas 16 e 17)

90
Uma tal visada permite compreender melhor porque o psicanalista procura desde muito cedo a
filosofia como um lugar privilegiado para pensar a prática clínica de uma talking cure. Pois, a
partir de Sócrates e de sua maiêutica, a filosofia desvenda um desejo de dar ao questionamento
o seu verdadeiro valor, fazendo, assim, com que a mestria seja desautorizada no seu poder
supostamente natural de sujeitar a boa consciência dos homens. Mas, ao mesmo tempo, a
psicanálise tem de acusar aí um paradoxo, tal como nos explica Juranville: “Por ora, basta
assinalarmos que o questionamento filosófico conduz a duas pressuposições dificilmente
conciliáveis: a dúvida sobre o saber, a contestação da mestria, de um lado, e a busca do saber
como bem, de outro” (JURANVILLE, pág. 57). Por conseguinte, a relação mantida pela
psicanálise lacaniana com a filosofia é uma relação tensa (como lembra muito a propósito o
título de um livro a ela dedicado), e uma tal tensão admite mesmo a possibilidade de que a
psicanálise venha a reclamar a autenticidade que, num determinado momento, ela recusará à
filosofia: como o inconsciente refere não o ser que se pensa, mas o ser falante que goza, ele
deverá contradizer a existência de qualquer desejo especialmente votado para o saber (Cf.
seminário 20, pág. 143). E, por fim, a filosofia, ao negar em seu próprio âmago a inexistência
de uma metalinguagem, seria vista reconduzir à posição da mestria (Cf. JURANVILLE, pág.
).
Mas, mesmo com essas idas e vindas, a filosofia não chega nunca a desaparecer do horizonte
do ensino do psicanalista. No extremo do pensamento de Lacan, não cessa, por exemplo, o
comentário de grandes textos filosóficos (como será o caso com o comentário que ele dedica
ao Parmênides no vigésimo ano de seu seminário). Até o fim, ele prova ser um comentador de
textos dos mais inventivos e competentes, ao mesmo tempo em que não perde o prestígio de
um renomado clínico (a reunir, portanto, a dupla designação de crítico e clínico): podemos
imaginá-lo, talvez, como um Martial Guéroult que soubesse curar a partir de suas interpretações
– e, sem perder o gosto pelos trocadilhos, vale lembrar que, em francês, curar é guérir. Afora
esse jogo de palavras, que não resolve nada, é fundamental não perder de vista como Lacan
intenta fazer com que a ficção desnude a estrutura da verdade. Num momento histórico em que
a intelectualidade francesa parecia disposta como nunca a acolher a conhecida boutade de Jorge
Luis Borges de acordo com a qual a filosofia seria o ramo mais desenvolvido da literatura
fantástica, o psicanalista mostra a sua irredutível ambivalência: podendo ser tido como um dos
maiores contribuidores para pensar a questão nesses termos (isto é, como se a filosofia nada
mais fosse que um gênero particular da ficção), ele, ainda assim, não descuidava da verdade
que o pensamento filosófico repetidas vezes tentou trazer à cena principal. Lacan, homem cujos
dotes como crítico literário são inegáveis, é certamente um teórico que tem de ser visto transitar
no limite dessas fronteiras: em seu ensino, não é raro que um conceito ou bem um aspecto
absolutamente crucial de um construto teórico possa vir à luz graças tão somente à análise de
uma obra literária, como a que ele dedicou ao Hamlet, de Shakespeare, ou à Antígona, de
Sófocles. Mas, na psicanálise, diferentemente de outras empresas teóricas enamoradas da
literatura, a perspectiva que tende a equivaler textos filosóficos e literários ainda encontraria
algum apoio numa prática concreta, pelo menos enquanto a sua prática é entendida basear-se
numa intervenção que lhe possibilita o símbolo. Por um lado, vale dizer que a análise que
permite evidenciar a pertinência de uma tragédia grega para os frequentadores do seminário
não é muito diferente do expediente a partir do qual o diálogo socrático como que viria a
reencarnar na prática cotidiana da clínica. Mas, ainda assim, à diferença de seus
contemporâneos, como o seriam Jacques Derrida e Roland Barthes, Lacan aparenta resistir
melhor à caracterização de um acadêmico que, secundado por Mallarmé, acreditasse que a
história do mundo serve apenas para fornecer o material de escrita de mais um livro: isso porque
a diretriz que a psicanálise nunca cessa de deparar no ideal de cura de seus pacientes impede

91
que, para ela, o real seja inteiramente dissolvido no fio da baba dos faladores de plantão. Visto
de um determinado ângulo, certamente oblíquo, o psicanalista é quem mais autenticamente se
vincula ao aspecto prático da filosofia antiga. Quando, no sétimo ano do seminário, ele recupera
para o vocabulário das querelas filosóficas então em curso essa estranha palavra que seria a
“ética" (pensada pelo psicanalista como se a distinguir-se essencialmente da moral), ele o faz
de maneira a atualizar a pertinência que guardariam entre si tanto os cuidados para com os
modos de fala (ou de escrita) quanto como para com os modos de vida.
A política da verdade que a psicanálise tenta observar no exercício cioso de sua prática clínica
não é a de dobrar a realidade às exigências do discurso. Contudo, de maneira ambivalente, para
a psicanálise, não existe verdade senão através de um processo discursivo. Se pensamos na
virada linguística que acomete a filosofia no século XX – virada cujo alcance, como se sabe,
vai muito além dos limites nacionais do território francês –, poderíamos acusar uma distância
que o pensamento contemporâneo acredita ser necessário manter em relação à vida e a seus
problemas mais ordinários. Em seu Qu’est-ce que la philosophie antique? [O que é a filosofia
antiga?], Pierre Hadot denunciava justamente essa maneira de enxergar as coisas, posto que
ela acabava por comprometer o entendimento dos reais propósitos da filosofia antiga em seu
próprio tempo. Hadot fala, portanto, contra aqueles que
têm a impressão de que todos os filósofos que estudam envidaram
esforços, por seu turno, para inventar, cada um de uma maneira
original, uma nova construção sistemática e abstrata, destinada a
explicar, de uma maneira ou de outra, o universo; ou ao menos, se se
trata de filósofos contemporâneos, [fala-se contra aqueles que têm a
impressão de] que [os filósofos antigos] procuraram elaborar um novo
discurso sobre a linguagem. (HADOT, 1995, pág. 17)

Segundo Hadot, antes de prestar-se a abarrotar enormes volumes onde se quisesse compendiar
as doutrinas as mais brilhantes ou mesmo as mais exóticas, a filosofia antiga teria que ver com
a vida dos homens a quem ela se endereçava, e se não com a vida que era imediatamente a sua,
então com a vida que deveria advir-lhes através do exercício da filosofia. Nas palavras de
Hadot, uma exposição consequente dessas doutrinas filosóficas, consideradas quanto àquilo o
que verdadeiramente almejavam e colocavam em prática, não se concentra sobre a novidade
das teorias veiculadas por cada uma delas, como se estas fossem algo em si mesmas: “Muito
pelo contrário, trata-se de mostrar que o discurso filosófico faz parte do modo de vida”
(HADOT, 1995, pág. 21). Para Hadot, o filósofo antigo – que, assim, se torna de novo
reconhecível em sua vocação ética – não poderia nunca ser reduzido a um simples escritor, no
sentido (obviamente restrito, diga-se) de ser um homem guiado unicamente pelo desejo de
manipular a realidade e dispô-la imaginativamente segundo uma linguagem mais ou menos
extravagante. Pois bem, é exatamente desse ponto de vista que Lacan se mostra
irredutivelmente ambivalente: como vimos em outros capítulos, o seu “retorno a Freud” é
tributário de uma nova compreensão da linguagem, compreensão que afeta o estatuto
ontológico desta última e que situa o psicanalista dentro daquelas mesmas coordenadas que
Hadot rejeitava para retraçar a localização original da filosofia antiga; mas, com Lacan, já que
ele nega a existência de qualquer metalinguagem, essa nova compreensão acaba por encerrar
dentro de uma prática linguageira essa mesma possibilidade almejada pela filosofia antiga, a
saber, a de efetuar uma verdadeira mudança na vida dos homens. Contrariando e,
simultaneamente, confirmando as prevenções de Hadot, Lacan pensava uma vida que não
escapa jamais aos equívocos de que pretenderia colocá-la a salvo a filosofia, uma vez que se
trata de uma vida irremediavelmente enodada no problema de que a inexistência de uma relação

92
sexual possa ser resolvido pela prática - qualquer seja ela – que prescreveria a mestria de um
orthos lógos (isto é, um discurso correto, da boa norma; Cf. seminário 7, pág. 42). Em outras
palavras, para Lacan, o saber filosófico, seja ele de que ordem for, não seria capaz de
providenciar nenhuma solução definitiva para os equívocos em que o desejo enreda o homem
- equívocos que só poderiam encontrar uma resolução, ela mesma sempre temporária, através
da prática clínica da análise.
Não seria muito arriscado declarar que, na história recente do pensamento francês, Lacan
corresponderia a uma curiosa exceção à tendência identificada por Hadot (tendência que muito
provavelmente foi pensada por ele como que em necessidade de fazer oposição ao
estruturalismo e ao pós-estruturalismo), pois ele é um teórico que não acredita que a vida possa
pautar-se exclusivamente pelo critério de uma razão pura (mesmo que ela devenha razão
prática) ou de um orthos lógos; mas, em contrapartida, trata-se de um teórico que não dá
qualquer crédito à possibilidade de que haja uma vida pura acessível diretamente ao
pensamento, a ser contraposta, dessa maneira, aos ditames de uma razão que lhe seria
totalmente extrínseca e possivelmente tirânica. Não lhe cabem as medidas nem de uma
linguagem estritamente consciente e transparente a si mesma, e nem a de uma existência que
suspeitasse a presença de um mistério inefável no âmago de seu ser; ou, podemos dizer a
mesma coisa de uma outra forma, em seu ensino não se impõem absolutamente nem o
rigorismo de uma razão que a tudo domina, nem uma adesão ingênua à pretensa libertação
apregoada pelos místicos. Estruturalista a-estrutural, Lacan tangencia as preocupações práticas
de Hadot sem acatar ao seu “anti-modernismo”: o nome do psicanalista francês indica esse
lugar improvável em que convergem tendências sumamente contraditórias, ponto virtual em
que podem confrontar-se a embriaguez e as proezas de um poeta modernista e a temperança e
o sentido prático de um sábio antigo, bem como a escrita pétrea dos algoritmos e a viva
eloquência dos oradores clássicos. Ou, para utilizarmos uma metáfora que já se tornou
recorrente em nosso trabalho, podemos representá-lo como essa figura topológica em que
diferentes tempos se confundem e se recortam através de um mesmo circuito.
intermezzo foucaultiano: sujeitos, verdades e diferenças
Nessa convolução dos tempos, em que as superfícies descrevem percursos improváveis
(percursos onde podem alinhar-se, por exemplo, como acontece no sétimo ano do seminário,
Aristóteles, Kant, o Marquês de Sade, Antígona e São Paulo), desliza-se em direção a algo de
insuspeito, que é esse momento em que se é convidado a atravessar a passagem franqueada por
uma verdade. Em meio à atmosfera pós-estruturalista, em que a razão tende a perder a sua
precedência em favor da múltipla heteronomia dos discursos, o psicanalista ousa conservar a
distinção entre um sujeito da enunciação e um sujeito do enunciado: o seu ensino não pretende
atrelar o vagão de seus ouvintes a um carro da história que corresse indefinidamente até o fundo
das eras, pois ele se esforça continuamente para preparar o instante em que cada sujeito possa
retomar a palavra. Exercício de presentificar o inapresentável, ao guiar-se por ele o psicanalista
acaba optando pelo recurso a toda uma série de elementos que se impõem a partir da ausência
a que eles têm de fazer menção. Em outras palavras, exercício fictício, sim, mas que nunca
perde o seu impulso de orientar-se em direção ao alvo do real.
Mas é preciso reconhecer que, na França da segunda metade do século XX, esse não é um
procedimento exclusivo nem ao psicanalista e nem à psicanálise que ele tenta promover. Muito
embora não fossem tão ciosos quanto a uma distinção entre um sujeito da enunciação e um
sujeito do enunciado, também alguns dos críticos da psicanálise saberão interrogar os sujeitos
e as verdades, numa convolução de tempos tão impressionante quanto a operada pelo ensino

93
de Lacan. Se lembrarmos que muito provavelmente foi a abordagem de Hadot que possibilitou
a Michel Foucault apreender a especificidade histórico-conceitual do cuidado de si praticado
pelos antigos (Cf. HADOT, 1995, pág. 24), logo nos daremos conta de que esta empresa teórica
ocorre muito proximamente a um período em que o pensador francês viria a dedicar-se a uma
nova tentativa de compreender as relações entre os sujeitos e as verdades: trata-se,
precisamente, do período em que têm lugar os cursos do Collège de France, entre os quais
podemos referir aquele que recebeu o nome de “O governo de si e dos outros”, que já
consultamos nesta seção de nosso trabalho com o objetivo de registrar o momento histórico em
que o sujeito moderno faz valer a sua dupla significação, tanto filosófica quanto política. E a
dupla herança que Foucault fazia então remontar ao legado de Kant, repartindo-a entre uma
“analítica da verdade” e uma “ontologia de nós mesmos" (Cf. FOUCAULT, 2010, pág. 21),
aproveita os termos observados pelo inventário histórico de Hadot: é como se, mesmo nesse
momento em que o distanciamento analítico da filosofia moderna para com as questões
mundanas ganha uma de suas formas melhor acabadas, mesmo ali continuasse presente no
exercício filosófico uma aptidão prática para engajar os sujeitos em questões que iriam muito
além de preocupações estritamente epistemológicas.
Com efeito, os últimos cursos ministrados por Foucault ocupam-se em grande parte da verdade
e de um certo aspecto subjetivo que lhe seria indissociável. No final de sua vida, após ter dado
uma contribuição ímpar à apreciação conceitual das histórias da loucura e da sexualidade -
contribuição de tal maneira nuançada que os referentes de ambas veem-se claramente
subvertidos, o que implicará, inclusive, a proposta de que a psicanálise não passaria de uma
modalidade historicamente limitada para lidar com as duas, destinada, então, a restringir os
agenciamentos dos sujeitos em vez de conceder a pretendida liberdade quanto a essas instâncias
- Foucault, que muitas vezes é mal interpretado como um relativista irresponsável, busca pensar
certas modalidades históricas do dizer a verdade. Contrariando a abordagem usual do
problema, a verdade a que ele se dedica não estaria encerrada num procedimento
demonstrativo, como tampouco se faria comprovar na adequação de uma certa ideia a um
determinado estado da realidade. Antes, ela faria menção ao ato de dizer uma verdade, ato em
que um sujeito sempre se encontra implicado. Portanto, do que se trata é do engajamento
subjetivo, insubmisso à estrita ordem da objetividade, que produzem os discursos de verdade.
Para atender a esses requisitos teóricos, o pensador localiza um objeto histórico em que pudesse
ser observada essa performance subjetiva, objeto que não seria nenhum outro senão a parresia.
Como o evidencia satisfatoriamente a pesquisa empreendida por Foucault a seu respeito,
escapando às concepções usuais da verdade, a parresia mostra-se necessariamente vinculada à
ação de um sujeito de dizer uma verdade:
sempre há parresía quando o dizer-a-verdade se diz em condições tais
que o fato de dizer a verdade, e o fato de tê-la dito, vai ou pode ou deve
acarretar consequências custosas para os que disseram a verdade. Em
outras palavras, creio que, se queremos analisar o que é a parresía, não
é nem do lado da estrutura interna do discurso, nem do lado da
finalidade que o discurso verdadeiro procura atingir o interlocutor, mas
do lado do locutor, ou antes, do lado do risco que o dizer-a-verdade
abre para o próprio interlocutor. A parresía deve ser procurada do lado
do efeito que seu próprio dizer-a-verdade pode produzir no locutor a
partir do efeito que ele produz no interlocutor. (FOUCAULT, 2010,
pág. 55)

94
Objeto histórico que o pensador deverá encontrar difundido por toda a literatura da antiguidade
clássica e tardia, a parresía certamente pode ser identificada em exercício quando se se reporta
à atividade a que se entregavam os filósofos antigos; mas igualmente quando se se reporta às
atividades que seriam próprias a várias outras personagens, tais como os oradores, os
conselheiros políticos, os poetas etc. Ela não faz distinção de classe ou profissão, pelo que pode
ser entendida ultrapassar as competências do filósofo, dando a ver, dessa maneira, uma
importância multifacetada que a verdade desfrutaria junto aos homens: desnuda-se um caráter
de insubmissão da verdade à teoria, o que constitui uma espécie de transversalidade cujo
resultado mais notável é um movimento através do qual essa mesma verdade pode ser dita
atravessar a filosofia em direção a outros domínios do saber, apreciáveis nas mais diversas
práticas a que dá lugar a vida em sociedade. Como dito, verdade que não se coloca fora do ato
de sua enunciação, a parresía tem um custo, posto que sempre envolve um risco para o
enunciador da verdade. Mas o seu preço é altíssimo, efetivamente incomensurável, a ponto de
desarranjar qualquer economia que os sujeitos quisessem realizar a partir dela. De fato, os
riscos a que ela expõe os indivíduos costumam ser os maiores possíveis: “Os parresiastas são
os que, no limite, aceitam morrer por ter dito a verdade” (FOUCAULT, 2010, pág. 56). Pode-
se ver que, dispondo ao enfrentamento da morte, de maneira geral, o que a parresía coloca em
cena é a “coragem de verdade” de que os seus praticantes – os parresiastas – dão um testemunho
surpreendente e muitas vezes irresistível na comoção que causam em seus espectadores. Ela se
apresenta, então, como uma verdade que tende a exceder todos os cálculos da razão.
Assim, para Foucault, a parresía nada mais seria que um processo discursivo, ou seja, ela
consiste num processo que envolve uma certa maneira de dizer as coisas. Com efeito, a parresía
é passível de ser descrita, de maneira simplificada, como o ato de falar francamente. Mas, longe
de depender de forma exclusiva da arbitrariedade de um certo ordenamento simbólico, trata-se
de uma maneira de dizer as coisas que apresenta consequências relativamente bem definidas.
Ou melhor, essas consequências definem-se por colocar o ato de dizer a verdade na ordem do
indeterminado e, por conseguinte, do imprevisível: “A parresía não produz um efeito
codificado, ela abre um risco indeterminado” (FOUACULT, pág. 60). Processo discursivo que
se coaduna a uma visão democrática – posto que ela corresponderia, tal como a isegoria, a um
dos princípios fundamentais dos regimes democráticos clássicos (Cf. FOUCAULT, pág. ) –,
ele ganha a sua força teórica justamente em vistas da democracia: independentemente do
campo em que surge, o tal processo faz valer um direito irrestrito à palavra, direito com que a
verdade adquire a virtude de afrontar os poderes instituídos. Isso porque a empresa teórica de
Foucault possibilita pensar a relevância histórica da democracia como a de um regime político
flexível o bastante para comportar os riscos que a verdade acarreta em sua enunciação. E, dessa
maneira, a parresía se torna capaz de conceder um novo lugar à filosofia. Precisamente o que
a ordem de exposição de "O governo de si e dos outros" sugere, ao começar com Kant e com
o seu questionamento sobre o Esclarecimento: nessa escolha, que destoa significativamente das
fontes clássicas que embasam o curso de Foucault, ficaria entrevista a possibilidade de escrever
uma história da verdade enquanto esta fosse uma história dos parresiastas. De sorte que a
filosofia pode ver-se liberta de uma condição estritamente acadêmica, que a faria pender
fatalmente à passividade analítica ou à mera contemplação do mundo. Por meio do recurso à
parresía, a história da verdade devém múltipla, podendo acolher, doravante, uma miríade de
personagens, todas elas caracterizadas pela coragem de enunciar um saber que, atinente ou não
aos fatos, apreciável ou não segundo uma demonstração lógica, vem a desestabilizar o
ordenamento de uma dada circunstância. Do que decorre que a sua função clássica torna-se
extensível à modernidade:

95
Mas a partir do momento em que o enunciado da verdade, esteja ele
dentro – pensem em Galileu – ou fora de um procedimento
demonstrativo, constitui um acontecimento irruptivo, abrindo para o
sujeito que fala um risco não definido ou mal definido, nesse momento
pode-se dizer que há parresía. (FOUCAULT, pág. 61)

Nessa passagem, a menção a Galileu evoca uma óbvia proximidade com a epistemologia
histórica francesa, proximidade que, no contexto de nosso trabalho, não faria nenhum sentido
ignorarmos: recapitulemos o fato de que, pelo menos desde essa tradição do pensamento
contemporâneo, as revoluções do astro da razão seriam entendidas descrever um movimento
que não coincidiria de maneira alguma com uma rotação em torno de seu próprio eixo. Mas,
aspecto ainda mais notável, para estabelecer que as verdades seriam excêntricas a qualquer
razão ensimesmada no seu puro exercício, a parresía, tal como Foucault a recupera, tampouco
necessita da ciência como um campo externo à filosofia que fosse especialmente dotado da
capacidade de evadir o pensamento dos domínios desta. Do ponto de vista da perspectiva que
ela abre (ou pelo menos de acordo com um de seus aspectos), Lutero é um exemplo tão bom
de parresiasta quanto o seria Galileu. De sorte que os paralelos com Lacan e com Badiou se
mostram mais pertinentes do que éramos capazes de ver no início desta seção: por outros meios,
Foucault saberá interrogar as verdades e os sujeitos fora do círculo restrito da epistemologia.
Portadora de uma verdade que faz os sujeitos incorrerem em riscos que superam praticamente
todos os cálculos, a parresía, como dissemos, tem lá o seu parentesco com as teorizações de
Lacan e de Badiou. Contudo, a abordagem que os cursos do Collège de France lhe preparam
indica a existência de discrepâncias fundamentais com as teorizações que o filósofo e o
psicanalista teriam levado a efeito. Uma delas consistiria numa espécie de disposição anti-
socrática e anti-platônica92 dessa recuperação da parresía (disposição que pode também ser
caracterizada, sob um certo aspecto, como anti-dialética): ela contraria não só as referências
inicias daquele Lacan que, no início da década de 50, se arriscava a pensar a psicanálise como
um diálogo platônico, como, de outra maneira, se pretende como antídoto a toda uma
concepção de filosofia e mesmo – ou sobretudo – da verdade que lhe seria correlata (Cf.
FOUCAULT, pág. ). Ademais, o enfoque “democrático" dessa abordagem faz suspeitar quanto
à possibilidade de que ela seja incompatível com certos aspectos do marxismo. Seria muito
pouco honesto de nossa parte deixar de reconhecer ao projeto teórico de Foucault qualquer
coisa da ordem de uma inclinação “anti-totalitária”93: o cuidado de conceber a verdade como
estando indissociavelmente vinculada ao ato de enunciá-la tem como uma de suas possíveis
consequências um distanciamento da tradição revolucionária do marxismo, em especial por
causa das derivas ditatoriais que acompanham esta última. De certa maneira, a respaldar
algumas das críticas veiculadas pelos defensores da categoria conceitual do ”totalitarismo”, era
como se Foucault viesse a tornar particularmente saliente um ponto fraco da aludida tradição
revolucionária: presumivelmente, de seu ponto de vista, os regimes políticos que demonstram-
se incapazes de acolher a coragem de verdade seriam os piores - o que, considerando a história
efetiva dessa tradição revolucionária, indica pelo menos uma grande dificuldade quanto à
possibilidade de defender, a partir do mesmo ponto de vista que referíamos há pouco, o
"momento de verdade" do governo desastroso exercido pelos comunistas. Ou seja, a parresía

92Seria mais correto dizer que Foucault é contrário a uma certa compreensão - hegemônica - de Platão.
93Adotamos esse termos na falta de um melhor. Mas, como acontece com Badiou, a ambivalência importada pelo
emprego do conceito de sujeito, que pode ser tanto passivo como ativo, desmente a pretensão determinação
unívoca do totalitarismo. Se, no curso ”Em defesa da sociedade”, Foucault compara o comunismo soviético e o
nazismo, como o farão os teóricos do totalitarismo, ele não falhará em propro traços diferenciantes.

96
de Foucault, por ser “anti-platônica” e “anti-totalitária”, desliga-se, simultaneamente, da
universalidade e da perspectiva coletiva que esta importava ao marxismo.
Como deve ficar claro na sequência de nosso argumento, apesar de parecer inútil, e talvez até
mesmo contraproducente, essa longa e descontínua incursão que fazemos em meio às
concepções foucaultianas de sujeito e de verdade vale para destacar a singularidade da
teorização de Badiou: na história recente do pensamento francês, ele com certeza não é o único
a abordar esses tópicos por um viés anti-humanista, como vimos agora há pouco; mas é ele
possivelmente o único que, no terreno da política, ousa fazê-lo conservando o horizonte de uma
certa universalidade. E o mais incrível é que isso acontece porque, de certa maneira, em suas
teorizações, ele soube enxergar a singularidade do ensino de Lacan: pode-se dizer, por
exemplo, que, aos olhos de Badiou, em contraste com o psicanalista francês, Foucault não
saberia como lidar com a divisão do sujeito moderno – especialmente quando se trata de uma
divisão que não pressupõe a existência de uma unidade substancial prévia ao processo em que
esse sujeito se mostra dividido. Por ora, sem dispormos ainda da oportunidade de tematizar a
originalidade dos dois, ficaremos contentes em sublinhar a ilustre ausência de dois teóricos
nessa última fase do pensamento de Foucault, não por acaso os dois teóricos que norteiam
Badiou e Lacan: estariam ausentes, ou muito pouco presentes, Marx e Freud. Como seria
possível argumentar, as relações que Foucault entretinha com ambos, longe de serem
inexistentes ou simplesmente negativas, são ambivalentes ao extremo, sendo possível deparar
repetidas vezes essa ambivalência na evolução de seu pensamento: baste dizer, sobre as suas
relações com o pai da psicanálise, que já a História da loucura, apesar de mostrar-se-lhe
bastante favorável quando registra o seu ato revolucionário de conceber uma loucura que volta
a falar, não ficava cega para a possibilidade, aberta por Freud, de que o analisante se visse
sujeito como nunca antes ao poder “taumatúrgico” de sugestão dos analistas (o que, quanto a
esse aspecto, seria uma óbvia exacerbação do poder que os médicos possuem sobre os seus
pacientes). Assim, no prosseguimento de seu pensamento, é como se Foucault houvesse
entendido que um dos aspectos prevalecera sobre o outro: na época dos cursos do Collège de
France (que compreende a publicação do primeiro volume da Histoire de la sexualité [História
da sexualidade]) as menções à psicanálise não costumam ser elogiosas, para dizer o mínimo.
O que, decerto, causa alguma estranheza, porque o surgimento da psicanálise aparenta ser um
dos episódios da história recente do pensamento que mais propriamente caberia entender nos
termos de uma ressurgência moderna da parresía: é difícil pensar em alguma outra prática que
se defina tão essencialmente pela franqueza da fala que desata, tanto mais difícil quando nos
lembramos que a psicanálise desata essa fala sem se deixar intimidar pelos riscos a que os
sujeitos se veem expostos. Pode-se até dizer que os riscos que a psicanálise traz consigo não
são tão dramáticos a ponto de arriscar a integridade física dos indivíduos que nela se veem
implicados; não se pode negar, no entanto, que sejam suficientemente dramáticos para que,
neles, o sujeito perceba-se como se estivesse impossibilitado de prosseguir com a sua vida, na
medida em que o gozo revele o desejo como uma dimensão irredutível desta. Todavia, a
questão é que, para Foucault, se a psicanálise realmente havia ensaiado restituir à loucura o seu
direito à palavra, ela o havia feito de maneira a inaugurar uma outra modalidade de poder, ou
bem a dar continuidade a uma série de velhas modalidades: pretendendo-se universal em suas
teorizações – o que a impediria de apreender melhor a sua situação histórica –, a psicanálise
tem de mostrar-se afetada de uma séria restrição quanto aos agenciamentos que torna possíveis,
mantendo-se inamovível ante à mobilidade das estratégias e das contra-estratégias requeridas
pelas mais diversas circunstâncias em que os sujeitos e as verdades estariam concernidos.

97
A ambivalência que caracteriza o posicionamento de Foucault pode então adquirir um sentido
um pouco mais preciso para nós: a adotarmos a sua perspectiva, não devemos enxergar a
psicanálise como um campo estritamente nulo, pois, de acordo com o que havia sido
estabelecido em obras pregressas do próprio Foucault, ela teria dado uma contribuição
significativa para colocar algumas questões cruciais para o pensamento contemporâneo 94; mas,
a julgar pelas últimas intervenções do pensador francês, um tal paradigma pode realmente
resultar na anulação de certas estratégias e, portanto, ele tem de ser substituído. Paralelamente,
a recusa do marxismo, não sendo uma recusa integral, de todo modo se dá como uma recusa
decisiva de alguns de seus principais pressupostos (ou bem daquilo que Foucault enxergava
como tal). Ainda no período correspondente aos cursos do Collège de France – especialmente
nos anos de 1975 a 1976, durante o curso que recebe o nome de “Em defesa da sociedade” –,
Foucault teria insistido que o marxismo não conseguiu formular a contento o problema teórico
do poder: buscando pensar esse problema para-além do modelo de centralidade que se costuma
encontrar na imagem de um soberano entronizado, a quem bastaria cortar a cabeça para ver o
poder mudar de mãos, era preciso substituí-lo pelos parâmetros de uma microfísica. Do que se
segue que, além do espaço do chão da fábrica, era preciso estar preparado para uma realidade
essencialmente múltipla em que se encontram em contínua interação e trânsito as humanidades
e as técnicas, realidade que, em sua normatividade biopolítica, compreenderia também os
regramentos do hospício, do hospital, da prisão, etc. Desde essa chamada à diversificação da
inquirição teórica a respeito do poder, em que as qualidades de excelente e incansável
pesquisador exibidas por Foucault fizeram-no primar por sua sensibilidade histórica, parecia
tornar-se evidente que o marxismo teria levado a pior: preferindo um empobrecido esquema de
luta de classes à diferença praticamente inumerável que a realidade social admite em sua
estruturação, uma possível impressão suscitada por esse deslocamento teórico é a de que o
marxismo teria falhado em apreender a substância e a dinâmica históricas a conformar as várias
modalidades das lutas sociais. Tal como se supunha acontecer com a psicanálise, através da
perspectiva de Foucault, podia-se entender que a pretensão de universalidade impunha
restrições subjetivas à apreciação histórica que o marxismo deveria ser capaz de fazer dos
poderes e das estratégias que estes demandam: não por acaso, na União Soviética, teria sido
instituído um ”racismo estatal“ para o qual o inimigo de classe “(...) é o doente, é o transviado,
é o louco” (Cf. FOUCAULT, 2005, pág. 97)95; ou seja, os partidários do comunismo, sonhando
com uma emancipação humana efetiva, acabaram por revelar-se completamente desarmados
em face da possibilidade de que o próprio estado revolucionário se realizasse como a instituição
de uma “polícia médica” implacável. 96
De certa maneira, o proceder de Foucault, nessa sua empreitada de repensar o alcance e a
efetividade do poder, consiste em destituir toda uma concepção jurídico-filosófica que,
colateralmente, implicaria o marxismo, a despeito dos anseios deste de revolucionar a política

94A seguinte passagem: ”Não que essas teorias envolventes e globais não tenham fornecido e não forneçam ainda, de
uma maneira bastante constante, instrumentos localmente utilizáveis: o marxismo, a psicanálise estão precisamente aí
para prová-lo. Mas elas só forneceram, acho eu, esses instrumentos localmente utilizáveis com a condição, justamente,
de que a unidade teórica do discurso fique como que suspensa, em todo caso recortada, cindida, picada, remexida,
deslocada, caricaturada, representada, teatralizada, etc.” (FOUCAULT, pág. 10).
95 Ao realizar uma análise retrospectiva das experiências socialistas do século XX, Badiou observa que o seu
grande fracasso foi o seu conservadorismo em termos . Com isso, queremos apontar que, longe de propor uma
substituição inevitável de um teórico por outro, existem aspectos complementares.
96 O argumento de Foucault, tal como desenvolvido em ”Em defesa da sociedade”, se articula em torno da noção

de racismo, reconstituída como categoria . Como explica Prozorov, o argumento é difícil de sustentar. Se existe
uma característica maior da biopolítica soviética, é a de rejeitar qualquer discurso de naturalização do ser humano.
Todos os meios eram utilizados para obter um ”novo homem soviético".

98
a tal ponto que as limitações das categorizações jurídicas do liberalismo fossem ultrapassadas
(anseios que, devemos observar, reverberam profundamente no pensamento do próprio
Foucault). Para cumprir com esse projeto, Foucault aguça as suas virtudes interpretativas, por
exemplo, quando se põe a escutar com atenção redobrada, como o faria um analista, a pretensa
confissão que teria realizado Thomas Hobbes em sua obra teórica: uma vez que Hobbes se
prontificasse a evidenciar as relações fundantes que a instituição da soberania estatal conserva
para com uma fase pregressa de anarquia generalizada, caracterizada por um bellum omnium
contra omnes (isto é, uma guerra de todos contra todos), aquilo que o suposto pai da ciência
política confessava, de acordo com Foucault, ele o confessava unicamente para melhor evitá-
lo, a saber, que o Estado se funda em virtude da possibilidade de evitar uma guerra aberta entre
todos os homens (Cf. FOUCAULT, 2005, pág. ). Com efeito, na genealogia de Foucault, o
Leviatã hobbesiano se insurge como estabilização que nega a singularidade das guerras reais,
legitimando a imposição de uma ordem que se mantém indiferente à qualidade de todas as lutas
que o atravessam. O que quer dizer que, em vez de prevenir a pior das guerras possíveis (a
saber, a guerra generalizada de todos contra todos, guerra que, no construto de Hobbes, não
passaria de um conflito imaginado), ele reinsere as guerras no corpo social (Cf. FOUCAULT,
2005, pág. 23): o silêncio que o Estado impõe à guerra não é nenhum indício de que as forças
combatentes tenham suspendido a refrega, senão que corresponde à modalidade mesma
encontrada por ele para perpetuar os conflitos no sentido de atender os interesses que ele julga
a si mesmo favoráveis. Paralelamente a esse discurso, o pesquisador vai descobrir um outro
veio histórico que, remontando à Inglaterra e à França dos séculos XVII e XVIII, reconstitui a
vertente a desembocar, um pouco mais tarde, no binarismo das oposições revolucionárias:
Edward Coke, John Lillburne e Henri de Boullainvilliers, todos os três exemplares de um
inédito discurso histórico-jurídico (em oposição ao discurso jurídico-filosófico de Hobbes e de
sua descendência nas "ciências políticas"), são personagens que permitem ao pensador francês
substituir o referencial da compreensão dos poderes. Ao perseguir o rastro desses ferrenhos
ainda que pouco conhecidos opositores da pacificação mentirosa perpetrada pelo Estado,
ficaria justificada uma alteração pontual de uma famosa proposição de Clausewitz: pode-se
declarar, então, que "(...) o poder é a guerra continuada por outros meios" (FOUCAULT, 2005,
pág. 22). Acompanhar os percursos dessa outra vertente – promissora quanto a pensar os
poderes a partir das noções de estratégia, de tática e de relações de força – como que confere
fôlego a uma nova abordagem das questões políticas a ser realizada desde uma espécie de
erudição combatente: a exemplo de Boulainvilliers, seria preciso rememorar as lutas locais (Cf.
FOUCAULT, 2005, pág. 185), recapitulando os episódios concretos em que o direito natural é
evidenciado ceder à história; e a tornar clara, igualmente, a necessidade imposta por essa
mesma história de posicionar-se ante as múltiplas circunstâncias que decidem o desfecho e o
prosseguimento das batalhas. É nisso, afinal, que se ampara a empresa genealógica de Foucault:
“Chamemos, se quiserem, de ‘genealogia’ o acoplamento dos conhecimentos eruditos e das
memórias locais, acoplamento que permite a constituição de um saber histórico das lutas e a
utilização desse saber nas práticas atuais” (FOUCAULT, 2005, pág. 13).
É importante que se entenda, no entanto, que a pesquisa genealógica não se propõe a unificar-
se em torno de qualquer eixo teórico, seja ele encontrável no registro político, seja no campo
das práticas sexuais – o que, aliás, é uma tendência que uma tal empresa denuncia no marxismo
e na psicanálise. Se houver recuperação e elaboração conceitual de um pensamento que toma
a guerra como o analisador por excelência da política, elas devem dar-se em conformidade com
uma evasão calculada às armadilhas que lhe prepara a abordagem filosófico-jurídica. Assim, a
sua orientação difere essencialmente daquela a guiar uma razão legisladora, operante desde
Sólon até Kant: “Estabelecer-se entre os adversários, no centro e acima, impor uma lei geral a

99
cada um e fundar uma ordem que reconcilie: não é disso, de modo algum, que se trata”
(FOUCAULT, 2005, páginas 62 e 63). E, como havíamos antecipado, essa necessidade de
pensar de outra maneira que não através das abstrações filosófico-jurídicas resulta no
entendimento de que a empresa genealógica deve também esquivar-se de qualquer dialética.
Assim, para Foucault, antes de ser o pensamento da guerra, a dialética é uma tentativa, talvez
muito bem-sucedida em seus propósitos, de pacificá-la como uma simples abstração filosófica:
Mas não se deve acreditar que a dialética pudesse funcionar como a
grande reciclagem, enfim filosófica, desse discurso. A dialética bem
pode parecer, à primeira vista, ser o discurso do movimento universal
e histórico da contradição e da guerra, mas creio que na verdade ela
não é de modo algum sua validação filosófica. Ao contrário, parece-me
que ela atuou mais como sua retomada e sua mutação na velha forma
do discurso filosófico-jurídico. (FOUCAULT, 2005, páginas 68 e 69)

Ansiando desmentir aquela que muitos acreditariam ser a grande aptidão da dialética – a saber,
a de dar formulação conceitual à guerra que habita o âmago da realidade –, a genealogia de
Foucault providencia uma outra história para o conceito de luta de classes: sendo apresentada
como uma descendente do discurso da luta das raças, ao deixar que se fixe a multiplicidade das
lutas na generalidade de uma classe que se opõe, inteira e imutável, à sua inimiga mortal, ela
preservaria o conflito, mas às custas do domínio particular das diferenças históricas. Dessa
maneira, despontaria uma reversibilidade inquietante, entre a luta de classes e o racismo
moderno: “O racismo é, literalmente, o discurso revolucionário, mas pelo avesso”
(FOUCAULT, 2005, pág. 95). Para Foucault, isso se dá porque, com a dialética, teria ocorrido
uma captura das guerras singulares pelo dispositivo moderno da soberania, dispositivo cujo
funcionamento passa a ser o de zelar pela integridade da sociedade em defesa da qual se torna
lícito promover uma normatividade que a purgaria de suas imperfeições internas: pautando-se
pela reconciliação da sociedade, a luta de classes estaria destinada a identificar, no interior da
própria sociedade, os desviantes, os réprobos e tudo o que se lhes assemelhasse, na medida em
que fossem entendidos obstar à sua unidade; e, em seguida, ela estaria destinada também a dar-
lhes o fim que acredita ser-lhes apropriado. Vasculhando os seus antecedentes, aparentemente
teria se tornado possível explicar porque na descendência do marxismo existe um curto-circuito
biopolítico em que o dispositivo governamental que pretende fazer viver os indivíduos como
cidadãos dependeria muito proximamente de uma decisão sobre a morte daqueles que são
entendidos representar uma ameaça para a saúde e para a própria vida da sociedade.
Um encontro desencontrado
Em certo sentido, a genealogia situa-se nos antípodas do marxismo e, por conseguinte, do
próprio núcleo das ideias de Badiou. Mas, a essa altura, não podemos falhar em observar como
é nuançado o “anti-totalitarismo” de Foucault. A tomarmos a sério o que pensava o autor de
Surveiller et punir, o seu problema jamais poderia ser dito coincidir com aquele que vieram a
formular os teóricos para quem a categoria política do “totalitarismo” tornou-se incontornável
- como, na França da década de 1970, ela o seria para os nouveaux philosophes (André
Glucksmann, Bernard Henri-Lévy, Guy Lardreau etc.) - porque não se tratava, de forma
alguma, de contrapor aos exemplos desastrosos do nazismo e do comunismo soviético a opção
segura e estável pela instituição de uma democracia liberal. Em seu quadro teórico, o fracasso
do socialismo de caserna é tanto mais escandaloso quanto mais claro fique que ele nem sequer
esteve próximo de evitar as técnicas de governo desenvolvidas nos estados e domínios coloniais
europeus dos séculos XVIII e XIX. Como faz notar Serguei Prozorov, a ausência de uma
análise de Foucault que se comprometesse a assinalar mais detidamente a especificidade da
100
biopolítica nos regimes socialistas era, em parte, uma impossibilidade teórica devida à própria
ausência de algum dispositivo ou aspecto que o pensador enxergasse como sendo específicos
desses regimes (Cf. PROZOROV, pág. ). Como diz o próprio Foucault numa entrevista
concedida em 1976:
No entanto, [apesar de encontrar um apoio inédito na idolatria votada
à figura de Stálin,] como técnicas de punição (internamento, privações,
trabalho forçado, violências, humilhações), [os métodos empregados
pelos soviéticos] estão próximos do velho aparelho penitenciário,
inventado no século XVIII. A União Soviética pune conforme o
método da ordem “burguesa”, quero dizer, da ordem de há dois séculos.
E, longe de transformá-los, ela seguiu sua inclinação mais forte; ela os
agravou, os levou ao pior. (FOUCAULT, 2006, pág. 191)

Sem negar as diferenças entre os respectivos regimes políticos – quais sejam, os regimes que
se classificam como liberais, socialistas e fascistas –, elas são pensadas como se a colocar em
questão muito mais a intensidade com que são empregadas certas técnicas de governo do que
a natureza destas últimas (o que, de sua parte, autoriza muito obviamente uma discriminação
segundo uma escala de gradação que vai do menos ao mais danoso). Nesse sentido, estalinismo
e fascismo, longe de serem completamente estranhos à tradição política esclarecida do
Ocidente, vêm à luz como herdeiros diretos dos estados liberais europeus:
Afinal, a organização de grandes partidos, o desenvolvimento de
aparatos políticos e a existência de técnicas de repressão tais como [a
d]os campos – tudo isso é muito claramente a herança das sociedades
liberais do Ocidente, e tudo o que o estalinismo e o fascismo tiveram
de fazer foi inclinar-se [diante dela] e sobrelevá-la. (FOUCAULT,
1994, pág. 595)

Percebendo uma convergência insuspeita, diremos, então, que Badiou e Foucault partilham um
mesmo interesse de promover uma crítica radical ao subjectus moderno, ainda que não o façam
pelos mesmos meios. Mas, antes de enfatizar essa convergência entre os dois, é preciso deixar
que recobrem a sua devida importância as diferenças, pelo menos se quisermos que as
respectivas singularidades possam apresentar-se eventualmente de maneira mais distinta.
Assim, como advertido mais acima, assinalaremos o fato de que, entendendo contrapor-se à
universalidade ambicionada pelo marxismo (e por Badiou), a pesquisa genealógica não
pretende realizar nenhuma reunificação das questões políticas. Antes, ela atua na expectativa
de liberá-las do horizonte em que teriam sido encerradas, a saber, o da economia. Nas palavras
de Foucault: "Grosso modo, acho que o que está em jogo em tudo isso é o seguinte: a análise
do poder, ou a análise dos poderes, pode, de uma maneira ou de outra, ser deduzida da
economia?"(FOUCAULT, 2005, pág. 19). Ao conferir precedência à guerra enquanto
analisador da política e dos poderes, Foucault parece ter optado por responder negativamente
a essa pergunta. E é aí, precisamente, que a sua originalidade não pode passar despercebida.
Com efeito, os seus trabalhos das décadas de 1970 e 1980 – que se desdobram em livros, falas,
entrevistas, cursos, etc. – integram um poderoso corpus teórico em que são muito bem
documentados os fracassos, os paradoxos e os desmentidos da universalidade a que, em teoria,
aspiraria a cidadania moderna. Como dizia Balibar, tem-se aí uma "fenomenologia materialista
do (...) nascimento do Cidadão Sujeito” (BALIBAR, pág. 65). Foucault produziu, pois, uma
obra em que o marxismo de alguma forma poderia acreditar-se espelhado e respaldado:
reaparece, através da montanha de arquivos revirada por ele, a inescapável parcialidade dos
poderes políticos, e sob uma multiplicidade de aspectos, sob uma enxurrada de indícios e pistas,

101
que a tornam praticamente irrecusável a uma consideração racional séria. Desde as evidências
que esse pensamento traz consigo, a encruzilhada histórica do Cidadão Sujeito demanda uma
reconsideração tão radical da razão quanto aquela que havia realizado Marx. Porém, a
genealogia dos poderes empreendida por Foucault cria uma bifurcação que o faz divergir do
pensador alemão num aspecto fundamental: ela não reconhece nenhuma centralidade da
propriedade privada nas relações de poder características da modernidade.
Entre outras coisas, a resposta negativa à pergunta sobre os poderes serem ou não deduzíveis a
partir dos axiomas da economia significa algo bem simples, a saber, que eles devem ser
pensados, não como uma posse, mas como uma série de relações múltiplas: para Foucault, a
propriedade não é senão uma entre muitas outras relações que os homens vêm a contrair entre
si (Cf. BALIBAR, 2015, pág. ), e, dessa maneira, ela não pode fornecer nenhum modelo geral
para conceber o poder. Tendo isso em vista, Foucault e Marx podem ser reconduzidos a uma
problemática comum, problemática que os reúne e os separa de uma só vez. Valendo-nos uma
vez mais de Étienne Balibar (Cf. BALIBAR, 2015, páginas 98 e 99) – que se propõe a expor
as divergências radicais entre os dois teóricos num texto intitulado “L’anti-Marx de Michel
Foucault” –, afirmaremos que, por mais que o francês possa ser aproximado do alemão quanto
a certos tópicos, métodos e objetivos políticos, as suas grandes formulações teóricas
corresponderiam, cada uma delas, a duas respostas diferentes à problemática legada por Hegel
concernente à abstração em que consiste a individualidade burguesa. Na medida em que – de
acordo com a reconstituição de Balibar – é desde Hegel que a individualidade moderna viria a
ser pensada como um construto, em vez de ser dotada de uma realidade imediata e natural,
tanto Marx como Foucault podem declarar-se os seus herdeiros: eles aceitarão a
“artificialidade” dessa individualidade, tomando o cuidado de recusar, no entanto, a capacidade
de que Hegel tentava investi-la para preparar o momento da satisfação dos anseios da
universalidade do espírito. Assim, o detalhe crucial, sobre o qual se fundamenta a aludida
separação, é que essa recusa, em Foucault, não procura nenhum amparo especial na análise do
sistema produtor de mercadorias. A confirmar algumas das suspeitas que desperta nos
partidários dessa outra tradição que lhe seria quase gêmea, uma tal teorização permite
movimentações em latitudes que estariam interditas para o marxismo: a permanência das
relações que envolvem a propriedade privada não representa necessariamente um impedimento
para que os sujeitos logrem a relativa liberdade granjeada por seu comprometimento com uma
determinada verdade. Afinal, qualquer seja a política recomendada pelo pensamento de
Foucault, ela não se deixa avaliar pela proximidade ou pela distância a que se encontra do ideal
de uma efetiva superação da divisão de classes. Como observa com grande pertinência Balibar,
a problemática foucaultiana do “governo de si e dos outros”, que se imbrica à questão da
governamentalidade, tem o seu desfecho na defesa de um liberalismo sui generis, entendido
“(...) não no sentido de uma doutrina ou de uma ideologia do Estado, mas no sentido de uma
lógica da ação (e da ação no segundo nível, a ação 'reflexiva’) que maximiza os espaços de
liberdade” (BALIBAR, 2015, pág. 102).
Esse liberalismo “minoritário” recorta a problemática da liberdade por um viés quase que
completamente avesso ao individualismo burguês (ainda que com ele mantenha certos pontos
de contato), pois, a partir desse viés, a questão política fundamental para o marxismo – que é a
questão relativa à divisão das classes (divisão que, longe de ser superada, teria sido revelada
como estando enquistada na estrutura do cidadão moderno) – pode até ser dita insolúvel (isto
é, insolúvel nos termos de uma reconciliação ulterior prescrita pela dialética), mas de maneira
alguma ela admitiria ser classificada como irrelevante. A julgar pela preocupação várias vezes
manifestada por Foucault quanto a tematizar as limitações de uma doutrina política que, mesmo

102
se mantendo alheia à empiria, reclamava para si as vantagens da sanção científica, não se
tratava propriamente de colocar de escanteio Marx e sua descendência: as técnicas de governo
desenvolvidas pelas nações liberais europeias realmente demandavam uma análise política que
soubesse ir muito além das ilusões teóricas sobre as pretensas liberdades inalienáveis dos
indivíduos garantidas pela instituição do Estado moderno; o ponto do pensador francês, no
entanto, era o de que, mesmo que a questão marxista fosse legítima, uma solução providenciada
pela “ciência" da dialética, desejosa de promover uma reconciliação final (pelo menos segundo
o que entendia Foucault), jamais alcançaria a complexidade das lutas sociais e das estratégias
e táticas por elas solicitadas. Por seu turno, em lugar de sedimentar-se numa defesa
intransigente das instituições tidas como responsáveis por promover as ditas liberdades dos
indivíduos e avalizar os cálculos que lhes fariam cortejo, o aludido liberalismo minoritário do
pensador francês preza pela singularidade dos processos de individuação.
Se podemos fazer uma observação pontual sobre a evolução do pensamento de Foucault, a
conformação que ele assume nas décadas de 1970 e 1980 revela tanto uma descontinuidade
como uma continuidade quando considerada em confronto com as suas teorizações de 1960:
se existe um contraste bastante óbvio com aquele momento em que, próximo da publicação de
L’archéologie du savoir [A arqueologia do saber], Marx, Nietzsche e Freud eram tidos como
os responsáveis pelo progressivo desparecimento do sujeito no pensamento filosófico
contemporâneo (Cf. FOUCAULT, pág. 803), ainda que mais tarde Foucault tenha revisto a sua
posição relativamente à subjetividade (se bem que essa subjetividade que ele passa a admitir
em seu pensamento quase nada tenha que ver com a subjetividade que ele antes rejeitava),
permanece uma mesma desconfiança para com a vontade que manifestariam o marxismo e a
psicanálise de se legitimarem enquanto ciências (Cf. FOUCAULT, pág. 695). É importante
para nós perceber, nem que seja apenas de relance, esse movimento composto, a um só tempo
contínuo e descontínuo, que descreve a trajetória intelectual de Foucault ao dar lugar a uma
nova concepção de subjetividade e de verdade, porque é através dele que nós podemos
apreender melhor a singularidade de Lacan e de Badiou. Com efeito, se o exemplo do Foucault
do final da década de 1970 e começo da década de 1980 impossibilita radicar a aludida
singularidade numa simples referência quer ao sujeito, quer à verdade – afinal, a retomada da
parresía abarcará os dois – é imprescindível notar que a revisão que o pensador empreende
quanto a esse par conceitual acontece como que em resposta a algumas das limitações que ele
continua enxergando na psicanálise e no marxismo. Assim, o seu reposicionamento subjetivo
pode ser entendido como uma movimentação que ocorre diante da urgência de certas injunções
teóricas e práticas da política, na medida em que lhe parecesse necessário conceber outras
formas de análise teórica e de engajamento prático que não aquelas tornadas disponíveis pela
tradição revolucionária (sem com isso recair nos erros do liberalismo clássico): digamos assim,
ele é levado a revisitar um mesmo sítio histórico outrora frequentado por Marx para enunciar
de uma nova maneira o “de te fabula narratur” [a fábula fala de ti] com que endereçar-se aos
seus leitores e ouvintes. À diferença daquelas obras em que prevalece o paradigma de uma
arqueologia do saber, tão engenhosas na utilização de um sem-número de instrumentos teóricos
para a reconstituição dispersa das variadas temporalidades históricas que se desdobram desde
uma “descrição intrínseca do monumento” (Cf. FOUCAULT, 1969, pág. 15), tornava-se então
cada vez mais importante localizar os sujeitos e as verdades, de sorte que pudessem comunicar-
se inesperadamente o passado e o presente: o voo aberto que transportava para localidades
outras – como aquela em que se podia avistar o vasto campo onde a experiência da loucura na
idade clássica tivera o seu lugar, ou naquela que, se bem que fosse marcada pelo signo da
mesmidade, posto ser onde se tornava discernível a episteme em que o rosto do homem teria
ganhado os seus contornos, fazia menção, ainda assim, ao outro, na medida em que abria espaço

103
para uma “antropologia de nós mesmos" (ou seja, a nos olhar como que de fora, como se
fôssemos um outro) – esse voo agoniado, que anunciava que algum dia os limites dos próprios
territórios habitados pelo homem haveriam de ser transpostos, ele deveria agora apontar a
direção, mesmo que de maneira tímida, de seu norte. Em outras palavras, se a arqueologia havia
sido bem sucedida em demonstrar a possibilidade de deslocamentos históricos radicalmente
marcados pela descontinuidade e pela diferença, doravante era necessário apontar em que
direção se deslocar para que justamente a descontinuidade e a diferença pudessem clamar o seu
direito à existência. 97 E esse, que é um momento absolutamente brilhante do pensamento
francês contemporâneo, em que a erudição combatente de Foucault ensaia recuperar a verdade
prática da filosofia, é sobretudo um momento que se caracteriza por nele haver algo próximo
de uma denúncia - que implica a psicanálise e o marxismo - sobre os desserviços que a vontade
de saber prestaria à vida.
Sem qualquer dificuldade, constataremos – mais uma vez, se se quiser – que não podem
sobrepor-se inteiramente os sujeitos e as verdades em que pensam, respectivamente, Badiou e
Foucault. Devemos prevenir, contudo, quanto ao erro de localizar as diferenças onde elas não
existem a justo título. Decerto, ao lançar-se em direção aos sorvedouros da pesquisa histórica,
dispondo-se a percorrer freneticamente a labiríntica arquitetura de túneis e galerias
subterrâneos dos arquivos, o que fez o pensador francês foi aplicar-se a deparar, com
verdadeiro rigor metódico, a insubmissão ao Um (representado, por exemplo, pelas instâncias
do autor, da obra, etc.), expondo-se reiteradamente ao risco de nunca mais a ele retornar. Ele
descobria, portanto, não só a luz de outros dias, que iluminava épocas passadas e para sempre
perdidas, mas também a escuridão e a indiscernibilidade de uma noite em que desaparecem os
objetos dos saberes e os sujeitos que os assegurariam, bem como a coerência sistemática das
ciências e os temas que eram supostos conferir-lhes um fio de continuidade: a certeza, esse
facho de luz tênue que apanha o homem em plena travessia, era percebida desvanecer não só
em cada um dos lados – ou seja, tanto do lado das representações como em sua contraparte,
que seria o mundo empírico –, como também lá onde eles se articulam e esquinam. Um tal
processo, de dissolução das próprias categorias a que a experiência histórica parecia dever a
sua possibilidade, desarma um certo dispositivo teórico da subjetividade, especialmente
quando este é tomado em suas acepções de realidade psicológica e de instância transcendental.
E, na sequência, a dialética também era entendida perder os seus privilégios de apreensão
conceitual da dinâmica das lutas históricas reais: à proporção em que era flagrada cosendo uns
e outros, os sujeitos e os objetos, o transcendental e o empírico, na expectativa de tramá-los
para bordar a tapeçaria de uma razão maior, ela tinha de ser acusada da tentativa de reunificar
o grande discurso da História através dos retalhos que sobravam do recorte das guerras
singulares. De vez que a recusa de Badiou de se adequar aos parâmetros de Foucault (e, de
forma mais geral, aos parâmetros de toda a “filosofia da diferença”) - recusa sinalizada pela
sua fidelidade à teorização marxista da luta de classes – tende a ser interpretada, quase que
fatalmente, como uma recusa do múltiplo em favor do Um: ao confrontar os dois pensadores,
a impressão que se tem é a de que o marxista viu-se obrigado a reagir violentamente porque, à
dispersão e à multiplicidade históricas em que as palavras e as coisas foram mostradas vacilar,
o defensor do universal desejaria opor o poder de síntese da dialética, de sua tirânica
reconciliação, que operaria necessariamente de fora, subordinando e colonizando a existência
em todas as instâncias em que ela faz valer a diferença. Desse ponto de vista, o binarismo da
luta de classes nada mais seria que esse mínimo que os dialéticos concederam à diferença, mas

97O norte ficará indefinido, devido à morte precoce . Mas na filosofia cínica, abordada no último curso ministrado
no Collège de France.

104
apenas com o intuito de viabilizar a possibilidade de suprimi-la de uma vez por todas. Se
Badiou diverge de Foucault, entretanto, não é por reprovar a vivacidade com que este povoa
os quadros históricos que pinta, conquanto ele o fizesse com reconhecido talento e
sensibilidade, como se a entremear na pesquisa histórica pinturas dignas de um mestre
flamengo do porte de Hieronymus Bosch. Não que o marxista não pudesse considerar
problemática e mesmo reprovável a sugestão de que alguma coisa como a Stultifera Navis [nau
dos insensatos] teria realmente existido, quando nenhuma fonte histórica confiável o atestaria:
o perigo de que a reconstituição histórica de uma certa configuração discursiva não possa
diferenciar-se conceitualmente de uma fabulação estética deve, sim, ser considerado um dos
flancos a partir dos quais Badiou poderia investir contra a fortaleza teórica de Foucault. Mas,
decididamente, a solução do filósofo para esse problema nada tem que ver com fazer prevalecer
o Um sobre o múltiplo: o ponto de Badiou nunca foi o de que a História tem de ser reunificada
pelo desfecho messiânico de uma luta de classes que desde sempre estivesse destinada à glória
e ao triunfo, e isso (como vimos) pelo simples motivo de que, para ele, não existe
absolutamente nada de consistente que se possa designar com essa maiúscula.
Em verdade, longe de silenciar o múltiplo, o que Badiou busca são outras formas de subverter
o domínio total do Um, cujo semblante imaginário não desaparece com um simples esfregar
dos olhos: a exemplo do ensino de Lacan, um pensamento que pretenda reconsiderar a
pertinência dos registros da verdade e do sujeito faria muito bem se procurasse sustentá-la
através da densidade conceitual que pode encontrar nas matemáticas e na lógica. Mais
especificamente, um tal pensamento será instado a fazê-lo procurando amparo na teoria dos
conjuntos e no novo tratamento do Um que ela trouxe consigo, a saber, o tratamento que
possibilita pensar o Um de uma maneira verdadeiramente rigorosa à condição de que este nunca
venha em primeiro lugar e tampouco possa antecipar o último termo da sequência: ou seja,
tende-se a uma teorização que procede desde uma perspectiva em que o Um se encontra
dissociado do Todo. Frustrando muitas das expectativas que talvez tenham sido fomentadas na
recepção dos dois autores, se a empresa teórica de Foucault de alguma forma permite repensar
a relevância da questão metapolítica fundamental para o marxismo – pois, tal como o
marxismo, ela contesta a natureza mesma da universalidade pretendida pela cidadania moderna
–, ela o faz ainda mais enfaticamente no caso de Badiou. E isso pelo motivo, pouco evidente,
de que a filosofia deste ocupa, em relação à mencionada empresa teórica, como que um de seus
pontos cegos: com Badiou, a metapolítica dos comunistas não se vê obrigatoriamente atrelada
nem à análise econômica e nem à ciência. De certa forma, estaríamos autorizados a imaginar
que a pergunta recapitulada acima, sobre a possibilidade de deduzir os poderes desde os
axiomas da economia, alveja Badiou da forma mais certeira possível: afinal, não é ele que
pretende falar do marxismo utilizando-se de conceitos oriundos das matemáticas e da lógica?
Só que isso simplesmente não se sustenta porque, muito embora Badiou seja alguém que tem
na mais alta estima, de um lado, a tradição revolucionária do marxismo e, de outro, as inovações
conceituais da lógica contemporânea, para ele a questão nunca consistiu em deduzir uma
política toda pronta e acabada desde uma coleção particular de axiomas, e muito menos uma
política que pudesse ser raciocinada a partir da esfera da economia: o que a sua visada “lógica"
destaca através da apreciação da tradição revolucionária do marxismo é exatamente a
esterilidade muito própria ao campo da economia, como se, desde os seus parâmetros, fosse
absolutamente impossível depreender qualquer política que de fato mereça esse nome. E, num
mundo dominado pelo capitalismo, localizar essa impossibilidade é o mesmo que apontar para
a defasagem inescapável de todo e qualquer discurso político para com o presente e a realidade.
O que significa que, por mais lógica que ela seja, essa visada universalista não perfaz nenhuma

105
ciência do político: se a genealogia de Foucault se quer como anticiência 98, isso não chega a
levantar nenhuma verdadeira objeção contra a teoria do sujeito de Badiou. Assim, podemos
dizer que, no mesmo período em que Foucault nivelava nazismo e socialismo devido ao teor
“racista” de suas políticas de estado (a saber, nos anos de 1975-1976, quando tem lugar o curso
“Em defesa da sociedade”), Badiou se esforçava por restabelecer o caráter estratégico e tático
do pensamento marxista, ajudando-o a soerguer-se das valas do economicismo e do
teoreticismo a fim de que ele recuperasse a sua vocação prática anti-proprietária e anti-estatal
(ou, em outras palavras, a sua vocação comunista).
Com esse reparo, podemos observar mais uma importante – e também insuspeita –
convergência entre Badiou e Foucault. Muito distante do que seria possível intuir a respeito se
se baseia em juízos apressados, o fato de que Foucault tenha endereçado uma dura crítica
conceitual aos regimes socialistas e à tradição teórica e prática que os apoia não significa que
seja preciso mantê-lo absolutamente apartado de Badiou. Muito pelo contrário, ao
examinarmos a questão mais detidamente, deveremos localizar uma importante afinidade entre
os dois, que, salvo engano, nunca é destacada de maneira verdadeiramente consequente.
Notaremos, pois, que com a sua tentativa de localizar historicamente uma reversibilidade entre
o discurso dos revolucionários e o discurso do racismo biológico (o qual seria proponente de
um darwinismo social), aquilo para o que Foucault apontava era para a persistência do
humanismo e de seus efeitos imprevistos e francamente deletérios: detectava-se a sua marca
nas tentativas concretas de efetivar uma emancipação humana “final”, como se houvesse se
traído aí uma permanência que era entendida ameaçar o pensamento marxista desde muito
perto, quase como uma limitação que lhe fosse intrínseca. De todo modo, sendo ou não correto
entender uma tal limitação como intrínseca ao marxismo, essa crítica havia atingido um alvo:
ela pelo menos possuía o mérito de ter registrado o instante paradoxal em que o humanismo
podia metamorfosear-se num dispositivo de controle dos homens, quando autoriza a si mesmo
a prerrogativa de decidir quem é e quem não é humano 99 – o que representa uma enorme
limitação para as aspirações universalistas do marxismo. Por seu turno, antecipemos que
Badiou não nega a sua ascendência "estruturalista", o que significa que ele conserva algo de
seu anti-humanismo. Mas é claro que, como era de se esperar, os dois pensadores não farão
valer o seu anti-humanismo pelas mesmas vias. Tendo em vista a existência de uma diferença
entre os dois (que, por ora, é apenas pressuposta), diremos que, para Foucault, o problema do
marxismo era o de que, ao submeter a política ao domínio unitário da economia, ele não teria
outra saída senão conduzir as lutas sociais a uma totalidade “racista”. E isso, não porque a
economia seja intrinsecamente excludente, mas porque, tanto teórica quanto praticamente, ela
não consegue restituir a singularidade das diversas modalidades das lutas sociais:
em todos os momentos em que o socialismo foi obrigado a insistir no
problema da luta, da luta contra o inimigo, da eliminação do adversário
no próprio interior da sociedade capitalista, quando se tratou, por
conseguinte, de pensar o enfrentamento físico com o adversário de
classe na sociedade capitalista, o racismo ressurgiu, porque foi a única
maneira, para um pensamento socialista que apesar de tudo era muito
ligado aos temas do biopoder, de pensar a razão de matar o adversário.
Quando se trata simplesmente de eliminá-lo economicamente, de fazê-
lo perder seus privilégios, não se necessita de racismo. Mas, quando se

98 Nas palavras de Foucault: ”As genealogias são, muito exatamente, anticiências. (...) Trata-se da insurreição dos
saberes. (...) É exatamente contra os efeitos de poder próprios de um discurso considerado científico que a
genealogia deve travar o combate” (FOUCAULT, pág. 14).
99 Num famoso julgamento,

106
trata de pensar que se vai ficar frente a frente com ele e que vai ser
preciso brigar fisicamente com ele, arriscar a própria vida e procurar
matá-lo foi preciso racismo. (FOUCAULT, 2005, pág. 314)

Como se vê por essa longa citação, tratava-se de uma dupla limitação, que afetava tanto a
capacidade de instigar o engajamento como a de vincular esse engajamento à localização e ao
estabelecimento das práticas que promoveriam as variadas guerras contra os poderes
instituídos. Nesse vácuo, segundo o que pensava Foucault, só poderia reemergir a soberania
estatal, agora encarregada da tarefa inglória de agir “em defesa da sociedade”.
Para Badiou, igualmente, se existe um sujeito, ele nada teria que ver com uma essência ou uma
natureza humana a ser restabelecida ou desobstruída pela instituição de uma nova ordem
política. Como explica o filósofo em Théorie du sujet:
O segundo materialismo, em seguida àquele da irreligião, será
histórico, por não ter mais de desfazer Deus, mas o Homem. A natureza
– que costumava-se opor à graça e aos milagres – cessa de funcionar
como referente. Aí, substitui-a o devir histórico [historial] do mundo,
em que se prova que a posição de classe cinde a humanidade e que
nenhum termo simples pode fazer nem o centro e nem a experiência da
verdade. (BADIOU, pág. 203)

Cabe dizer que a passagem que acabamos de citar vem acompanhada, logo em seguida, de uma
brevíssima recapitulação daquela distinção tão importante para o antigo mestre de Badiou, que
pretendia discriminar com rigor conceitual um materialismo histórico de um materialismo
dialético. O objetivo dessa passagem de Théorie du sujet, muito claramente, é o de pagar algum
tributo ao anti-humanismo francês, em referência ao qual o filósofo menciona três nomes em
especial: Althusser, Foucault e Lacan. Tributo pago, entretanto, o filósofo segue em seu próprio
curso. Mais até: ele aproveita a ocasião para informar sobre o marco conceitual que os tais
partidários desse anti-humanismo não teriam sido capazes de ultrapassar, a saber, o da função
constitutiva que a categoria teórica do discurso sempre deverá desempenhar para eles. Quanto
a Foucault em especial – “(...) esse Cuvier dos arquivos, que de alguns ossos livrescos
escrutados com gênio monta para vós todo o brontossauro de um século” (BADIOU, pág. 204)
–, Badiou reprova ao pensador a “descrição de vastas configurações discursivas” que, supondo-
se caracterizar “todo o processo mental e prático de uma época”, excluiria “todo sujeito” (Cf.
BADIOU, pág. 204). Como nem mesmo seria necessário advertir, deve-se ter em mente que
essa caracterização não faz justiça ao Foucault das décadas de 1970 e de 1980 (que, aliás, são
as décadas em que seria redigido e publicado o supracitado livro de Badiou). Mas, de qualquer
maneira, a parresía, tal como recuperada por ele nos últimos anos de seu curso no Collège de
France (isto é, de forma a colocar em causa o par conceitual de uma verdade e de um sujeito),
não seria o bastante para pensar o problema que absorve a atenção de Badiou: se essa
formulação da parresía pretende escapar à lógica de “totalidade” das “vastas configurações
discursivas" descritas pela arqueologia – posto que a sua verdade desestabilizaria uma
determinada ordem, abrindo, assim, para a possibilidade de uma configuração até certo ponto
imprevista –, ela em nada faz ver o infinito que permitiria superar uma contradição. Pois a
diferença afetada por uma verdade com uma vocação universal afeta a desproporção de um
infinito, ou seja, ela não se esgota em nenhuma circunstância específica, já que ela abre a

107
possibilidade de que seja superado absolutamente um impasse que se apresentava então como
impossível de ser transposto nas condições dadas. 100
A contradição, cuja preferência manifestada por Badiou em relação à diferença não parecia
justificar-se senão por um sectarismo mal disfarçado, vincula-se, na verdade, a esse infinito e
à superação dos impasses que ele insiste em manter no horizonte do pensamento crítico. Sem
contradição, não haveria nenhum sujeito de uma verdade universal, ou pelo menos não no
campo da política. Isso dito, compreende-se sem maiores dificuldades que, se o filósofo
conservou um momento anti-humanista em sua teorização do sujeito, ele o fez sempre em
referência à contradição. Acrescente-se que, no lugar de uma leitura externa ao marxismo, que
revira arquivos dispersos e encontra os seus antecedentes no discurso da luta das raças e, de
maneira ainda mais comprometedora, no discurso de um racismo biológico, o filósofo demanda
uma visada interna à tradição revolucionária, na expectativa de aguçar um olhar que saiba
percorrer a rachadura no edifício da cidadania moderna que a tradição revolucionária vez ou
outra sabe aprofundar, mas que não deixa nunca de colocar em tela. Assim, a propósito do
terror estalinista e de sua política sanguinária, a tarefa assumida pelo filósofo não é mais a de
reconstituir um complexo quadro de formações discursivas onde inserir o abominável de tais
práticas, mas a de entrever quais as defasagens do processo subjetivo posto em marcha que,
em face da contradição, tentou (e fracassou tremendamente em) adequar a realidade ao conceito
de uma verdade universal. Como se pode ver pela seguinte citação de Théorie du sujet, o caso
não é o de deplorar a denúncia dos crimes perpetrados pelo estalinismo, e sim o de pensar uma
prática que, à diferença da inocuidade dessa denúncia, realize a sua crítica efetiva:
A essência do terror é política. É preciso compreender o Estado
terrorista a partir da consistência subjetiva de uma política, reenviada
à sua raiz: a subjetivação, a angústia soviética, a angústia da guerra
civil e da NEP [Nova Política Econômica]. É preciso pensar o Estado
a partir do terror, e não o terror a partir do Estado. (...) A denúncia do
caráter repressivo e sanguinário de uma política não é a crítica real
dessa política, nem permite acabar com ela, jamais. (...) Nós, marxistas,
somos os únicos anti-estalinistas consequentes e eficazes, porque nós
somos os únicos que, para refundi-la, penetramos a política de Stálin.
Nós receamos os "anti-estalinistas" vulgares não porque eles gritem
contra os campos e as torturas – eles têm toda a razão [em fazê-lo] –,
mas porque eles organizam, sob os temas inoperantes da objetividade
estatal ou da “ideologia totalitária", a fraqueza diante da lógica
subjetiva do terror. Sim, nós receamos sua fraqueza política, sua
aquiescência involuntária (ainda que invertida) à angústia restauradora
(...). (BADIOU, pág. 310)

100Essa diferença pura que a contradição faz considerar pode ser efetivamente comparada ao que Theodor Adorno
chamava de "não-idêntico”. Em querela contra o estruturalismo e sua descendência teórica bastarda, Badiou faz a
seguinte observação em Théorie de la contradiction: ”A deriva é a sombra do combinatório. O estruturalismo e
as ideologias do desejo são profundamente aparentados. A dialética, com efeito, na formulação da teoria do
aspecto principal, pensa a um só tempo, segundo o movimento de cisão que lhe é próprio, a identidade (em termos,
com efeito, da permutação dos postos) e a não-identidade (em termos de ruptura qualitativa do processo de
distribuição dos lugares tomados em seu conjunto)” (BADIOU, pág. 63, grifo nosso). Em contraposição à
generalidade do equivalente da forma mercadoria, que sacrifica o dissimétrico em favor das simetrias (Cf.
BADIOU, pág. 82), uma concepção dialética da política apreende, desde uma implicação genérica, o ponto de
dissimetria como o lugar de irrupção de uma força contraditória, qualitativamente inassimilável à representação.
Ao mesmo tempo em que o aproxima do filósofo alemão, é essa importância do não-idêntico que afasta Badiou
de Adorno, posto que este nunca fala da efetividade nos domínios da política: não admira que Badiou sempre
encare Adorno com alguma desconfiança, quando os dois assumiram posições em tudo opostas em 1968.

108
A denúncia de que na União Soviética não só continuavam em operação como eram levados
ao pior muitos dos dispositivos estatais desenvolvidos na Europa e em seus domínios coloniais,
ao passo em que prevê um assujeitamento total dos homens, revela não estar à altura da tarefa
que o filósofo comunista toma para si: em sua avaliação, não se ganha muita coisa ao
hipostasiar o Estado como uma entidade dotada de poderes quase que ilimitados, uma vez que
ele se torna então de tal maneira indiferente à subjetividade que passa a ser pensado como capaz
de determiná-la em todas as instâncias. E à verdade não basta o critério de que o sujeito coloque
em risco a sua vida quando prontifica-se a enunciar algo que entra em conflito com os poderes
instituídos, porque ela só alcança a sua infinitude própria se o conflito por ela encetado anuncia
a superação desses poderes e das relações essencialmente desiguais a que eles dão lugar.
Para que sejamos claros o bastante, é fundamental explicar que Badiou não estava tomando o
partido de Stálin contra qualquer das muitas vítimas de sua ditadura. Em momento algum entra
em consideração a possibilidade de endeusar ou idolatrar o “dirigente do primeiro Estado da
ditadura do proletariado” em detrimento, digamos, de Óssip Mandelstam, o grande poeta
mandado parar morrer na Sibéria depois de fazer circular um poema satírico sobre o
"montanhês do Kremlin" (Cf. Poesia russa moderna, pág. 212). Nem Badiou e nem ninguém
em sã consciência seria capaz de negar (de todo modo, não sem uma boa dose de cretinice) que
o gesto do poeta foi de extrema coragem, assim como foi de uma extrema covardia a decisão
de enviá-lo a um campo de trabalhos forçados. Mas, muito embora a escrita e a circulação do
poema relacionem-se a uma verdade, esse ato não tem propriamente um teor político, ou pelo
menos não se ele permanece confinado aos limites estreitos de uma defesa abstrata das
liberdades do indivíduo. A morte de Mandelstam demonstra, com absoluta certeza, que não era
abstrata a liberdade de que o poeta foi privado. É abstrata, no entanto, a defesa de uma
instituição que a resguarde especificamente, como se ela fosse suficiente para contrapor-se
tanto ao processo subjetivo que sustentava a dinastia dos Románov quanto ao processo
subjetivo que se inicia com a Revolução Russa. E ela descobre a sua abstração de um modo
todo especial num contexto em que foi colocado em marcha um processo subjetivo que tem
como alvo precisamente a superação da contradição enquistada no âmago da liberdade de que
gozariam os indivíduos modernos: ofertar essa instituição àqueles que se veem injustiçados
como se se tratasse de uma panaceia, quando ela sequer pôde cumprir inteiramente com os seus
dons milagrosos lá onde parecia estar melhor condicionada para fazê-lo, e ofertá-la sem dar-se
conta dos enfrentamentos reais e das dificuldades práticas que envolve nas circunstâncias em
que se fez valer, esse é um ato tão eficaz quanto o de constatar que se chama de injusto o estado
onde falta a justiça. Aos comunistas, por seu turno, caberá sempre fazer a pergunta: por quê,
no campo prático da política, falta efetivamente a justiça? E, localizando a sua causa junto à
contradição da divisão das classes, caberá a eles o trabalho contínuo de reposicionar-se em face
dela, tanto teórica quanto praticamente, o que exige deles uma série de movimentações a um
só tempo singulares e consequentes.
O que foi dito acima não significa que a tradição revolucionária do marxismo seja em tudo
estranha à coragem de verdade que corresponde como que ao elemento central de uma história
dos parresiastas. Tal como sugerido no curso desta seção de nosso trabalho, o marxismo
descende quase que diretamente da prática esclarecida da crítica. Com efeito, ele pode ser dito
o desdobramento mais radical da empresa crítica nos domínios do pensamento político. Assim,
não seria excessivo declarar que a tradição dos revolucionários também integra uma história
de parresiastas: ela está repleta de homens os mais diversos que, empenhados numa
determinada verdade, não hesitaram em expor-se aos maiores riscos. O próprio Foucault dá a
entender que é esse o caso quando diz que, ao lado do conselheiro, do ministro e do crítico,

109
também se avista a figura do revolucionário: “E, enfim, claro, poderíamos identificar uma
quarta figura na dramática do discurso verdadeiro na ordem da política, que é a figura do
revolucionário” (FOUCAULT, 2010, pág. 67). Todavia, a certa altura da história do marxismo,
torna-se impraticável não reconhecer que a performance de uma “dramática do discurso
verdadeiro” como que se viu eclipsada pela enorme sombra do aparelho estatal socialista.
Quanto a esse confronto em particular, nós já temos alguns indícios, nada desprezíveis, de que
Badiou não se ajoelhou diante da figura vultosa desse poder quase transcendente que ameaça
encobrir qualquer dramática do discurso verdadeiro. Mas não podemos ignorar que ele
tampouco correu em socorro dos indivíduos que se arriscavam a executar essa performance.
Evitando uma e outra alternativa, em vez disso, ele cogitava uma crítica ao estalinismo que não
se confundisse com a mera denúncia de suas políticas sanguinárias e terroristas. O que parece
apenas contribuir para que aumentem as suspeitas de que o marxismo, subtraindo-se à
exposição pública de suas razões e à crítica aberta de seus equívocos, estaria condicionado a
não ser mais que um sectarismo religioso: afinal, de acordo com Badiou, quem deverá levar
adiante essa pretensa crítica efetiva da experiência revolucionária e de seus descaminhos são
os...próprios revolucionários. Mas cabe insistir que sustentar que a crítica aos fracassos dos
revolucionários é um assunto “interno”, neste caso, é uma forma de advogar a imanência da
verdade posta em causa pela política marxista: continua valendo o princípio que a rege desde
Espinosa, precisamente aquele segundo o qual a “verdade é norma de si e do falso". Para os
que se colocam fora do processo da verdade, não é possível apreender nada além de
deslocamentos estruturais (tais como os expostos nos quadros de formações discursivas), que
não podem ser tidos nem como falsos e nem como verdadeiros, pois não são considerados em
referência ao parâmetro de qualquer mudança qualitativa com uma vocação universal. A
propósito dessa verdade, se se quiser de fato empreender uma crítica desde um ponto de vista
qualitativo, seria preciso tomar parte no processo subjetivo de mudança efetiva da realidade.
Dado que o processo de superação da contradição própria à luta de classes ainda estivesse por
concluir, ele não poderia ser devidamente criticado se fosse abandonado sem mais, posto que
a sua fosse uma verdade a ser considerada em sua imanência. Disso não decorre, entenda-se,
que os revolucionários, por reclamarem-se os portadores legítimos dessa verdade, estejam
automaticamente prevenidos de todo e qualquer erro. Muito pelo contrário, a incompletude do
processo de uma verdade em sua imanência faz com que os seus partidários errem (no duplo
sentido da palavra): uma vez que o processo não tenha alcançado uma conclusão de fato
satisfatória – e isso para-além de qualquer dúvida razoável –, a sua consequência inevitável é
a de que os revolucionários continuem expondo-se ao erro, afinal, é preciso que eles errem (no
sentido de caminhar sem um rumo definido) para conduzir esse processo a um remate que só
existirá após e em função de sua ação. Ou seja, se não existe um parâmetro externo e seguro
com o qual estabelecer a adequação da ação ao fim desejado – como é de fato o caso com o
fim para o qual tende o comunismo –, também não existe a possibilidade de decidir previamente
sobre quais as modalidades de ação que deverão levá-la a efeito: dentre essas modalidades,
pode-se incluir o exercício centralizado do poder estatal pelo partido comunista, que, a
princípio (isto é, anteriormente à sua experiência efetiva), não pode figurar como um pecado
indesculpável, assim como, após a sua experiência histórica, não pode ser tido como um dogma
insuperável. A análise estrutural (ou as análises que com ela apresentam afinidades) constata
muito rapidamente que, no fim das contas, a tomada do poder pelos comunistas não fez mais
que inverter os postos, afetando somente um deslocamento quantitativo: se bem que a
contagem de corpos seja muito maior, os mecanismos de poder no estalinismo não seriam
essencialmente distintos dos governos liberais de fins do século XIX e início do XX. Mas quem
se orienta pela contradição não pode se contentar com uma declaração dessa natureza, pois a

110
"(...) dialética é a teoria das dificuldades qualitativas e das facilidades quantitativas" (BADIOU,
pág. 95). O que uma análise estrutural ignora, assim, é a série de transformações qualitativas
que escandem a sequência das revoluções comunistas: ainda que esteja correta em apontar para
o fiasco em que resultou o processo revolucionário, ela deixa de se perguntar pela mudança
qualitativa que se faz acompanhar à vitória dos bolcheviques na Revolução de 1917, a despeito
de que ela própria seja representável como uma simples permuta dos lugares. Faltaria
responder, por exemplo, sobre o motivo pelo qual os bolcheviques acreditavam ser
imprescindível controlar e exercer com rigorosa disciplina o poder estatal: a guerra civil que
sucede à Revolução, guerra vencida pelos bolcheviques, fornece a pista crucial quanto a essa
questão. Pode-se até argumentar, e com razão, que a obsessão auto-destrutiva de purificar as
fileiras do partido, que mais tarde deverá animar com uma outra intensidade o espetáculo
macabro dos processos de Moscou, já estava presente no triunfo da guerra civil, no momento
em que a guerra contra os opositores da Revolução assume a forma de uma guerra contra os
opositores dos bolcheviques: a supressão do levante de Kronstadt é o seu emblema inequívoco.
Mas também é certo que sem a organização de um poderoso efetivo militar eles teriam sido
massacrados, como o foram os communards na Comuna de Paris. 101 O que quer dizer, muito
simplesmente, que, sem descontar os seus excessos (que mais tarde, além de indesculpáveis,
vão se mostrar insuperáveis nas limitações que impõem à pretensa emancipação humana que
se queria realizar), à época, alguns dos meios que os bolcheviques encontraram para levar
adiante a Revolução tinham um aspecto não só negativo, de resistência aos poderes instituídos,
mas também positivo, na proporção em que se pudesse pensá-los como “(...) uma limitação
afirmativa da dominação burguesa” (BADIOU & BALMÈS, pág. 140).
A Revolução Russa, se bem que através de descaminhos que depois se provaram irreversíveis,
tornou possível reconsiderar seriamente a ideia de que todos os homens são iguais e de que, na
efetividade material da política, eles devem viver como tais. A partir da tomada do poder pelos
comunistas e da sua manutenção com a posterior vitória militar sobre as forças reacionárias
que se lhe opunham, a Revolução abalou os alicerces de todo um mundo, e isso na medida
exata em que este a mais e mais atestava a falsidade da alternativa pensada por Frédéric
Bastiat102, posto que tanto as mercadorias como os soldados houvessem atravessado
indiscriminadamente as fronteiras nacionais, e estes em decorrência do cerco que havia sido
estabelecido para garantir a circulação daquelas. A data de 1917 tem de ser pensada como um
clinamen da história mundial, se nos lembrarmos que, em 1914, o bem-estar europeu – que
andava de par com a dominação colonial exercida pelas potências imperialistas – deparava um
limite inultrapassável para o princípio de espoliação que, sem reservas, ele fazia valer fora de
seus territórios nacionais: doravante, a guerra explodia dentro da própria "civilização”,
tragando o mundo inteiro em seu torvelinho. Mesmo após o período mais terrível do
estalinismo, que se caracterizou pela coletivização forçada dos campos e por inúmeras prisões
e assassinatos políticos (portanto, período em que ficava bastante óbvio que não existia
nenhuma igualdade efetiva entre os próprios soviéticos), haverá ainda a ocasião para que a
União Soviética inspire ao mundo a possibilidade de que a realidade política se transformasse

101 Com a Comuna de Paris. A bandeira que eles empunham passa a ser, parafraseando , um ”emblema vermelho
da coragem”. Uma característica comum das revoluções inspiradas na ideologia comunista que aconteceram no
século XX é que praticamente todas elas têm como pano de fundo um cenário de guerra. Uma das tentativas mais
importantes de Badiou é apontar para a necessidade de pensar o militante para-além do paradigma do soldado. A
situação que deve ser enfrentada compreende, por exemplo, as limitações históricas do maoísmo, que , o que
explica suas derivas francamente obscurantistas, como a do Sendero Luminoso ou do Khmer Vermelho (Cf.
Logiques des mondes, pág. 524).
102 Como se sabe, Bastiat teria dito que .

111
drasticamente: bem ou mal, ela continuará simbolizando uma nova ideia de política, se se
considera que o nazi-fascismo foi uma espécie de resposta ao desarranjo precipitado pela
primeira guerra mundial, resposta que, sem diferir essencialmente de práticas há muito
consolidadas em países liberais103, levava ao extremo a concepção de um homem de natureza
excepcional a quem seria garantido, como se por direito divino, a justa prerrogativa de pilhar
o que bem entendesse e de aniquilar tudo o que obstasse aos seus propósitos (mesmo que isso
levasse à sua própria destruição). Devemos mesmo sustentar que, atentando-se à maneira como
as subjetividades se veem então concernidas, a categoria do totalitarismo foi cindida
decisivamente quando os dois regimes políticos que supostamente a encarnavam entraram num
choque direto um com o outro: apesar da grande (e justificada) frustração causada nos
partidários do comunismo pelo firmamento do tratado Ribbentrop-Molotov104, a batalha de
Stalingrado terá sido parcialmente bem-sucedida em renovar as esperanças de que a barbárie a
se concretizar numa nação que, em detrimento de todas as demais nações, afirma a sua absoluta
excepcionalidade não seja a única resposta possível à barbárie desencadeada pelo conflito
internacional - como um dos maiores poetas brasileiros, muito distante do campo de batalha,
haveria de cantar no calor da hora. 105
De certa forma, seria correto afirmar que a simples existência da União Soviética, pela
diferença ideológica radical que trazia à cena, pôde contribuir para elevar subjetivamente
algumas das práticas políticas de seu tempo – o que não impossibilita reconhecer, por outro
lado, que em seus domínios as coisas fossem significativamente mais sinistras. 106 Não é por
outro motivo que Badiou, ponderando alguns dos efeitos negativos decorrentes da perda de
muitos dos referenciais concretos para as práticas comunistas, afirme em Théorie du sujet:
“Afinal, os intelectuais ditos de esquerda, sob [o signo de] Stálin, eram vigorosos e inovadores

103
104 . Parte da tragédia do século XX é que a mesma fonte de esperança tenha sido também grande contribuidora
para solapá-la.
105 Carlos Drummond, já em 1942, escreve o célebre poema "Carta a Stalingrado". A temática dessa libertação

perpassa, como se sabe, todo o livro A rosa do povo. Sobre as relações entre a poética brasileira do período e a
guerra mundial, o trabalho de Murilo Marcondes de Moura, O mundo sitiado, é incontornável. O autor faz uma
distinção entre o poeta-soldado, mais comum na primeira guerra mundial, e o poeta exilado, característico da
segunda guerra mundial: essa distinção parece avançar uma elaboração conceitual de como a subjetividade lida
com a guerra; se ela retém alguma esperança, em radical diferença com a primeira guerra mundial, isso nada tem
que ver com a nacionalidade. A poesia está exilada do combate, a não ser como resistência. Vale lembrar, por
exemplo, que Bertolt Brecht, quando indagado por Walter Benjamin sobre o motivo de o dramaturgo, depois de
exilado, não procurar asilo na União Soviética, teria respondido ao seu amigo: "Eu sou comunista, não idiota"
(BRECHT, 2019, pág. 36). O mesmo Brecht que, tendo colocado na boca de seu Galileu a célebre frase "Infeliz
a terra que precisa de heróis" (BRECHT, 1999, pág. 154), escreveria, por ocasião da morte de Stálin: "Dos
oprimidos dos cinco continentes, dos que já se libertaram e de todos os que lutam pela paz mundial, o coração
deve ter parado quando ouviram que Stálin estava morto. Ele era a encarnação da esperança deles. Mas as armas
espirituais e materiais que ele produziu estão aí, e está aí a doutrina para produzir novas" (BRECHT, 2019, pág.
48).
106 Paulo Arantes, ao recapitular um argumento de Eric Hobsbawn, recorda-nos a ”vocação sacrificial” da

Revolução Russa, a ser verificada na façanha nada menos que contraditória atribuível à existência histórica da
União Soviética, de ter salvo o capitalismo pelo menos duas vezes (Cf ”Sobre a era da emergência em que
vivemos”. 44 min): a primeira, com Stalingrado, na reversão completa do curso da guerra; a segunda, com a
atuação dos partidos comunistas europeus que, reclamando uma superioridade moral devido à vitória sobre o nazi-
fascismo, afrontaram a burguesia (quase sempre, colaboracionista) de seus respectivos países, propondo
conquistas sociais importantes. O conservadorismo dessa esquerda é notório . Nas palavras de Eric Hobsbawm:
”Uma das ironias deste estranho século é que o resultado mais duradouro da Revolução de Outubro, cujo objetivo
era a derrubada global do capitalismo, foi salvar seu antagonista, tanto na guerra quanto na paz, fornecendo-lhe o
incentivo - o medo - para reformar-se após a Segunda Guerra Mundial e, ao estabelecer a popularidade do
planejamento econômico, oferecendo-lhe alguns procedimentos para a sua reforma” (HOBSBAWM, pág. 17). No
leste, como nos lembra Keith Lowe em Continente selvagem,

112
de uma maneira completamente diferente do que na infertilidade provinciana de seus pequenos
sentimentos e de seus costumes banais” (BADIOU, pág. 318). Em nada podendo ser
confundida com uma triste lamúria que exortasse a um retorno aos velhos tempos e a um culto
dos velhos líderes, a observação do filósofo pretende tão somente apreender a virtude que
certos nomes teriam de inspirar grandes práticas, às vezes muito mais respeitáveis do que
aquelas de que foram capazes os próprios homens que os portaram. Nenhuma necessidade
haveria de negar que, onde fulge a imagem do líder como a de um sol que orienta as manhãs e
as tardes, ele pode muito bem viver “cercado de um magote subserviente”, com o qual ele
“brinca de gato”, ”essa subgente” (“Um mia, outro assobia, um outro geme/ Somente ele
troveja e tudo treme”, como prossegue o célebre poema de Mandelstam (Cf. pág. 212)). E pode
acontecer também que a sua figura histórica insufle a megalomania de alguém que se queira
um homem investido de poderes inigualáveis, o que, pelo menos desde Napoleão, é um efeito
que se sabe independente da estatura real do estadista. De qualquer modo, não é no plano de
uma psicologia do indivíduo, dos grupos ou das massas que Badiou situa o problema. Como
ele explica um pouco antes da citação encontrada na mesma página de Théorie du sujet que
consultamos há pouco: ao tomar de empréstimo à psicanálise lacaniana a categoria do
imaginário, pode-se reconhecer muito prontamente uma limitação subjetiva que faz com que a
representação do processo encetado pela contradição da luta de classes nunca consiga abarcar
o infinito da política que ele envolve. Ou seja, a limitação imaginária desse processo explicaria
o apoio que ele procura na enunciação de um nome singular, como Lênin ou Stálin. Não
haveria, contudo, uma correlação necessária entre a confiança votada a esses nomes e a adesão
às injustiças cometidas pelas personagens históricas por eles designados. Aponta-se então a
possibilidade de dissociar o Um em que se perfaz a enunciação do nome do dirigente
revolucionário e o Todo que evoca o morticínio perpetrado pelo Estado sob o seu comando. A
propósito do quê, Badiou lembra que, de um ponto de vista histórico, uma coisa não
necessariamente exige a outra:
eu confesso que a restrição imaginária, uma vez reconhecida em seu
princípio, não me parece exigir nenhuma postura escandalizada.
Mesmo o famoso “culto à personalidade”, em sua correlação manifesta
com as oblíquas angústias da bravura justiceira, parece-me ressurgir
mais da inevitável presunção do Um do que das infâmias ditatoriais, as
quais passam pela realidade e acomodam-se à necessidade da
mediocridade da imagem a mais completa. Ninguém jamais precisou
do culto de Guy Mollet para consentir maciçamente, durante a guerra
da Argélia, com o massacre de um milhão de argelinos, com [direito a]
torturas e campos [de concentração] – horrores tanto mais patentes que,
à diferença da empresa estalinista, de onde pelo menos saiu uma Rússia
gigantesca, não chegavam a servir senão a retardar em seis ou sete anos
a independência inevitável, e, assim, massacrava-se, rigorosamente,
por nada. (BADIOU, pág. 318)

Como tenta evidenciar a referência a Guy Mollet – primeiro-ministro da França de tendências


declaradamente socialistas que, apesar de ter desempenhado essa sua função de 1956 a 1957,
considerava a guerra franco-argelina um conflito imbecil, a independência da Argélia, segundo
ele, estando com a razão –, o massacre que o Estado reserva ao outro não demanda nenhum
apelo à paixão dos revolucionários, podendo muito bem coexistir com a sobriedade e a
razoabilidade de cidadãos que por nada mais anseiam senão pela continuidade de sua
sereníssima República.

113
Desde a possibilidade de dissociar o Um em que o comunismo se vê implicado da totalidade
do Estado assassino que tentou encarná-lo, torna-se viável pensar uma crítica à contradição que
proceda, não pelos expedientes da diferença que ela supostamente exclui, mas por uma ideia e
uma prática ainda mais precisas da própria contradição. Com isso, explicita-se mais uma
limitação de Foucault no que diz respeito à apreciação histórica e teórica da ideia do
comunismo. Como sabemos, pelas repetidas vezes que tornamos a esse tópico, o pensador não
cometia o erro de isolar o aspecto mortífero do Estado e atribuí-lo exclusivamente aos
chamados regimes totalitários. Mas, ainda assim, ele (como, de maneira geral, a descendência
do estruturalismo)107 perdia de vista as transformações qualitativas ocasionadas pela tomada
de poder em nome da igualdade radical entre os homens. Ainda seria possível, contudo,
argumentar, de seu ponto de vista, que a defesa dessas ideias igualitárias não bastava de
maneira alguma para prevenir os massacres, e que o socialismo ainda seria passível de
vinculação à formação discursiva de um racismo biológico. No entanto, ao ceder, ainda que
minimamente, à impressão de que as políticas de estado levadas a cabo por socialistas e nazistas
fossem igualmente “racistas”, Foucault evitava apreender o processo mesmo segundo o qual
vieram a se relacionar ideologia e biopolítica na União Soviética. De acordo com a explicação
dada por Serguei Prozorov, no texto “Biopolitics and socialism” [“Biopolítica e socialismo”],
o pensador francês deixava assim de perceber que a natureza humana não era concebida e
visada da mesma maneira pelos discursos e políticas centrados em torno da classe e da raça:
É dessa perspectiva que se torna clara a diferença entre o inimigo de
classe e o inimigo de raça. Mesmo quando classes inimigas (isto é, os
representantes da aristocracia, da burguesia ou do clero) eram
elencadas no discurso oficial como “parasitas” improdutivos, “vermes”
ou “imundos” que poderiam somente corromper o proletariado
vitorioso e que tinham, então, de ser excluídos da política emergente
através da privação de direitos políticos, exílio ou encarceramento, essa
exclusão não operava em estrito acordo com a lógica naturalista ou
evolucionista do racismo. (PROZOROV, pág. 100)

Se na Alemanha nazista quaisquer outras raças que não a ariana eram tidas como um objeto
mais que provável ou de dominação e exploração ou de um completo extermínio, na União
Soviética mesmo as classes consideradas inimigas do povo eram passíveis de reeducação. O
que quer dizer que, ainda sob o estalinismo, o processo subjetivo de transformação radical da
realidade política não havia cessado por inteiro. Entretanto, ele havia assumido a forma de uma
contradição engessada, rígida, quase estanque, que em suas consequências práticas mais
notórias se assemelhava de fato à política dos nazi-fascistas (especialmente se considerada
quanto ao número de prisioneiros políticos e cadáveres que produzia).
Por sua vez, em radical contestação do que havia exposto Foucault no curso de nome “Em
defesa da sociedade” (ainda que não houvesse tomado conhecimento dessa exposição na época
em que foi realizada), Badiou tentava mostrar, na década de 1970, que não era por pensar de
acordo com a contradição que o estalinismo havia cedido espaço a um terror político
interminável (terror que, contraditoriamente, afigurava-se, no plano da política revolucionária,
a algo muito próximo de um termidor). Antes, é por que não estava à altura das contradições
políticas com que havia sido confrontado numa determinada época histórica que o dirigente do
primeiro Estado da ditadura do proletariado não conseguira ir além da concretização de uma

107”Mas ela é profundamente estruturalista quando não pensa a contradição enquanto movimento de substituição,
e exclui toda apreensão de uma diferença qualitativa qualquer entre dois tipos de dominação" (BADIOU, páginas
62 e 63).

114
ferrenha ditadura encarnada num Estado cuja relativa prosperidade material era alcançada às
custas daquele mesmo proletariado que supostamente tinha os seus interesses representados
pelo partido. Por isso é que, em Théorie de la contradiction, ao realizar a escansão do conceito
dialético da contradição através da enumeração de quatro nomes singulares da tradição
revolucionária marxista (quais sejam, Engels, Lênin e Mao, além do nome que citamos na
sequência), o filósofo sintetiza a posição prático-teórica de Stálin da seguinte maneira:
Sua visão do movimento real de um tal Estado [, qual seja, o Estado da
ditadura do proletariado,] é largamente fundada sobre a exigência de
um desenvolvimento concentrado e acelerado das forças produtivas,
tendo como nexo [noeud] a indústria pesada. Para fazê-lo, é preciso
quebrar todos os obstáculos, se necessário for, a mais e mais, pelo
terror. É preciso liderar uma luta de classes voluntária, estatal, violenta.
A principal intervenção de Stálin sobre a questão da dialética encontra-
se no texto: “O Materialismo dialético e o materialismo histórico”. Esse
texto é de 1938: na sequência da depuração terrorista das oposições
dentro do partido, na véspera da Segunda Guerra Mundial. Lá, de novo,
as circunstâncias, as escolhas de linha e o adversário ditam as
limitações: a importância acordada à acumulação industrial privilegia
o quantitativo como promessa do salto qualitativo; o cerco imperialista,
a obsessão com a subversão estrangeira encontram seu reflexo na
interdependência de todos os fenômenos. A gigantesca esperança
marcada de um voluntarismo violento, que caracteriza Stálin, mostra-
se na convicção de que aquilo que se desenvolve vencerá
necessariamente. Tudo isso marca uma vez mais a teoria das
contradições de uma sorte de rigidez entrincheirada, e de um privilégio
latente do materialismo evolutivo – disso que se poderia chamar o
materialismo dinâmico – sobre a teoria da cisão interna e do
desenvolvimento por sequências conflituosas. (BADIOU, páginas 29 e
30)

Por essa caracterização, pode-se ver bem que a relação entre a dialética do estalinismo e o
evolucionismo era de uma ordem consideravelmente distinta daquela aventada por Foucault:
como na União Soviética existia uma espécie de aversão oficial à concepção de uma natureza
imutável (o que, aliás, ficava bastante claro com o episódio histórico que atende pelo nome de
caso Lysenko, com a sua correlata negação da hereditariedade genética e da teoria da evolução
darwiniana), a sua política de estado não poderia deixar entrever a sua afinidade com o tema
de um “engendramento linear dos termos sucessivos" (Cf. BADIOU, pág. 49), a não ser através
da concepção de um “materialismo evolutivo”. Dessa forma, tomando um desvio insuspeito
(que não poderia ser considerado propriamente externo ao curso do processo subjetivo posto
em marcha desde 1917), a Revolução tendia a ser compreendida, tanto por dirigentes quanto
por alguns dos dirigidos, como uma provação implacável, cuja participação confundia-se com
um puro e simples sacrifício de quem nela se engajava: a adotar-se esse parâmetro, o triunfo
do socialismo mede-se de maneira exclusiva pelo crescimento do Estado no país em que ele se
instala (especialmente quanto a dois aspectos, o industrial e o militar), não importa quantos
indivíduos tenham perecido no processo (afinal, se pereceram, é porque falharam em
corresponder à imagem do “novo homem soviético”; ademais, segundo essa visão, o seu
sacrifício teria pelo menos um saldo histórico positivo, por ter auxiliado no nascimento desse
“novo homem”).

115
As insuficiências da teoria da contradição estalinista obrigam, assim, a recuar dois passos para
avançar pelo menos um. Observaremos então que, cronologicamente, a concepção estalinista
de contradição sucede à concepção leninista, e pode mesmo ser dita pressupô-la. Mas se o
critério for o de seu desenvolvimento conceitual e lógico, compreende-se sem grandes
dificuldades o motivo de Lênin vir depois de Stálin na exposição de Théorie de la
contradiction. Com efeito, o estalinismo transformara Lênin em um conjunto insuperável de
dogmas, e o fizera mirando um escopo tão largo que mesmo a ciência biológica então admitida
na União Soviética deveria enquadrar-se nele (pelo que se pode aludir, mais uma vez, ao caso
Lysenko).108 Ou seja, consciente ou inconscientemente, Stálin havia contribuído para esvaziar
a teoria da contradição leninista de quase todo movimento ou consideração pela singularidade.
Por sua vez, se em Lênin já existem traços que prenunciam aquilo que virá a ser a política sob
Stálin (traços que, com este, serão caricaturados até que atinjam o extremo do grotesco),
continua sendo ele, de acordo com Badiou, o responsável por trazer à luz a "verdadeira matriz
da dialética revolucionária”, qual seja, o “(...) princípio 'um se divide em dois’"(BADIOU, pág.
34). Amparado numa leitura muito atenta da Ciência da lógica, Lênin percebera, na contra-
mão de Engels e das concepções de dialética então hegemônicas no marxismo, que a lei de
passagem da qualidade na quantidade nada era senão um caso particular da lei mais geral que
trata da passagem de cada determinação em seu contrário (Cf. BADIOU, pág. 31). Ele se
colocava, então, na posição de contraditar essencialmente as tendências mecanicistas e
fatalistas que tinham por corolário a completa subordinação da organização revolucionária da
luta de classes ao desenvolvimento das forças produtivas.109 Não por acaso, ele, Lênin, quando
posto diante do acontecimento imprevisto da Revolução de Fevereiro de 1917 110 - verdadeiro
acontecimento político que se caracteriza pelo fato de que, excepcionalmente, o coletivo da
sociedade russa tenha se organizado e se esforçado de maneira consciente para derrubar a
autocracia dos Románov (Cf. REIS, páginas 52 e 53) -, justamente ele, dizíamos, foi quem se
colocou em movimento para dividir efetivamente as posições políticas do governo provisório
então instaurado, enfrentando divergências até mesmo dentro de seu partido (os principais
nomes a exemplificarem essa divergência presente entre os bolcheviques sendo muito
provavelmente Kamenev e Zinoviev). Em face da desorganização e da ineficiência do governo
provisório, que não conseguia de maneira alguma atender às quatro grandes demandas
populares do momento (quais fossem: 1) saída da guerra mundial; 2) reforma agrária; 3)
abastecimento de comida; e 4) resolução de questões nacionais internas ao Império Russo), e
sob a ameaça da instituição de um governo ditatorial contra-revolucionário (que se anunciava
com a tentativa de golpe do general Lavr Kornilov, mas sinalizada também pelo
descontentamento de outros líderes militares para com as circunstâncias políticas), concorre-
se para que advenha a Revolução de Outubro de 1917: graças à insistência e à ação estratégica
do principal membro do partido bolchevique - insistência e ação estratégica que se desdobram
em ação concertada dos partidários e em insurreições pontuais - aquele momento renovador,

108 Também é digno de nota que as artes na União Soviética, caracterizadas por uma rara efervescência e
criatividade, tenham se transformado na produção em massa de bustos de Lênin. Talvez não seja por acaso que o
realismo socialista tenha um viés representativo, em explícita desconformidade com a contradição.
109 Lukács diria em seu opúsculo sobre o líder revolucionário: “Assim, o pensamento leniniano da organização

significa um rompimento com dois modos de fatalismo mecânico: tanto o que apreende a consciência de classe do
proletariado como produto mecânico de sua situação de classe quanto o que vê na própria revolução apenas um
efeito mecânico de forças econômicas que se movem de modo fatalista e – uma vez atingida a ‘maturidade’ das
condições objetivas da revolução – conduzem o proletariado à vitória, por assim dizer, automaticamente”
(LUKÁCS, pág. 51).
110 Lembremos que esse acontecimento era imprevisto tanto para os partidos revolucionários e seus dirigentes -

Lênin incluso (Cf. REIS, pág. ) - quanto para a polícia política czarista. Cf. REIS, páginas 50 e 51.

116
mas, ao mesmo tempo, desorientado da Revolução de Fevereiro devém verdadeiramente
popular. Assim, para utilizarmos os termos de Badiou, podemos dizer que foi preterindo o
princípio revisionista (formulado pelo filósofo como "o dois se funde no um", e identificável,
naquelas circunstâncias, com uma mítica unidade do governo provisório a que os comunistas
poderiam ser entendidos dever juntar-se) que Lênin pensou e colocou em prática a verdadeira
diretriz da política revolucionária: intervindo no momento crítico, adensou-se e decidiu-se o
caráter popular da Revolução de maneira a furtá-la de suas indeterminações intrínsecas.
Que esse primeiro momento da escansão do processo revolucionário tenha sido bem sucedido,
disso não se segue que a contradição houvesse cessado e que o novo estivesse para sempre
assegurado.111 Como prova muito claramente a sequência da Revolução Russa, uma tal
pressuposição só poderia mostrar-se falsa: a bem da verdade, sendo movido pela contradição,
o seu processo admite muito facilmente a recaída numa contradição consigo mesmo (isto é,
uma contradição do próprio movimento contraditório, quando este vem a tender a um equilíbrio
ou a um repouso). Por outro lado, no entanto, isso não significa que o trabalho teórico de Lênin
houvesse sido refutado inapelavelmente pelo curso da história: antes, o que se podia entrever
era a necessidade de aprofundar o caminho da contradição por ele descoberto. A prova dos
nove da teoria leninista da contradição deverá encontrar-se alhures, na importância crucial que
teria uma tal síntese teórica para a prática revolucionária em outras localidades: o pensamento
leninista da contradição, que é de tal maneira potente que se comprova dotado da força de
dividir o marxismo entre um antes e um depois de seu advento, inspirará movimentos
revolucionários em outras partes do mundo, conferindo à política uma deriva que de certa
maneira a descola do dado imediato do desenvolvimento das forças produtivas. Ela não era
impedida, assim, de reverberar em movimentações políticas que tinham lugar em países
considerados atrasados de um ponto de vista econômico (como o era, aliás, a própria Rússia
czarista). E é numa dessas reverberações que o princípio revolucionário do ”um se divide em
dois” teria contraído a sua forma conceitual a mais consequente (pelo menos de acordo com
Badiou): não podemos nos esquecer que, com alguma prioridade, Théorie de la contradcition
não deixa de ser um comentário muito cuidadoso das ideias apresentadas no texto "Sobre a
contradição", de autoria de Mao Tsé-Tung. Com efeito, na perspectiva de Badiou, apesar de
Lênin vir logo depois de Stálin na exposição do mencionado livro, Mao é que pode ser dito o
crítico efetivo deste último. Em primeiro lugar porque, à diferença de Stálin, Mao retoma a
teoria da contradição leninista sem ceder a dogmatismos de quaisquer ordens (tendo prevenido,
na verdade, quanto à guerra em que tiveram de se engajar os comunistas chineses, contra a
"imitação servil das doutrinas militares dos soviéticos"): uma primeira constatação decisiva
para a sua própria formulação do pensamento revolucionário é a da impossibilidade de
transplantar diretamente os ensinamentos de Lênin sobre a guerrilha urbana para a realidade
política chinesa (realidade, aliás, em que a mobilização do campesinato haveria de adquirir
uma enorme importância; Cf. BADIOU, páginas 37 e 38). Ademais, se a retomada de Mao do
princípio anti-revisionista do "um se divide em dois” não se quer dogmática, reforça-o o fato
de que foi ele quem realmente sustentou uma oposição à União Soviética no período pós-
estalinista que não se confundia com a mera denúncia dos crimes de seu antigo líder. Como se
sabe, logo após a morte de Stálin, os crimes deste foram denunciados abertamente pelo seu

111Por meio dessa constatação, pode-se colocar o problema de saber se a chegada dos bolcheviques ao poder
envolve de alguma maneira contradiz a contradição. Uma inclinação autoritária . Uma outra forma de colocar a
questão clássica quanto a saber se a Revolução de Outubro foi de fato uma revolução ou um simples golpe de
estado. Mais atinente à contradição, o : "Foi Marc Ferro quem propôs a melhor solução para o aparente dilema:
houve um golpe, mas também uma revolução" (REIS, pág. 107). A Revolução de certa forma dividiu o golpe;
mas, retrospectivamente, pode-se dizer que o golpe acabou por engolfar a Revolução.

117
sucessor, Nikita Krushchev. A despeito dessa denúncia, no entanto, não só continua pesando
uma grave limitação subjetiva sobre o processo de transformação da realidade política, atestada
na permanência do gigantesco aparelho estatal soviético (mesmo que abrandado em seus
mecanismos repressores), como um tal processo se encontra então oficialmente esvaziado de
qualquer força antagônica: afrouxavam-se a censura e a tortura para que se desenhasse o
horizonte de uma paz idílica entre a União Soviética e os Estados Unidos, a ser concretizada,
portanto, num mundo dominado por duas superpotências nucleares (Cf. BADIOU, pág. 93). A
partir de então, cancelava-se a perspectiva de uma vida outra, sendo o caso, em seu lugar, de
contentar-se, quando muito, com a possibilidade de uma morte menos dolorosa (com alguma
sorte, abreviada pela instantaneidade de um clarão...).
Para Mao, como ficou entrevisto em nossa argumentação, o grande termidor representado pela
ascensão de Krushchev era uma consequência necessária do terror dogmático que Stálin havia
exercido com mão de ferro. Eis o que motiva as seguintes palavras que Badiou escreve a
respeito do posicionamento do líder chinês:
No período mesmo da edificação do socialismo, esse aspecto das coisas
se encontrou antes de mais reforçado: o ponto chave era o balanço da
restauração do capitalismo na URSS. Esse balanço provava que o
caminho escolhido por Stálin não podia servir de exemplo porque não
pudera prevenir o golpe de estado de Krushchev. Lá, ainda, era
necessário engajar o combate contra os passadistas e colocar no núcleo
dos problemas de linha, não o desenvolvimento das forças produtivas,
mas a luta de classes sob a ditadura do proletariado. Não a unidade
positiva da infra-estrutura, mas a cisão da super-estrutura e do partido
ele mesmo, em via proletária e via burguesa (BADIOU, pág. 39)

Nessa elucidação, mais uma vez, torna-se bastante claro como a via subjetiva do filósofo não
faz menção a nenhuma psicologia. A passagem supracitada pode até causar a impressão de que,
se Mao não capitulou ao dogmatismo estalinista, isso ocorreu pelo único motivo de que ele
havia identificado nesse procedimento uma fraqueza que, a médio ou longo prazo, ameaçava o
próprio exercício do poder estatal pelo partido comunista. Como se Mao houvesse se oposto à
desestalinização "excessiva" que empreendia Krushchev apenas com o objetivo de preservar a
sua preeminência de líder sobre o povo chinês: se ele negava a existência de um culto à
personalidade no estalinismo, não poderia ser senão porque ele entendia a si mesmo como uma
personalidade a ser cultuada na China socialista. Para Badiou, entretanto, de maneira
completamente indiferente a quais pudessem ser as motivações pessoais de Mao, essa
constatação comprova não valer-se de nenhum amparo lógico efetivo. Se assim fosse, seria
totalmente incompreensível a atitude do líder comunista de deslocar o eixo da prática e da
teoria revolucionárias desde a "unidade positiva da infra-estrutura" em direção à "cisão da
super-estrutura e do partido ele mesmo", a discriminar, para este último, uma “via proletária e
[uma] via burguesa”.112 Uma compreensão estritamente psicologista da personagem histórica
de Mao (o que também acaba valendo para apreciações históricas de vários outros líderes
revolucionários) – compreensão que, como é usual, ao pretender responsabilizá-lo por aqueles
que seriam os seus crimes contra a humanidade, diagnostica-o como um sociopata ou mesmo

112Para sermos mais precisos, existe uma explicação possível para que Mao houvesse dividido o partido: a análise
de um eu dividido realizada por Freud. De acordo com essa análise, uma vez impedido pelas circunstâncias de
manter o controle sobre o aparelho estatal, ele teria tomado a atitude desesperada de evitar que esse controle não
fosse possível a mais ninguém: ele teria jogado, assim, as massas contra a ordem estatal. Nós falaremos um pouco
mais detidamente sobre essa hipótese. A é que haja a possibilidade de pensar um processo de subjetivação das
massas que não se confunda com essa que a psicanálise aponta.

118
como um psicopata – oblitera o momento de apreender a contradição que essa personalidade
supostamente centralizadora e patologicamente ávida de poder deve ter experimentado, pelo
menos uma vez, ao ter saudado e se esforçado por pensar a irrupção do que veio a se chamar
de Grande Revolução Cultural Proletária (isto é, uma Revolução que afrontava a direção única
que o partido comunista desejava impor à sociedade chinesa): nessa contradição, expõe-se uma
divisão que nenhuma instância psicológica estritamente individual pode abarcar.
Na capacidade que um acontecimento absolutamente excepcional como a Revolução Cultural
Chinesa teria de dividir um nome próprio, o que devemos assinalar, mesmo sob o risco de nos
repetirmos, é a importância de a subjetividade ser apreendida em suas relações com a
contradição. De acordo com o que sintetizava Badiou em Théorie de la contradiction, a
dialética insinua uma inspiração propriamente subjetiva quando declara que os objetos, ao
serem pensados como idênticos a si mesmos, nada mais são que um repouso imposto pela
metafísica ao pensamento da realidade (Cf. BADIOU, páginas 40 e 41): fora de tais
representações, há apenas o movimento e a contradição, os próprios objetos devendo ser
entendidos em função desses dois aspectos, podendo mesmo ser melhor apreciados como
estados transitórios da realidade. A recomendação de vincular a subjetividade à contradição
não quer dizer de forma alguma que o pensamento dialético disponha-se a levar cada vez mais
longe as suas fantasias privadas, até o ponto de se ver obrigado a admitir elucubrações que,
apesar de conservarem alguma aparência lógica, consistiriam nas ilações as mais absurdas: uma
tal recomendação nada tem que ver, digamos, com o ato de imaginar e acreditar piamente na
lenda de um Mao Tsé-Tung absolutamente heroico, em favor da qual se torna lícito não só
ignorar os fatos, mas contraditá-los quando eles se apresentam à consideração racional do
problema em causa. Negar a existência de objetos que possam ser inequivocamente referidos
em sua identidade consigo mesmos não equivale a negar a existência de um indivíduo histórico
que teria atendido pelo nome de Mao Tsé-Tung. No entanto, quando se fala dos processos
revolucionários na China, torna-se impossível reduzir Mao à só dimensão desse indivíduo: a
despeito de que tenham existido o indivíduo e as suas correspondentes falhas de caráter – como
é mais do que razoável assumir que tenha sido o caso –, Mao também designa uma outra
dimensão, posto ser este o nome que acompanha a elaboração de um pensamento realmente
consequente suscitado por transformações singulares de uma realidade política que, graças à
natureza de sua excepcionalidade, afetam a pretensa generalidade do subjectus moderno.
Mesmo se pudéssemos atribuir a ocorrência da Revolução aos delírios utópicos provocados
e/ou sofridos por um homem chamado Mao Tsé-Tung, uma vez desencadeada, a sua
efetividade não é passível de ser explicada nem em referência a uma coisa e nem à outra: são
ultrapassados os dois registros quando ambos os termos, Mao e a massa que se supõe iludida
por ele, dividem-se em “ser-para-a-estrutura e ser-para-a-dissolução-da-estrutura" (Cf.
BADIOU, pág. 67). Ou seja, no momento extraordinário da Revolução, o coletivo não pode
mais ser descrito como um simples conjunto de indivíduos (já que, num certo sentido, eles
estariam divididos), e tampouco a sua ação como a influência, boa ou má, que um desses
indivíduos exerceria sobre os demais. Assim, não é jamais como um ídolo que o pensamento
dialético refere Mao, mas como o nome que, compreendendo a singularidade de certas ideias
e de certos atos, possibilita pensar melhor as divisões de um processo que se orienta pela
superação de uma contradição. O que está de acordo com a potência da dialética, porque, como
explica Badiou, a “(...) dialética, se se pode dizê-lo, é ela mesma cindida, enquanto os seus
operadores conceituais, que refletem a realidade, são todos igualmente cindidos" (BADIOU,
pág. 68).

119
Indo na direção oposta daquela que talvez pareça indicar a compreensão que Foucault mostrava
ter da dialética, o princípio do “um se divide em dois” não pressupõe qualquer unidade
originária sobre a qual deveria incidir a divisão, assim como não promete uma unidade
redentora e última a ser alcançada com a superação da luta de classes. O Um não se encontra
no início e nem é o fim do processo. Lênin havia dado a ver a impossibilidade de assumir a
existência desse Um originário ao formular aquela que Badiou diz ser a matriz do pensamento
revolucionário; o destino da Revolução de 1917, no entanto, acabou sugerindo que o mesmo
não valia para o segundo aspecto – ou seja, o fim para o qual essa Revolução tendia –, uma vez
que, entrando em franca contradição com a impossibilidade de encaminhar-lhe uma unidade,
o processo houvesse sido posto sob a inteira tutela dos bolcheviques e, em não muito tempo,
estivesse aberto o caminho para que o partido comunista se fundisse totalmente com o Estado
socialista. Mas é quanto a esse aspecto em particular, que diz respeito a uma suposta tendência
das revoluções de se encaminharem em direção a um Um que se fecha num Todo, que se deve
entender a importância conceitual que Badiou reconhece ao maoísmo e, em particular, à
Revolução Cultural Chinesa: esta e aquele, respectivamente, podem ser ditos a escansão da
Revolução Russa e do marxismo-leninismo. Assim, a Revolução Cultural Chinesa não se
encontra propriamente no mesmo plano da Revolução Russa: as duas não são percebidas como
exemplos indistintos das glórias colecionadas pelo marxismo mundo afora, como se a diferença
entre elas fosse redutível a uma circunstância geográfica ou mesmo cultural (como, aliás, um
equívoco proporcionado pelo nome parece autorizar). E se elas não se encontram num mesmo
plano é porque constituem uma sequência e implicam uma mudança qualitativa na passagem
de uma etapa a outra. De maneira bastante esquemática, poderíamos dizer que a Revolução
Cultural está para a Revolução de 1917 tal como esta se posiciona relativamente à Comuna de
Paris (e, se se prossegue na recapitulação, o mesmo poderia ser dito da Comuna relativamente
à Revolução Francesa). Nessa sequência, o último termo da série é entendido providenciar uma
solução prática para o seu antecessor direto: com efeito, ele é concebido como a efetiva crítica
imanente dos fracassos práticos da revolução anterior. Assim, a Revolução Cultural Chinesa,
primeira grande revolução a acontecer num país socialista, efetua a crítica da circunstância
histórica iniciada pela Revolução Russa, que é nada menos que o acontecimento político a
partir do qual os estados socialistas entram em cena: diante da tendência de centralização do
poder e de absoluta identificação do partido comunista com o Estado, irrompe um movimento
de massas que divide uma tal realidade, ao evidenciar uma disposição coletiva de destituir as
hierarquias vigentes e de dar prosseguimento à transformação radical dos laços sociais.
O maoísmo, por seu turno, seria, a uma só vez, a preparação e a resposta teórico-prática a essa
divisão da sequência revolucionária. Ele é a sua preparação, com a necessidade entrevista por
Mao de dividir o partido comunista entre uma via burguesa e uma via proletária. E é também
uma resposta a ela – uma resposta necessariamente atrasada, mas que, movida pela surpresa
diante da decisão do coletivo de se reorganizar, não tarda em reconhecer a sua justeza ao se
esforçar por pensar a lógica de sua ação. É em referência a esse contexto que devemos
mencionar o fato de que, em Théorie de la contradiction, Badiou recapitula a contribuição
teórica de Mao isolando cinco enunciados que sintetizariam o seu pensamento dialético (Cf.
BADIOU, páginas 36 e 37): 1) “toda realidade é processo”; 2) “todo processo se resume, em
última análise, a um sistema de contradições”; 3) “em um processo, há sempre uma contradição
que é principal”; 4) “toda contradição é dissimétrica: dito de outra de maneira, um dos termos
da contradição é sempre dominante sobre o movimento do conjunto da contradição ele mesmo
(é a teoria do aspecto principal da contradição)”; 5) “existem contradições de tipo diferente
cuja resolução envolve processos diferentes (a principal distinção a ser feita nessa matéria é a
das contradições antagônicas e das contradições não antagônicas)”. Breves como se fossem

120
aforismos, do ponto de vista da filosofia, essas teses aparentam uma simplicidade duvidosa,
para não dizer uma banalidade que as tornaria completamente inadequadas a sua pretensão
conceitual: elas não estariam apenas dissolvendo a realidade em diferentes graus de
generalidade e abstração, num processo que, apesar de aspirar às diferenciações de um
“conjunto de contradições", de uma “contradição principal”, de um “aspecto principal” de uma
contradição, e de “contradições antagonistas e não-antagonistas”, jamais conseguiria, no
entanto, recuperar a especificidade de cada uma dessas instâncias, reproduzindo-as, ao
contrário, como outras tantas generalidades abstratas? No entanto, concluir pelo naufrágio da
singularidade na generalidade oceânica desses enunciados seria precipitado, porque também a
enunciação dessas leis é contraditória e assimétrica: se a duas primeiras formulações enunciam-
se como se dotadas de um impulso totalizante, elas são contraditadas pelas três últimas, que
delimitam melhor o alcance e a virtude da dialética para tomar a realidade na sua
inteligibilidade de coisa mutável (isto é, passível de uma prática de transformação efetiva); ou,
de outra maneira, podemos dizer que os últimos enunciados retroagem sobre os primeiros.
Ainda que magra, a própria enumeração dessas “leis” constitui, portanto, um processo bastante
denso.
E, em primeiro lugar, o que convém assinalar a propósito da enunciação dessa sequência é a
especificidade política que ela pode conferir à dialética. Notemos, pois, que, a propósito do
terceiro enunciado, relativo à existência de uma contradição principal, Badiou explica o
seguinte: "Não há sentido em falar de processo senão na medida em que se encare um sistema
de contradições cuja interdependência se encontre regrada por sua subordinação qualitativa a
uma das contradições do sistema" (BADIOU, pág. 54). Disso se segue que é porque é possível
destacar uma contradição principal a propósito de uma dimensão ou qualidade específica - qual
seja, a dimensão da política, referível na generalidade da contradição da luta de classes - que o
processo não só pode ser dito existir, como ele pode ser dito não se confundir com a realidade
material que ele pressupõe. 113 Em outras palavras, seria possível dizer que, por essa
especificação, deixou de fazer qualquer sentido falar numa dialética do todo. Pela leitura
retroativa daquilo que as últimas leis afetariam à primeira, entende-se bem que enunciar “toda
realidade é processo” não é intercambiável com a enunciação da proposição que diz que "a
realidade como um todo é um mesmo processo": se há processos pensáveis em sua virtude de
provocar algo de novo, de afetar uma transformação qualitativa de uma realidade específica,
nunca poderia haver essa equivalência. Com essa sucessiva destituição do todo, o maoísmo
tem de ser entendido contradizer uma das diretrizes centrais da dialética sob o terror estalinista:
o da interdependência de todos os fenômenos. Se na União Soviética essa interdependência
traduzia-se fatalmente numa “rigidez entrincheirada”, que sempre colocava os seus partidários
desconfiados quanto à presença de inimigos nos cantos os mais recônditos de seus domínios, a
sua divisão deve possibilitar um voto de confiança nas movimentações populares. E, por
conseguinte, se o todo foi destituído, não pode mais valer o critério quantitativo de
desenvolvimento do Estado da ditadura do proletariado como parâmetro para avaliar o
progresso qualitativo da superação da luta de classes. É por isso que, numa das notas de Le
noyau rationnel de la dialectique hégélienne, Badiou, ao margear a questão clássica da
transição do socialismo para o comunismo através da ditadura do proletariado, indaga-se, de
maneira a evidenciar a novidade representada pelo maoísmo:
É preciso considerar a sociedade socialista principalmente como uma
totalidade em devir, cujo garante é esse ponto fixo que é o Estado da
ditadura do proletariado? Ou, ao contrário, como sendo uma etapa –

113 Uma radical disjunção da luta de classes e dos modos de produção.

121
toda nova – da contradição burguesia/proletariado? A ditadura do
proletariado é um conceito estatal da interdependência dominada dos
fenômenos ou um conceito político relativo à continuação da luta de
classes? É ela a prática estatal da organização de todo o povo que
condensa a experiência socialista ou as revoluções culturais enquanto
normas políticas supremas da luta de classes tendo por cifra o
desaparecimento do Estado? O maoísmo trincha sobre esse ponto: é
bem a política proletária e revolucionária que permanece a chave dos
fenômenos por toda a duração da transição socialista. O Estado deve
ser avaliado a partir da luta de classes do proletariado, e não o inverso.
(BADIOU, pág. 238)

Com o maoísmo, assim, a contradição principal é reabilitada em seu verdadeiro teor, de


movimento e de cisão, e ela o é de maneira a anunciar, uma vez mais, a possibilidade de que a
prática revolucionária efetive a transformação qualitativa da realidade política.
Após a menção inicial das cinco leis, na sequência do texto de Théorie de la contradiction, em
que os enunciados são desdobrados cuidadosamente tendo como seus pontos de referência
elementos de política e de filosofia – a saber, de um lado, elementos que caracterizam a história
dos partidos comunistas revolucionários em suas cisões e, de outro, elementos que atravessam
variadas tradições filosóficas, como o idealismo alemão (Hegel), o estruturalismo (Althusser)
e a filosofia da diferença francesa (Deleuze, Guattari e Lyotard) –, percebe-se que a destituição
do todo começa a operar pelo menos desde a explicação do segundo enunciado. Quando o
refere novamente, Badiou já não usa a palavra sistema, preferindo em seu lugar a palavra
conjunto: “todo processo é um conjunto de contradições” (Cf. BADIOU, pág. 49). Se bem que
não haja uma designação ostensiva desse conjunto como um conceito propriamente
matemático, é de se esperar que o “conjunto de contradições" não perfaça nenhuma totalidade,
posto que o filósofo tenha tido a preocupação de explicar que o real visado então é de uma
outra natureza do que aquele a ser obtido pela soma das partes: "O real não é aquilo que reúne,
mas o que separa" (BADIOU, páginas 49 e 50). Em verdade, é pensando a existência de dois
termos que se opõem, a burguesia e o proletariado, que uma caracterização mais ou menos
aproximada da matemática e da lógica - aliás, a única que o texto providencia – vem a ser
proposta. Segundo o que explica Badiou, ainda que sejam relativos um ao outro, não existindo
senão em sua mútua referência estrutural, esses termos, por serem afetados de uma contradição
quando visados em sua relação, como que caracterizam conjuntos incomensuráveis entre si:
“A unidade (de contrários) é uma relação [rapport], não uma identidade. A intersecção de
contrários é vazia” (BADIOU, pág. 52). Vislumbra-se, assim, para a teoria dos “conjuntos
práticos", uma nova abordagem das multiplicidades114, a saber, uma abordagem que reconhece
a existência de elementos inumeráveis que, no entanto, estariam cindidos por desvãos
intransponíveis pela só reiteração. Ou seja, trata-se de uma abordagem que admite, a um só
tempo, a existência do incalculável, mas que considera esse incalculável como estando
investido de magnitudes diversas - precisão suplementar que torna rigorosamente discernível a
pertinência lógica da existência de uma qualidade outra que diz respeito ao real, a qual difere
por um infinito do que é imediatamente dado.

114Para quem já esteja familiarizado com , o início, que trata das multiplicidades: . A importância de Mao, tal
como destacada por Bruno Bosteels: “Colocado de outra maneira, se Sartre, Althusser e Lacan nomeiam os três
mestres ou professores por trás do aprendizado filosófico de Badiou, então nós devemos acrescentar que o nó
borromeano entre os três - para usar uma categoria que foi cara ao último da série [de nomes] - não teria sido
possível sem o fio condutor da experiência do maoismo” (BOSTEELS, pág. 143).

122
Aqui, nos encontramos propriamente no extremo da contradição de Foucault: a teorização de
Badiou alcança mostrar, com relativa clareza, que a luta de classes comporta a análise de
conjuntos inumeráveis (ou seja, sob o capitalismo, as relações de exploração e de dominação
de classe admitem inúmeras configurações); o que ela não pode autorizar, entretanto, é a
pressuposição de qualquer intersecção entre os conjuntos da burguesia e do proletariado (isto
é, as práticas políticas características de um desses conjuntos não podem nunca lograr a
efetividade das práticas políticas do outro conjunto). O que, obviamente, não significa que essa
intransponibilidade deva ser considerada como se em exceção à realidade processual do
movimento e da cisão. Para restituir propriamente o aspecto contraditório da dialética, não se
pode transigir com a hipóstase de nenhum de seus termos. Ou seja, nem mesmo a contradição
principal pode restar como uma generalidade abstrata que paira incólume sobre o mundo. Do
contrário, ela própria seria esse sol sob o qual nada de novo nunca acontece: a sua consequência
inevitável corresponderia, assim, a de condenar – como parece acreditar Foucault – todas as
subjetividades à travessia de um deserto infindo no qual elas, estando impedidas de percorrer
suas trajetórias singulares, seriam obrigadas a se arrastar, sem que lhes fosse possível marcar
os progressos ou as distâncias percorridas. Ou bem ela atuaria como uma causa parasitária, que
drena as forças de cada uma das guerras singulares para desperdiçá-las na insensatez da
reconciliação unitária do comunismo. Pensando a questão em termos completamente outros,
no entanto, Badiou explica que, ao lado da contradição principal, existem as contradições
secundárias: contradições que surgem na singularidade dos processos, por exemplo, a opor,
numa greve, os grevistas e os fura-greves (Cf. BADIOU, pág. 55). Com essa precisão
conceitual, o que está em questão não é a subordinação das contradições secundárias à
contradição principal, como se todo movimento que fosse comunicado ao mundo das causas
minoritárias devesse partir do grande motor imóvel da luta de classes. Evitando também o erro
simétrico – a saber, o de constatar que só existe movimentação nos deslocamentos minoritários
situados à margem do sistema (erro atribuído pelo filósofo a Deleuze, Guattari e Lyotard) –, a
questão consistiria, antes, em apreender a cisão do próprio movimento em contradições
secundárias e contradição principal. Portanto, desde o horizonte aberto pelo processo de
superação da luta de classes, ele pode ter continuidade não só quando se dispõe a destruir o
sistema em que as classes necessariamente tem de se contrapor, mas quando explicita que uma
tal destruição é indissociável de divisões internas ao próprio movimento revolucionário. É por
isso que cabe dizer que uma contradição secundária é "(...) uma contradição a propósito da qual
é afirmada, no seio do movimento operário, uma nova contradição principal"(BADIOU, pág.
56).
Apreender o processo como um conjunto de contradições, quando ele é considerado de forma
consequente, implica apreender os vínculos dialéticos entre a contradição principal e as
contradições secundárias, e isso enquanto elas são afetadas de um perpétuo movimento: “No
curso do movimento, os vínculos dialéticos entre a contradição principal e as contradições
secundárias se modificam sem parar, e elas se modificam sob o modo da interação” (BADIIOU,
pág. 55). Mergulhado nesse movimento, o dialético tem de ser capaz de percebê-lo “(...) em
via de transformação incessante, entre a contradição principal e as contradições secundárias”
(BADIOU, pág. 56), para que, então, uma contradição secundária permita a sequência de uma
movimentação cujo efeito é o de restituir a diferença qualitativa que adviria da superação de
uma contradição principal. As suas repercussões práticas em nada se fazem reconhecer num
princípio de completa homogeneização do campo da política. Em verdade, como se pode
constatar pelo trecho a seguir, é visando a importância do heterogêneo que Badiou se colocava
a criticar a tendência “massista" presente em Maio de 68, quando ele evidencia uma espécie de
idolatria da contradição principal que orientava a prática de certas organizações políticas:

123
É a repetição infinita da mesma contradição “principal”: as massas
contra o poder, sem perceber que, ao enfiar no mesmo saco (o
“movimento”) totalidades heterogêneas e profundamente divididas,
interdita-se compreender onde e em que condições o novo advém
enquanto devir principal de uma contradição secundária de um
processo. Ora, é sempre assim que advém o novo: não são jamais as
“massas” e nem o “movimento” que carregam em bloco o seu
engendramento, mas isso que, nelas, é dividido do antigo. Por exemplo:
aquilo que se liberta do sindicalismo na revolta operária, ou o que se
opõe à tutela das grandes forças burguesas (fascismo e social-fascismo)
no movimento popular português. Um semelhante congelamento do
principal, ultra-esquerdista na aparência (sempre as massas exaltadas
contra o poder idêntico, o invariável sistema), converge absolutamente
com o revisionismo, o qual, ele também, tenta proteger as suas posições
políticas exaltando a “unidade” popular contra o poder em postos [en
place]. (...) Nós não queremos massas ultra-esquerdistas, santificadas
e obscuras, inoperantes e repetitivas, nem a união revisionista, fachada
de uma ditadura sinistra. O que é proletário, hoje sobretudo, divide,
combate, e faz crescer até o principal ínfimas fraturas interiores ao
“movimento" (BADIOU, páginas 56 e 57)115

Muito embora, para Badiou, o processo verdadeiramente universal de emancipação humana


continue basicamente condicionado pela organização revolucionária do que se chama de
proletariado – ou seja, muito embora o campo onde deve acontecer a verdadeira luta política
esteja mais ou menos bem definido num espaço em que os movimentos minoritários (que se
processam nas margens do sistema) não necessariamente têm lugar –, não estaria previsto como
o seu resultado inevitável o exercício do poder político como um aplainamento total da
sociedade: ao prescrever uma implicação genérica, essa luta não exclui a possibilidade de que
certas derivas dos movimentos minoritários constituam outros tantos pontos de irrupção de
contradições secundárias que, como tais, seriam capazes de restituir à contradição principal o
sentido de sua transformação qualitativa, de valor universal. Sem falar que, como destinação,
o próprio exercício do poder que se visa comporta uma diferenciação interna, porque ele
mesmo se quer como algo de radicalmente diverso daquilo que se apresenta nas circunstâncias
dadas:
É uma das teses essenciais do marxismo afirmar a impossibilidade,
para o proletariado, de servir-se da máquina do Estado burguês. A
revolução proletária não é concebível senão através da destruição
efetiva desse Estado e da edificação de formas de poder radicalmente
novas. (BADIOU, pág. 87)

Como pudemos ver com maior detalhe, Badiou não é nenhum inimigo do heterogêneo que
estivesse clamando pela absoluta homogeneização do mundo humano. Em sua teorização, a
igualdade política entre os homens não cobra o preço de suprimir todas as diferenças que
povoam o seu mundo – a não ser, é claro, e isso de forma impreterível, as diferenças relativas
à prerrogativa do exercício político baseada na contradição da existência das classes. Quase
que paralelamente às teorizações de Foucault da mesma época, Badiou repensava estratégica e

115 Como se pode constatar pela rejeição que o texto faz às "massas ultra-esquerdistas, santificadas e obscuras",
vê-se bem que o que Badiou considera motivo de celebração na Revolução Cultural Chinesa não foi nunca o
festim de sangue que a desforra de uma classe contra a outra prepara, mas aquilo que, no interior do movimento
de massas, soube se dividir. Mais especificamente, a grande experiência é a da Comuna de Xangai que .

124
taticamente o legado revolucionário do marxismo, aspectos esses que, em seu vocabulário,
comparecem, respectivamente, como se a concernir com certa prioridade o termo principal e o
devir principal do secundário (Cf. BADIOU, pág. 65): distinguindo entre contradições
antagônicas e contradições não antagônicas, aquilo que se visa é tornar os dialéticos aptos a
seguir o “desenvolvimento concreto das coisas” a fim de perceber que certas contradições “(...)
que primitivamente [eram] não antagônicas se desenvolvem em contradições antagônicas,
enquanto outras, primitivamente antagônicas, se desenvolvem em contradições não
antagônicas” (MAO, apud BADIOU, pág. 80). Pensamento da guerra verdadeiramente
antagônica, ele não sacrifica a qualidade das forças singulares no altar da realidade material.
Em sentido totalmente diverso, esforçando-se por pensar dialeticamente tanto o quantitativo
quanto o qualitativo, o estrutural e o tendencial, assim como os lugares e as forças, Badiou
providencia uma compreensão renovada, como que compassada com o pós-estruturalismo, da
prática de transformação de uma determinação estrutural: "A estrutura tem por ser uma
combinação hierárquica, mas sua existência, quer dizer, sua história, se confunde com a de sua
destruição" (BADIOU, pág. 67).116 De outra maneira, essa pode ser dita também a divisão do
subjectum do proletariado: “O proletariado será estruturalmente determinado como classe
explorada no processo de produção e anti-estruturalmente determinado como classe
revolucionária portadora da aniquilação do modo de produção capitalista" (BADIOU, páginas
67 e 68). Sem alinhar-se nem ao estruturalismo e nem à filosofia da diferença, ele faz valer
então uma dialética que opera com termos que não seriam estranhos a nenhum dos dois: "O
problema dialético central é, portanto, o seguinte: como se articulam, sem se fundir, a lógica
dos lugares e a lógica das forças?" (BADIOU, pág. 70). E a teoria do sujeito que ele formulará
em fins da década de 1970 e início da década de 1980 não é nada menos que uma mobilização
conceitual para tentar responder a essa pergunta.
A política de Lacan: o sujeito que a psicanálise faz ver comporta uma revolução?
Se recorremos a Foucault com o objetivo de confrontar certas teorizações de sua lavra com as
do Badiou da década de 1970, nós o fizemos por um motivo muito bem definido: consideramos
preferível o seu nome aos de outros grandes teóricos da singularidade dos processos de
individuação – como o foram Deleuze e Guattari, por exemplo (com quem, aliás, o Badiou da
década de 1970 travou não poucas vezes uma polêmica bastante acre) – porque, além da
inegável pertinência histórica das questões por ele formuladas, existe uma proximidade
vocabular que possibilita uma melhor apreciação da especificidade da teoria do sujeito de que
nos ocupamos neste trabalho. A ideia, ao realizar essa digressão, não é a de providenciar uma
refutação sumária desse pensamento que tenta dar uma nova voz à diferença, e sim a de apontar
que algumas das objeções que ele fazia à dialética e à universalidade, especialmente quando
voltadas contra Badiou, não atingem propriamente o seu alvo.
Mas torna-se praticamente inevitável reconhecer que, desde essa outra compreensão da
dialética e da universalidade, Foucault pode ser percebido como se a enfrentar algumas
dificuldades conceituais que nada teriam de insignificantes. Uma das mais importantes dessas
dificuldades diria respeito ao legado do estruturalismo e da filosofia do conceito em seu
pensamento: ainda que a sua trajetória intelectual seja marcada por rupturas significativas para

116O tema da destruição é bem característico do ciclo de reflexões que se inicia com Théorie de la contradiction
e se conclui com Théorie du sujet. Já em L’être et l'événement, pensando em uma outra forma de a verdade
suplementar a realidade, Badiou dirá: "Devo dizer que, em Teoria do sujeito, eu havia me perdido um pouco no
tema da destruição. (...) Empiricamente, a novidade (política, por exemplo) se acompanha de destruição. Mas é
preciso compreender que esse acompanhamento não está ligado à novidade intrínseca, a qual é sempre, ao
contrário, uma suplementação por uma verdade" (BADIOU, páginas 318 e 319).

125
com essas duas tradições, o seu trabalho sempre se quis guiado por um certo primor conceitual
que, na França, ganhou relevo graças a elas. Assim, não deve admirar que, em entrevista
concedida no ano de 1967, ele tenha dito: “No fundo, Bourbaki é o modelo. O sonho de todos
nós seria o de fazer, cada um em nosso domínio, alguma coisa como o Bourbaki, em que as
matemáticas elaboram-se sob o anonimato de um criptônimo [nom de fantaisie]”
(FOUCAULT, pág. 625). Decerto, para quem o imagina completamente divorciado das
aspirações genéricas do estruturalismo, é com alguma surpresa que ouve-se falar esse Foucault
que reconhece no anonimato da escrita matemática do Bourbarki uma espécie de ideal da
produtividade teórica. Conquanto seja razoável ter em mente a possibilidade de que as
teorizações posteriores de Foucault funcionem como uma resposta à improcedência desse
anonimato em seu próprio campo de pesquisa - não porque o anonimato fosse indesejável, mas
porque ele não seria alcançável pelos mesmos meios através dos quais operam as
matemáticas 117 –, é difícil ignorar que o marcado historicismo que conforma seu pensamento
tende a fazer obstáculo ao rigor conceitual a que este aspira. Sem uma verdadeira orientação
lógica, como poderia esse pensamento distinguir, na inesgotável variabilidade da empiria, as
relações de forças e os termos em função dos quais elas desestruturariam as hierarquias? Tendo
aspergido o poder numa multiplicidade de relações heterogêneas, não haverá o risco de que ele
tenha perdido qualquer especificidade política, ou mesmo qualquer qualidade apreciável pelo
pensamento, especialmente se se trata de um pensamento com aspirações práticas? Ou,
referindo-nos a um momento de sua trajetória intelectual que poderia ser considerado mais
próximo do estruturalismo, quão exaustiva deveria ser a análise dos arquivos para depreender
a existência de alguma coisa da ordem de um a priori histórico? E, tendo em vista um momento
posterior de sua pesquisa, quando evoca alguns nomes próprios (como Boulainvilliers, Coke
ou Lillburne) - os quais, justamente, são entendidos nomear o que não pode ser representado
em uma generalidade qualquer –, qual o sentido político atual que esses nomes poderiam evocar
fora do círculo de eruditos que leem...Foucault? A pergunta que cabe enunciar, afinal de contas,
é: desde onde Foucault poderia arrogar-se falar da história, quando a história de que ele fala
ameaça só alcançar uma descontinuidade ao preço de tornar irredutível certa exterioridade a
ela? Que existam diferentes histórias, apreciáveis em sua multiplicidade sob uma série de
modalidades de análise, isso não parece adiantar em muita coisa a questão de como a adoção
de certas práticas contribuiria para que uma determinada história tome um rumo diferente.
Nesse confronto, entrevê-se que a filosofia da diferença, mais desejosa de reclamar para si o
reino da pura imanência, estaria ameaçada, paradoxalmente, de não poder empreender uma
efetiva crítica imanente da realidade. Se ambos os pensamentos, o de Badiou e o de Foucault,
compreendem determinados aspectos relativos às doutrinas religiosas e à espiritualidade –
posto que, em ambos, a verdade, desrespeitando tanto os cálculos como as evidências sensíveis,
faça ultrapassar a condição de indivíduo dos sujeitos, engajando-os num processo que nunca
se acomoda a determinados limites da vida118 –, é apenas em referência a essa crítica que faria
algum sentido entender a orientação do dialético como sendo "católica": isso nada teria que ver
com o fato de a militância comunista envolver alguma disciplina (o que as velhas escolas
filosóficas revisitadas pelo “último" Foucault também apregoavam), e tampouco com a
pressuposição de que ela conduza inevitavelmente ao dogma da unidade dos contrários (o que,

117 O capítulo de Le périple structural dedicado a Foucault aponta nesse sentido: o pensador francês . Como indício
disso, Milner fala de sua proximidade teórica com os métodos empregados por Georges Dumézil, que faz as vezes
de representante não-matemático do estruturalismo.
118 ”É por isso que ninguém pode desfazer o nó que os liga à origem religiosa deles. Se não houver essa dimensão

utópica, messiânica, transcendente, eles não teriam energia para ocupar um latifúndio! Não tem
como!”(ARANTES, pág. 112).

126
aliás, nós já sabemos ser falso); antes, em conformidade com o significado da palavra, isso é
devido a que a sua filosofia se acerque de uma universalidade que nasce e renasce dentro do
próprio mundo em que seria preciso viver. Na apreciação que essa filosofia pode fazer do
problema, o cristianismo seria falso apenas na medida em que pela vida terrena ele não
demonstra nenhum interesse senão como o período correspondente à espera por uma outra vida,
esta última situada no além-morte e na paz de uma eternidade de que se pode enfim desfrutar.
Contudo, essa mortificação - que os cristãos têm de conceber como a única vida plena, aquela
que se alcança pela via que leva para fora do vale de lágrimas da existência terrena, onde só
existe uma morte vivente ou uma vida morrida (isto é, onde só existe o compósito horrendo de
uma vida que em tudo estaria entrelaçada à morte) –, justamente ela aparece sob uma
modalidade singular: não seria esse um dos motivos pelos quais o catolicismo interdita o
suicídio? Se bem que, aos olhos dos partidários da imanência, essa modalidade singular de
mortificação seja ainda mais horrível, posto que ela obriga a esperar por toda vida por uma vida
que nunca chegará, uma tal expectativa não deixa de tocar os viventes em seu mais íntimo:
teria sido neste mundo, afinal, que Cristo, mediador da divindade e da humanidade, viveu e
reviveu. Entenda-se, pois, que não é o mórbido teatro da crucificação que impressiona Badiou,
mas o elemento que faz introduzir na própria realidade mundana a desproporção de uma
verdade completamente outra. 119 E, nesse sentido, Lacan, que é ninguém menos que o teórico
de uma subjetividade que se mede em face de um grande Outro – um grande Outro, aliás, cujo
defeito intrínseco a experiência da análise faz explicitar –, surgirá como uma companhia
insubstituível.
A propósito desse mesmo Lacan – que chegou a colocar em prática o projeto de fazer circular
uma revista em que os seus colaboradores, a exemplo do Bourbaki, não assinavam com o seu
nome próprio os artigos que escreviam (Cf. LACAN, pág. 590) –, deveremos lembrar, como
dizíamos mais acima, que ele sempre se esforçou por pensar de maneira consequente a busca
da psicanálise de estar à altura da nova política da verdade que ela havia inaugurado. E, desse
ponto de vista, também ele estaria concernido pelas investigações teóricas que Foucault levava
adiante na década de 1970, relativas à natureza do poder. Assim, cabe a nós indicar que, em
1976, com a publicação do primeiro volume da História da sexualidade, o pensador francês
havia estabelecido o seguinte:
Até Freud, pelo menos, o discurso sobre o sexo – o discurso dos
eruditos e dos teóricos – não terá cessado nem um pouco de ocultar isso

119Percebe-se isso muito claramente em obras mais recentes, nas quais Badiou previne quanto à possibilidade de
transigir com a espera passiva de um messianismo: "Somente é universal aquilo que está em exceção imanente.
Porém, se tudo depende de um acontecimento, é preciso esperar? Certamente não. Muitos acontecimentos, mesmo
bem longínquos, ainda exigem que se seja fiel a eles. O pensamento não espera, e jamais esgotou sua reserva de
força, a não ser para quem sucumbe no profundo desejo da conformidade, que é a via da morte. Além disso,
esperar não serve para nada, pois é da essência do acontecimento não ser precedido de nenhum signo e nos
surpreender com sua graça, seja qual for a nossa vigilância" (São Paulo, pág. 129). A escolha de Badiou, de
abordar a figura de São Paulo em vez da de Cristo, permite situar ainda uma ligeira divergência entre o seu
”cristianismo” e o de Slavoj Zizek: enquanto o filósofo esloveno retoma o jogo de contradições hegeliano, o qual
confere à divindade de Cristo o seu verdadeiro alcance somente através da morte e do martírio de seu corpo,
Badiou se refere precisamente ao engajamento militante do crente que nunca esteve na presença do Messias. Ou
seja, haveria aí uma outra escansão da série de elementos constitutivos do cristianismo cujo resultado mais
significativo é o de que a ressurreição - de Cristo na vida de Paulo, que então experimenta a revivescência daquela
verdade como o começo de uma nova vida - vem em primeiro lugar, antes mesmo da própria morte (ou seja, ela
não pressupõe o sofrimento da morte como etapa necessária à consecução da verdadeira vida, em vez disso, a
morte sendo, para essa concepção, uma condição subjetiva, a saber, a da contingência da falsa vida a que todos
estão sujeitos) - morte que, em todo caso, não foi testemunhada pelo discípulo e, de certo modo, morte que vem
a ser relegada a um estatuto abstrato pela experiência que esse discípulo tem da fé em seu mestre. Verdade é uma
tentativa de pensar uma ideia materialista da ressurreição.

127
de que ele falava. Poder-se-ia reunir todas essas coisas ditas,
precauções meticulosas e análises detalhadas como tantos
procedimentos destinados a esquivar o insuportável, a verdade muito
perigosa do sexo. E o só fato de se ter pretendido falar disso do ponto
de vista purificado e neutro da ciência é, ele mesmo, significativo. Com
efeito, era uma ciência feita de esquivas pois, na incapacidade ou na
recusa de falar do sexo ele mesmo, ela se referia sobretudo a suas
aberrações, perversões, bizarrices excepcionais, anulações patológicas,
exasperações mórbidas. Era igualmente uma ciência essencialmente
subordinada aos imperativos de uma moral cujas divisas, sob as
espécies da norma médica, ela teria reiterado. (FOUCAULT, 1976,
páginas 71 e 72)

A menção a Freud nessa longa passagem não acarreta propriamente uma condenação sumária
da psicanálise. Ela prepara, no entanto, uma crítica de longo alcance, à qual a psicanálise não
teria podido subtrair-se: a saber, uma crítica que tem em sua mira a concepção de um poder
essencialmente repressivo, concepção que se dirige ao cerne da questão como se os poderes só
atuassem silenciando e expulsando de forma abertamente hostil tudo uma natureza primeira
que, por representar uma ameaça ao seu exercício, eles não teriam como tolerar em seus
domínios sem impor uma segunda ordem, ilegítima. Na tentativa de apresentar uma outra
abordagem do problema, a partir da qual os poderes viriam a ser apreendidos em sua imanência,
Foucault aponta para a possibilidade de compreender a história da sexualidade como algo
bastante diferente do movimento de libertação que o progresso científico supostamente teria
exercido sobre a tendência da sociedade de calar e reprimir o sexo:
Avancemos a hipótese geral do trabalho. A sociedade que se
desenvolve no século XVIII – que se chamará, como se queira,
burguesa, capitalista ou industrial – não opôs ao sexo uma recusa
fundamental de o reconhecer. Ela, ao contrário, colocou em operação
todo um aparelho para produzir sobre ele discursos verdadeiros.
(FOUCAULT, 1976, pág. 92)

De acordo com essa outra maneira de apreciar a situação histórica do sexo na sociedade
moderna, percebe-se que o poder tem de ser compreendido sob um novo paradigma: como quer
mostrar Foucault no prosseguimento de seu livro, é para melhor esconder os poderes que sobre
ele atuam que teria surgido o interesse de falar sobre o sexo desde um discurso que se quer
verdadeiro. Em contraste com o princípio que parece orientar a soberania, de fazer morrer ou
bem deixar viver os súditos (Cf. FOUCAULT, pág. 178), o princípio que orienta a biopolítca,
quando se propõe a fazer viver os governados ou a deixá-los morrer (Cf. FOUACULT, 1976,
pág. 181), encontra no dispositivo da sexualidade um duplo acesso ao homem enquanto ser
vivente, tanto como vida do corpo quanto como vida da espécie (Cf. FOUCAULT, 1976, pag.
192): assim, reconhecendo o direito do sexo de existir, o dispositivo da sexualidade não o
libertava, mas permitia que se passasse a encará-lo como um aspecto em especial da vida
humana a ser mantido sob controle por uma série de técnicas (técnicas que depreenderiam a
sua eficácia e a sua aptidão científica desde quatro linhas de força principais, postas em
destaque por Foucault segundo estas rubricas (Cf. FOUCAULT, páginas 137 e 138): 1) a
histerização do corpo da mulher; 2) a pedagogização do sexo da criança; 3) a socialização das
condutas procriadoras e 4) a psiquiatrização do prazer perverso). Mesmo que, aos olhos de
Foucault, à invenção de Freud seja atribuível o mérito de ter feito “oposição teórica e prática
ao fascismo" (FOUCAULT, pág. 198) - mérito que, como vimos, aos seus olhos, não chegava
realmente a contemplar a tradição política do socialismo (pelo menos não no que diz respeito

128
ao racismo que embasaria os dois) – e, por isso, mesmo que coubesse descrevê-la como tendo
modificado consideravelmente à sexualidade “(...) o [seu] regime de inquietudes e de garantias”
(FOUCAULT, pág. 148), ainda assim a psicanálise deveria ser entendida alojar-se no sítio
conformado por um tal dispositivo. Se é verdade que ela não havia prometido qualquer
libertação quanto aos constrangimentos do sexo, não sendo verdadeiramente compreensível
sob a lógica estrita de um poder repressivo, tampouco faria sentido dizer que ela abandonara a
concepção jurídica partilhada por este, posto que a sua via fosse a de tomar a lei como um
elemento constitutivo do desejo (isto é, ao extremá-lo na negatividade das interdições que
pesam sobre ele). Portanto, para Foucault, longe de ser revolucionária, o que a psicanálise
veicula com a sua vontade de saber é um forte impulso de normatização:
Pais, não tenham medo de conduzir os seus filhos à análise: ela ensinará
que, de toda maneira, são vocês que eles amam. Crianças, não
reclamem tanto por não serem órfãos e reencontrarem sempre, no
fundo de vocês, sua Mãe-Objeto ou o signo soberano do Pai: é através
deles que vocês acedem ao desejo. (FOUCAULT, pág. 149)

O primeiro volume da História da sexualidade sintetizava muito bem as linhas gerais do


pensamento de Foucault na década de 1970: “Pensar o sexo sem lei e o poder sem rei”
(FOUCAULT, 1976, pág. 120). Já em 1972, prenunciando a dupla demolição de Foucault, a
afrontar tanto a psicanálise como o marxismo, uma conhecidíssima passagem do Anti-Édipo
declarava:
Com a psicanálise passa-se o mesmo que com a Revolução Russa -
nunca sabemos quando as coisas começaram a ir mal. Somos sempre
obrigados a recuar um pouco mais. Com os americanos? Com a
primeira internacional? Com o comitê secreto? Com as primeiras
rupturas que marcam tanto a renúncia de Freud como as traições dos
que rompem com ele? Com o próprio Freud, desde a “descoberta” de
Édipo? (DELEUZE & GUATTARI, pág. 78)

Revolução duplamente fracassada, é o que aparentam ter entoado em coro os opositores da


dialética e da universalidade na França. Duplamente fracassada, expliquemos, não só porque
esse fracasso concernisse dois campos distintos, mas também porque, além de ter fracassado
em suas aspirações práticas, a psicanálise e o marxismo teriam fracassado em reconhecê-lo nos
termos de sua própria teoria. Dessa maneira, diga-se que, num espírito muito próximo daquele
que anima as investigações de Foucault na década de 1970 – sendo possivelmente uma de suas
inspirações –, essa declaração de Deleuze e de Guattari não corresponde a um ataque que se
dirige à psicanálise (e ao marxismo) como se desferido por um inimigo que em tudo
desprezasse e hostilizasse o seu oponente e que quisesse, assim, reduzi-lo ao puro nada. De
maneira relativamente clara, ela deixa entrever uma expectativa traída: se cabe perguntar
quando as coisas começaram a ir mal, é de se supor que em algum momento, certamente no
início, elas aparentavam ir bem. Não obstante a simpatia que as duas doutrinas talvez
despertassem nesses teóricos, torna-se urgente para eles elaborar uma formulação renovada
quanto à maneira de colocar o problema das relações entre o desejo e o poder. E, mesmo que
estivessem dispostos a dialogar com os maoístas ou a reconhecer em Lacan um legítimo
desedipianizador da psicanálise (Cf. DELUEZE & GUATTARI, páginas 409 e 410), eles
procedem como se fosse absolutamente necessário evadir-se da situação encerrada pela
revolução ou pelo consultório do analista, acusando o risco iminente de que a singularidade
dos processos de individuação se perdesse por uma ou por outra via.

129
A julgar as coisas a partir daquilo o que expomos sobre as ideias de Badiou e de Lacan ao longo
deste trabalho, uma tal prevenção tem de ser considerada, no mínimo, como estando sujeita a
equívocos: muito embora as questões levantadas por esses teóricos sejam da mais alta
pertinência, não é certo que a sua maneira de abordá-las consista na melhor forma de resolver
os problemas que delas advêm, especialmente quando eles parecem ter dado um passo em falso
ao pressupor que a defasagem da dialética como operador político e da negatividade como
analisador do sexo estaria demonstrada pela necessidade de um retorno a uma totalidade do
Um ou de uma normatização por meio do Édipo. É bem verdade que nem Badiou e nem Lacan
se referem especificamente a processos de individuação. Isso não significa, no entanto, que
eles tenham dado as costas para as singularidades e para o heterogêneo que estas
necessariamente fazem entrar em consideração. De sorte que, tal como tivemos o cuidado de
evidenciar no caso de Badiou, nós aventamos a possibilidade de fazer o mesmo com Lacan:
desde um confronto minucioso com as acusações que lhe são dirigidas (todas indiretamente, é
preciso que se diga), a psicanálise, segundo o que propunha esse pensador, pode ser mostrada
não se conformar a nenhum instrumento de adequação às exigências mais ou menos flexíveis
de um poder normatizador. E é precisamente por que a psicanálise lacaniana realiza esse
programa mantendo em seu horizonte uma singularidade que só pode ser verdadeiramente
apreendida em suas relações com a universalidade que ela se torna um ponto de referência tão
importante para Badiou. No entanto, como advertido mais de uma vez, não é como teórico
(meta)político que Lacan interessa ao filósofo, e sim como o mais importante desbravador do
campo em que poderia emergir uma teoria renovada do sujeito. Guiando-nos por essas duas
diretrizes, nesta breve sub-seção de nosso trabalho, a argumentação deverá realizar-se, pois,
em duas etapas. Em primeiro lugar, nós deveremos indicar, apenas muito brevemente, que a
política da verdade inaugurada pela psicanálise, política que Lacan tenta sempre restabelecer
em sua radical novidade, não corresponde à representação que dela fazem os "filósofos da
diferença". Dessa maneira, deveremos reforçar o caráter subjetivo da contribuição teórica de
Lacan à filosofia de Badiou. Em seguida, deveremos indicar, por outra, e de uma vez por todas,
que essa política da verdade não chega a alcançar a verdade da política a que se reporta Badiou.
Afora o fato de já termos analisado certos aspectos do ensino de Lacan que desmentem a visão
da psicanálise com que nos deparamos há pouco, confrontá-la mais detidamente poderia abrir
um caminho muito propício à discussão que entabulamos nesta seção de nosso trabalho. Porém,
assumida a impossibilidade de realizarmos uma confrontação tão detalhada quanto a que
tentamos fazer com Badiou, nós deveremos nos valer do fato de que uma tal confrontação já
foi realizada com inegável apuro, uma vez que tenha recebido a atenção de um pesquisador
que se dedicou a examinar toda uma série de nuances políticas relevantes para a invenção
freudiana e para a sua renovação através do ensino de Lacan: é exatamente esse o propósito de
Marcelo Amorim Checchia em seu “Sobre a política na obra e na clínica de Jacques Lacan”.
Ainda que não nos seja possível referir esse trabalho em toda a amplitude de seus achados –
que, acreditamos, reverberam de variadas formas na presente tese –, é imprescindível pelo
menos registrar o seu rigor conceitual, o qual demonstra uma legítima preocupação quanto a
expor a relação dos termos que investiga, ao apresentar tanto a aptidão da longa e variada
tradição do pensamento político para apreciar o surgimento da psicanálise como, em retorno, a
emergência da psicanálise para pensar certos impasses da política. É com esse fim que
Checchia se prontifica a estabelecer uma delimitação alargada do poder e da política,
reportando-se tanto à tradição ocidental (a desdobrar, naturalmente, a substância etimológica
do termo), onde ela estaria mais próxima de uma ciência da condução dos assuntos do Estado,
bem como da contribuição teórica de Pierre Clastres à filosofia política, ao estudar sociedades
que estariam como que organizadas contra a aparição do Estado no seu interior, e – mais

130
pertinente para nós - a compreensão foucaultiana do poder que, como visto, é uma compreensão
que se dá através de práticas enxergadas em sua multiplicidade, práticas em que o Estado de
alguma maneira se apoia mas que não operam de acordo com a vontade de unificação deste.
Contra esse pano de fundo, em que se define um longo espectro político, o autor tem a chance
de reencontrar para a psicanálise o motivo de uma basiliké téchne, a técnica régia que, segundo
Platão, “(...) deve governar todas as demais” (Cf. CHECCHIA, pág. 60), arte identificada por
alguns filósofos clássicos com a política: posto que a prática analítica não admite a medida
externa da aplicação e da adequação a uma ratio que se contentasse apenas com a mensuração
e com a eficiência de seus protocolos (Cf. CHECCHIA, pág. 61), ela tem de se realizar e se
orientar por uma téchne (que podemos também designar como uma arte), enquanto não pode
nunca ser declarada independente do fim a que visa. 120 E, a partir dessa precisão, a qual permite
conferir o devido relevo ao motivo de uma “politica da direção da cura" (Cf. CHECCHIA, pág.
50), é que entende-se melhor porque é nova a política da verdade que surge com a psicanálise:
“A técnica e a política da psicanálise, ou melhor, a basiliké téchne psicanalítica se originou
dessa resistência de Freud a ocupar a posição do Um” (CHECCHIA, páginas 348 e 349). Ou
seja, espelhando o espectro político escrutinado por Checchia, se se constata a necessidade de
um princípio prático-teórico que serve de diretriz maior à psicanálise (como se lhe fosse preciso
evidenciar um direcionamento que a governa), isso, no entanto, não é o indício de que ela deva
reconduzir ao governo de um só: a prática analítica, se entendida e levada a efeito de maneira
consequente, não tem a sua resolução no exercício de um domínio – que seria ortopédico e/ou
pedagógico – do analisante pelo analista.
A resistência de Freud a que se refere Checchia na passagem citada há pouco – em suas próprias
palavras, “resistência de ocupar a posição do Um” – seria uma característica relativamente bem
discernível no nascimento da psicanálise: como se sabe, a técnica analítica só pôde realizar a
sua efetiva aparição depois de Freud se convencer de quão arbitrárias eram as intervenções
terapêuticas baseadas na hipnose e na sugestão. Sem deixar de creditar-lhes alguma
participação na efetividade da vida anímica (tendo inclusive praticado e divulgado por um
brevíssimo intervalo de tempo o que Hyppolite Bernheim havia ensinado sobre a matéria), ele
não demora para se aperceber de como ela seria insustentável nos seus próprios termos. Em
especial, é quando se recusa a aceitar a explicação muito conveniente dada pelos praticantes da
hipnose para o fato de que ela não funcionava com determinadas pessoas – "elas se contra-
sugestionam", diriam os partidários da sugestão –, que Freud se torna sensível às resistências
dos pacientes e à necessidade de abordá-las sem lhes fazer a violência de uma imposição
completamente externa às disposições volitivas dos próprios indivíduos submetidos ao
procedimento médico. Daí, como explicado em outro capítulo, a sua preocupação em fazer da
psicanálise uma Naturwissenschaft em vez de uma Geisteswissenschaft: o que se objetivava,
reiteremos, era evitar a falta de fundamento da sugestão sem, contudo, recair nas armadilhas
de uma retificação moral. Em conformidade com essa resistência a ocupar a posição do Um, a
invenção freudiana tentou proceder de acordo com o que ela passou a chamar de livre-
associação, a respeitar, assim, a direção que o analisante imprime à análise. E, para tanto, como
nos lembra muito a propósito Checchia, a sua política da cura só poderia efetuar-se a partir de
um móvel específico da clínica analítica, a ser sucedido pela interpretação das resistências que
provocaria: "a interpretação só tem efeito de cura se houver transferência" (CHECCHIA, pág.
81). Com efeito, é dessa maneira que a psicanálise responde ao problema da revivescência
120Como notado pelo próprio Checchia, existem dificuldades vocabulares suscitadas pelas próprias escolhas de
Lacan: quando enfatiza a superioridade da praxis sobre a técnica, Lacan tem em vista precisamente (Cf.
CHECCHIA, pág. 232). Mas Checchia adverte que pelo menos em Platão a técnica sobretudo a basiliké téchne,
também não é uma atividade independente do que fim que visa. O kairos, onde téchne e praxis convergem.

131
anímica que a sessão clínica suscita nos pacientes, a saber, por meio dessa modalidade de amor
que o analisante passa a votar ao analista, modalidade que recebe o nome de transferência:
“Enquanto modalidade de amor, ela é o motor da análise, é o que propicia a cura”
(CHECCHIA, pág. 82). Mas a dependência em relação à transferência não evita que se depare
com um impasse, qual seja, o impasse que resulta da dificuldade quase insuperável de distinguir
o seu funcionamento daquele característico da sugestão. E Freud ele mesmo foi quem apontou
para essa indiscernibilidade:
Se, como Freud vem a descrever com mais detalhes no capítulo “Estar
amando e hipnose” de Psicologia de grupo e análise do ego, o estado
de amor possui semelhanças com o estado hipnótico, não haveria na
transferência uma reprodução da posição do hipnotizador e da posição
do hipnotizado? (CHECCHIA, pág. 85)
Apesar de Freud ter tomado consciência desse impasse e tê-lo explicitado em algumas ocasiões
(Cf. CHECCHIA, páginas 86 e 86), isso de maneira alguma bastou para que a sua descendência
não transformasse a sua invenção numa espécie de ortopedia, alçando o psicanalista à condição
de um educador ou até mesmo de um amestrador. A bem da verdade, a avaliar o desenlace que
o próprio Freud (não) deu ao problema, verifica-se que esse encaminhamento não é de inteira
responsabilidade de seus herdeiros, porque de fato havia uma tendência em suas elaborações
teóricas de fiar o manejo da transferência na só autoridade do psicanalista (Cf. CHECCHIA,
pág. 89). E é onde Lacan intervém da maneira a mais decisiva, porque a basiliké téchne da
psicanálise, isto é, a sua política mesma, viria a ser posta mais uma vez em discussão (Cf.
CHECCHIA, pág. 90).
Assinalando a configuração política que o "retorno a Freud" desvela quando submetido a um
atento escrutínio, Checchia apresenta então a revitalização, através do ensino de Lacan, tanto
do aspecto estratégico quanto do aspecto tático a serem abordados por uma teoria que,
assumindo os seus encargos, verse sobre a técnica analítica. Assim, contra a tendência já
presente em Freud de permitir que se mantivessem indiscerníveis a sugestão e a transferência
- tendência magnificada pelos partidários da chamada ego psychology, contra a qual Lacan terá
o cuidado de sustentar uma oposição firme e bem dirigida -, o psicanalista francês insistirá na
necessidade de distinguir muito bem uma da outra: ainda que considere a transferência como
"instituição do Um pela via do amor” (CHECCHIA, pág. 140), ele tentará conceber uma técnica
analítica que se desdobra num horizonte em que aquela não se confunde com a sugestão, posto
que, ao contrário desta, ela colocaria o sujeito na posição de apoiar-se unicamente em seu
desejo, superando a fixação de sua demanda. Longe de ser uma ridícula tentativa de repassar a
dificuldade original para um outro plano – como se os holofotes houvessem sido
cuidadosamente redirecionados para uma distinção infinitamente mais sutil com o único intuito
de esconder a impossibilidade da verdadeira distinção que seria preciso realizar –, demanda e
desejo funcionam como marcadores suplementares que atribuem à sugestão e à transferência
relativas fixidez e mobilidade, as quais, respectivamente, seriam associáveis aos dois primeiros
termos: a demanda ao grande Outro, operante na fala que o analisante comunica ao analista,
equivoca-se na tentativa de cingir um objeto que a satisfaça. Tomando partido pelo desejo do
sujeito, a transferência seria, assim, “(...) uma resposta a algo que provoca um impasse do
desejo, isto é, uma fixação do sujeito à demanda” (CHECCHIA, pág. 141). Ou seja, a própria
distinção entre demanda e desejo – que se duplica na distinção entre sugestão e transferência –
comparece como uma precisão teórica de que a prática clínica tem de estar advertida, sob o
risco, em caso contrário, de incorrer em todos os erros que a análise deve evitar. Surge, pois, a
recomendação expressa segundo a qual o analista só deve responder ao analisante sob o efeito

132
da transferência - donde se segue a retomada, com ênfase elevada, do princípio freudiano de
neutralidade que sempre foi suposto guiar o posicionamento do analista defronte o analisante
(o que Lacan metaforiza como um espelho vazio onde as miragens do sujeito não seriam
refletidas). Por sua vez, a interpretação encontrará na transferência uma ocasião para o seu
correto exercício, pois, em resposta à equívoca tentativa da demanda de cingir um objeto que
a satisfaria de uma vez por todas, ela consiste na descoberta dos significantes-mestres que retêm
a frustração do sujeito. De sorte que uma orientação maior se impõe à técnica analítica,
dispondo a estratégia que lhe permite seguir adiante com seus embates singulares: “Para que o
psicanalista faça uma interpretação, é preciso que os significantes retidos na demanda ao Outro
apareçam, o que só acontece se o psicanalista recusar responder à demanda para fazer aparecer
a dimensão da transferência” (CHECCHIA, pág. 144).
Essa primeira formulação, como sabemos ser um hábito no ensino lacaniano, preparará o
terreno para novas elaborações conceituais, inclusive com o objetivo de melhor dispô-la teórica
e praticamente. Não é de admirar que, a essa ponderação crucial da técnica analítica, venham
somar-se considerações de outra ordem, sobretudo as que seriam atinentes ao que se chamará
de uma ética da psicanálise: qualquer um que acompanhe o minucioso trabalho de Checchia
pode conferi-lo em detalhe, em particular, quanto às consequências políticas que a
produtividade lacaniana não cessa de afetar. Mas, para os nossos propósitos, baste dizer o
seguinte: já está suficientemente claro que, se Lacan fala de uma dialética entre a Lei e o desejo
(como ele de fato faz no sétimo ano do seminário, quando lança a temática da ética da
psicanálise), ele certamente nunca o faz com o fito de restituir o analisante à razão que essa Lei
lhe participaria. Em nenhum momento, mesmo com a relativa alteração da importância que a
técnica analítica pode ter vindo a adquirir dentro de seu ensino, a política da direção da cura se
identificará com uma política de submissão à Lei. Aliás, à medida em que a política da
psicanálise ganha o apoio de outros conceitos fundamentais para o ensino lacaniano, fica cada
vez mais clara a improcedência de uma compreensão nesses termos: o objeto a, por exemplo,
permitirá um melhor entendimento do motivo para a política da psicanálise - em contraste com
a política do neurótico, que seria a da alienação no Outro - ser uma política de separação do
Outro (Cf. CHECCHIA, pág. 236). Isso dito, voltemos a nossa atenção para um detalhe
significativo da argumentação de Checchia. Como antecipado, a importância ligada à
transferência adquire valor de uma diretriz estratégica no “retorno a Freud” empreendido por
Lacan. E, como expõe claramente Checchia, o emprego da palavra “estratégico" não é sem
motivo: existe todo um vocabulário bélico em Lacan que, apesar de encontrar alguns de seus
correspondentes em Freud, tem a sua origem mais provável na leitura do teórico da guerra Carl
von Clausewitz (Cf. CHECCHIA, pág. 158). Por isso, Checchia diz:
Considerando a tática, no sentido definido por Clausewitz, a ordenação
e direção de cada reencontro, de cada situação de combate no campo
de batalha, diria então que sem a estratégia do manejo transferencial,
construída com base na hipótese diagnóstica, vamos para o combate
como cegos no meio de um tiroteio. (CHECCHIA, pág. 165)

Essa precisão conceitual adquire para nós um interesse especial porque, na sequência de "Sobre
a política na obra e na clínica de Jacques Lacan", o seu autor se decide a falar dessa herança
clausewitzeana logo antes de dedicar uma breve seção a um confronto do psicanalista francês
com a noção foucaultiana de poder: ao preparar uma defesa ante as acusações de Foucault,
destaca-se, então, que também o poder na psicanálise pode ser dito heterogêneo (Cf.
CHECCHIA, pág. 148), a dividir-se na alternância da palavra entre analista e analisante.

133
De nosso ponto de vista, cabe enfatizar que o que a argumentação de Checchia permite enxergar
é que o evidente valor estratégico de que passa a desfrutar o manejo da transferência na técnica
analítica proporciona a ocasião para que se depreendam os efeitos decisivos de uma primeira
divisão, sem a qual o trabalho do analista não pode ter prosseguimento, porque é só a partir
dela que teria lugar a série de divisões correspondentes às movimentações táticas - isto é, as
interpretações e respostas do analista – que os embates singulares próprios à clínica exigem.
Além de ser apreciável como uma metáfora que o aproxima do tema da divisão, esse
vocabulário bélico apresenta ainda uma outra vantagem: a de localizar em Clausewitz qualquer
coisa como uma possível intersecção entre Foucault, Badiou e Lacan. Decerto, o teórico da
guerra alemão tem de ser percebido como uma das mais improváveis intersecções que seria
possível imaginar, pelo menos se se leva em consideração os nomes que ele supostamente
congrega. Entretanto, se é bastante óbvio que nenhum dos três pode ser considerado um
seguidor ou mesmo um continuador de Clausewitz, porque não há propriamente nada em suas
ideias que reflitam os propósitos deste, é digno de nota que cada um deles, a fim de pensar a
guerra sob um novo paradigma, o tenha retomado, direta ou indiretamente, de maneira a
invertê-lo ou a dividi-lo. Quanto a Foucault, nós já sabemos que o seu procedimento é o de
uma paráfrase, a partir da qual ele vem a declarar que "(...) o poder é a guerra continuada por
outros meios" (FOUCAULT, 2005, pág. 22). Com essa sutil inversão, Foucault consegue que
o estratégico e o tático refluam para dentro da sociedade, multiplicando e diferenciando os
poderes em sua essência mesma. Comparativamente, o filósofo e o psicanalista convidam a
que esses dois aspectos invadam as respectivas comarcas onde eles situam suas teorias do
sujeito. E, com efeito, o que nos interessa é essa movimentação paralela que mais uma vez
demonstram realizar Lacan e Badiou. Ao tomarmos notícia dela, nos arriscaremos a dizer, por
exemplo, que a atenção que Lacan guarda quanto à posição contraditória a ser sustentada pelo
praticante da análise não lhe permitirá transigir jamais com qualquer “rigidez entrincheirada”
a partir da qual o analista quisesse manter a sua prerrogativa de médico sobre o analisante.
Portanto, não é nem um pouco irrelevante que Lacan tenha se utilizado da noção triádica de
política, estratégia e tática tal como teorizada por Clausewitz (Cf. CHECCHIA, pág. 160),
assim como não é irrelevante que Badiou, em Théorie de la contradiction, tenha deixado
entrever como que um elogio a um tratamento dialético da guerra por parte do teórico alemão
(Cf. BADIOU, pág. 78)
Para-além de uma vaga simetria entre o filósofo e o psicanalista, o que podemos encontrar
nessa comum referência a Clausewitz é uma mesma preocupação de evitar que a política da
verdade pela qual cada um deles se guia alguma vez ceda à concepção de uma falsa simetria
das forças em luta. Vale, assim, destacar o paralelo entre Lacan e Badiou quanto a mais um
aspecto, qual seja, aquele concernido pelos inimigos internos às tradições de pensamento em
que os dois se inserem e que, a fim de salvar a política da verdade em disputa, eles entendem
como devendo ser combatidos. Para Lacan, trata-se dos psicólogos do ego; para o Badiou da
década de 1970, dos revisionistas. Nessas duas frentes, na lógica a que obedecem esses dois
inimigos, atua um mesmo princípio de simetria e de homogeneização, do qual tem de resultar,
sempre e necessariamente, uma perda do lado do heterogêneo. Assim, na tradição analítica, o
psicólogo do ego é aquele que acredita que, se alguém procura a sua ajuda, a razão para tanto
só pode ser a de que o ego desse alguém encontra-se enfraquecido e que, desde o modelo
imponente que lhe providenciará o seu médico, esse mesmo ego pode ser reforçado e
restabelecido em sua saúde, reformando-se, enfim, à imagem e semelhança do homem que ele
tem de passar a imitar. É sobre esse tópico que Checchia nos traz mais uma valiosa pista,
quando nos lembra de uma passagem de Lacan que, estando informada pelas categorias de
Clausewitz, versa justamente sobre a falta de perícia dos praticantes da psicologia do ego no

134
manejo da transferência e no trato com as supostas defesas que o ego fraco do analisante lhes
obstaria (Cf. CHECCHIA, pág. 164). A passagem, que começa por uma breve reflexão sobre
o valor estratégico de acordo com o qual deve-se avaliar a importância de um determinado
local para o prosseguimento de um combate, diz o seguinte:
(...) não se deve inferir, pela batalha que às vezes se encarniça durante
meses em torno de uma fazenda isolada, que esta representa o santuário
nacional de um dos combatentes, ou que abriga uma de suas indústrias
de guerra. Em outros termos, o sentido de uma ação defensiva ou
ofensiva não deve ser buscado no objeto que ela aparentemente disputa
com o adversário, mas antes no desígnio de que ela faz parte e que
define o adversário por sua estratégia. (...) O humor obsidional que se
deixa trair na morosidade da análise das defesas daria, portanto, com
certeza frutos mais encorajadores para os que nela se fiam, se ao menos
eles a pusessem na escola da luta real mínima, que lhes ensinaria que a
resposta mais eficaz a uma defesa não é fazer-lhe uma demonstração
de força. (LACAN, pág. 377)

Como poderemos constatar logo mais, de maneira muito oportuna, essa passagem nos fornece
um correspondente aproximado no campo da prática analítica para aquilo o que Badiou chama
de um revisionista: alguém que acredita que, para sobrepujar as forças do inimigo, é preciso
exercer o poder como se não houvesse nenhuma diferença entre eles, a não ser a da intensidade
com que a força é aplicada (assim, para vencer a irracionalidade do Id, seria necessário ao ego
do analisante proceder exatamente da mesma forma que o ego do analista, emulando-o
integralmente). Nas palavras do próprio Badiou: "Para os revisionistas, ser forte nada mais é
que, pura e simplesmente, ser capaz de ocupar, tal e qual, os lugares atualmente mantidos pelas
outras frações da burguesia" (BADIOU, (1975)/2012b, pág. 89). Ou, de outra maneira: “A
política revisionista é regida pela simetria” (BADIOU, pág. 89). Retornando à tradição a que
se reporta Lacan, poderíamos dizer dos psicólogos do ego que, ao supor que no curso de uma
análise devem tornar-se iguais o ego do analisante e o ego do analista, a sua principal
consequência só poderia ser uma, a saber, a de ignorar tudo aquilo que, no sujeito, se apresenta
como verdadeiramente heterogêneo, limitando-se, então, a perceber sob o signo da
inconveniência ou da franca abjeção todo aspecto do psiquismo do analisante que não se
conforma ao modelo exemplar de normalidade providenciado pelo ego do analista. De igual
maneira, quando os revisionistas se aplicam a submeter a qualidade das forças à simetria dos
poderes, mesmo se durante a transição socialista tenha deixado de existir uma classe que possa
ser identificada sociologicamente à burguesia (já que os meios de produção teriam sido
expropriados e transferidos à posse do Estado da ditadura do proletariado), a única coisa que
pode suceder é a perpetuação de um poder que eles não saberiam exercer de outra forma: isso
quer dizer que os revisionistas se tornam uma nova burguesia (Cf. BADIOU, pág. ), porque o
heterogêneo do subjetcum do proletariado continua não encontrando nenhum lugar desde onde
depreender a sua novidade política. E o breve excerto que citaremos agora, em que Badiou
como que ensaia uma divisão do teórico alemão da guerra, indica porque é um erro acreditar
que uma demonstração de força consistiria na melhor opção quando se está defronte um
inimigo que se defende: “Clausewitz pensa a guerra como um dialético, [ou seja,] há um
atacante e um defensor. A superioridade estratégica da defensiva vem largamente da plena
mobilização das massas populares” (BADIOU, pág. 78). Esse excerto, mirando as lutas
nacionais de libertação do domínio colonial, mostra que também as guerras reais – como se
sabe, guerras que consistem em circunstâncias políticas extremas a tal ponto dependentes das
condições materiais que não podem deixar de sugerir a necessidade de um tratamento

135
estritamente objetivo atinente à capacidade técnica de subjugar o inimigo – também elas,
dizíamos, comportam uma visada subjetiva, que saiba vê-las como algo mais do que o embate
de dois atacantes, um dos quais seria caracterizado apenas como o mais forte, e o outro, como
o mais fraco: além das respectivas posições que eles ocupam um em relação ao outro, estaria
em jogo a qualidade do engajamento dos combatentes.
Tanto Lacan como Badiou mostravam estar bem cientes de que uma verdadeira guerra não se
resume nunca a um intercâmbio abstrato de posições dentro do ordenamento de uma dada
estrutura. Em face da guerra, o primeiro aspecto que sobressai para eles é o da impossibilidade
de eliminar a subjetividade por completo, em vez disso, ficando entrevista, através dessa
singular circunstância, a transformação que subverteria o controle do Um e permitiria, assim,
instaurar uma nova modalidade da técnica régia, através de um outro governo de si. Essa
ciência, que demonstra uma irredutível insubmissão ao Um, é ainda mais digna de atenção por
ser pensável como uma resposta a certos aspectos das críticas que Foucault (bem como Deleuze
e Guattari) endereçou à psicanálise e ao marxismo. Com efeito, a posição dos revisionistas e
dos psicólogos do ego mais do que justifica a crítica dos filósofos da diferença a essas duas
tradições, em verdade, solicitando-a com alguma premência: afinal, em ambos os casos, trata-
se daqueles que, apesar de reconhecerem o sofrimento decorrente da submissão a um poder
estranho, só conseguem enfrentar a este rendendo-lhe homenagem. Do heterogêneo, eles não
querem saber nada, nem tampouco querem pensar nas complicações que advêm de adequar a
sua prática às exigências singulares com que são confrontados. Eles agem para que o Um seja
restaurado, e o fazem de um modo tal que velhos mecanismos responsáveis pela sua
manutenção venham a ser mais uma vez acionados e dotados de um novo ritmo, o que às vezes
chega a intensificá-los e a levá-los ao pior121 (como dizia Foucault sobre as relações históricas
entretidas pelo nazismo e pelo comunismo soviético com os mecanismos de poder
característicos dos governos liberais europeus dos séculos XVIII e XIX). Com uma apreciação
mais cuidadosa dessas tendências internas ao marxismo e à psicanálise – tal como possibilitada
pelas teorizações de Badiou e de Lacan – acreditamos estar melhor capacitados para alegar e
mesmo para compreender a ambivalência que, de través, identificávamos naquele trecho do
Anti-Édipo citado há pouco, trecho que funcionava aproximadamente como um duplo atestado
de óbito. Diante da incapacidade dos continuadores das respectivas tradições de lidar com a
morte das grandes figuras paternas da clínica analítica e da política revolucionária (que seriam,
digamos, Freud e Lênin), é como se Deleuze e Guattari (paralelamente a Foucault) quisessem
desfechar de uma vez por todas o seu luto, evitando que os seus nomes fossem velados como
palavras sagradas através das quais seria reverenciada uma Unidade que, muito embora
houvesse perdido o seu suporte físico, poderia ser idolatrada no conjunto de suas pretensas
verdades. De sua parte, no entanto, Lacan nunca deixará de nos lembrar que, se a questão de
Freud era "que é um Pai?", sua verdadeira resposta foi “É o Pai morto” (Cf. LACAN, pág. 827).

121O exemplo mais claro dessa apropriação e intensificação de um mecanismo de poder é a transformação, sob o
regime estalinista, do sistema penal e colonial instalado na Sibéria sob o czarismo naquilo o que Alexander
Solzhenitsyn veio a chamar de arquipélago Gulag. A Sibéria, o ”coração das trevas” russo, : ”A conquista da
Sibéria, de um reino de segundo escalão no extremo da Europa, transformou a Moscóvia no maior império
continental do mundo” (BEER,). A lógica imperialista, baseada em uma série de práticas coloniais, não só
continuará em vigor na União Soviética, como adquirirá uma configuração ainda mais terrível. A distância entre
Chalámov e Doistoievski: “Por isso, não há necessidade de polemizar com Dostoiévski quanto ao mérito do 'ar
livre' e à supremacia do ’trabalho’ forçado em comparação com a ociosidade da prisão. A época de Dostoiévski
era outra e os trabalhos forçados daquele tempo não tinham alcançado o extremo de que se fala aqui“
(CHALÁMOV, pág. 152). Se se adota uma visão quantitativa do socialismo, uma simetria terrível se desenha, a
que espelha a grandeza do Estado soviético no seu predecessor direto, o império russo. A maior limitação de um
teórico como Domenico Losurdo.

136
E, a exemplo de Lacan – que nunca parou de se proclamar um freudiano, o que lhe permitiu
subverter e dividir o pai da psicanálise em aspectos simplesmente cruciais –, Badiou saberá
encontrar no Um da enunciação dos nomes de alguns dos principais dirigentes revolucionários
a ocasião para pensar a sequência das múltiplas divisões que uma política verdadeiramente
comunista requer.
Por meios diversos, e com objetivos consideravelmente distintos, Lacan e Badiou coincidem
num ponto crucial: eles jogam com a miragem do Um para, só então, desmascará-lo na falta de
uma substância que o fundamentasse. E é através desse jogo dialético - em que a aparência da
plenitude cede o lugar ao vazio – que os dois entendem poder levar adiante uma crítica
imanente à psicanálise e ao marxismo. Em verdade, indo ainda mais longe, através de
sucessivas reelaborações conceituais, o ensino lacaniano aperfeiçoará isso que não parece ser
mais do que uma mascarada até que um tal procedimento se torne uma condição imprescindível
para o próprio exercício da análise: obtendo mais uma vez o nosso socorro junto de Ceccchia,
diríamos que, por uma paráfrase do célebre dito qui nescit dissimulare, nescit regnare [“quem
não sabe dissimular, não sabe reinar”], a psicanálise se apoiará na assunção de que “quem não
sabe fazer semblante de [objeto] a, não sabe dirigir a cura” (CHECCHIA, pág. 224). Com
absoluta certeza, esse desdobramento acontecerá, não porque o semblante do objeto a tenha
alguma vez correspondido ao princípio mesmo da cura, mas porque ele coloca em causa uma
efetividade a partir da qual mobilizar o jogo de presenças e ausências que a análise então
instaura. Ironicamente, se demonstrava estar bastante preocupado com o heterogêneo e com a
mobilidade que capacita a acompanhá-lo, Foucault não exibia o mesmo zelo quando se tratava
de discutir o mérito da efetividade em função da qual preparar os combatentes para que se
tornem mais móveis e predispostos à diferença. Em sua arqueologia da psicanálise, a invenção
de Freud aparece como algo de sumamente externo, uma roupa que se veste numa determinada
estação e que é preciso trocar na temporada seguinte. De fato, ele aborda a psicanálise como se
ela não fizesse outra coisa que não adensar as tendências da época em que surgiu: a respeito da
verdade que ela acredita ter feito adentrar a cena, não haveria de sua parte nenhum
questionamento mais cuidadoso de como essa nova inquirição teórico-prática atravessa os seus
problemas, nenhuma atenção ao equívoco que suscitam as temáticas em meio às quais ela fez
a sua aparição. Na História da sexualidade, prevenindo contra a tentativa de atribuir à
psicanálise qualquer novidade, ele diz claramente que é preciso apreendê-la (como ao
dispositivo da sexualidade que teria estabelecido as condições para o seu surgimento) “(....) a
partir das técnicas de poder que lhe são contemporâneas”(Cf. FOUCAULT, 1976, pág. 198),
como se a psicanálise não pudesse constituir-se de qualquer outra matéria que não a fornecida
por um tempo achatado e condensado em sua secção histórica. Mas o que o historicismo entrega
muito prontamente com uma das mãos – a saber, a situação histórica que concerne uma
determinada subjetividade – ele retira com a outra: mesmo no extremo de sua trajetória
intelectual, quando fala em sujeitos e verdades, como poderia uma verdade suplementar uma
situação histórica de sorte que ela iniciasse, assim, uma circunstância outra, em que a diferença
viria a gozar de uma relativa liberdade? De outra maneira: como agir para que a diferença não
se confunda com um reles sub-produto de um determinado tempo histórico, cuja sorte, mais ou
menos favorável, estaria desde sempre decidida por ele? 122 Se, como quer Foucault, a

122 O período final do pensamento de Foucault, onde essas questões, apresenta uma estranha proximidade com
Lacan. Como o nota muito bem Frédéric Gros ao final de O governo de si e dos outros: ”a chave da atitude política
pessoal de um filósofo não deve ser requerida a suas ideias, como se pudesse ser deduzida delas, mas à sua
filosofia, como a vida, à sua vida filosófica, a seu éthos” (FOUCAULT, pág. 350). ”De fato, com a política, a
filosofia faria o encontro do seu 'real': não pode fazer a prova da sua verdade senão confrontando-se a ela”

137
psicanálise somente prolonga o dispositivo da sexualidade, calando o corpo ao rendê-lo a um
discurso verdadeiro sobre o sexo, é de suspeitar que faltaria pelo menos dar uma explicação
convincente para a possibilidade de se obter alguma satisfação com esse silenciamento do
corpo: de outra maneira, basta que o psicanalista murmure o seu feitiço para submetê-lo? Da
parte de Lacan, a enunciação lógica que se formula com o "não há relação sexual” não tem
qualquer valor normativo, prestando-se, antes, a explicitar que quem procura o motivo do bom
encontro sexual numa pretensa verdade que diria respeito à existência dos sexos deverá
equivocar-se necessariamente: decerto, o analista teoriza a respeito, mas é apenas o discurso
do analisante que confere alguma seriedade à hipótese de que a performance que os corpos
logram pode muito pouco ante o malogro da ideia mesma do sexo.
Não pode nos escapar o fato de que a História da sexualidade pontua de maneira bastante
drástica a alteração das relações que o pensamento de Foucault mantinha com um certo núcleo
do estruturalismo: contrastando radicalmente com o fim de As palavras e as coisas, em que se
saudava na psicanálise (lacaniana) e na antropologia (estrutural) as mensageiras de uma nova
época, o encontro das duas aparenta ser registrado agora como uma extensão da lógica própria
à representação "jurídico-discursiva" do poder. Como diz Foucault, tendo como um de seus
prováveis destinatários o Lacan do “retorno a Freud”:
Mas eis que a psicanálise, que em suas modalidades técnicas parecia
colocar a confissão da sexualidade fora da soberania familiar,
reencontra no coração mesmo dessa sexualidade, como princípio de sua
formação e cifra de sua inteligibilidade, a lei da aliança, os jogos
mesclados do casamento e do parentesco, [e] o incesto. (FOUCAULT,
1976, pág. 149)

A seguinte conclusão reforça a aparência de que, com suas estocadas, Foucault também tem
em mente ninguém menos que o psicanalista francês que, inspirado na apreciação conceitual
da combinatória das estruturas elementares do parentesco, havia considerado o desejo humano
em função da pura lei da estrutura: “com a psicanálise, é a sexualidade que dá corpo e vida às
regras da aliança saturando-as com desejo” (FOUCAULT, 1976, pág. 150). Essas formulações
não iriam completamente mal, não fosse a infeliz adição de elementos totalmente estrangeiros
à teoria e à prática da psicanálise, como é o caso com o ato gratuito de fazê-la descender da
técnica histórica da confissão cristã (Cf. FOUCAULT, pág. ). A esse respeito, valeria prestar
atenção ao que diz o próprio Lacan, quando indagado sobre uma suposta continuidade entre as
práticas discursivas da análise e da confissão: “Ao psicanalista não se confessa nada. A gente
vai lhe dizer simplesmente tudo o que se passa em nossa cabeça. Palavras, precisamente”
(LACAN).123 Em sua insistência de condicionar a psicanálise a um determinado tempo,
Foucault como que teria projetado nela os defeitos que ele identificava nas técnicas que seriam
as suas coetâneas ou bem que seriam a origem destas. No entanto, por mais relevantes que
sejam as suas críticas, o que tem de lhe escapar fatalmente, por todas as vias, é como a
subjetividade vem a ser interrogada por intermédio da referência à estrutura, na contradição de
que a sua lei esteja em tudo pressuposta ao desejo e, ao mesmo tempo, de que não possa
encerrá-lo em seus limites. De sorte que, sim, pensar a lei do Outro implica a castração, mas
uma tal consequência nada tem que ver com a declaração segundo a qual se “(...) está desde

(FOUCAULT, pág. 353). ”Embora a filosofia deva encontrar seu real numa relação com o político, essa relação
tem de ser uma 'exterioridade relativa” (FOUCAULT, pág. 354).
123 A observação de Lacan tem basicamente a mesma estrutura da resposta de Mallarmé a Edgar Degas quanto o

pintor disse ao poeta que tinha muitas ideias e, mesmo assim, estranhamente, não era capaz de escrever poemas:
”Poemas se escrevem com palavras, não com ideias”.

138
sempre enclausurado" (Cf. FOUCAULT, 1976, pág. 109); por seu turno, a inexistência da
relação sexual não significa de maneira alguma que o sexo tenha sido banido do real (Cf.
FOUCAULT, 1976, pág. 111), se por isso se quiser entender que não haveria na realidade
ligações sexuais através das práticas e dos encontros corporais; e tampouco o motor dessa
inexistência pode ser reconhecido na interdição (Cf. FOUCAULT, 1976, pág. 113). Se o amplo
projeto de uma história da sexualidade levará Foucault a recuperar a importância para a
filosofia clássica da tradição dos cuidados de si (epimeleia heautou), em revanche à
preponderância que havia contraído o viés "epistemológico" do "conhece-te a ti mesmo”
(Gnothi seauton), é preciso recordar que a psicanálise, especialmente com Lacan, demonstra
retomar a via desses cuidados a partir de uma pesquisa sobre o si que atravessa a ciência de
uma irredutível insciência. Ou seja, os dois não se encontravam num mesmo lugar, mas
estavam mais próximos do que seria de suspeitar a princípio: a partir dessas evidências, a
arqueologia é exposta num alheamento à psicanálise (lacaniana) comparável ao que ela
revelava quando propunha reencontrar no discurso do racismo biológico o principal
antecedente histórico do socialismo. O que, por outra, reflete a insuficiência da saída que ela
oferecia ao estruturalismo: nessa empresa teórica, em que há um certo descuido da lógica,
tende-se a confundir num mesmo plano as forças e os lugares, não sendo ao acaso que ela venha
a rejeitar o que discerne mal e nem tampouco a sua disposição para adejar ao semblante de um
outro que periga ser essencialmente o mesmo.
Demos a ver mais uma vez a importância da via trilhada por Lacan para que Badiou fosse
inspirado a prosseguir com a sua exploração de novos domínios no campo da subjetividade, e
o fizemos agora de maneira a tornar um pouco mais claro o motivo de o psicanalista ter se
destacado como referência teórica num momento em que havia uma série de outras propostas
incrivelmente criativas e promissoras: conceito que sabe se dividir, ele tinha em conta, como
nenhum outro, tanto a estrutura como o movimento por vir. Porém, deve ter ficado claro
também que a contribuição da psicanálise lacaniana, apesar de poder ser pensada enquanto uma
política, até o presente momento de nosso trabalho foi mostrada reclamar a validade dessa sua
política apenas dentro de limites relativamente bem definidos. Nesse sentido, como antecipado
algumas vezes, é preciso notar que esses limites não coincidem de maneira alguma com aqueles
traçados pela guerra antagônica de que se ocupava Badiou. Muito embora tenha-lhes movido
uma firme oposição nos anos 1970, Badiou haveria de convergir com os autores do Anti-Édipo
em pelo menos um ponto de sua crítica à psicanálise: “As máquinas desejantes estão sempre
aí, mas só funcionam atrás das paredes do consultório” (DELEUZE & GUATTARI, pág. 78).
Se substituíssemos o termo "máquinas desejantes" por "sujeitos", teríamos uma noção
aproximada da enorme dificuldade de transpor os ensinamentos de Lacan para fora do lugar
em que eles foram concebidos em sua origem: como reencontrar esses sujeitos fora da clínica?
Como dar prosseguimento ao processo subjetivo seguindo as fórmulas lacanianas, se as
circunstâncias e os elementos são totalmente outros? Ou seja, a princípio, seríamos obrigados
a constatar que a psicanálise não tem muito o que dizer sobre os embates ideológicos de classe.
E Checchia não falha em nos lembrar disso, ao explicar que a falta-a-ser – o próprio motivo
que justifica o imperativo do analista de não corresponder à demanda do analisante e de, por
meio da transferência, dar lugar ao desejo deste –, admite a possibilidade de apropriações
ideológicas diversas: “Fundamentar a política somente em relação ao desejo, à falta-a-ser, pode
ter como consequência o exercício de uma prática que leva ao conformismo ou resignação em
relação à falta. Ou seja, essa política não está isenta de uma apropriação ideológica”
(CHECCHIA, pág. 168). Não pode nos surpreender, portanto, que Bernard-Henri Lévy, um
daqueles pensadores que na França da década de 1970 ficaram conhecidos, sob a denominação

139
de nouveaux philosophes, por seu engajamento no combate teórico ao totalitarismo, não
surpreende, enfim, que ele sumarizasse a lição política de Lacan da seguinte forma:
(...) o que posso testemunhar é o que foi o efeito-Lacan na França dos
anos 60 e 70. A lei. A castração. O inconsciente estruturado como uma
linguagem. A língua estruturada como um inconsciente. A perenidade
do mestre. A caça implacável ao fingimento. Não há praia sob as
calçadas. Nem desejo sem proibição. Nem sexo liberado. Nada que
recubra uma “boa natureza escondida”. Uma “censura”, sim – mas sem
origem e, portanto sem fim. Uma “repressão”, por certo – mas sem
liberdade primeira cuja voz teriam sufocado. Lacan, o pessimista.
Lacan, o desencantador. Lacan, apostrofando os estudantes: “é um
mestre que vocês querem”. Eis aí um que não dourava a pílula! Eis um
pensamento que nos chamava, bem depressa, ao princípio de realidade!
Havíamos dançado - a época inteira havia dançado - à música alegre da
inevitável revolução. Havíamos cantado – a época inteira havia cantado
– a glória de um “homem novo” que era também um homem muito
antigo, e cuja ressurreição os messianismos políticos prometiam. Pois
bem, basta de dançar! basta de cantar! basta de cegar-se sobre a
realidade de uma finitude cuja lei Lacan, depois dos Pais, nos
lembrava! Foi ele que nos fez perder as ilusões. Foi quem desmontou
a simpática máquina delirante. Se alguns de nós chegaram a
compreender que não se brinca com o mal radical e que o desejo de
pureza é a verdadeira motivação de todos os discursos totalitários, é a
ele, Lacan, que o devemos. (LÉVY, 1992, páginas 337 e 338)

Ainda que o comentário não tenha um grande interesse analítico, a lição política então
depreendida do ensino de Lacan não está realmente distante daquela que o Badiou da década
de 1970 lhe havia interpretado, isto é, como se ela fosse traduzível no posicionamento típico
de um "burguês cético" que transmite a convicção de que "não há nada de novo sob o sol” e
que, portanto, o melhor que se pode esperar em matéria de política nada mais é que “estar
sujeito ao menos ruim dos mestres possíveis” (Cf. BADIOU, 2012a, pág. 12).
Não obstante esse desestímulo, a essa altura, pelo simples fato de termos procurado amparo no
trabalho de Checchia, devemos estar advertidos de que a psicanálise - e, em particular, a
psicanálise lacaniana – não é desprovida de consequências políticas, reverberando nesse plano
de variadas maneiras. A compreensão de Bernard-Henri Lévy apresentada há pouco, além de
encontrar um surpreendente respaldo em Badiou (ainda que se trate de um respaldo com o sinal
invertido), não pode realmente ser tida como arbitrária: a ela estaria até mesmo aberta a
possibilidade de valer-se de outras tentativas de aproximação que se dispusessem a identificar
uma vocação “anti-totalitária” em Lacan, nem que fosse para adicionar só um pouco mais de
rigor em suas razões teóricas. Assim, observaremos, por exemplo, que em sua dissertação de
mestrado, intitulada “O Maquiavel de Lefort e a crítica ao idealismo democrático”, Dario de
Negreiros expôs de maneira bem fundamentada, ainda que muito brevemente, a possibilidade
de dar substância conceitual a uma homologia inexplorada que seria encontrável no
pensamento do teórico político e do psicanalista. Para tanto, o autor sublinha as consequências
que ambos os pensadores atribuiriam à incapacidade, em campos diversos, de as instâncias
agentes reconhecerem as circunstâncias em que se encontram concernidas como estando
intrinsecamente atravessadas por uma espécie de divisão: “negar a divisão, o vazio, o conflito
e a opacidade, para o sujeito lacaniano, constitui a essência do patológico e, no limite, da
loucura; para o social lefortiano, esta mesma negação é essência do autoritarismo e, no limite,

140
da sociedade totalitária” (NEGREIROS, 2017, pág. 114, nota 98). Sem dúvida, essa evidência
suplementar não quer dizer que as consequências de uma política pensada com o auxílio das
categorias lacanianas se limitam a uma defesa do “anti-totalitarismo”. Às vezes, privilegiando
a reviravolta que essas categorias provocam nos domínios de um eu auto-centrado, haveria
igualmente uma carga subversiva em muitas de suas apropriações teóricas. De fato, como
aponta o livro de Yannis Stravakakis que dá a conhecer a existência de alguma coisa passível
de ser denominada como uma “esquerda lacaniana” (Cf. STRAVAKAKIS, 2007), um modesto
mas respeitável leque se abre nesse sentido, estendendo-se desde as reflexões de Chantal
Mouffe e Ernesto Laclau a respeito da razão populista até, numa outra dobra, a frutuosa escola
eslovena que tem em Alenka Zupancic, Mladen Dolar e Slavoj Zizek seus principais expoentes.
No entanto, à esquerda e à direita, depara-se quase que um mesmo limite nas reflexões políticas
inspiradas em Lacan, limite que talvez justifique a tentativa de reconhecer-lhe uma legítima
vocação anti-totalitária: não importa em qual lado do espectro a apropriação tenha se dado, fica
evidente uma imensa dificuldade e mesmo uma impossibilidade de realizar o salto mortal que
faria aterrissar do outro lado do conflito social. Como o declara Stravakakis logo no início de
seu livro, com um propósito muito claro de afastar a dita esquerda lacaniana da tradição
revolucionária: “A psicanálise é, simultaneamente, subversiva das ortodoxias estabelecidas e
desconfiada das fantasias utópicas, com essa desconfiança sendo crucial para sustentar sua
verdadeira acuidade subversiva” (STRAVAKAKIS, 2007, pág. 2). Até ali onde, a julgar pelas
aparências, não haveria uma incompatibilidade entre psicanálise e revolução – nomeadamente,
no pensamento de Slavoj Zizek –, existem dificuldades consideráveis, posto que a
descontinuidade própria de uma tenha de assumir indistintamente as características que lhe
atribuiria a outra: de acordo com Stravakakis, se bem que uma e outra, quando pensadas em
suas respectivas lógicas de ação, baseiem-se em cortes que interrompem determinados
movimentos e instauram certos processos subjetivos, a revolução, ao ser apreciada como um
mero análogo de um “ato analítico", se transforma num instante miraculoso, fulguração sem
amanhã ou depois que tem de se consumir na sua própria matéria negativa, tal como se a
mimetizar o gesto que perfaz a ética da análise reconhecível no suicídio perfeito de Antígona
(Cf. STRAVAKAKIS, pág. 142).
De súbito, contrariando com veemência a impressão de que eles finalmente houvessem sido
reconciliados em torno de um problema comum, é como se víssemos um abismo interpor-se
entre Lacan e Badiou: afinal, a nova política da verdade praticada pela psicanálise, ela teria
qualquer coisa a dizer sobre a superação da luta de classes? Aqui, mais uma vez, ecoarão
inevitavelmente as palavras de Lacan proferidas no vigésimo ano do seminário: “(...) quando
um faz dois, não há retorno jamais. A Aufhebung é um desses bonitos sonhos da filosofia”
(LACAN, pág. 115). A propósito dessa passagem, cabe dizer que, divergindo ligeiramente de
Lacan, em Théorie de la contradiction, apesar de preservar e desdobrar esse motivo da divisão
que o psicanalista traz à baila, Badiou não fala da Aufhebung como um simples sonho da
filosofia, entendendo que também ela deveria ser cindida (Cf. BADIOU, pág. 72): de acordo
com a divisão que a luta de classes impõe à dialética, nem todas as mortes seriam vistas clamar
com igual justiça pela conservação que se faz acompanhar à superação de uma dada
circunstância histórica, pois há mortes como a do sistema imperialista, de cujos valores
coloniais não deve restar absolutamente nada, e mortes como a da Comuna de Paris, que deve
viver no “futuro glorioso dos revolucionários vitoriosos" (Cf. BADIOU, pág. 73). Assim, de
um ponto de vista político, se Lacan é aceito como um paradigma teórico, é mais do que
razoável esperar que a divisão venha sem reconciliação. Pelo que faz perfeito sentido arriscar
a conclusão de que, adotando-se as suas categorias de pensamento, uma tentativa de superar a
contradição própria à luta de classes tem de ser vista como se acarretasse um fechamento

141
totalitário. Muito a propósito, faremos notar a justa apreciação de Felipe Catalani, que, em sua
dissertação “Filosofia moral no mundo do pós-guerra: Estudo sobre Adorno”, comenta que
essa perenização do conflito, patente na ausência de uma Aufhebung, seria "(...) uma marca
ideológica por excelência das sociedades ocidentais pacificadas do pós guerra" (CATALANI,
2019, páginas 28 e 29). Em nota de rodapé a essa mesma passagem, ele declara ainda, sobre a
filosofia de Zizek: “a reconciliação (tema forte da superação dos antagonismos na tradição
marxista) [, na filosofia de Zizek,] não é uma reconciliação da realidade, ou seja, o caráter
conflituoso e contraditório é perene, é de sua natureza, e portanto, eterno” (CATALANI, 2019,
pág. 29). A filosofia de Zizek, não obstante sirva apenas de exemplo ocasional para nós, exporia
uma dificuldade toda particular de retornar ao núcleo da política revolucionária tão logo se
tenha aceito a psicanálise lacaniana como uma das vias exclusivas de acesso a suas
determinações subjetivas. Ora, se, por definição, uma verdade não se deixa esgotar numa
circunstância histórica, uma vez que a psicanálise lacaniana tenha encontrado um obstáculo
político nos regimes totalitários não pode ser da verdade da política que ela trata, ou pelo menos
não da verdade da política de que fala Badiou.
É forçoso reconhecer que a política da psicanálise refere-se não só a limites muito distintos
daqueles que conformam a guerra antagônica da luta de classes, mas também que ela opera de
maneira muito mais modesta. Não é que a psicanálise desconheça em absoluto a situação
histórica em que se encontra inserida e tampouco que ela seja indiferente a questões de ordem
social. Refutando em definitivo essa opinião, no décimo sexto ano do seminário, Lacan
desenvolve – em resposta aos acontecimentos políticos de 1968, como tem o cuidado de
evidenciar Checchia – uma nova teoria dos discursos, discriminando com ela quatro grandes
modalidades, quais sejam, o discurso do mestre, o discurso universitário, o discurso da histérica
e o discurso do analista. Essa teoria encontrará o seu núcleo conceitual na seguinte assunção:
"O discurso, é o quê? É o que, no ordenamento do que se pode produzir pela existência da
linguagem, faz função de laço social" (Cf. CHECCHIA, pág. 284). E, sem perder as
coordenadas das quatro modalidades de discurso mencionadas acima, Lacan chega a teorizar
um discurso que diria respeito especialmente à figura do capitalista, sendo entendido então
como uma variação do discurso do mestre, mas variação suficientemente diferenciada para ser
considerada à parte (Cf. CHECCHIA, pág. 292). Haveria inclusive a instauração de uma
curiosa relação com a tradição da crítica à economia política, pois Lacan “(...) passa a situar, a
partir de Marx, o sintoma no social, estabelecendo a homologia entre a mais-valia e o mais-de-
gozar e diagnosticando o discurso capitalista como o único que desfaz os laços sociais, por
fortalecer somente a si próprio e engessar assim o giro dos discursos" (CHECCHIA, pág. 314).
Além do quê, de acordo com a exposição de Checchia, esse tal “giro dos discursos” - que
compreende as transformações estruturais por intermédio das quais cada discurso sofre um
deslocamento de seus elementos constitutivos, donde o rearranjo que caracteriza a passagem
de um discurso a outro –, por sua vez, encontra-se vinculado a dois operadores específicos,
ambos com nomes bastante sugestivos pelo que evocam no plano da política: trata-se da
revolução e da subversão (Cf. CHECCHIA, pág. 315). A despeito de possibilitar essa
teorização e fazer ver as revoluções e subversões de sua prática, no entanto, tem de despontar
a limitação da psicanálise ante o capitalismo: “A psicanálise não tem o poder de subverter o
sistema capitalista e o sofrimento provocado por ele; são os psicanalistas, na realidade, que
devem permanecer sempre atentos para não serem novamente capturados pelo discurso
capitalista” (CHECCHIA, pág. 325). E é então que se percebe claramente qual o sentido que a
revolução tem no interior dessa teoria dos discursos: “a psicanálise não deixa de provocar
revolução, mas não no sentido de ocasionar profundas transformações políticas, econômicas e
sociais, e sim, no de promover os giros do discurso” (CHECCHIA, pág. 317). O que significa

142
que a palavra revolução comparece aí, prioritariamente, em seu sentido astronômico, de giro e
retorno a um mesmo lugar num dado ordenamento espacial. Contudo, isso não significa que,
nessa ocasião, ela também não apresente um sentido político, porque o psicanalista não
abandona sequer por um segundo o jogo com os equívocos: para Lacan, a Revolução - agora
referida em sua acepção política - é ainda o retorno a uma mesma posição, correspondendo,
pois, no desfecho de seu processo, ao restabelecimento da ordem, a restauração do Um. Em
outras palavras, no ensino de Lacan, o processo da política revolucionária tende a ser apreciado
desde seu aspecto puramente estrutural, o que contradiz flagrantemente todos os esforços
teóricos empreendidos por Badiou na década de 1970.
Terá ficado suficientemente nítido um dos aspectos prevalentes do pensamento de Lacan – e,
a bem dizer, que goza de comparável prevalência tanto no estruturalismo como em alguns dos
principais nomes do pós-estruturalismo -, aspecto que, de maneira relativa mas não
insignificante, o afasta de Badiou: nele, o discurso aparece enquanto condição primeira da
realidade e da experiência humanas. É de se notar que, se o dizer não constitui propriamente a
divindade do psicanalista, é pelo menos a ele que essa função vem se ligar fundamentalmente:
“Por um nada, o dizer, isso faz Deus. Tão logo se diga alguma coisa, a ‘hipótese Deus’ estará
lá” (LACAN, seminário XX, pág. 41). A proximidade que mantêm entre si a “hipótese Deus"
e o dizer certamente não desqualifica a empresa lacaniana como uma espécie de religião da
palavra inclinada a erigir o culto máximo das deidades da retórica e da poesia, como se o
discurso estivesse investido de tal poder que ele fosse entendido lograr na realidade
absolutamente tudo o que se propusesse dizer. Em primeiro lugar, esse não é o caso porque,
ainda que o seu ordenamento garanta o restrito acesso ao real, é apenas em referência a este –
por se perfazer num nó em que se condicionam reciprocamente o real, o simbólico e o
imaginário124 – que o discurso adquire a sua precária consistência. Em segundo lugar, a
preponderância do dizer acompanha de muito perto um certo movimento através do qual a
razão e a política se emparelham. Se recapitulamos muito brevemente a tese defendida por
Jean-Pierre Vernant em seu clássico As origens do pensamento grego, temos a oportunidade
de encontrar uma possível acepção política para a subversão lacaniana. Como é notório, o
helenista francês defende que a passagem da civilização micênica à civilização grega
propriamente dita, caracterizada por uma série de transformações sociais (a afetar desde o uso
da escrita bem como a disposição do plano urbanístico), deu-se com a realocação da palavra
dentro da estrutura de poder das cidades-estado: “O que implica o sistema da polis é
primeiramente uma extraordinária preeminência da palavra sobre todos os instrumentos do
poder” (VERNANT, 2002, pág. 53). Essa extraordinária preeminência da palavra, que
principia a surgir com a substituição do ánax (figura que concentra o poder político na
unicidade de sua pessoa) pelo basileu (membro de um restrito grupo de iguais que deve ser
capaz de persuadir os seus pares quanto à razoabilidade de uma determinada ação), teria surtido
progressivamente os seus efeitos sobre o pensamento grego, produzindo experimentos tão
radicais quanto o da democracia ateniense ou o da reflexão filosófica. Donde a afirmação de
Vernant: “Entre a política e o logos, há assim relação estreita, vínculo recíproco. A arte política
é essencialmente exercício da linguagem; e o logos, na origem, toma consciência de si mesmo,
de suas regras, de sua eficácia, por intermédio de sua função política” (VERNANT, pág. 54).
Pois bem, reclamando para um outro contexto o seu legado clássico – que tem clara vinculação
à isegoria (igualdade conferida a todos os cidadãos que passam então a ter direito à palavra) e
à parresia (o direito de falar francamente) - a psicanálise restitui essa “extraordinária

124Para ”ilustrar” esse condicionamento recíproco, Lacan se refere a esse nó como um nó borromeano: nó
composto de três círculos entrelaçados, cada um dos quais, se desfeitos, desmancham o desenho do nó.

143
preeminência da palavra" de que fala Vernant. Mas, se entre os gregos antigos ela havia
fomentado o culto de “Peithó, a força de persuasão" (Cf. VERNANT, 2002, pág. 54), a palavra
na psicanálise, igualmente subversiva da unidade do poder, atua como que pelo avesso (donde
a sua irredutibilidade a uma estrutura dialógica). Entenda-se, entretanto, que não é bem questão
de instituir uma persuasão negativa (como parecia acreditar Foucault; Cf. FOUCAULT, pág.
113), e sim de operar com uma persuasão do negativo (como, aliás, se diz muito precisamente
Paixão do negativo, em vez de se referir ao domínio das paixões negativas125): não se limitando
a deixar de responder às demandas do analisante, o analista deve incidir nos furos de sentido
do discurso daquele e reduzi-los à letra de seu objeto a. Eis o sentido da subversão que promove
a psicanálise: não o que poderia concretizar-se num sujeito subversivo, mas o da subversão do
próprio sujeito em favor do objeto causa de seu desejo (Cf. CHECCHIA, pág. ). Essa operação
- a partir da qual o sujeito tem a ocasião de reconhecer que a verdade que nele fala não deriva
a sua voz da unidade de qualquer eu - é irredutivelmente discursiva, e, como tal, ela depende
da materialidade do significante e do isolamento que lhe proporciona a circunstância prática -
de escuta e de fala - da clínica.
Antecedente freudiano
O discurso do analisante é subversivo porque, sob condições especiais, ele possibilita que a
verdade fale e se faça ouvir: afinal de contas, a psicanálise é acima de tudo uma política da
fala. Mas a consequência lógica disso é que o ceticismo continue assombrando o consultório
do analista: se o bom político é o psicanalista – como declarava Lacan no segundo ano do
seminário –, então é forçoso reconhecer que não existe nenhuma indicação de que haja mais
política do que aquela praticada dentro da clínica. 126 Devemos ter em conta que o psicanalista
francês sabia muito bem que essa saída subversiva não equivale a nenhum progresso social:
“Como advertia Lacan, a saída não constituirá progresso se for apenas para alguns”
(CHECCHIA, pág. 326). Esse impasse, que surge no momento em que a psicanálise clama para
si a legitimidade de uma política que ela não saberia transpor para fora dos limites do
consultório, quando formulado nesses termos, é propriamente lacaniano, sem dúvida. Mas ele
também é reconhecível em Freud, pela maneira como o pai da psicanálise veio a estabelecer
uma relação entre a disciplina por ele criada e a política: quanto a esse aspecto, deveremos nos
referir sobretudo a Psicologia das massas e análise do eu, obra na qual a enorme contribuição
da psicanálise para pensar a política como um processo subjetivo não aparenta ser capaz,
todavia, de sustentar qualquer horizonte de reconciliação social. Ou seja, nessa obra também
se reconhece uma perspectiva subversiva que, entretanto, não anuncia a emergência de
nenhuma revolução bem-sucedida. A seu respeito, precisamente, situando-a em relação ao
Cidadão Sujeito que nasce com a modernidade política e filosófica, é preciso que nos
lembremos de duas coisas. Em primeiro lugar, de sua inquestionável inserção na tradição do
pensamento político ocidental:
Deveria ser evidente por si mesmo [aller de soi] que
Massenpsychologie [, a Psicologia das massas de Freud,] pertence à
história da filosofia política, e marca uma de suas reviravoltas, a ser
situada em uma série que começa com a República de Platão e que vai

125A observação é devida a


126 Fica entrevisto : “Observa-se, portanto, que o inconsciente inclui as propriedades da política, enquanto a
política, tradicionalmente, não inclui uma propriedade fundamental do inconsciente: a causa do desejo”
(CHECCHIA, pág. 348).

144
até as Origens do totalitarismo, de Arendt, passando pelo Príncipe, o
Leviatã, o Contrato social, a Filosofia do direito de Hegel, o Capital,
o Conceito de Político, de Schmitt, etc. (BALIBAR, pág. 388)

Em segundo lugar, cabe reconhecer que a maneira de o texto de Freud de se inserir na tradição
do pensamento político é a de adotar um expediente acentuadamente crítico para com uma certa
concepção teórica: isso se verifica pelo fato de que esse texto realiza como que uma paráfrase
do discurso característico de um campo preexistente à intervenção de Freud, campo
classificável como sendo o da "psicologia social" (Cf. BALIBAR, pág. 389). Nesse sentido,
como observa Balibar, o procedimento de Freud é comparável ao de Marx quando este se
prontifica a realizar uma “crítica da economia política" (Cf. BALIBAR, pág. 389). Tendo sido
integrado por Balibar a uma série que compreende, pelo menos em seus extremos, o antigo
problema filosófico relativo à tirania (desde Platão até Hannah Arendt, como se lê no trecho
citado há pouco), a paráfrase de Freud atua sobre um discurso que projeta o maior perigo de
ressurgência de um poder tirânico nos grandes movimentos de massa, a Revolução Francesa
servindo-lhe ainda como o exemplo maior de um enorme desastre político que deve ser evitado
a qualquer custo: conjugam-se, pois, todos os receios despertados pelas mobilizações e
organizações populares, de forma a contrapor a razoabilidade dos indivíduos à irracionalidade
que eles tenderiam a assumir quando tomados por essa circunstância extraordinária que seria a
multidão. Por sua vez, Freud, acostumado a refletir o normal no patológico, acaba efetuando
uma subversão desse discurso contra-revolucionário ao encontrar na excepcionalidade da
massa o princípio de um funcionamento que diria respeito muito intimamente ao indivíduo em
sua vida cotidiana: como observa Ricardo Goldenberg (Cf. GOLDENBERG, 2015), apesar de
ser anunciada no título como se fosse algo de secundário, a novidade desse trabalho, que
dissolve as fronteiras entre psicologia individual e psicologia social, reside em sua análise do
eu. No entanto, se Freud subverte uma tal concepção da psicologia social, ele não o faz em
favor da organização política das massas: a sua argumentação não se contrapõe frontalmente à
caracterização dos fenômenos de massa como ocorrências em que a irracionalidade se torna
manifesta, estando na verdade repleta de uma certa inquietude suscitada pelas movimentações
sociais da época em que foi concebida. Mais uma vez (ou, ao contrário, pela primeira vez),
trata-se de subverter a unidade do sujeito individual, e não de pensar o potencial coletivo de
um sujeito subversivo.
Em um certo sentido, portanto, a subversão que Freud realiza com a escrita desse texto o
aproxima da tradição crítica iniciada pela reinvenção da dialética na Alemanha. Porém, num
outro sentido, ela também antecipa a compreensão lacaniana da Aufhebung como nada mais do
que um belo sonho da filosofia. Assim, poderíamos indicar que a época em que Psicologia das
massas vem à luz – tendo sido escrito em 1920 e publicado em 1921 – providencia uma
indispensável baliza para situarmos a ambivalência que, como veremos, faz com que o pai da
psicanálise mantenha alguma distância das posições políticas defendidas tanto por Hegel como
por Marx: não obstante ser quase que contemporânea da Revolução Russa, a elaboração do
texto estaria muito mais marcada pela Primeira Guerra Mundial e pela instabilidade política
que com ela eclodiu e se disseminou pela Europa. E a leitura de Psicologia das massas não
tarda em confirmar a suspeita de que a instabilidade política seria um dos eixos principais em
torno dos quais se estrutura o problema que Freud aborda, pois, em grande medida, ele aceita
a descrição das massas tal como a havia feito Gustave Le Bon em seu Psychologie des foules
[Psicologia das multidões]: ocorrência extraordinária em que o homogêneo se compõe a partir
do heterogêneo, elas dissolveriam as qualidades dos indivíduos numa mediania que os nivelaria
por baixo, impondo um decaimento geral das inteligências e da consciência moral, o que

145
tornaria os seus integrantes predispostos a toda sorte de violências devido ao anonimato sob o
qual se reúne a massa. Naturalmente, essa descrição só pode ser aceita à condição de que o seu
respectivo valor dentro da elaboração freudiana seja consideravelmente diverso daquele que
lhe atribui a teorização de Le Bon: a novidade do texto de Freud, visível no enfoque que ele
então concede à análise do eu, principia (como dito acima) quando se consegue estabelecer
uma transitividade entre o normal e o patológico, posto que o raro terremoto das massas, se
bem considerado, possibilitaria observar um estremecimento que caracteriza algumas das
instituições nas quais o Estado moderno ainda procura amparo (a saber, a Igreja e o Exército).
Ou seja, ao falar das massas, Freud na verdade estava a viabilizar uma espécie de
psicopatologia da vida política cotidiana. E a sua proposta é tanto mais notável pela distância
que ele consegue assumir dos pressupostos de Le Bon (bem como dos demais teóricos aos
quais recorre), apesar da aparente proximidade de seus fundamentos teóricos: ainda que os dois
primassem pela explicação dos fenômenos inconscientes, um deles se apoia na noção de um
inconsciente hereditário e racial, enquanto o outro se fia num inconsciente de natureza sexual
(em sentido consideravelmente ampliado, como se sabe). A respeito desses pressupostos, vale
consultar o breve sumário de Ricardo Goldenberg que transcrevemos a seguir:
Seus escritos socioantropológicos, particularmente Les Lois
psychologiques de l’évolution des peuples, de 1894, e La psychologie
des foules, redigida no ano seguinte, captaram com singular maestria o
tal espírito de [sua] época. Em particular, os ares elitistas e antissemitas
que ventavam pela Europa. Os mesmos, aliás, que se respiravam em
Viena, capital do Império Habsburgo. Sua obra testemunha a influência
das teorias da degenerescência hereditária na origem das doenças
mentais e dos transtornos de conduta até a criminalidade, o ódio da
Revolução Francesa e os seus ideais anticlericais e antinobiliários e,
enfim, o “problema judaico” como uma questão de ciência e não apenas
de política. (GOLDENBERG, 2015)

Acrescente-se a sua descendência – reconhecida e reivindicada – no plano da política: “Quanto


ao antissemitismo científico, Le Bon nunca fez segredo da sua simpatia pelo fascismo de Benito
Mussolini (sentimento correspondido pelo Duce); e Adolf Hitler, em Mein Kampf, declara a
doutrina do francês uma das suas principais inspirações” (GOLDENBERG, 2015). No embate
que efetivamente busca efetuar com as ideias de Le Bon, em condições históricas um tanto
adversas e através de percursos teóricos declaradamente oblíquos, Freud desempenha o papel
aproximado de um defensor de certos ideais caros ao Esclarecimento: mesmo que por vias
indiretas, um inconsciente sexual coloca-se quase que paralelamente à emancipação política
moderna, pois ele apresenta a vantagem de não discriminar os povos segundo aquela que seria
a sua pretensa herança na luta pela sobrevivência. O que essa defesa concretiza, entretanto, é
desconcertante, porque o fulcro da argumentação de Freud consiste em descentrar a instância
reflexiva comumente tida como responsável pelas conquistas da razão moderna: a humanidade
é avaliada de acordo com um mesmo padrão, o comum quinhão de sua espécie, que não admite
nenhuma divisão das etnias a separá-las entre as mais aptas à dominação e as mais aptas à
servidão; esse comum quinhão, no entanto, não é exatamente o da razão, porque todo e qualquer
indivíduo, antes de ser um sujeito do pensamento, encontra-se sujeito às coerções da libido.
Os propósitos de Le Bon não são os únicos com que vem a se mostrar díspar a teorização de
Freud. Decerto, o contraste entre os dois não poderia ser maior, a despeito das pequenas
semelhanças sugeridas por detalhes específicos: se é verdade, por exemplo, que os dois autores
procuram à hipnose um vínculo com a sugestionabilidade que os indivíduos experimentam uma

146
vez que encontrem-se em estado de massa (já que esse estado acarretaria toda sorte de
influência a que normalmente os indivíduos não estariam sujeitos), a compreensão e a
destinação que esse vínculo recebe em cada uma das teorizações são em tudo opostas uma à
outra. Para Le Bon, as massas seriam comparáveis a uma histérica de quem se pode dispor à
vontade, hipnotizar e sugestionar como bem entender, para obter o resultado que melhor
aprouver a quem se aventura a guiá-las e encaminhá-las na melhor direção. O objetivo era o de
que, através do “prestígio” de um líder que as expusesse e as submetesse às ideias corretas, elas
se transformassem no instrumento de moralização dos indivíduos, prevenindo-os, assim, de
contraírem a patologia que se reconhecia no socialismo (Cf. BALIBAR, pág. 389). A
proximidade de seu pensamento com o fascismo não é de maneira alguma uma incidência
externa ou acidental, como não falhou em nos indicar Goldenberg. Por sua vez, a posição de
Freud quanto às massas jamais coincidiria com a imposta por essa vontade moral de dirigir, o
que se pode constatar pelo simples motivo de que, paralelamente, a sua posição ante à hipnose,
à sugestão e à histeria difere substancialmente da de Le Bon: na perspectiva da psicanálise, o
teórico francês reproduzia num outro nível a incapacidade dos que se serviam terapeuticamente
desses métodos para explicá-los em seus fundamentos. Por conseguinte, ressurge nesse
trabalho uma recusa de ocupar a posição do Um. Mas os efeitos dessa teorização, que até agora
parecem espelhar em perfeita simetria as reivindicações de autonomia do Esclarecimento, não
param por aí. Se, por um lado, ela não adere à patologização do socialismo, sustentando contra
ela a atitude científica de examinar as causas dos fenômenos em questão e de manter uma
neutralidade em face deles, ela tampouco reencontra em seu campo de visão o horizonte da
Aufhebung de um processo revolucionário. Indo em direção contrária, ao enxergar nas massas
uma ocasião especial para que as tendências inconscientes sejam apreendidas em seu
funcionamento próprio, Freud explicita os mecanismos de identificação cuja grande mola seria
a libido, e a articulação principal, o ideal do Eu, a qual explica porque o indivíduo em estado
de massa não se orienta unicamente por um princípio de auto-preservação (ou melhor,
articulação que viria a expor a divisão do eu, porque é tentando preservar as suas identificações
que o eu do indivíduo se adequa a um modelo exterior a ele, podendo mesmo sujeitar-se a
perigos que atentam contra a sua integridade física). Pode-se então falar de massas artificiais,
que descortinam dinâmicas específicas, como as ligações promovidas pela religião, em que o
dogma de amar ao próximo admite muito tranquilamente a possibilidade de eliminar o outro
em nome do mesmo Deus que desperta os sentimentos mais elevados e sublimes. Sendo
reconhecível em praticamente toda associação humana, esse princípio único da identificação
ameaça engolir as tentativas mais radicais de democratizar a política, regurgitando em troca
apenas um indigesto sectarismo em que mesmo o Sapere aude não garantiria mais nenhuma
saída inequívoca do estado de menoridade do homem:
Se outra ligação de massa toma o lugar da religiosa, como a socialista
parece estar fazendo, ocorre a mesma intolerância com os de fora que
havia na época das lutas religiosas, e se as diferenças de concepções
científicas viessem a ter, algum dia, importância igual para as massas,
o mesmo postulado se repetiria também com essa motivação. (FREUD)

Percurso esclarecido, de fato, mas que devolve ao Esclarecimento uma série de impasses para
os desígnios de sua razão
A crítica ao socialismo como um dos elementos que compõem a argumentação de Psicologia
das massas e análise do eu (ainda que elemento bastante reduzido no conjunto da obra) pode
dar a impressão de que Freud estava confortável com as conquistas de um Estado que provara-
se relativamente capaz de garantir aos indivíduos os seus direitos e liberdades de cidadão e,

147
assim, sugeriria que o seu livro se presta ao papel de antídoto a qualquer ameaça a essa
circunstância mais ou menos pacífica. Mas, afora o fato de a época em que ele foi escrito não
ter proporcionado qualquer tranquilidade quanto à salvaguarda desses direitos, apesar de Freud
ter se identificado algumas vezes como estando alinhado ao partido dos liberais em seu país, a
sua visão da política era muito mais ambivalente: a confiar no desenvolvimento de suas ideias,
também do lado do Estado não há qualquer coisa que remotamente lembre uma Aufhebung. O
que se verifica em uma das surpreendentes interlocuções que a sua teorização ocasionou. Não
obstante o detalhe de Freud não ter abordado propriamente o Estado em seu texto (tendo se
limitado, em vez disso, a tratar do Exército e da Igreja), isso não impediu que o autor da futura
teoria pura do direito (formulada sob essa denominação em 1934), Hans Kelsen, o interpretasse
como se o pai da psicanálise o houvesse feito. Leitor de primeira hora da Massenpsychologie
freudiana, tendo redigido então um ensaio de quarenta páginas a seu respeito que veio a ser
publicado já em 1922 (Cf. BALIBAR, pág. 385), e tendo estabelecido uma interlocução com
o inventor da psicanálise, ele distinguia uma qualidade e um potencial nessa elaboração
conceitual que talvez tivessem passado despercebidos para o seu próprio autor: aos olhos de
Kelsen, visivelmente superior às obras do mesmo gênero, a especificidade da teorização de
Freud seria devida à maneira como ele concebe a natureza da autoridade e do exercício do
poder, abrindo espaço, pois, para pensar um assujeitamento interno que tornasse legítima a
procura pelo fundamento do Estado democrático na própria efetividade da vida anímica. O erro
de Freud, aliás, a julgar por essa interpretação, teria sido o de sugerir que as instituições do
Estado são formações de massa num sentido aproximado daquele em que o seriam as
insurreições populares, todas elas transidas de uma certa instabilidade, e todas elas requerentes,
portanto, do emprego de uma certa coação externa para estabilizar-se: “Aos olhos de Kelsen,
quanto a esse ponto, Freud mais agrava Le Bon do que o critica, porque ele generaliza sua
descrição das multidões revolucionárias e a transpõe para a instituição em geral, rendendo o
Estado indiscernível de uma ditadura ou de uma dominação totalitária” (BALIBAR, pág. 399).
Conquanto Kelsen quisesse pensar um Estado como unidade em que a multiplicidade lhe seria
imanente – o que proporcionaria a ele a condição de uma instância perfeitamente legítima na
unicidade de suas ações, situada, por conseguinte, para-além das divisões de classe que ele
necessariamente comporta –, a psicanálise vem a ser tida pelo teórico austríaco como uma
possível aliada da democracia constitucional: o seu trabalho de confrontar os mitos e as ilusões
que assediam os indivíduos é altamente valorizado porque permitiria desfazer semelhantes
erros que o psiquismo vem a suscitar a respeito do Estado, ao projetá-lo como a personificação
de certas funções políticas, chegando ao extremo de divinizar a soberania (Cf. BALIBAR, pág.
400). Assim, Kelsen tem no inventor do mito da horda primitiva chefiada por um pai primevo
a figura virtual de um Kant dos paralogismos da razão política moderna, a quem seria preciso
requerer os meios para evitar incorrer no erro de atribuir à autoridade do Estado o estatuto de
uma substância (Cf. BALIBAR, pág. 400).
No ensaio que tem servido como uma de nossas principais referências na matéria que por ora
discutimos (“L’invention du surmoi – Freud et Kelsen 1922” [“A invenção do supereu – Freud
e Kelsen 1922”], do livro Citoyen sujet, citado anteriormente), Étienne Balibar, muito
engenhosamente, imagina a formulação do conceito de Über-Ich, o supereu da segunda tópica
freudiana (que é proposta no texto Das Ich und das Es [O Eu e o Isso], de 1923), como sendo,
em parte, uma contra-resposta à demanda de Kelsen: se ele não foi pensado com o objetivo de
satisfazer os anseios do teórico do direito de viabilizar uma compreensão imanente à vida
anímica que justificasse as restrições [contraintes] impostas pela ordem legal aos indivíduos
(como, de fato, ele não foi), não deixa de ser curioso que o supereu forme “(...) a contraparte,
no inconsciente, do monopólio da violência legítima que reclama o Estado” (BALIBAR, pág.

148
408). É mais do que razoável, portanto, cogitar que a demanda de um tenha influído na
formação do conceito que propõe o outro. De nossa parte, para alcançarmos os nossos fins,
evitaremos as muitas nuances desse problema; basta-nos que nos coloquemos no lugar de
reconhecer como estariam distantes uma e outra coisa, a saber, aquilo o que Kelsen esperava
da psicanálise e o que Freud acaba por trazer à cena. Como antecipado no último parágrafo,
Kelsen entendia que, a seguir com a sua interpretação de Psicologia das massas e análise do
eu, o raciocínio freudiano havia imposto algo da ordem de uma escolha exclusiva, o que Balibar
expressa da seguinte maneira: “Ou o inconsciente ou a política, é preciso escolher" (BALIBAR,
pág. 405). A expectativa de Kelsen, no entanto, era a de que, por alguma via indireta ainda a
ser descoberta, o inconsciente fosse percorrível em direção paralela àquela que descreve a
política tal como instituída num Estado democrático de direito: ou seja, para ele, a questão era
saber se haveria no psiquismo algum processo de formação da consciência moral que
fomentasse internamente a sujeição a um poder puramente auto-referido de julgar o que é legal
e o que é ilegal. O supereu, instância a propósito da qual Freud deverá falar de um “tribunal
interior”, pareceria desempenhar exatamente essa função. Com efeito, a sua teorização conjuga
dois elementos que atendem a essas exigências, a saber, a de implicar uma Zwang, que é a
restrição (ou compulsão) que coage internamente o indivíduo, e a de se designar por um Über-
, isto é, como aquilo que se coloca acima do eu, impondo-se a ele como o portador de uma
norma que lhe é superior (Cf. BALIBAR, pág. 411). As semelhanças não vão além disso, no
entanto. A teoria do direito de Kelsen estaria habilitada a considerar-se pura desde que
conseguisse apresentar em sua positividade um ordenamento jurídico que não estivesse
fundamentado em nenhum valor substancial: ela não poderia socorrer-se nem do arcaico e nem
do religioso, os dois representando, antes, os grandes perigos que ameaçam precipitar o Estado
num exercício ilegítimo da autoridade e da violência. Para alcançar esse ordenamento crítico
dos valores tidos como substanciais, a unidade entre a pura forma das normas e o conteúdo dos
fatos logra uma verdadeira coerência lógica somente se procede a partir de uma síntese a priori
– a exemplo do pensamento kantiano, em que a oposição entre conceito e fenômeno não obsta
à articulação do esquematismo transcendental (Cf. BALIBAR, pág. 431). Dessa maneira, a
positividade das leis viria a realizar-se como um ordenamento “fictício" inteiramente
autossuficiente, onde norma e fato nunca entram em contradição um com o outro porque,
apesar de unificados, eles não se encontram num mesmo plano. O supereu, no entanto, faria
ruir esse ordenamento, porque ele torna equivalentes o sentimento de culpabilidade e o
sentimento de transgressão, dando lugar a uma contradição insolúvel nos termos propostos por
Kelsen (Cf. BALIBAR, pág. 433): qualquer sujeição à norma que ele impõe ao indivíduo faz-
se acompanhar, contraditoriamente, de uma vontade de transgredi-la e da culpa que esta traz
consigo.
Se bem que, como adverte Balibar, talvez seja excessivo encarar as teses de Freud como se elas
estivessem dotadas de um significado político imediato, a argumentação de seu ensaio é
convincente o bastante para persuadir da impossibilidade de falar do supereu como de uma
instância psíquica em que o ordenamento jurídico autossuficiente de uma democracia
constitucional pudesse reconhecer a sua própria imagem: na categoria freudiana, arruína-se
toda ideia de uma obediência razoável. E, a partir dessa constatação, nós vemos bem que o pai
da psicanálise avançou o passo de reconhecer a antinomia como um momento mesmo da
realidade, conferindo à contradição a efetividade de uma nova lógica, o que evidencia a
particularidade de sua vinculação ao Esclarecimento: não se contentando com a pura forma
com que sonhavam Kant ou Kelsen, Freud viria a colocar-se muito mais próximo de Hegel.
Pois, de fato, pelo menos desde o filósofo alemão, a Lei não basta para reconciliar o sujeito
(como vimos com a ajuda de Kervégan): se Drummond pode fazer aqui as vezes de ponto de

149
convergência entre a filosofia hegeliana e a psicanálise, pela excelência do trato do autor de
Claro enigma com a contradição, diremos então que, para ambos, “os lírios não nascem da lei”
(Cf. DRUMMOND, pág. 324). Não sem causar algum espanto, porém, essa aproximação só
fica suficientemente clara quando o Estado político é dividido por suas respectivas posições.
Se Hegel dizia que o criminoso tem a sua vontade contemplada na punição que a ordem jurídica
lhe prepara (Cf. parágrafo 100), declarando-o como um enunciado que diz respeito apenas à
lógica interna ao desenvolvimento da vontade livre e do direito abstrato, o supereu tinge de
uma outra coloração essa afirmação, sobrepondo-lhe a viva contradição de uma paixão que, ao
que tudo indica, implodiria qualquer política que não soubesse concretizar-se como outra coisa
que não uma servidão voluntária (Cf. BALIBAR, pág. 434). O que certamente ajuda a entender
porque Lacan, no texto "Funções da psicanálise em criminologia", pouco depois de fazer
menção aos “crimes ou delitos provenientes do supereu” (Cf. LACAN, pág. 132) - a
exemplificá-los, dentre outros, com o caso dos “(...) furtos singulares de um estudante de
medicina que não sossegou enquanto não se fez aprisionar pela polícia berlinense” (LACAN,
pág. 133) -, tenha concluído o seguinte: "Nenhuma forma do supereu, portanto, é passível de
ser inferida do indivíduo para uma dada sociedade. E o único supereu coletivo que se pode
conceber exigiria uma desagregação molecular integral da sociedade" (LACAN, pág. 138).
Exatamente ele, o psiquiatra que em sua tese de doutoramento havia conferido especial
importância aos delírios de autopunição num caso clínico que chegou a alcançar alguma
notoriedade pelo alvo das identificações em que se precipitaram as paixões de sua fautora,
exatamente ele, dizíamos, deverá observar que o supereu é a “antinomia, no polo biológico do
indivíduo, do ideal do Dever puro que o pensamento kantiano coloca como contraparte da
ordem incorruptível do céu estrelado” (LACAN, pág. 138); como também é ele que sempre
destaca a afinidade da descoberta freudiana com a dialética de Hegel (em passagem que,
ironicamente, nota-se como os marxistas queriam fazer vê-la no desenvolvimento das
matemáticas sem, contudo, reconhecê-la na psicologia concreta; Cf. LACAN, pag. 142). No
brilhantismo dessa intervenção, que promovia, a despeito de suas reais afinidades, um encontro
absolutamente improvável entre dois pensadores tão distantes um do outro, ficava assinado o
pacto de uma cisão perpétua: como atesta ainda esse mesmo "Funções da psicanálise em
criminologia", o aporte da psicologia das massas freudiana continua sendo oportuno tanto para
um exame dos impasses sócio-políticos da democracia norte-americana (Cf. LACAN, páginas
146 e 147,) como da responsabilização dos líderes totalitários (Cf. LACAN, pág. 148),
subvertendo, à direita e à esquerda, qualquer reconciliação dos deveres e das vontades. Apesar
de estar altamente implicada numa política da verdade, a psicanálise não faz menção direta a
qualquer verdade da política.
Como se pode ver, pelo menos desde Freud, a dimensão do imaginário é percebida como fator
que implica alguma limitação na ordem das práticas políticas: a necessidade de identificar-se
com um líder, de nele encontrar o liame principal a partir do qual a identificação com os demais
membros de uma massa se torna possível, é um tema central da investigação freudiana. Por seu
turno, o talento incomum de Lacan, que o fará insistir no desconhecimento [méconaissance]
em que se funda toda identidade, não deixará de revitalizar essa temática na França, chegando
até a inspirar outras abordagens do conceito marxista de ideologia (com Althusser, por
exemplo, como vimos na primeira parte deste trabalho). Sendo assim, nós não podemos deixar
de notar que a abordagem teórica levada adiante pela Psicologia das massas de Freud contradiz
algo que dissemos anteriormente sobre a Revolução Cultural Chinesa: concluindo que era
impraticável analisá-la a partir de uma visão psicológica estritamente individual, não
estaríamos ignorando, contudo, que ela seria inteiramente compreensível enquanto uma massa
em que o eu de cada um de seus integrantes foi dividido, posto que houvessem se deixado

150
conduzir pelo grande timoneiro Mao, o líder que passa a representar para eles o seu ideal de
Eu? Essa interpretação é perfeitamente possível, e, com efeito, o fato de que a Revolução
Cultural tenha resultado em tantas mortes (fala-se em até um milhão de pessoas 127) e que não
tenha podido transformar de uma vez por todas a realidade política em meio à qual surgiu não
faria muito para desmenti-la. A teoria do sujeito de Badiou, no entanto, é concebida com o fim
de explorar a possibilidade de que um coletivo não se restrinja a ser uma massa no sentido em
que ela é referida nesse pequeno trabalho de Freud. Afinal, valerá sempre perguntar: em face
da Lei que se confronta no Outro, os comunistas saberão fazer algo mais do que um Exército
ou uma Igreja? E é preciso lembrar, como o faz Ricardo Goldenberg (Cf. GOLDENBERG,
2015), que Lacan, com o seu mito dos três prisioneiros, havia pensado exatamente a lógica da
formação desse coletivo, lógica que se presta, segundo a época do ensino do psicanalista a que
se procure a chave interpretativa, a ser entendida tanto como se a operar por um reconhecimento
intersubjetivo, quanto por uma igualdade procedural e insubstancial (o que, decerto, interessa
mais a Badiou).
Nós já estamos cientes de que, por si só, a psicanálise jamais iria tão longe a ponto de restituir
a lógica de formação desse coletivo à generalidade da política: a sua via, inescapavelmente, é
a de proceder um a um. Mas, se o supereu não pode ser pensado como uma entidade
propriamente social (ainda que a sua existência envolva as relações que o sujeito entretém com
a sociedade), ele necessariamente aponta para um desequilíbrio estrutural, que não admite
qualquer harmonização entre o sujeito e a ordem característica à circunstância em que este se
encontra situado: não é de admirar que, seguindo a hipótese de Balibar, esse conceito tenha
desfechado um raciocínio que se iniciava com a elaboração de Psicologia das massas, pois,
opondo-se ao discurso contra-revolucionário de que realizava a paráfrase, esse trabalho
devolvia aos seus interlocutores a sua própria mensagem sob uma forma invertida, ao
reencontrar nas adjacências do Estado moderno a mesma instabilidade da qual seria preciso
guardá-lo. O supereu seria, assim, a formulação de uma contradição que diz respeito ao sujeito
porque não se esgota nem no movimento da permuta dos lugares em que ele estaria situado,
nem na identificação com um dado ordenamento que esses lugares assumiriam. Daí que, em
Théorie du sujet, Badiou defina o supereu como um de quatro processos subjetivos, a ser
pensado como o movimento através do qual se evidencia que a Lei não basta a si mesma,
porque ela porta em seu âmago o excesso e a destruição (Cf. BADIOU, pág. 163).
Obliquamente, como se por meio de uma fresta, o supereu acusa a existência de algo mais do
que as estruturações da política tal como ela se apresenta num certo conjunto das variações de
uma dada circunstância. Esse, todavia, é o seu limite: é o caminho que a psicanálise mantém
aberto, mas que ela não saberia percorrer por seus próprios meios. Acrescentando outros dois
processos àqueles que Lacan havia pensado – quais sejam, o supereu e a angústia –, Badiou
deverá, pois, ir além da psicanálise: será preciso, então, conceder a efetividade de um Outro do
Outro (Cf. BADIOU, pág. 173), isto é, como o resultado de um processo em que a destruição
e o excesso que advém ao Outro dão lugar a algo de qualitativamente novo. E, em linhas gerais,
é essa a pertinência de uma concepção pós-lacaniana do sujeito, concepção que Théorie du
sujet se ocupa de providenciar.
*
A matéria de nossa pesquisa, como se sabe, é de uma equivocidade quase que extrema: afinal,
nós nos ocupamos de um tópico que costuma esquivar-se a qualquer apresentação estritamente
objetiva e unívoca, que é nada menos que o tópico do sujeito (tópico que, aliás, vem a ser

127 Remetemos o leitor ao livro de Perry Anderson, . Cf. ANDERSON, pág. .

151
estreitamente vinculado pela psicanálise lacaniana à experiência da equivocidade). Em
momentos distintos, realmente, nós tangenciamos aspectos múltiplos desse tópico que não
apresentam necessariamente uma relação entre si: o sujeito cartesiano e a sua aptidão para
formar cadeias de raciocínio bem ordenadas; o sujeito transcendental da filosofia crítica e o seu
recuo diante do mundo fenomênico; a subjetividade na filosofia hegeliana e a sua maneira de
relacionar, através do negativo, efetividade e conceito; o sujeito revolucionário a que se reporta
o marxismo. Apesar de equívoca, no entanto, nós acreditamos termos sido bem-sucedidos em
estabelecer quais as principais linhas de força que definem as respectivas investigações a seu
respeito empreendidas por Lacan e por Badiou. Como exposto com cuidado ao longo deste
trabalho, existem razões de ordens diversas, que tocam sobretudo à filosofia e ao pensamento
político na modernidade, para que esse termo tenha sido escolhido por ambos. Não obstante as
afinidades e os paralelismos entre os dois, todavia, as diferenças, longe de se anularem,
reiteradamente clamam por uma luz através da qual percebê-las melhor no ineludível contraste
de uma teorização com a outra, o que viemos tentando fazer nesta seção de nossa exposição.
De sorte que deverá se tornar obrigatório o remate de uma tal distinção, a ser alcançado quando
se puder explicar mais claramente porque o sujeito de Théorie du sujet é um sujeito pós-
lacaniano. A esse propósito, notaremos a existência de uma frase em especial desse livro que
esperamos tornar inteligível com o nosso trabalho: “Tal como Hegel para Marx, Lacan é para
nós essencial e divisível” (BADIOU, pág. 150). Com efeito, é em referência a esses três nomes
e à complexa rede conceitual em que eles implicam o sujeito que a teorização de Badiou pode
ser reconhecida em sua verdadeira singularidade. Advirta-se que não é o bastante recuperar a
dívida do filósofo francês para com cada um dos três: torna-se necessário, ao mesmo tempo,
compreender como Lacan desempenha um papel ímpar na teorização de Badiou. Ou seja, antes
de compreendermos o que poderia justificar a designação do sujeito de Badiou como sendo
posterior ao advento da psicanálise lacaniana, devemos compreender porque é que ele é
posterior ao sujeito que essa psicanálise faz indagar. Anteciparemos a resposta dizendo que
Lacan redefine as relações que Badiou entretém tanto com Hegel quanto com Marx.
Antes de mais, portanto, vale recapitular, mesmo que muito brevemente, a centralidade que
Hegel ocupa no desenvolvimento das concepções de sujeito em Lacan e em Badiou.
Procedendo dessa maneira, logo na sequência, poderemos apreciar como o psicanalista insinua
um possível descentramento do filósofo alemão. Tal como discutido nesta seção de nosso
trabalho, Hegel foi ninguém menos que o responsável por efetuar uma radical crítica à
concepção de subjetividade veiculada pela filosofia kantiana: apontava-se, então, para a
necessidade de uma superação das oposições estanques entre sujeito e objeto. Essa crítica,
repleta das mais variadas consequências, reverbera de maneiras distintas nos dois pensadores.
No caso de Lacan, notadamente, apesar de ter encontrado em suas teorizações das décadas de
1930, 1940 e 1950 um meio tão favorável de propagação que a voz da dialética hegeliana se
deixava ouvir muito claramente, ocorrerá uma transformação que, por vontade do próprio
psicanalista, faz com que em seu pensamento o timbre de Hegel não se reconheça mais de
pronto: para todos os efeitos, a partir dos anos 1960, Lacan não se tem mais como hegeliano.
No entanto, como trata de demonstrar Vladimir Safatle em A paixão do negativo, constatar que
o psicanalista francês, a contar desde uma certa época, deixou de se identificar com o
hegelianismo não é torna razoável a completa desvinculação de suas últimas elaborações
teóricas de toda e qualquer problemática hegeliana (Cf. SAFATLE, pág. 24). Muito pelo
contrário, essas elaborações, se consideradas na sua real fecundidade, continuam respondendo
a uma série de questões que teriam sido colocadas pela filosofia de Hegel em face dos impasses
da modernidade. Em verdade, o mais produtivo, a seguir a proposta interpretativa de Safatle, é
assumir que

152
Lacan teria aceito o diagnóstico hegeliano a respeito da decomposição
da razão moderna, da centralidade da negação na estruturação do
pensamento, das dicotomias produzidas pelo princípio de identidade,
da irredutibilidade ontológica de um conceito não substancial de sujeito
e da possibilidade de pensar um regime de identificação entre o sujeito
e o objeto não baseado na assimilação simples do segundo pelo
primeiro. (SAFATLE, pág. 25)

No percurso do psicanalista, caracteriza-se mais uma situação paradoxal, a saber, a de que


Lacan seja tanto mais hegeliano quanto mais afastado ele acredite encontrar-se do filósofo.
Mas a distância que o psicanalista toma em relação ao filósofo, sendo equívoca em
determinados aspectos, tem uma razão de ser. Em parte, ela diz respeito ao sujeito e à
radicalidade do projeto do psicanalista quanto à subversão que ele esperava promover desse
construto filósofo. Entendamos, assim, caso já não estivesse suficientemente claro, que Lacan
tem um projeto de subversão do subjetcum. Próximo e distante, esse subjetcum traduz, como
tratamos de dizer algumas vezes, o hupokeimenon aristotélico: trata-se de seu correspondente
literal, uma vez que os dois significam aquilo que sub-jaz, isto é, o que jaz abaixo, como suporte
ou como substrato. Se consultamos o verbete do Dictionnaire des intraduisibles
correspondente ao “sujeito” (com o qual contribui Etienne Balibar), verificamos que, apesar de
não compreender alguns dos significados correntes associáveis à palavra (como as acepções
políticas trabalhadas nesta seção, relativas ao subjectus), o termo grego
cobre e reúne dois tipos de sujeito cuja composição prova ser parte
necessária da própria ideia de subjetividade: o sujeito físico, que é o
substrato dos acidentes que ocorrem através das mudanças, e o sujeito
lógico, que é o suporte para os predicados de uma proposição. Essa
sutura, a qual é “onto-lógica” nisso em que ela permite ser e “ser dito”
coincidirem como se por natureza, é a marca da ousía de Aristóteles.
(Dicionário dos intraduzíveis, pág. 1070).

O emprego que viemos fazendo desse latinismo ao longo de nossa exposição, muito embora
possa sugerir o domínio de algum termo jurídico obscuro, de cujos códices teríamos dado a ver
a necessidade de preservar a ciência a mais estrita e erudita, tem na verdade a simples razão de
devolver ao leitor a opacidade histórica que o termo ainda retém em seu corpo significante: a
gramática que ordena o sujeito como suporte dos predicados não desvela imediatamente a
lógica de seu ser mundano. Tendo em vista a definição há pouco providenciada, que restitui
parcialmente em sua matéria histórica o subjectum, nós devemos reparar, assim, que as várias
acepções de sujeito a que se filiam Lacan e Badiou têm algo em comum: destacando um dos
aspectos que Safatle assinala na passagem citada acima, que vincularia o psicanalista a alguns
dos questionamentos hegelianos, a sua filiação demonstra uma mesma preocupação em pensar
um “conceito não substancial de sujeito". Diremos, pois, que, em alguma medida, em menor
ou maior grau, todas as acepções do sujeito a que aludimos neste trabalho comportam alguma
subversão da compreensão aristotélica do hupokeimenon. Seja porque não admitem a
mundaneidade de seu substrato, seja porque são tributárias da convicção de que o rigor de uma
nova lógica capaz de subverter o seu suporte passou a ser absolutamente imprescindível, elas
não coincidirão com o significado estrito que lhe dava o estagirita. A palavra se conserva,
certamente, porque ela faz valer esse duplo registro, a um só tempo lógico e ôntico. Mas o
liame desses dois aspectos perde qualquer evidência comprovável pelos sentidos ou mesmo
alcançável pelo puro pensamento, ficando bloqueado esse “como se por natureza” que
associaria o ser ao “ser dito”. Isso posto, nós lançamos a nossa hipótese: um dos motivos de

153
Lacan não aceder inteiramente à filosofia de Hegel é o radical anti-aristotelismo professado
pelo psicanalista.
Mas como alguém tão pouco afeito à realidade empírica e tão pouco inclinado a submeter-se
às restrições do princípio lógico de não-contradição quanto o seria Hegel pode causar alguma
suspeita de aristotelismo? Não foi ele o responsável por uma das maiores contribuições já
realizadas no sentido de subverter o sujeito aristotélico? No entanto, a despeito dessas
contribuições, as afinidades existem e, como indicado pelo texto “Hegel, leitor de Aristóteles”
de Gerard Lebrun, assim como terá sido minuciosamente examinado no livro Hegel and
Aristotle [Hegel e Aristóteles] de Alfredo Ferrarin, o aristotelismo de Hegel apresenta não só
uma inegável pertinência, como tem mesmo um significado crucial em sua filosofia.
Comprova-o, em primeiro lugar, a letra do filósofo: é declarada a fidelidade ao estagirita, um
tanto estranha se considerada em referência aos comentários que ele reserva aos demais
filósofos, como se (quase) todos eles fossem incapazes de compreender o seu próprio
pensamento, sendo necessário recuperar a sua verdade como que retrospectivamente, na
exposição do todo sistemático da ciência filosófica. Por seu turno, quando em companhia de
Aristóteles, a impressão transmitida pelo filósofo alemão é a de que já se está instalado na
efetividade mesma do conceito: é como se Aristóteles possibilitasse compreender Hegel, ao
invés de tornar-se compreensível por intermédio da filosofia hegeliana (Cf. LEBRUN, pág.
295). Como observa Lebrun, pode-se depreender disso uma primeira consequência filosófica
do aristotelismo de Hegel:
essa obrigação de fidelidade incondicional a Aristóteles nos faz tomar
melhor consciência que o hegelianismo não se reduz à dialética. Não
é, com efeito, o dialético propriamente dito que se reconhece em
Aristóteles, mas o pensador especulativo. A dialética não é, em nenhum
momento, senão a subversão das categorias petrificadas pelo
entendimento, a autocrítica que aparta estas de sua unilateralidade. O
especulativo é o momento “positivamente racional”, graças ao qual
aquilo que podia parecer um exercício cético e niilisante é entendido
como sendo a manifestação de uma totalidade orgânica. (LEBRUN,
pág. 276)

Ora, mas é essa manifestação de uma “totalidade orgânica" que o psicanalista não pode aceitar,
o que Safatle evidencia bem no início de A paixão do negativo, como se a advertir sobre o
verdadeiro teor do hegelianismo que estaria em questão: “Lacan, porém, teria tomado distância
dos dispositivos de totalização sistêmica presentes em Hegel” (SAFATLE, pág. 25). Ou seja,
a propósito das complexas relações entre Lacan e Hegel, podemos falar (como o faz Badiou na
década de 1970) da relevância da divisão, tanto como operador a ser recuperado ao filósofo
alemão, quanto como operador a ser aplicado a ele quando dessa recuperação. Assim,
contrariando a fome de totalização própria ao conceito, inscrita tanto na etimologia que lhe
vale o alemão (Begriff, em que ressoa o verbo angreifen, agarrar), quanto na que lhe devolve o
latim (conceptus, contenção), Safatle nos ajuda a apreender o aspecto essencialmente ruinoso
da dialética hegeliana, estreitamente vinculado à passagem do tempo em que ela faz ver o ser-
aí do conceito:
Se o “tempo é o próprio conceito que está-aí" (...) é porque o tempo
mostra o conceito como potência negativa que nega toda determinidade
imediata. Nesse sentido, basta seguir o movimento do conceito para ver
como ele deixa atrás de si uma acumulação de ruínas. Ruína do ser,
ruína do Um, ruína do nada, etc. Como nos lembra Lebrun, o conceito

154
hegeliano é destruição da gramática filosófica própria à representação
e abertura a um falar que é reconhecimento dos objetos como
temporalidade. Ele não é instrumento de domínio da efetividade, mas
reconhecimento reflexivo de si no que escorre entre os dedos da mão
que queria apreender o objeto. (SAFATLE, 2006, pág. 268, grifo
nosso)

Retornando ao estranho pareamento que aventamos há pouco, temos de notar que, se existe
realmente uma afinidade tão grande entre os dois filósofos, com absoluta certeza não é pelo
lado da investigação empírica que a importância do motivo de uma "totalidade orgânica”
poderá apresentar-se na sua relevância para a doutrina hegeliana: o fato de Aristóteles tê-la
praticado tão sistematicamente, por exemplo, na paciente catalogação dos seres vivos a que se
propôs, nunca poderia ser tida como a razão pela qual o filósofo alemão o reconhece quase
como seu contemporâneo. Antes, a questão é que, mesmo nesses grandes inventários que
concernem à vastidão do empírico, Aristóteles teria conseguido marcar as pulsações do
conceito. E, a bem da verdade, é na comissura da ousía aristotélica que Hegel encontra um dos
mais eminentes modelos para o que ele entende ser uma subjetividade infinita (Cf. também
páginas 288 e 289). As lições de Hegel sobre a história da filosofia, se mal lidas, até poderiam
sugerir que o lugar privilegiado assinado a Aristóteles seria devido a uma suposta virtude que
ele teria manifestado, de equilibrar-se entre extremos, como o seriam Heráclito e Platão (Cf.
LEBRUN, páginas 278 a 280): ele aparentaria situar-se no meio dos dois, evitando afirmar
exclusivamente os opostos que, de um lado, referem um fluxo irrefreável de mudanças
contínuas, e, de outro, formas eternas e imutáveis, conservadas da corrupção natural porque
separadas de toda eventualidade mundana. Mas, com Aristóteles, não é de um pobre equilíbrio
que se trata: em sua filosofia, não é de maneira alguma questão de misturar num mesmo
cadinho, em partes iguais e harmônicas, o movimento e o repouso para obter então o
subproduto de uma estabilidade relativa, experimentável como a regra do mundo sublunar. Em
vez disso, Aristóteles seria o “arauto do princípio de subjetividade” esposado pela filosofia
hegeliana pela sua insistência na "autodeterminação operante da ideia" (Cf. LEBRUN, pág.
276), ao explicitar que “o movimento como tal deve dar-se como ‘aquilo que permanece igual
a si’” (LEBRUN, páginas 278 e 279). Com efeito, para Hegel, é com Aristóteles que a
mobilidade teria deixado de opor-se à substancialidade. Isso porque a sua filosofia não se
contentou em acrescentar àquilo o que subsiste um movimento vindo de fora, atinando, em vez
disso, para a necessidade de encarar este como uma causa efetiva: “somente o que move e o
que move por princípio é o Absoluto – e não o que é capaz de mover de vez em quando e depois
de um certo tempo” (LEBRUN, pág. 280). E é por isso também que o anti-platonismo de
Aristóteles não poderia nunca confundir-se com um elogio banal do movimento:
O movimento, o devir, não explicam nada por eles mesmos; eles não
tornam em absoluto inteligível o conhecimento do que quer que
seja...Somente é significativa a mobilidade que explicita uma
atualidade. Somente é significativa a mobilidade que está a “caminho
para um fim”, e na qual este anuncia e se delineia progressivamente: a
construção da casa" (LEBRUN, pág. 281).

Como já sabemos, a filosofia hegeliana autoriza uma consideração racional da história, mas
apenas sob a forma de um movimento que promova a adequação do conceito a si mesmo.
O conceito, porém, não é nenhuma moradia humana: o projeto da casa seria ainda um princípio
exterior, imposto de fora pelo construtor à matéria que ele pretende emprestar uma certa forma.
O plano que o conceito cumpre – plano que não foi definido previamente, e que não existe,

155
portanto, num tempo anterior àquele de sua efetivação – seria uma decorrência necessária de
sua organicidade: o seu verdadeiro paradigma não é o de que o homem construa uma casa de
acordo com um projeto bem definido, e sim o de que o homem gere o homem (Cf. LEBRUN,
pág. 282). Nesse paradigma “natural”, o que se destaca é uma identidade entre produto e
produtor (Cf. LEBRUN, pág. 282). Decerto, não se confundem numericamente pais e filhos,
pois, como o atesta de maneira inequívoca a empiria, encontram-se separados o homem que
engendra e o homem que é engendrado. Em ambos os casos, no entanto, bem como no processo
em que os dois são implicados, a vida está sempre junto de si mesma, como princípio que tem
em si mesmo o seu fim: é o privilégio de tudo aquilo o que é vivo efetuar um processo que não
concorre para realizar nenhum outro movimento senão o de permanecer em si, porque a sua
meta nunca difere da vida ela mesma. Pelo que se pode perceber que, muito embora seja
apreensível na natureza, o movimento em questão não é propriamente um movimento natural:
segundo Hegel, sendo a natureza uma circunstância específica em que o conceito experimenta
a exterioridade a si mesmo, nela, a identidade entre produto e produtor não teria como perfazer
a totalidade de seu processo. É nesse sentido que a ousía aristotélica se torna fundamental para
a compreensão da subjetividade infinita tal como pensada por Hegel, uma vez que ela é
substância de alguma coisa apenas na medida em que dessa coisa haja um conceito (Cf.
LEBRUN, pág. 286), que é a própria ousía. Ou seja, é unicamente no pensamento que a
identidade da coisa consigo mesma vem a se tornar possível, o que interdita terminantemente
compreendê-lo como uma mera representação “subjetiva” (isto é, numa acepção próxima de
“representação psicológica”) dos objetos mundanos:
Afirmar que o pensamento detém a ousía da coisa, não é “subjetivar”
a coisa, não é transformá-la fantasticamente em “pensamento”: é dizer
que conhecer não é absolutamente o equivalente a assistir a um
espetáculo. É subentender que o pensar não é para imaginar como a
reunificação de um “sujeito” e de um “objeto”. Pensar quer dizer: o que
eu tenho ou que creio acolher na minha representação, na realidade eu
o sou. “Aqui, a separação e a relação são uma e mesma coisa, de
maneira que Noûs e noéton são idênticos”. Eis porque é em Aristóteles
e não em Platão que aparece – estranho monolito no coração do
paganismo - “a forma infinita da subjetividade”. (LEBRUN, pág. 287)

Como o expõe Lebrun no texto citado há pouco, a exegese que Hegel faz de Aristóteles, a
conduzir-se por uma via um tanto acidentada mas que nem por isso corresponderia à obra de
um puro arbítrio, depara na noésis noeseos, o apanágio divino do motor imóvel de gozar da
pura identidade entre pensamento e pensado, a “mais alta manifestação da enérgeia” (Cf.
LEBRUN, pág. 289), esta última sendo tida como a atividade semovente própria à
subjetividade. Do que se conclui que é ao pensamento absoluto que se restitui irrestritamente
o privilégio da vida, de estar sempre junto consigo mesmo: “o pensar é, por definição, o que
não tem 'objeto' exterior a ele - aquilo do qual o 'conteúdo' é já o produto” (LEBRUN, pág.
291).
A partir dessa constatação nós podemos desenvolver a nossa hipótese mais satisfatoriamente:
nós entendemos que a totalidade orgânica do sistema hegeliano vem a ser rejeitada pelo
psicanalista porque ela deixa entrever uma limitação conceitual devida exatamente a que uma
tal filosofia precise amparar-se nesse pensamento que não teria nenhum objeto exterior a ele.
Antes de prosseguirmos, será imprescindível que nos coloquemos prevenidos quanto aos mal-
entendidos: afirmar a validade desse Absoluto, concretizado num pensamento que não teria
objeto exterior a si, não significa, por exemplo, que a toda ocorrência mundana fosse atribuível

156
um sentido bem definido, como se o espírito hegeliano, ao invés de fiar-se no não-saber
socrático, se proclamasse o oráculo dos oráculos, Senhor de todos os tempos, conhecedor de
todos os desígnios. Hegel não se entrega à megalomania de divinizar o mundo sublunar; muito
distante disso, ele o despe de sua irredimível finitude (Cf. LEBRUN, pág. 285). Assim, quando
muito, o que ele propõe é demonstrar a necessidade da contingência, não a sua improcedência:
apesar de o tempo estar repleto de contingências, haveria ainda lugar para uma Weltgeschichte,
porque a finitude do mundo não o aparta absolutamente do infinito. Como explicado em outro
capítulo, a história mundial de Hegel está muito longe de perfazer uma totalidade do tempo –
posto que o tempo, sendo uma determinação natural do espírito, não comporta a adequação do
conceito a si mesmo. Se por contemporaneidade do conceito à história compreende-se nada
mais do que uma presença do conceito em cada mínima sucessão temporal, então essa
contemporaneidade, quando referida à filosofia hegeliana, não passa de um triste equívoco.
Mas, estando desfeita a caricatura de um pensamento absoluto que fosse imaginado como uma
representação a abarcar a totalidade da existência numa grande paisagem discernível em seus
mínimos detalhes, como ele seria reconhecível em sua limitação, se ele a admite prontamente?
Ora, ele só pode ser limitado por excluir, com a sua totalização, o heterogêneo, o não-idêntico.
Ou seja, ao admitir que “(...) esse ser-sempre - já em-posse é o que determina melhor o
pensamento” (LEBRUN, pág. 291), ignora-se o impasse que o heterogêneo, concebido como
o não-totalizável, coloca para o próprio pensamento. Aos olhos de Lacan, a dialética hegeliana
não comete um dos maiores erros de Aristóteles, que é o de basear o princípio de não
contradição na univocidade da significação: em última instância, para o estagirita, toda
homonímia - quer de palavra, quer de raciocínio, quer - seria passível de resolução quando em
face do objeto significado (Cf. BADIOU & CASSIN, pág. ). Ao que tudo indica, na perspectiva
de Hegel, foi por manter separados o pensamento de Deus e o pensamento humano que
Aristóteles nunca pôde se tornar um filósofo verdadeiramente sistemático (afinal, ele nunca
teve a oportunidade de tomar conhecimento do Deus cristão e das profundidades que o sujeito
individual experimenta com o protestantismo e com o Cogito cartesiano): o estagirita permite
assim que o substrato permaneça como um simples pressuposto. Mas, para Lacan, nesse ir além
de Aristóteles, a filosofia hegeliana comete um outro erro, que é o de acreditar que, ao dialetizar
– isto é, ao demonstrar a unilateralidade das determinações finitas e opostas dentre as quais se
move inescapavelmente o entendimento –, depara-se, pela força do só conceito, um percurso
que leva necessariamente à identidade orgânica entre pensamento e efetividade: dessa maneira,
uma tal filosofia exacerba o organicismo aristotélico, rendendo tudo o que possa ser
considerado pensamento à totalidade de uma mesma Ideia.
Decerto, o fato de a Natureza constituir um dos temas hegelianos, como se fosse um dos nichos
irrecusáveis que abrigam a infinita performance circular do espírito (Cf. LEBRUN, pág. 293),
faz discrepar significativamente essa filosofia dos ensinamentos do psicanalista. A
discordância maior de Lacan com Hegel, no entanto, deve ser localizada no privilégio que uma
tal filosofia acredita desfrutar ao reconhecer-se tão próxima da vida, a ponto de propor-se
restabelecer o seu conceito na Natureza (assumindo, dessa maneira, uma prerrogativa que ela
não cede de maneira alguma às ciências empíricas finitas que frutificam na modernidade). Essa
potência do Absoluto, que reivindica para si um poder intransferível de reconciliação,
assemelha-se mais ao proceder da personagem Mittler de As afinidades eletivas do que às
aspirações da dialética de permitir que o objeto se revele por si mesmo: intermediário o mais
inoportuno, ele se mete nas coisas do amor com o só intuito de refazer casamentos
impraticáveis (Cf. BENJAMIN, pág. ). Com efeito, a dialética hegeliana não parece ter
absolutamente nada o que dizer sobre – e nem tampouco saberia como escrever – o pas-toute,
o não-todo que caracteriza a posição feminina nas fórmulas de sexuação. Aliás, cabe reparar –

157
como o atesta o nosso percurso – que, antes mesmo da intervenção de Lacan, a ignorância
constitutiva da dialética hegeliana quanto àquilo o que não seria totalizável pela Ideia já havia
sido exposta por Marx: ainda muito jovem, o pensador contesta a pretensa identidade entre
produto e produtor que o Absoluto do pensamento faria valer nos domínios da Weltgeschichte.
Mais precisamente, ele teria partido de uma disjunção numérica específica, muito característica
do novo regime de produção que será designado como capitalismo, a saber, uma disjunção que
aparta irremediavelmente duas classes: esse mundo que a mais e mais se vota à produção de
mercadorias, fazendo-o tão radicalmente a ponto de transfigurar quase que por completo a
materialidade da vida humana, ele depende em sua essência da expropriação do trabalhador em
favor do capitalista. Essa intuição fundamental, que já se delineava nos Manuscritos
econômico-filosóficos, de 1844, culminará num processo importantíssimo para a consolidação
de uma nova tradição crítica, posto que permite observar como a uma “crítica da filosofia do
direito” sucede uma “crítica da economia política”: de certa maneira, o que Marx faz é submeter
ao escrutínio o mais rigoroso um dos pressupostos inconfessos da concepção hegeliana de uma
virtude criadora e livre atribuível especialmente à Ideia absoluta, a saber, o da materialidade
do trabalho. Como se sabe, no prefácio à sua Ciência da lógica, Hegel se sentia compelido a
falar do estranho espetáculo de "um povo cultivado desprovido de metafísica" (Cf. HEGEL,
pág. 3), tal como o teria encenado a modernidade. Em resposta a essa circunstância histórica
extraordinária, intervém a sua filosofia, a qual tem de reservar um novo conteúdo à lógica: “(...)
esse conteúdo é a apresentação de Deus tal como ele é em sua essência eterna, antes da criação
da natureza e de um espírito finito” (HEGEL, pág. 19). Pois bem, ainda que esse Deus não
coincida com o criador-espectador das sagradas escrituras – identificando-se, antes, como pura
enérgeia (Cf. LEBRUN, pág. 292) –, Marx o desvelará em sua falsidade ideológica, situando
o seu verdadeiro lugar no mundo: em sua obra madura, a utilizar-se dos operadores conceituais
mais elaborados da Lógica de Hegel, o Capital será pensado como um quase-vivente,
simultaneamente implicado num mau e num bom infinito (Cf. ). Espécie de desmentido da
afirmação segundo a qual os europeus modernos seriam desprovidos de metafísica, o Capital é
uma divindade dotada quase que da mesma autonomia da Ideia hegeliana, salvo o detalhe de
ser uma divindade fetichista: a devoção cotidiana por ele imposta à totalidade dos homens deixa
muito claro que o trabalho livre que supostamente o faz prosperar é na verdade o produto de
um sacrifício contínuo, por meio do qual o Capital vem a confrontar os seus próprios produtores
– os trabalhadores – como uma potência que lhes seria estranha.
O projeto crítico de Marx está dividido entre dois sujeitos, quais sejam, o sujeito do proletariado
e o sujeito do Capital. O que quer dizer que o seu pensamento dialético se divide entre expor,
de um lado, a falsa totalidade do movimento circular que perfaz o valor que se valoriza
(segundo a definição dada por Marx para o Capital) e mobilizar, de outro, o elemento dessa
falsa totalidade que, apesar de lhe ser essencial, é cada vez mais desvalorizado e, por
conseguinte, vem a ser posto como a sua exceção. Essa dupla articulação, como antecipado, é
também uma articulação em que a dialética vê o momento de sua verdade apartar-se da
totalidade orgânica: ela pode ser interpretada como o sintoma de uma situação irreconciliável
quando considerada pelo só parâmetro da Lei que a estrutura. Mas, por isso mesmo, uma tal
divisão representa uma das maiores dificuldades para a posteridade da tradição crítica por ele
inaugurada: na figura histórica de Marx, reflete-se a miragem que pretende fazer com que um
dos versos da crítica recubra à perfeição o seu anverso. De sorte que, traindo muitas vezes a
imprudência de um otimismo sumamente ingênuo, cada crise do capitalismo seria percebida
como um momento em que renasce a esperança de que a emancipação humana finalmente se
efetue. Sem sombra de dúvida, uma tal concepção dividida do sujeito tem de ser apreendida
como se a configurar a matriz fundamental do pensamento do Badiou da década de 1970. No

158
entanto, enquanto teoria do sujeito, ela não lhe é suficiente, porque ela não concede o devido
enfoque ao processo da verdade que coloca em causa: a análise do sistema produtor de
mercadorias jamais permitiria deduzir a sequência sob a qual deverá dar-se o triunfo político
do proletariado. Muito embora não seja de maneira alguma irrelevante, a assistência que a
crítica da economia política presta à crítica da filosofia do direito, além de não ser suficiente,
encontra-se sujeita a um equívoco maior: absolutamente nada garante que o proletariado como
sujeito da luta de classes seja identificável com o proletariado como classe explorada no regime
de produção capitalista. A sua força subjetiva, força que seria capaz de transformar a
circunstância que o situa, não pode esgotar-se no posto objetivo que então lhe é assinado. Diga-
se, pois, que, sob um certo aspecto, essas dificuldades são decorrentes das insuficiências
teóricas do próprio Marx, o qual chega, mesmo que involuntariamente, a concorrer para a
imprudência do otimismo sumamente ingênuo mencionado há pouco. A tentativa de Althusser
de pensar uma dialética genuinamente marxista, ainda que mal sucedida, era uma tentativa
bastante original de suprir deficiências dessa ordem: não por acaso, a hipóstase do conceito de
prática pode ser vista como uma ressurgência da excepcionalidade “ontológica" de que Marx
gostaria de ter dotado o trabalho humano (como acontece muito claramente nos Manuscritos
de 1844, mas também em O Capital). Certamente, não se deve perder de vista que essa
excepcionalidade foi um dos principais móveis de uma crítica ao conteúdo idealista da dialética
hegeliana. Descendente direta da crítica de Feuerbach ao cristianismo que estaria pressuposto
à filosofia de Hegel – crítica que aspirava a restabelecer ao homem o lugar de sujeito que a
religião lhe teria usurpado128 –, quando Marx fala da excepcionalidade do trabalho humano em
relação aos outros animais ele visa sobretudo uma generalidade 129 realizável unicamente
através da superação da circunstância sócio-histórica representada pela existência da
propriedade privada: em outras palavras, ele visa o processo de verdade de uma política que
concerne o coletivo em sua universalidade. Nunca fica claro, entretanto, como o homem seria
capaz de ultrapassar as suas determinações naturais, sobretudo porque ele mesmo é percebido
muito prontamente como uma parte da natureza (Cf. MARX, pág. 85). A tentativa de dispensar-
se da metafísica hegeliana – que justifica, em parte, a releitura espinosana da obra de Marx –
cria outras tantas miragens, decorrentes de que, com ou sem o aval do pensador alemão,
sobreponham-se subjetividade e objetividade: tocada de muito perto por uma preocupação de
ser mais atinente à empiria do que o haviam sido os velhos mestres filosóficos de Marx (e isso
graças ao cientificismo reinante no século em que surgiu), se essa dialética não se esgota na
natureza, ela tampouco trabalha outra coisa que não seja a sua matéria-prima. Nesse contexto,
em que o trabalho humano opera verdadeiros milagres, não admira que a ciência moderna
apareça enquanto algo a ser tomado como um mero apêndice da indústria (Cf. ENGELS &
MARX, pág. 31).

128 Como se lê na conclusão de A essência do cristianismo: "Demonstramos que o conteúdo e o objeto da religião
é totalmente humano, demonstramos que o mistério da teologia é a antropologia, que a essência divina é a humana.
Mas a religião não tem a consciência da humanidade do seu conteúdo; ela antes se opõe ao humano ou pelo não
confessa que o seu conteúdo é humano. A mudança necessária da história é, portanto, esta confissão aberta, de
que a consciência de Deus nada mais é que a consciência do gênero, que o homem pode e deve se elevar acima
das limitações da sua individualidade ou personalidade, mas não acima das leis, das qualidades essenciais do seu
gênero, que o homem não pode pensar, pressentir, imaginar, sentir, crer, querer, amar e adorar como essência
absoluta, divina, a não ser a essência humana” (FEUERBACH, pág. 267). A filiação a Feuerbach é confessada
pelo próprio Marx nos Manuscritos econômico-filosóficos: “A crítica da economia nacional deve, além do mais,
assim como a crítica positiva em geral, sua verdadeira fundamentação às descobertas de Feuerbach. De Feuerbach
data, em primeiro lugar, a crítica positiva humanista e naturalista” (MARX, pág. 20).
129

159
Em Marx, como se pode ver, a subversão do sujeito complica-se incrivelmente: reportando-se
a dois sujeitos que mantêm entre si uma relação no mínimo obscura, ele subverte tanto o zelo
aristotélico relativo à observância do princípio de não contradição como a totalidade orgânica
do sistema hegeliano. Ao mesmo tempo, porém, ele se vê sob a ameaça de reincidir nos dois:
ora o proletariado aparenta não ser mais que um substrato, facilmente identificável e passível
de ser designado em sua inequívoca matéria empírica, ora o sistema capitalista aparenta
arruinar-se por si só, como se o comunismo pudesse brotar dele espontaneamente.
Precisamente por isso, tratando de questões próximas, a certa altura de Théorie du sujet, Badiou
faz a seguinte observação:
Em Marx [, em lugar de uma consideração propriamente subjetiva do
proletariado,] haveria antes uma teoria do Eu [Moi], uma crítica das
ilusões da consciência. As posições de classe são explicitadas em
dispositivos ideológicos que não se encontram muito longe de evocar
a função do imaginário na edificação desse Eu [Moi] de que todo
sujeito faz seu Todo. (BADIOU, pág. 196)

Incapaz de levar adiante a subversão do sujeito em suas duas frentes, Marx revive a ideia
“esclarecida” de uma consciência auto-reflexiva, espelho que, por enquanto, estaria ainda
manchado, mas que, uma vez polido, deverá refletir a totalidade de sua realidade com exatidão
fidedigna. E a esse ser excepcional, dotado da virtude incomparável de trabalhar sob os ditames
da consciência130, reserva-se a classificação inespecífica de homem: verdadeiro lugar da
subjetividade, em que se entrecruzam uma história natural e uma natureza histórica (Cf.
ENGELS & MARX, pág. 31), a ele é que competem as forças da transformação efetiva da
realidade. Curiosamente, uma inespecificidade comparável também pode ser encontrada em
Lacan, que, lembremos, é o outro “de-totalizador” de Hegel de que nos ocupamos aqui. Por um
tempo considerável, o psicanalista francês tomou um caminho muito similar: segundo as
teorizações que ele começou a desenvolver na década de 1930, em que prima o conceito de
estádio do espelho, chama-se homem o ser que, para designar-se como tal, não é remissível
exatamente a uma espécie, mas a uma modalidade inespecífica de refletir-se na sua imagem e
na de seus congêneres. Essa maneira de abordar a inespecificidade do homem, contudo,
descobre a natureza essencialmente alienante do Eu [Moi], que seria o sintoma humano por
excelência: ao invés de conformar o indivíduo à sua espécie, função que parece desempenhar
sem maiores problemas em outros animais, o imaginário condena o homem a um descompasso
perpétuo para com a sua própria identidade. Assim, mais de acordo com a desconfiança que a
psicanálise desperta quanto aos domínios da consciência, para Lacan, o Eu [Moi] não promete
nenhuma reconciliação do homem consigo mesmo. Muito pelo contrário, o Eu [Moi] fomenta
toda sorte de desentendimentos, para não falar no sectarismo das formações de massa a que ele
dá lugar. Com o que podemos entender melhor a passagem de Badiou citada acima: desde o
aporte subjetivo da psicanálise lacaniana, seria possível afirmar que, pelo só expediente da
reflexão, quer seja ela filosófica, quer industriosa, a generalidade que se pretende referir com
as palavras “Ideia" e “homem” não logra senão a alienação no Todo com o qual elas prescrevem
uma identificação.
Ao que tudo indica, o paralelo mais fácil de traçar entre Marx e Lacan seria o de determinar
que em ambas as latitudes, segundo as teorizações propostas por cada um dos dois pensadores,
poderia ser mapeada alguma excepcionalidade humana. No entanto, esse paralelo não nos
adianta muita coisa quanto a encontrar o meridiano em que Badiou vem se alinhar a eles: para

130 Do Capital aos Manuscritos, é esse trabalho consciente que distingue o homem aos olhos de Marx.

160
que possa fazê-lo, o filósofo francês se verá obrigado a deslocá-los de suas respectivas
posições. Decerto, isso não desveste uma aproximação entre Marx e Lacan de toda e qualquer
relevância. Para nós, não deixa de ser interessante assinalarmos que, nas teorizações lacanianas
das décadas de 1950 e 1960, o imaginário faltoso do homem implicaria, conjuntamente com a
incidência do simbólico, numa excepcionalidade de seu desejo e de sua conduta sexual. E,
relativamente ao aspecto excessivo de que resultaria a subtração da subjetividade à totalidade
da Ideia, tanto para Marx como para Lacan, a filosofia é desautorizada em sua prerrogativa de
agir em vistas de uma energéia pura: doravante, o discurso filosófico não se sustenta mais por
si mesmo, o pensamento tendo deixado de corresponder a uma atividade e a uma efetividade
auto-referidas. O que significa que, na política e na clínica, o pensamento entra num certo
descompasso para com a práxis (descompasso, aliás, a propósito do qual o sujeito pode ser
tematizado pelas duas). Mas, como foi indicado há pouco, a incompletude da subversão
operada por Marx de certa maneira o coloca desemparelhado em relação ao psicanalista: desse
ponto de vista, entrevê-se a necessidade de suplementar a teoria do sujeito marxista. Cabe
lembrar, assim, que, a partir do famoso “retorno a Freud”, a excepcionalidade humana teorizada
pelo psicanalista não se deixa reconhecer imediatamente na figura do homem, sendo devida,
antes, à linguagem, instância de uma alteridade totalmente outra onde se evidencia como ao
desejo vem faltar todo objeto. Essa primazia da linguagem, afirmada tão radicalmente a ponto
de desalojar qualquer pretensão filosófica de amestrar o discurso e de rendê-lo completamente
aos serviços de um conhecimento absoluto do ser, vem complicar mais uma vez as relações
entre Lacan e Hegel: sob esse aspecto, ainda haveria alguma filiação entre o psicanalista e o
filósofo. Em certa medida, uma tal primazia poderia ser vista como uma reverberação do
romantismo alemão, onde se destacava, por exemplo, a figura de Friedrich Schlegel, alguém
para quem a “letra [Buchstabe] é a verdadeira varinha mágica [Zauberstab]" (SCHLEGEL,
apud SUZUKI, 1998, pág. 203). Os jogos de palavras propiciados pela obra do próprio Hegel
atestam, no entanto, que ele reconhecia muito prontamente o labor do espírito nos rodeios
significantes da linguagem: basta ver como ele faz derivar do dois [Zwei] o caráter dual e
antinômico da dúvida [Zweifel] (do qual também proviria, aliás, o desespero [Verzweiflung] do
entendimento), ou como ele denuncia o erro da percepção sensível [Wahrnehung] no ato de
tomar [nehmen] a si mesma, irrefletidamente, como algo de verdadeiro [wahr].131 Se, como diz
Lebrun, sem a enérgeia aristotélica, as palavras e a dialética hegeliana arriscam-se a não
conformar “senão uma sofística bem polida” (LEBRUN, pág. 295), é quase inevitável concluir
que Lacan estaria muito mais à vontade com essa segunda opção, uma vez que ele houvesse
declarado que a Aufhebung não passaria de um bonito sonho da filosofia. 132 Só que, da
perspectiva de Badiou, o suplemento à teoria do sujeito não vem através de uma concessão à
primazia da linguagem, e sim da circunscrição do real possibilitada pela formalização lógico-
matemática. Ao seguir Lacan, o filósofo assume que as matemáticas são o único logos capaz
de suportar a enorme violência que as verdades infligem à ousía; ou melhor, ele assume que,
na ausência de um ser que coincida com o “ser dito” como se “por natureza“, resta ao
pensamento escrever a impossibilidade através da qual o real se apresenta.
Para Lacan – especialmente durante o início da década de 1970 –, como vimos em seção
anterior deste trabalho, era fundamental contestar a certeza aristotélica de que o ser pensa. Eis

131 Em A paciência do conceito, como nos chamou a atenção Régis Alves, Gerard Lebrun : “Hegel observa que
hoje se desprezam os sofismas e os ‘jogos de palavras’ dos megáricos. Mas a atenção que consagravam às palavras
por si mesmas era menos fútil, pensa ele, que nossa impaciência diante dessas futilidades” (LEBRUN, pág. 382).
Esse trecho me foi indicado por Régis Alves.
132 Vale lembrar que a dialética hegeliana reabilita a sofística antiga. Cf., por exemplo, O ressentimento da

dialética. Um paralelo interessante pode ser traçado com Lacan, cujo foi pelo trabalho de Barbara Cassin.

161
o motivo para que o psicanalista tenha se aplicado a uma reiterada divisão da dialética,
recusando, no mesmo gesto, que o momento especulativo, “positivamente racional”, realize-se
como uma totalidade orgânica. Não é em outro sentido que as fórmulas de sexuação lacanianas,
cingidas em torno da proposição que enuncia que “não há relação sexual", adquirem uma
grande importância para Badiou: o seu mérito não é de maneira alguma o de abolir todo e
qualquer momento “positivamente racional” do pensamento, e sim o de recusar que se deva
alcançá-lo pelos meios que a filosofia, de Aristóteles até Hegel, passou a julgar essenciais e
insubstituíveis. Ela se distancia, portanto, dos propósitos maiores da Ciência da lógica que,
desejosa de instalar a filosofia como uma ciência completamente nova, pois finalmente liberta
de quaisquer pressupostos, alertava para o fato de que, a fim de cumprir com esses desígnios,
ela não poderia “tomar de empréstimo as suas categorias de uma ciência subordinada como o
é a matemática” (Cf. HEGEL, pág. 6). A propósito dessa convicção filosófica, a qual diz
respeito ao lugar da formalização lógico-matemática (formalização que, lembremos, possui um
outro destino no platonismo), faríamos bem em destacar que, segundo Alfredo Ferrarin, ela é
ainda uma ocasião para falar da fidelidade de Hegel a Aristóteles:
Hegel, cujo conhecimento das matemáticas é antes impressionante,
compartilha com Aristóteles não apenas o conceito de número, mas
também a resistência a tratar as matemáticas como um formalismo
separado. As matemáticas são fundamentalmente uma teoria das razões
[ratios]; enquanto tal, elas não são uma construção independente com
suas próprias requisições e linguagem. (FERRARIN, pág. 136)

Tendo essa passagem como referência, não nos pode escapar que a proposição "não há relação
sexual", ao dar lugar a uma efetiva formalização lógica, contradiz frontalmente uma tal
concepção das matemáticas: ela cuida precisamente de demonstrar a inexistência de uma razão
ou proporção entre os sexos, procedendo em conformidade com os rigores de uma linguagem
independente, estritamente formal. Desde essa evidência, podemos afirmar sem maiores
problemas que uma ascendência talvez mais legítima para o psicanalista fosse encontrável na
filosofia francesa do conceito em vez de no Begriff hegeliano. Como não nos deixa esquecer
Alain Juranville, Lacan havia aprendido há muito tempo a desconfiar desse motivo filosófico,
a exemplo de Heidegger, que “rejeita o conceito na medida em que este implicaria uma
apropriação (con-ceptus, Be-griff), pelo sujeito que tem um mundo” (JURANVILLE, páginas
391 e 392). Contudo, discordando também de Heidegger, ao reportar-se a um sujeito que não
se apropria do mundo, encontrando-se muito distante da pretensão de exercer sobre este último
qualquer domínio técnico-administrativo, o psicanalista acena para uma infinitude que não se
esfuma na fantasia.
De maneira não menos surpreendente, é essa mesma recusa do aristotelismo e de suas
implicações conceituais que torna Lacan irredutível em sua indisposição para com a biologia
moderna e para com a teoria evolutiva de Darwin. Isso talvez se afigure a alguns como um
simples e puro despropósito: como se não houvesse ocorrido entre o cientista e o filósofo um
número suficiente de mudanças na ciência biológica (as quais teriam, aliás, constituído alguma
coisa passível de ser chamada realmente de "biologia”), Darwin pode ser considerado um
grande contraditor de Aristóteles em alguns dos pontos basilares da abordagem que o estagirita
dispensava aos animais e à vida em geral. O princípio da seleção natural apresenta
discrepâncias significativas com a convicção de que “nada em vão faz a natureza"
(ARISTÓTELES, pág. 128): de acordo com esse princípio, deixa de existir qualquer evidência
em afirmar que “o animal possui os demais sentidos [isto é, além do tato, que seria o mais
elementar deles, o único verdadeiramente indispensável para a sobrevivência,] (...) não em vista

162
do ser, mas do bem-estar” (ARISTÓTELES, pág. 131), porque todos os caracteres dos
organismos, longe de indicarem uma escala gradativa a partir da qual acusar a que distância
cada um deles encontra-se do limiar do inorgânico, são analisáveis sob o critério das vantagens
adaptativas que trazem para as variações populacionais nas quais surgem. Assim, com Darwin,
função e forma orgânicas são visados de maneira totalmente distinta, porque as espécies, cuja
origem cabe esclarecer com o auxílio de uma nova teoria, não são mais concebidas como
entidades eternas e sempre idênticas a si mesmas:
A introdução de uma perspectiva nova na história permitirá a Darwin
abandonar, logo de saída, um velho dogma, estabelecido desde
Aristóteles e vigente ainda no século XIX. Pois, doravante, não se
tratará mais de ver nos seres individuais a especificação de uma
estrutura geral que os perpassa e os condiciona. Não haverá mais, no
limite, espécie alguma: tudo são indivíduos em constante variação, que
compõe grupos integrados em populações que vivem em proximidade
e competem umas com as outras, sofrendo mutações (ou “conversões",
como também se exprime Darwin), cuja durabilidade, garantida pelo
êxito, permite que sejam tomadas como espécies ou como variedades.
(PIMENTA, 2018)

Dessa maneira, Darwin introduz a dimensão do tempo nos domínios da vida, e ele o faz num
gesto que é de alguma maneira comparável ao de Marx em sua crítica à concepção a-histórica
de Feuerbach de uma atividade humana sensível (Cf. ENGELS & MARX, páginas 30 e 31):
além do fato de a cerejeira ter sido transplantada para a sua região pelo comércio (do que se
conclui que ela não é uma espécie nativa da aludida paisagem), a razão de o mundo sensível
que rodeia o filósofo alemão não corresponder a uma “coisa dada imediatamente por toda a
eternidade e sempre igual a si mesma” é também a de que essa árvore possui uma história que
de muito ultrapassa aquilo o que dela fizeram os homens, sendo ela mesma o resultado de um
longo e inconcluso processo de luta pela adaptação dos organismos ao ambiente que os
circunda.
Desde a apreciação temporal da vida, que de certa maneira coloca-se a encarar os entes naturais
como se através da luz de uma inespecificidade generalizada, Darwin revesta-a de uma
escandalosa contingência: a partir de então, não se sabe mais porque a vida começou e nem se
ela deve ou mesmo até quando ela deverá continuar – perguntas que, pela simples possibilidade
de sua formulação, tornam suspeito qualquer Deus que se prontificasse a respondê-las. A
indisposição de Lacan, no entanto, não surge nem contra e nem a favor do anti-necessitarismo
dessa teoria. Se o problema do psicanalista faz menção ao aristotelismo residual que nela ainda
estaria presente, ele não pode mirar apenas a finalidade que essa concepção supostamente
pressuporia à realidade (como, aliás, ele não fazia no caso da Aufhebung hegeliana). O que se
reforça pelo fato de que, como recapitulado por Lébrun a respeito da releitura que Hegel
empreendeu do estagirita, a finalidade que Aristóteles descobre na natureza não precisa
coincidir com a de uma programação pré-estabelecida ao programa que colocaria em operação:
“A phúsis não é de nenhum modo o equivalente a um operário mítico que realizaria um trabalho
que lhe foi determinado” (LEBRUN, pág. 282). O problema, por conseguinte, não é
propriamente o de que a natureza do vivente esteja desde sempre programada (apesar de que,
sim, Lacan sempre combaterá os partidários do instinto), mas, mais uma vez, o de que ela se
dê a ver numa totalidade orgânica. Pelo pouco que é dado a saber através da teoria de Darwin,
a vida, em toda a sua complexidade, todas as suas ramificações, todo o seu vasto alcance sobre
a superfície do planeta, seria ainda assim uma grande exceção. Em nada o contradiz "(...) a

163
intuição fundamental, exposta na Origem das espécies, de que ‘o elemento da descendência é
o elo secreto de conexão' entre todos os seres vivos, formando um único e mesmo sistema"
(PIMENTA, 2018). Mas, justamente, a vida, apesar de não representar senão um breve período
excepcional na história do universo, detém o privilégio de conservar a sua unidade. Na ausência
de um Deus que lhe designe um propósito, essa vida corre o risco de converter-se no Deus de
si mesma: não podendo ultrapassar os seus estreitos limites, ela viria a existir inteiramente em
função de si, objetivando a sua perpetuação e nada mais. E, apesar de ter mergulhado a vida na
mais pura contingência, a teoria darwiniana não advoga um mecanicismo que, por intermédio
do choque contínuo de uma multidão de corpos, produziria sob uma pura aleatoriedade
caracteres, hábitos e formas a distinguir as populações entre si: o processo da seleção natural é
cego, de fato, mas isso não o impede de basear-se na potência da vida de engendrar variações
condizentes com a necessidade dos organismos de adaptar-se ao seu meio (o que não quer
dizer, por exemplo, que o olho seja fabricado com o claro intuito de possibilitar a visão: antes,
a natureza é que seria capaz de produzir uma série de modificações que, muito lentamente,
resultam numa forma extremamente complexa como o seria a do olho, o qual, sem cumprir
nenhuma função pré-definida, pode mostrar-se vantajoso para a continuidade de uma ou mais
linhagens). Uma tal teoria tem os seus contornos desenhados na encruzilhada entre “(...) a
capacidade de reprodução dos seres e a força externa que a limita” (JACOB, pág. 187).
A teoria de Darwin dispõe os lineamentos de uma nova narrativa, cuja estrutura é incrivelmente
complexa: história aberta e, como tal, extremamente incômoda pelo sentido que deixa
suspenso, ela teria sido escrita em caracteres que devem ser decifrados com a ajuda da geologia
e de sua escala de tempo absurdamente estendida (isso pelo menos de nossa perspectiva
humana). Portanto, de certa maneira, cabe dizer que “A origem das espécies não é uma história
escrita pelo prisma do homem” (PIMENTA, 2018). Mas isso só parece ser verdadeiro caso o
homem esteja ciente das condições sob as quais ele vem a escrever essa história: se ele não
pode conceber a si mesmo como nada mais que um vivente entre outros, enquanto legatário de
uma enorme herança que o torna mais ou menos capaz de adaptar-se ao seu meio, como ele
poderá evitar a confusão entre os desígnios da sobrevivência de sua espécie e a própria
teorização que possibilita compreendê-los e enunciá-los como tais? Provavelmente por manter
em seu horizonte dificuldades como essas, o cientista britânico demonstrava a sua preocupação
em não avalizar cálculos irresponsáveis quando dizia, no final do capítulo de A origem das
espécies dedicado ao tópico da seleção natural, que “ninguém pode prever quais grupos irão
prevalecer; sabemos que muito grupos outrora muito desenvolvidos se extinguiram”
(DARWIN, 2018). Uma vez que a seleção natural evidencie-se apenas por uma longuíssima
série que se produz em retrospecto, com a necessária chancela dos fósseis, existe sempre o
risco de vê-la incidir, equivocamente, num ponto em que ela não teria se dado a ver de forma
clara, abrindo-se com isso a margem para tomá-la pela sua imagem empalidecida, que seria a
seleção de variações populacionais levada a cabo pelos próprios homens: ousamos dizer, assim,
que A origem das espécies continha já algumas recomendações contrárias àquilo que depois
ficou conhecido como darwinismo social. Mas, não obstante diferenciar-se de seu uso
extremamente perverso, que se concretiza nas políticas de eugenia, essa teoria não é exatamente
dotada da virtude de evitar outras miragens igualmente problemáticas, e que potencialmente
reconduzem a semelhantes perversidades. De acordo com ela, pode-se dizer que, para
determinadas populações de primatas, uma faculdade cognitiva mais desenvolvida foi
sumamente benéfica, porque as populações mais inteligentes, todas agrupadas sob a
denominação de Homo sapiens sapiens, se mostraram viáveis, tendo passado – pelo menos por
enquanto – na provação da seleção natural. Mas esse homem que sabe que sabe (como o
designa o latim da taxonomia biológica moderna), será ele compreensível inteiramente nos

164
termos dessa vida que se multiplica e se perpetua? É bem verdade que, como vivente, o homem
não desfruta mais dos grandes privilégios que lhe estavam reservados na antiga ordem dos
seres: em vez de representar uma marca da ascendência divina dos homens, o pensamento
racional, por mais raro e vantajoso que possa ser considerado, também se rebaixa à condição
de ser uma entre muitas armas que compõem o enorme arsenal da sobrevivência. No entanto,
se ele é explicável pelo só jogo da vida de engendrar novas formas de adaptação, que outra
coisa ele conseguiria prometer senão a sobrevivência daqueles que melhor sabem realizar o seu
cálculo? Desse ponto de vista, como pode um homem escrever uma história por um prisma que
não o humano? Bem pode ser que o pensamento racional não se restrinja a uma perspectiva
humana porque, em última instância, ele seria um reflexo da própria realidade. Mas, admitida
essa hipótese, a façanha de escrever essa história, nem que seja somente um de seus fragmentos,
se torna ainda mais admirável: ela comprova, com efeito, tratar-se de um indivíduo pertencente
a essa espécie que sabe, e, mais ainda, que sabe que sabe.
Entre uma e outra coisa – a saber, entre afirmar o pensamento racional como simples vantagem
adaptativa adquirida por descendência ou como faculdade excepcionalmente desenvolvida de
localizar-se no seio da realidade –, a teoria evolutiva oscilaria entre relegar o homem à
humildade de seu comum estatuto de vivente e, por outra, exaltar, mesmo que indiretamente, a
sua posição única em meio aos animais. Com isso, ela reencontra Aristóteles pelo menos duas
vezes, ainda que não o faça simultaneamente, nem de maneira declarada ou mesmo óbvia: uma
vez na unidade da vida, e outra na correspondência do ser e do “ser dito” que validaria o
pensamento racional. Por seu turno, o grande interesse das conjecturas de Darwin, que teria
conseguido vislumbrar com elas uma perspectiva não-humana da história da vida, é
relacionável a expedientes mais característicos da ciência moderna: desdobrando as espécies
em numerosas populações que se modificam ao longo de um tempo inimaginável, é como se o
cientista revivesse o Deus cartesiano para que Ele viesse a desempenhar o papel da necessária
ainda que impossível testemunha de um processo que se estende desde o fundo das eras (pelo
que se torna viável recuperar a continuidade de uma série que se produz a partir de inscrições
subliminares que se traduzem, de maneira ampliada, em efeitos supra-liminares). A sua
empresa teórica não deixa de evocar qualquer coisa da ordem de um espaço de inscrição
algébrica, no qual as linhagens e as épocas, subtraídas de uma experimentação imediata pelos
sentidos, adquirem dimensões que são desproporcionais de um ponto de vista meramente
humano. E esse parentesco com a ciência moderna aparenta estreitar os seus laços no capítulo
VI de sua grande obra, intitulado “Dificuldades relativas à teoria”, porque é aí que ele dá vazão
a suas mais ousadas ficções: tem-se então a ocasião para formular a hipótese de que órgãos
praticamente perfeitos quanto ao desempenho de suas respectivas funções derivem, por uma
longa descendência, de estruturas muito mais simples encarregadas de outras tarefas na
economia da sobrevivência, como os pulmões dos vertebrados poderiam ser considerados
derivar de um “aparato de flutuação ou de bexigas natatórias" (DARWIN, 2018) - hipótese a
propósito da qual nota-se o estranho fato de que “(...) cada partícula de alimento e comida que
absorvemos tenha de passar pelo orifício da traqueia, não sem risco de ser absorvido pelos
pulmões” (DARWIN, 2018), apontando, assim, nessa alta suscetibilidade dos homens de
engasgar com o próprio alimento, para uma imperfeição do design humano, explicável segundo
a teoria que o enxerga como o produto de uma linhagem antiquíssima em vez de ser a obra
pronta e acabada de um artífice divino. É a respeito da vocação poética desse capitulo que
Pedro Paulo Pimenta dirá o seguinte: “Tudo se passa aí como se a ideia de metamorfose, tantas
vezes central para a tradição literária ocidental, adquirisse pertinência para a compreensão
objetiva da experiência” (PIMENTA, 2018). Não seria difícil, por conseguinte, concluir que o
surgimento de uma estrutura tão intrincada como a do cérebro humano sem sombra de dúvida

165
é situável na ancestral história dos viventes: com a sua habilidade de conjecturar sobre a
progressiva transição de uma forma a outra, o cientista é muito bem sucedido em sua proposta
de reavaliar a justeza do velho adágio da história natural que se declara como Natura non facit
saltum [a natureza não procede por saltos]. Mas o pensamento racional continua oferecendo
alguma resistência ao império da adaptação: muito embora seja associável ao surgimento do
cérebro humano na história dos viventes, ele será resumível à anatomia e à fisiologia da espécie
para cuja sobrevivência uma tal estrutura concorre? Por outro lado, se é assumida a posição
contrária, que entende que ele não pode ser confinado dentro desses limites específicos, a sua
incrível virtude poética, comprovada nesse autêntico Ovídio moderno em que o autor de A
origem das espécies se transforma ao tentar construir uma narrativa a partir de uma leitura
renovada do testemunho que os fósseis dariam sobre a vida, será ela uma prova definitiva da
recapitulação ontogenética da filogênese? Será preciso então imaginar o cérebro humano como
uma caixa-preta do voo evolutivo, registro aproximado de um movimento que faz ascender
algumas espécies, ao passo em que precipitaria outras no abismo da não-existência por tê-las
extinguido? De qualquer modo que se queira ver a questão, parece haver uma contradição
insolúvel para essa teoria, contradição que a simples existência do pensamento racional
desnuda: a de que a certeza da unidade da vida seja intuível somente pelos meios que ele
faculta, o que a teoria em questão não pode explicar, a não ser pela postulação de uma totalidade
mais assemelhada ao mito do que à ciência.
Esse é com absoluta certeza um dos motivos pelos quais Lacan identifica o sujeito do
inconsciente ao sujeito da ciência moderna: à diferença dessa narrativa sobre a continuidade
das formas que a vida assume em sua luta pela adaptação natural, as ciências, sim, procedem
por saltos. Isso não quer dizer, claro, que elas não admitam uma reconstituição histórica de
suas diversas linhagens, como, por exemplo, a de uma ascendência galilaica para Isaac Newton.
No entanto, especialmente com a modernidade, elas progrediriam por descontinuidades
traduzíveis em revoluções tanto mais abrangentes quanto mais genéricas e dessemelhantes de
qualquer coisa experimentada pelos sentidos sejam as fórmulas literais das leis com que elas
se propõem a interpretar a natureza. 133 A seguir as pistas de Alexandre Koyré, Lacan entende
que a ciência devém moderna quando ela tematiza os seus objetos – ou, de outra maneira,
quando constitui o seu subjectum - através da uma operação significante, a qual não possibilita
apenas a mensuração da natureza, mas também a desobstrução da efetividade daquilo que falta
a esta última. Poder-se-ia argumentar, certamente, que a impressão de descontinuidade também
afeta a nossa percepção da vida, impressão cuja falsidade caberia ao pensamento racional
explicitar: esse seria, afinal, o erro que o homem comete a respeito de si próprio, ao imaginar
que a sua forma corporal – para alguns, feita à imagem e semelhança de Deus, para outros, tida
como um símile divino – é particularmente apta a assenhorear-se do mundo. Haveria, portanto,
limiares remissíveis a um movimento de auto-diferenciação que só podem ser encarados como
absolutos de um ponto de vista totalmente equívoco: a consideração racional, por intermédio
do estudo comparado das variadas estruturas dos viventes (que se referem tanto às formas
extintas e fossilizadas como às que atualmente existem), faz intuir a sua comum ascendência.
Mas, se nos referimos a um momento privilegiado da ciência moderna, compreendemos que o
limiar que a formulação do princípio de inércia ultrapassa não é o de que ele finalmente seja
percebido pelos sentidos, porque um tal princípio nunca poderia ser apreciado imediatamente
na natureza; esse limiar diz respeito, antes, a que sua não-percepção não obste mais a uma
interpretação dos movimentos naturais baseada numa lei tão excessiva. Contrastando com a lei
da seleção natural – cuja vigência, a princípio, só pode coincidir com a da duração da vida –, a

133 Um ótimo exemplo é o dos números imaginários

166
lei da inércia não encontra na vida nenhum limite, como tampouco haveria qualquer
movimento natural capaz de esgotá-la: ela investe o fenômeno físico correspondente ao
movimento de uma infinitude que, não obstante ser incomensurável, possibilita uma outra
apreciação da natureza, que é qualitativamente nova (a despeito de, sob certos aspectos,
privilegiar o quantitativo). Desobrigada de qualquer adaptação porque desproporcional ao
estrito condicionamento dos corpos, ela é sem sombra de dúvida uma melhor candidata ao
absoluto do que o seria a forma humana.
O vazio do sujeito a que se reporta Lacan é aquele que se abre defronte as letras cifradas das
matemáticas: ele está concernido na generalidade que prescreve, digamos, as condições em que
seria possível reproduzir um dado experimento científico (posto que um experimento só pode
ser caracterizado como tal se, para obter os seus devidos resultados, ele não depende
fundamentalmente das particularidades da pessoa que o conduz). Vazio que não é propriamente
a anulação de toda vida, mas que, de qualquer forma, a ela não faz necessariamente referência:
ele pode tanto fornecer o índice de sua esterilidade, como a oportunidade para que ela se renove,
de maneira mais ou menos radical; mas, em todo caso, ele não deriva dela. Do ponto de vista
que ele franqueia, não é nem um pouco surpreendente ver o homem ser afirmado como apenas
mais um animal entre outros: o Eclesiastes não tinha qualquer problema em fazê-lo (Cf.
Eclesiastes, 3: 18 - 22), sustentando, ao mesmo tempo, na aliteração com que a vulgata se
pretendeu universal – vanitatis vanitatum et omnia vanitas [vaidade das vaidades, e tudo é
vaidade] –, a enunciação da falta de substância do ser. O Qohélet, O-que-sabe (como o traduz
Haroldo de Campos), enxerga muito bem as dilacerantes contradições que o saber faz
experimentar: “Pois em muito saber muito sofrer/ e onde a ciência cresce acresce a pena”
(CAMPOS, pág. 57). Assim, para a religião judaico-cristã, toda adaptação ao mundo que o
saber logra dá-se contra o pano de fundo de uma vaidade insuperável: ela descobre, pois, a falta
de substância da realidade cotidiana, que nada mais é que a própria falsidade do semblante de
Um sob o qual o mundo se apresenta todos os dias. Mas, em face dessa esterilidade do saber,
ela não sabe fazer outra coisa senão evocar uma solução estritamente transcendente, decretando
que as configurações do mundo são estruturalmente idênticas e esvaziadas de verdade – o que
se diz então como a mesmidade de tudo o que existe sob o sol e por meio da dissolução de
todos os viventes num mesmo pó. Ante a denúncia da falta de substância do Um mundano, ela
promete um outro Um, celestial, com o qual se identificar e, não raras vezes, se encerrar num
Todo. A ciência moderna, por sua vez, solicita ao vazio uma outra função, que é a de dar a ver
como a generalidade por ele concernida, em vez de implicar essa esterilidade mundana, torna
a realidade inteligível por colocá-la sob os auspícios de uma qualidade que, paradoxalmente,
se caracteriza através de uma impossibilidade (afinal, como movimento ou repouso
indefinidamente continuados, que atestariam a tendência intrínseca dos corpos de
permanecerem em movimento ou em repouso, essa sorte de infinito não é perceptível
imediatamente na natureza). Isso não significa que a ciência moderna também não corra o risco
de negligenciar a transformação intensiva que opera, pela possibilidade de submeter tudo à lei
de um único movimento e de enxergar a realidade como um pobre conjunto de suas variações
estruturais: com essa submissão de toda a realidade à objetividade, não demoraria para que não
houvesse mais nenhum sujeito. Felizmente, para ela, ainda que não o saiba, a sua própria
empresa faz menção a uma subjetividade ineliminável, pois o império da Lei que ela decretou
não torna inteligível a transformação intensiva que ela pressupõe. Mas, como sugerido, quando
ultrapassa as suas competências específicas, que dizem respeito às transformações intensivas
operadas pela literalização do real, ela aparenta não ser mais do que um outro lugar de anulação
da vida.

167
Apesar de lhe ser fundamental a identificação entre o sujeito do inconsciente e o sujeito da
ciência moderna, a empresa de Lacan não se confunde com uma submissão da subjetividade
aos ditames da objetividade científica. De igual maneira, seria muito pouco honesto acusá-lo
de camuflar, sob o disfarce de uma teoria mais ou menos séria, uma fabulação arbitrária a
respeito do verdadeiro teor da ciência moderna, como se ele houvesse alegado descobrir um
sujeito para a ciência com o único propósito de decretar a sua disciplina a verdadeira ciência
desse sujeito. De certa forma, não seria incorreto dizer que o ensino de Lacan faz, sim, menção
a um nonsense que perpassa toda a vida humana, cuja dimensão ele pretende apreender com
alguma exatidão. Mas, se se entende por sujeito o grande repositório de tudo o que essa vida
comporta de irracional (sobretudo em sua dimensão afetiva), é um tremendo equívoco concluir
disso que o seu objetivo teórico seria o de remeter a inteligibilidade científica a uma qualquer
espécie de nonsense emotivo. Em verdade, o seu ensino se quer tão próximo da prática
científica moderna porque ele encontra aí a possibilidade de afirmar uma nova relação entre
subjetividade e generalidade, ao mesmo tempo em que se permite contestar o direito dos
cientistas de pressupor que a unidade da Natureza seja compreensível sob a totalidade das leis
por eles divisadas. Alguém talvez possa ouvir aqui os ecos da advertência de Mefistófeles:
“Quem visa descrever o que é vivo/ O espírito põe antes fugitivo/ E em mãos fica com as partes:
o fatal/ É o vínculo que falta, o espiritual” (GOETHE, páginas 187 e 189). Mas, para que fique
bem claro, sem pretender de maneira alguma resguardar o vínculo espiritual que animaria a
Natureza, o que Lacan encontra nas letras cifradas das matemáticas é o que ele acredita ser o
melhor antídoto tanto contra essa unidade fantasiosa como contra a totalidade dentro da qual
ela seria descrita. É certo que existem diferenças muito significativas entre as metamorfoses
conjecturadas por Darwin e aquelas em que pensava Goethe. Todavia, se o método do cientista
britânico demonstra ser muito mais seguro, graças ao testemunho que ele modestamente
procura às evidências de suas investigações empíricas, não seria prudente negar de pronto a
impressão de que, com isso, ele esconde melhor a unidade louvada pelo poeta alemão. Com a
teoria evolutiva darwiniana, uma vez que toda a natureza houvesse sido dissolvida no
movimento dos corpos visíveis, o nonsense emotivo não ultrapassaria as fronteiras
estabelecidas pelas leis da física, sendo inteiramente explicável de acordo com os automatismos
desses mesmos corpos, engendrados e herdados em meio ao processo de seleção natural das
espécies. De sua parte, a psicanálise tem de intervir nos furos do sentido, não lhe sendo
permitido admitir que a narrativa dos sujeitos possa ser suturada com tais automatismos: para
ela, como explicado por Alenka Zupancic, não existe um “grau zero, animal, da humanidade
(‘animal humano’), o qual, deixado a si mesmo, funcionaria como uma espécie de piloto
automático de sobrevivência e auto-preservação” (ZUPANCIC, pág. 87).134 É bem verdade
que, para-além de uma visão que enxergue o vivente como um simples autômato, a biologia
aprendeu a ler um alfabeto a partir do qual “pode ser escrita toda a diversidade das estruturas e

134A explicação pristina de Gould em The mismeasure of men: “Erros de reducionismo e biodetermismo tomam
forma em declarações tolas tais como ‘A inteligência é 60 por cento genética e 40 por cento ambiental’. Uma
‘hereditariedade’ de 60 por cento (ou qualquer outra [cifra]) para a inteligência não significa uma tal coisa. Nós
não devemos conduzir a questão na direção certa se não percebermos que o 'interacionismo' que todos aceitamos
não permite declarações tais como ‘um traço x é 29 por cento ambiental e 71 por cento genético’. Quando fatores
causativos (mais que um, a propósito) interagem de maneira tão complexa, e em meio ao [processo de]
crescimento, para produzir um intrincado ser adulto, não podemos, em princípio, decompor o comportamento
desse ser em porcentagens quantitativas de causas fundamentais remotas. O ser adulto é uma entidade emergente
que deve ser compreendido em seu próprio nível e em sua própria totalidade. As questões verdadeiramente
salientes são a maleabilidade e a flexibilidade, e não uma decomposição falaciosa por porcentagens. Um traço
pode ser 90 por cento hereditário, e, ainda assim, inteiramente maleável. Um par de óculos de vinte dólares da
farmácia local pode corrigir por completo um defeito de visão que é 100 por cento hereditário.” (GOULD, pág.
34).

168
das performances que a biosfera contêm” (MONOD, pág. 122), concepção que, apesar de valer-
se de uma combinatória tão elementar, a qual baseia-se em apenas vinte aminoácidos e quatro
tipos de nucleotídeos (Cf. MONOD, pág. 120), não elimina o registro do acaso: essa concepção
não enfrenta maiores dificuldade em rejeitar um determinismo estrito para a hereditariedade
genética (Cf. MONOD, pág. 171), pelo que seria perfeitamente capaz de reconhecer que, a
despeito de a linguagem e a cultura serem inatas à espécie humana, as construções que lhe são
próprias não deixam de ser imprevisíveis (Cf. MONOD, pág. 173). Mas Lacan, ao insistir na
virtude de esse feito ser realizável devido tão somente a um fato de escrita, continua a apreender
o nonsense da vida humana nos equívocos do significante, motivo pelo qual ele deverá manter-
se em companhia dos poetas:
O único enunciado absoluto foi dito por quem de direito, ou seja, que
nenhum lance de dados no significante jamais abolirá nele o acaso -
pela simples razão, acrescentamos, de que nenhum acaso existe senão
em uma determinação de linguagem, e isso, sob qualquer aspecto que
o conjuguemos, de automatismo ou causalidade. (LACAN, 1998, pág.
907)

Digamo-lo de uma vez por todas, talvez a confirmar as piores expectativas que alguns nutrem
a respeito do ensino de Lacan: a sua psicanálise não se preocupa em nenhum momento com a
evolução das espécies, preferindo manter-se alheia aos jogos que a vida, de acordo com a sua
própria lógica e necessidade, engendra e perpetua. No entanto, detendo até um ponto aceitável
as especulações que uma tal afirmação poderia ocasionar, não podemos falhar em dizer que
isso não significa de maneira alguma que o seu ensino dependa de uma negação absoluta da
existência dessa lógica e dessa necessidade, bem como da própria evolução das espécies. Seria
mais preciso dizer que ele trabalha em seu negativo, ou seja, nos interstícios que franqueiam
os seus espaços de indeterminação. A esse propósito, convém lembrar que, desde Freud,
também a psicanálise fala de uma herança: no final de Totem e Tabu (Cf. FREUD, pág. 159),
encontram-se as célebres palavras de Fausto, as quais rezam que “O que hás herdado de teus
pais,/ Adquire para que o possuas” (GOETHE, pág. 85). Mas é preciso ter em mente que essa
citação se faz seguir a uma hipótese sobre a origem da cultura, a qual consiste em afirmar a
possibilidade de sua fundação sobre a presença contraditória de um pai ausente: um mito, sem
sombra de dúvida, mas um mito que, por seus recursos oblíquos, elabora a dificuldade de
pensar, não a relevância de que um homem gere um outro homem, e sim a estranha lógica de
que um homem possa formar-se na ausência daquele que o teria gerado. Poder-se-ia então
reclamar a autonomia da linguagem e da cultura como esferas inassimiláveis a qualquer lógica
do vivente (como, aliás, Lacan fez por algum tempo, quando privilegiava o simbólico em
detrimento do imaginário e do real). Mas, para aceitar integralmente essa solução, deveríamos
ignorar que a antropologia estrutural de Lévi-Strauss já havia antecipado a possibilidade de que
a autonomia do significante não passasse de mais uma forma engendrada pela Natureza, ainda
que forma particularmente complexa: mesmo não se prestando à tarefa de ser um espelho do
mundo, a linguagem ressoaria, como um cristal extremamente refinado, os mais diversos níveis
de estruturação da realidade, como se a vibração de uns repercutisse nos outros. De sua parte,
o ponto de Lacan nunca foi o de que a subjetividade devesse ser para sempre encerrada na
prisão da linguagem: em vez disso, a questão era justamente que esse jogo autônomo dos
significantes, não bastando para situar um nome próprio, faça divisar um sujeito. Quando se lê
a citação de há pouco, em que ele praticamente declara a sua herança mallarmeana, não é difícil
deixar-se capturar pelo seu aspecto “significante”, que atribui o nascimento do acaso como que
à só força de um gesto poético. Mas, se se aprecia a passagem de um outro ponto de vista, o
que impressiona é a curiosa declaração segundo a qual haveria um “enunciado absoluto”: para

169
o psicanalista, indo muito das além das divisões que a linguagem suscitaria indefinidamente
em seu ensimesmamento “sofístico”, está em causa também um momento “positivo-racional”,
absoluto, que é discernível por meio das formalizações lógico-matemáticas. De certa forma,
realmente, da perspectiva da psicanálise, a linguagem pode ser encarada como um lugar de
exceção, em que o homem vem a padecer de afetos sumamente negativos porque esse Outro
lhe impõe uma lei que não tem qualquer proporção com a sua lógica natural de vivente; mas,
acima disso, haveria uma paixão do negativo, que manifesta, através da fala do analisante, não
só a falta que essa lei faz testemunhar, mas também o excesso que a perpassa. Assim, para o
psicanalista, o importante é que através da finitude da combinatória dos significantes, da qual
surgem os equívocos, a indagação consequente encaminhe-se a uma circunscrição do real, o
qual, em última instância, se escreve como o absoluto da inexistência de uma relação sexual.
Absoluto que pode render vãs todas as coisas mundanas, certamente; mas que nem por isso
oblitera por completo a abertura onde se insinuaria a possibilidade de uma vita nuova, vida
nova, na célebre expressão de Dante Alighieri. 135
*
Porque Théorie du sujet não se chama Théorie du sujet politique, apesar de os seus esforços
estarem concentrados majoritariamente na política.
(a filosofia não tem a capacidade de decidir quais corpos são subjetiváveis e quais não são; o
máximo que ela pode fazer é afirmar que não existe absolutamente nenhum motivo para excluir
um homem que seja dessa “categoria”, ou pelo menos não em função de alguma categoria
especificamente humana)
Um procedimento pouco recomendado numa exegese, que é o de trazer provas adicionais
vindas de uma outra época que não aquela indagada pela pesquisa.
Uma teoria do sujeito que olha diretamente nos olhos perscrutadores da ciência e não vacila.
Vamos responder de uma vez: Lacan é tão importante para Badiou porque ele possibilita um
novo acesso ao real. Dupla contribuição, política e ética.
O real é a abertura, tanto política como amorosa, que mostra que a existência de muito escapa
ao jogo vão das heranças: o legado que lhes transmite a geração anterior não é um obstáculo
intransponível para as verdades.
Como se o significado da proposição "não há relação sexual" fosse puramente subjetivo, no
sentido de fazer sentido apenas sob uma perspectiva humana.
Como a prática que Badiou visa não é a da discursividade da psicanálise, o aporte teórico que
ele procura a Lacan não é o de um sujeito da enunciação. Mas o ensino lacaniano de certa
maneira teria antecipado isso, porque o nó borromeano, por atar-se apenas no entrelaçamento
simultâneo das três registros que constituem a , descentra o simbólico. Ou seja, a linguagem,
se bem que concebível como via de acesso privilegiado ao inconsciente, não evoca uma
ontologia própria (apesar de deslocar violentamente a ontologia clássica).

135 Estáantecipada aqui uma consequência que muito mais tarde Badiou desenvolverá como sendo a da "imanência
das verdades", nome de um seminário ministrado em 2012, e também o título do último tomo de L‘être et
l'événement. Esse desdobramento ulterior remonta, como sugerimos com a nossa argumentação, a determinados
aspectos do ensino de Lacan. Distante de ser um simples detalhe anedótico, diga-se que a capa de Théorie du
sujet, publicado em 1982, reproduz o quadro de em que se representa o encontro entre Dante Alighieri e Beatriz.

170
“Porquê, desde Marx-Lênin-Mao e de Freud-Lacan, essa teoria indivisa e mascarada? Será
preciso transpor a ponte de asnos – horror! – do freudo-marxismo? Não, porque não é a
conciliação das doutrinas de que se trata, nem mesmo por um segundo” (BADIOU, pág. 133).
O real, relativo à luta de classes e aos sexos.
“O que vem em suplência à relação sexual, é precisamente o amor” (seminário XX, pág. 62).
Mais evidentemente, existe uma interpretação dessa proposição que destaca o seu valor
imaginário. Mas, nas comunicações topológicas, a suplementação é concebível em outro
sentido.
A perspectiva de Badiou já não coincide com a de Lacan: mesmo quando refere a problemática
deste na qualidade que lhe seria específica, ele se vale de uma palavra que o psicanalista nunca
empregou sem ambivalência.
A questão de falar em dialética na psicanálise lacaniana é dificílima. Os seus adversários talvez
o condenassem sem apelação, mas eles nunca avaliam o mérito da questão - tanto mais
requerente de análise quando o próprio Lacan tenta se desvincular da associação à filosofia
hegeliana.
O gozo, caracterizado como o que não tem uso: a luxúria que o significante faz ver.
Como havíamos entrevisto, a política da psicanálise se pretende muito mais modesta do que a
dos marxistas: “Lacan também não escondia as limitações da análise, chegando a dizer, por
exemplo, que ‘esses bons efeitos [da análise] duram apenas um tempo, mas é sempre uma
trégua e é melhor que não fazer nada'” (CHECCHIA, pág. 325).
“O tempo de Marx, o tempo de Freud, reside nisso [, a saber, em] que o sujeito não é mais
dado, mas deve ser encontrado” (BADIOU, pág. 295).
Em verdade, parece mais razoável depreender outra consequência, que seria a de que, no
mundo moderno, a psicanálise assinala a ocorrência de uma inversão dramática:
Se a filosofia clássica, porque mantinha mais ou menos intactas as
estruturas da razão, perguntava-se, chocada, “como o erro era ainda
possível?”, depois da psicanálise, a pergunta parece se inverter e ganhar
a seguinte forma: “como ainda é possível dizer alguma verdade?”
(IANNINI, pág. 102)

A verdade do sujeito
O analista não tem de resolver esses problemas
“Fracassa-se uma relação sexual quando o outro não se submete todo ao pensamento
fantasmático. E, em uma perspectiva dialética, a experiência desta não-submissão nos abre à
possibilidade da relação sexual e do acesso ao objeto. Isso explica porque se faz necessário
fracassar a relação sexual para que ela seja possível" (SAFATLE, pág. 134)

171

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