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SENELICK, Laurence. Stanislavsky’s Double Life in Art.

Theatre Survey
(Novembro, 1981), 22, pp 201-211. doi:10.1017/S0040557400005548.
Traduzido para fins didáticos por Laédio José Martins. Set./Out. 2010. Artigo
disponível para compra em:
http://journals.cambridge.org/action/displayAbstract?fromPage=online&aid=5176820
ou para download gratuito em:
http://cw.routledge.com/textbooks/stanislavski/downloads/mla-introduction.pdf

A Dupla Vida na Arte de Stanislávski


Laurence Senelick

Na escassa prateleira de autobiografias teatrais que continuam a ser


lidas muito [tempo] depois que seu autor deixou de ser manchete, Minha Vida
na Arte [My Life in Art], de Constantin Stanislávski está acima de todas. É uma
cartilha para aulas de atuação, um livro fonte da história do palco e um guia
para aqueles trabalhadores no teatro que perderam contato com sua raison
d'être1 e buscam um Verdadeiro Norte artístico para colocá-los de volta no
curso. Na Rússia, ele foi elogiado como ‘um modelo de excelente literatura e
comparável a livros como ‘Meu Passado e Meditações’ [My Past and
Thoughts], de Herzen.’2 Na Europa Ocidental, equivalentes de Stanislávski na
reforma do Teatro também cantaram seus louvores. Gordon Craig elogiou ‘a
sinceridade que exala em cada página dele [que tem] elevado toda a classe
dos trabalhadores de Teatro a uma posição da qual não podem retroceder’.3
Jacques Copeau descreveu Minha Vida na Arte em termos que o fizeram
parecer a vida de um santo.4
Poucos leitores encantados pela soma das tentativas e erros, das metas
e conquistas de Stanislávski, estão cientes das circunstâncias precipitadas e
inconvenientes nas quais a obra foi composta, ou o fato de que ela existe em
duas versões distintas que refletem, em seus caminhos separados [in their
separate ways], diferentes estágios da vida de Stanislávski. A versão original
em Inglês de Minha Vida na Arte é uma criação demasiadamente imperfeita. A

1
Razão de ser. Em francês, no original. N.T.
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versão [em] Russo, escrita um par de anos mais tarde, amplifica e retifica sua
precursora, ao passo que faz novas omissões e supressões.
Minha Vida na Arte originou-se como um complemento para a campanha
publicitária agenciada pelo empresário Morris Gest, quando o Teatro de Arte de
Moscou visitou os Estados Unidos da América em 1923. Gest, nascido na
Rússia, na tradição de seu sogro David Belasco, criou uma aura de santidade
estética em torno dos atores assim como ruidosamente os promoveu. Isso
seria de alguma importância se o viés antissoviético do público em geral e da
imprensa estivesse para ser superado. O Teatro de Arte teve de ser descrito
como um grupo messiânico [messianic ensemble] que transcendeu a política.
O agente de imprensa de Gest, Oliver M. Sayler esbanjou muito dinheiro na
construção de pontes entre os atores Russos e seu público Yankee, com a
publicação de traduções e de sinopses cena-por-cena das peças de seu
repertório, e com a distribuição de releases para a imprensa, fotografias
posadas com celebridades locais, e aparições públicas cuidadosamente
gerenciadas. O clímax deste sensacionalismo [ballyhoo] provavelmente foi
atingido quando Stanislávski foi conduzido a conhecer Rodolfo Valentino e
Bebe Daniels no set [de filmagem] de Monsieur Beaucaire.5 Chocado com a
falta de historicismo na ação secundária dos atores [actor’s byplay], o polido
diretor Russo delicadamente contestou o pequeno diálogo usual.6
No início de 1923, Stanislávski, que vinha incubando tal projeto desde
1902, se aproximou dos editores da [editora] Boston, Little, Brown, com a
proposta de um livro sobre sua filosofia de atuação criativa. Na época, [o
projeto] consistia em vários cadernos cheios de notas recortadas-e-coladas.
Stanislávski, sobrecarregado com suas responsabilidades como ator, diretor e
gerente artístico nominal da companhia, foi um autor relutante na melhor das
vezes [at the best of times]. A fim de produzir um texto publicável, ele voltou-se
para Aleksandr Arnoldovich Koiranski, 39 anos. Eles se conheceram em 1912,
quando Koiranski era um crítico teatral. Após a Revolução, ele emigrou para
Paris e trabalhou com o cabaré ‘O Morcego’ [Chauve Souris], viajando com ele
para Nova York em 1922. Quando o navio do Teatro de Arte de Moscou

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atracou, Koiranski estava entre os expatriados, como Richard Boleslavsky e
Nikita Baliev, que o receberam no cais. Ele ofereceu seus serviços como
gerente de palco e intérprete, e nas fotografias pode-se ver sua baixa estatura,
diminuída ainda mais em justaposição com a altura de Stanislávski. Segundo o
jornalista émigré [emigrado] Mark Vishniak, Stanislávski deu a Koiranski “carta
branca para organizar a estrutura do livro (...) permitiu-lhe ‘resumi-lo’ e fazer
‘cortes’, onde quer que ele considerasse necessário, por Stanislávski não se
considerar ‘um juiz daquilo que é interessante e o que não é’.” 7
As anotações [notes] foram reduzidas a 120 páginas datilografadas, com
interpolações manuscritas de Stanislávski. No entanto, quando Montrose
Moses, então editor de Teatro da [Editora] Little, Brown, o leu, deixou claro que
os editores estavam menos interessados em teorias do que em uma biografia
colorida, cheia de anedotas e tipos [característicos]. Coisas Russas estavam na
moda, como demonstraram o sucesso anterior do cabaré moscovita ‘O
Morcego’ [Chauve Souris] e das turnês de Anna Pavlova. Stanislávski estava
profundamente decepcionado. Ele tinha esperança de lançar uma explanação
de seu ‘sistema’, não uma biografia [memoir]. No entanto, os dólares
americanos serviram como um incentivo poderoso. Seu filho tuberculoso, Igor,
residente num sanatório Suíço, precisava de apoio com valiuta8 [ajuste
cambial], moeda estrangeira. O rublo estava sem valor fora das fronteiras da
União Soviética. A fábrica têxtil de Stanislávski tinha sido nacionalizada na
época da Revolução de 1917, e seu contrato com Gest trouxe apenas uma
remuneração modesta.
Koiranski recordou que ele retirou do livro-texto de atuação histórias
suficientes para oferecer um esboço que fosse adequado a Moses. Em 28 de
maio de 1923 um contrato para um trabalho de 60.000 palavras intitulado
Minha Vida na Arte foi assinado e um generoso adiantamento foi pago a
Stanislávski, no entendimento de que a primeira parte seria apresentada até 01
de Agosto (prazo de três meses!) e o texto finalizado até 01 de Setembro. Foi
um compromisso temerário, já que o livro tinha que ser escrito da estaca zero e
a companhia estava agora na estrada. Stanislávski reduziu o número de seus

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Ajuste cambial. N.T.
3
ensaios e aparições no palco (seus papéis eram dobrados/duplicados [double-
cast]), e pôs-se a trabalhar com Koiranski.
Na criação, a essa altura, havia dois objetivos conflitantes para o livro:
era para introduzir o público [Norte] Americano à história e estética do Teatro
de Arte de Moscou e entretê-lo com anedotas sobre os experimentos de um
homem no aperfeiçoamento de seu ofício. A tensão pode ser vista facilmente
no texto completo.
Nesta época, o Inglês de Koiranski era mínimo, o de Stanislávski
inexistente; então eles contrataram um jornalista de Nova York, russo de
nascimento, para fazer uma rápida tradução do texto conforme ele era
produzido. J. J. (‘Jacques’) Robbins tem uma biografia tão esquiva quanto seu
nome verdadeiro (possivelmente Solovyov). De acordo com um currículo
resumido datilografado na Coleção Dana [Dana Collection] da Biblioteca
Houghton, em Harvard, ele passou dois anos na Escola Imperial de Ballet em
São Petersburgo, [teve] quatro anos de aulas particulares de atuação com o
grande ator Aleksandr Lenski, [esteve] cinco anos no Estúdio Infantil do Teatro
de Arte de Moscou (tal coisa não existe) e adquiriu um MA9 da Universidade de
Moscou. Ele também alegou ter sido um ator infantil por toda a Rússia durante
seis anos, assistente de Stanislávski no Teatro de Arte, bem como um
colaborador do diretor Richard Boleslavsky, da cabaretista Nikita Baliev e do
dramaturgo Osip Dymov. Visto que Robbins era Judeu, mais tarde [foi] escritor
contratado do ‘Diário da Frente Judaica’ [Jewish Daily Forward] e do ‘Hebreu
Americano’ [American Hebrew], e provavelmente não tivesse os contatos que
ele alega na Rússia Imperial, este curriculum vitae soa altamente inflado. Como
a tradução de Minha Vida na Arte testemunha, seu Inglês era só um pouco
mais avançado do que o de Koiranski. Robert MacGregor, editor-chefe da
[Editora] Theatre Arts Books, acredita que Robbins rascunhou parágrafos com
Stanislávski e ajudou-o a reformular suas ideias, mas é mais provável que ele
as tenha reformulado enquanto as traduziu para o Inglês.10
O processo foi trabalhoso e demorado. Sempre que podia se poupar um
momento do teatro, Stanislávski ditava a Olga Bokshanskaia, a secretária de

9
Equivalente ao Mestrado no Brasil. N. T.
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seu parceiro Vladimir Nemirovitch-Dantchenko, que a deixou acompanhar a
turnê como amanuense [escrevente/copista], figurante ocasional e espiã.
Juntos Stanislávski e Bokshanskaia iriam revisar o texto datilografado, e à noite
Stanislávski transformava o produto do dia sob a supervisão de Koiranski, para
refiná-lo. Depois de editá-lo, Koiranski então o entregava a Robbins para
tradução. Na manhã seguinte ele e Stanislávski planejavam a próxima seção a
ser escrita. Este procedimento já lento e complicado era constantemente
interrompido por compromissos sociais, negociações com produtores de
cinema, e a turnê para Chicago, Filadélfia, Boston e localidades a Oeste.
Em junho, a companhia partiu para a Europa para um breve descanso. A
bordo do navio, Stanislávski continuou a ditar as memórias a Bokshanskaia,
simultaneamente com o seu ‘romance pedagógico’ ‘História de uma Montagem
[Teatral’] [his ‘pedagogical novel’ History of a Stage Production]. O trabalho foi
adiado enquanto se adquiria uma máquina de escrever Remington com um
teclado Cirílico, mas foi retomado durante as férias de Verão de 1923 em
Freiburg-im-Schwarzwald e em Varennes durante os ensaios de um novo
repertório para o retorno à América [do Norte] no próximo inverno. Em uma
carta a sua irmã, Stanislávski relatou, ‘escrevi e escrevi sem parar durante o
verão inteiro. Escrevi 60.000 palavras e nem sequer cheguei aos principais
temas exigidos, ou seja, a fundação do Teatro de Arte... Imagino publicar não
um livro fino, mas um livro grosso. Eu continuo escrevendo, mas já estamos
chegando ao fim do prazo – 1º de setembro.’11 De volta a Manhattan as
pressões aumentaram. Uma ouvinte frequente de suas queixas foi a astuta
crítica e incentivadora do Teatro de Arte, Lyubov Gurevich. Em novembro de
1923, escreveu a ela ‘eu tenho que escrever todo o tipo de coisas que eu não
quero.’ Sua visão estava falhando e ele podia trabalhar por apenas três horas
por dia, negligenciando sua correspondência para terminar o livro infernal.12

Não permitem que se trabalhe assim com todas as muitas


entrevistas, deputações e a horda de conhecidos que o convidam
para jantares festivos ou bailes ou concertos, etc., etc. Deve haver
um lugar para se esconder... Eles montaram pra mim uma sala

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privada na esplêndida Biblioteca Pública de Nova York... Na nova
sala o trabalho começou a todo vapor. Tenho escrito como um
condenado a trabalhos forçados, com apenas alguns dias de vida.
Eu escrevo mesmo durante os intervalos, nos bondes e nos
restaurantes e nas avenidas.13

Quase um ano se passou desde que o contrato foi assinado e os editores


mostravam sinais de impaciência, forçando Stanislávski a trabalhar tanto mais
febrilmente. Em abril de 1924, [a editora] Little, Brown exigiu que o manuscrito
fosse entregue no prazo de duas semanas ou eles iriam anular o contrato.
Propagandas foram aparecendo com o anúncio de que o livro estaria à venda
em 26 de Abril. Stanislávski entrou em pânico, pois ele já tinha gasto o
adiantamento e precisava do saldo [restante] [the balance] do pagamento. De
Chicago, ele escreveu para Nemirovitch-Dantchenko [que estava] de volta a
Moscou: ‘Todas as minhas esperanças jazem no livro. O destino de Igor
depende disso. E isso é mortalmente grave. Se ele tiver que voltar a Moscou
antes do tempo, ele vai perecer.’14
Stanislávski não tinha tido tempo para reler ou revisar o manuscrito
completo que totalizava 150.000 palavras. Décadas mais tarde Koiranski
relembrou:

Naquela época o manuscrito tinha crescido para mais de 560


páginas impressas. Foi comovente ver aquele homem grande
quase em histeria. Eu decidi que havia chegado o momento de
cortar o nó Górdio. Eu me sentei e, na hora, escrevi a única
passagem na qual eu contribuí para o livro, o início com um ‘Não
há arte que não exija virtuosismo...’ (p. 570) Estava
citando Degas. Quando li a Stanislávski, ele perguntou: ‘Quem
é Degas?’, e acrescentou as últimas linhas que encerram o livro.
Naquela noite jantamos no [coreógrafo] Michel Fokine. O anfitrião
perguntou a Stanislávski como estava indo seu livro.
Stanislávski olhou infeliz para mim por sobre a mesa e disse:
‘Bem, Koiranski diz que está terminado.’15

Minha Vida na Arte finalmente apareceu sob a impressão da [editora]


Little, Brown em maio de 1924, em uma bela edição de 5.000 exemplares,

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ricamente ilustrada (o contrato tinha estipulado que Stanislávski forneceria as
imagens). A tradução de Robbins tinha sido um trabalho apressado,
[atendendo] as exigências do cronograma de impressão evitando qualquer
polimento ou revisão, especialmente porque alguns dos capítulos tinham sido
publicados em jornais como um teaser preliminar. O dramaturgo Inglês St. John
Ervine estava certo ao chamá-lo de 'monótono e, de vez em quando, [em]
Inglês execrável’.16 A prosa de Robbins é carregada com solecismos: alguma
coisa é “mais grande” ou “dá pra mim fazer”17 [something is ‘deserving of
notation’ or is at one’s ‘call and beck’]. O que é claramente em Russo [o termo
para] ‘fina teia/fio de seda’ [‘gossamer’] é traduzido por ‘como teia de aranha’
[‘cobweblike’] – não de todo a mesma coisa – ‘quinquilharia/entulho/bijuteria’
[‘trumpery’] é mal interpretado como ‘caretas’ [‘frumpery’] e termos como
‘encarnação’ [‘incarnify'] e ‘artilheiros’ ['artillerists'] criam estranhos/impróprios
[awkward] não equivalentes de seus presumivelmente simples homólogos em
Russo. Em dado momento somos informados de que Tchekhov estava
acostumado a ‘rolar de tanto rir’. Muito mais grave são erros de tradução que
obscurecem o sentido. Por exemplo, a afirmação que Gordon Craig opôs-se
aos ‘atores’ kabotinstvo [cabotino, ensimesmado, representando/interpretando
para a galeria] [cabotinage, hamming it up, playing to the galery] especialmente
as mulheres é transformado por Robbins em ‘o comportamento habitual dos
atores e especialmente das atrizes’. Esta é uma gafe infeliz, uma vez que o
termo cabotinagem tinha sido trazido à tona por Meyerhold, que fez dele um
marco artístico para um estilo de atuação [performance] extravagante alheio ao
Teatro de Arte.
Não admira que o diretor [Norte] Americano Joshua Logan foi levado a
observar que ‘os livros escritos por Stanislávski são difíceis de compreender
em suas traduções para a [Língua] Inglesa. Sua escrita em nenhum lugar é tão
vívida quanto seu discurso.’18
Stanislávski tinha suas próprias inquietações. Ele ficou constrangido com
a elegância da edição e escreveu para casa: ‘Os conteúdos não estão à altura

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Optei por expressões que frequentemente os estrangeiros (e também os Brasileiros) erram
em Língua Portuguesa para ilustrar este caso. N.T.
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da [aparência do] livro. Eu não achei que sairia tão extravagante. Claro, tudo
está bagunçado, há omissões absurdas, mas a minha inexperiência é a
culpada. Espero publicá-lo em outras línguas como editado por mim.’19
Já [Stanislávski] o empresário, com uma carreira de sucesso no
gerenciamento de [sua] fábrica por trás dele, certificou-se de que o dinheiro
que ele tinha a esperança de ganhar pelo livro estaria assegurado. Porque a
União Soviética não assinou a lei internacional de direito autoral, a difusão do
livro em Inglês nos EUA obteve [os direitos] da Convenção Berna de Direito
autoral para seus herdeiros. Stanislávski esperava que uma tradução em
Alemão pudesse provar-se lucrativa, mas, dado que a economia do país
inflacionou, nenhuma editora Alemã que pudesse oferecer um adiantamento
pode ser encontrada. Além de que, ele teria que passar [pelo aval da Editora]
Little, Brown, que detinha os direitos mundiais. Com sua perspicácia financeira,
Stanislávski decidiu que se ele pudesse ter uma edição Russa publicada por
uma editora Soviética e então tê-la traduzida para o Alemão, todas as outras
traduções seriam baseadas nessa, e ele poderia receber os royalties
diretamente.20 Numa carta a um pretenso tradutor Alemão ele indicou
importantes diferenças entre a versão [Norte] Americana e a nova [que] ele
estava começando.

Estou pronto e disposto a entrar em discussões com você sobre


isto, o que mais eu deixarei claro é que na América [do Norte] o
livro foi escrito especialmente para o leitor [Norte] Americano, e
agora eu o estou retrabalhando para a Rússia. A diferença entre
essas duas versões é que a primeira é cheia de informações de
natureza um tanto anedótica, tendo em vista um leitor
ingênuo/leigo [simpleminded]. Quanto à segunda, isto é, a edição
Russa, será para o leitor mais sério e irá tratar a questão da arte
mais profundamente.21

No seu retorno a Moscou, em agosto de 1924, depois de dois anos de


turnês no exterior, Stanislávski foi abordado pela editora da Academia Soviética
que estava projetando uma série de autobiografias teatrais e desejava lançá-la
com Minha Vida na Arte. A versão Russa do livro foi elaborada/organizada [put
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together] entre Setembro de 1924 e início de 1925. Uma vez que estava
dirigindo novas montagens [productions], Stanislávski trabalhou nela só à noite.
Em janeiro, ele pode afirmar: ‘Terminei uma versão totalmente nova, que é
definitivamente mais bem sucedida, mais interessante e mais necessária do
que a [Norte] Americana.’22 Este foi, no entanto, meramente um primeiro
rascunho/projeto [draft]. Ele continuou achando a tarefa de escrever infernal e,
como o prazo final se aproximava, avidamente aceitou a oferta de Lyubov
Gurevich para servir como sua editora: ‘Estou envergonhado, desconcertado,
emocionado, grato por todo o seu trabalho. Não se preocupe em fazer
cerimônia: corte tudo o que for supérfluo. Eu não tenho apego e afeição pelos
meus “exercícios” literários’. Ele receava [precisar] reescrever e deu-lhe plena
autoridade para apagar qualquer coisa que estivesse ‘abominavelmente
escrita’. Gurevich objetou que ela acercou-se de seu texto com reverência e
limitou-se a corrigir apenas coisas que ‘pudessem prejudicar a concentração do
leitor ou travar a imaginação’.23 Ela ridicularizou [pooh-poohed] seu medo de
que o livro pudesse ser ‘burguês’, mas advertiu-o dos clichês e repetições. Ele
aceitou a fusão dos capítulos curtos nos maiores e os novos títulos por ela
fornecidos.
Stanislávski estava chateado por ouvir os outros descreverem seu livro
como ‘burguês’ porque era um clássico termo de insulto Bolchevique,
geralmente na forma vernácula ‘boorzhooy’ [burguês]. O movimento artístico da
extrema-esquerda, Outubro Teatral, liderado por Meyerhold e Maiakovski,
estava reivindicando a abolição de todos os teatros pré-revolucionários, o chefe
da Arte em Moscou entre eles [the Moscow Art chief among them]. Stanislávski
esteve pessoalmente sob ataque por apegar-se a uma organização tão
obsoleta uma vez que [when] sua própria criatividade poderia ser direcionada
para os objetivos Soviéticos. Consequentemente, muitas das mudanças feitas
em Minha Vida na Arte foram orientadas especificamente para tratar dos
problemas que o Teatro de Arte estava enfrentando no mundo Soviético. Em
seus apontamentos para a revisão, para responder aos críticos que
reclamaram que o Teatro de Arte fora elitista em suas atrações, Stanislávski

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anotou o novo ponto, que ele e Nemirovitch-Dantchenko o tinham primeiro
chamado de Teatro de Arte de Moscou Publicamente Acessível
(Obshchedostupny [público]) [Moscow Art the Publicly Accessible
(Obshchedostupny) Theatre] ‘porque não havia nenhum jeito de ser nacional
(repertório limitado). No entanto esperávamos oferecer preços populares’.
Outra nota mostra que Stanislávski pretendia usar Minha Vida na Arte como
propaganda na luta entre os princípios do realismo psicológico e a teatralidade
construtivista patrocinada por seu antigo colega Meyerhold, neste momento o
diretor mais influente na Rússia.

No capítulo sobre a Revolução diz que o construtivismo é uma


coisa boa, mas eles não fizeram muito bom uso dele e foi
descartado. Prediz que a arte do ator está no declínio. No capítulo
sobre a Revolução, afirma que isto é o resultado de toda aquela
estilização afetada.

E ele reservou uma punição pará [os] discípulos super zelosos. ‘Renego todos
os meus alunos que transformarem o meu sistema em matemática.’24
Não familiarizado com escrever livros, Stanislávski ficou chocado
quando as compridas folhas do teste de impressão [long galley-sheets]
chegaram do tipógrafo para a correção. Ele temia que o livro fosse aparecer
nesse formato estranho.25 Oprimido por suas obrigações para com o Teatro,
ele queixou-se a Gurevich:

Não tenho vida por causa deste livro. Os editores são insistentes.
Eles exigem que eu cumpra o prazo contratado, caso contrário,
todas as despesas e perdas recaem sobre mim. Eles me
sobrecarregam/oprimem [overwhelm] com perguntas e provas
tipográficas. Eu não entendo as suas marcações/apontamentos
[marks]... Quando chegar ao último manuscrito e provas de
impressão [proof-sheet] eu serei o homem mais feliz na terra, mas
quando o livro sair – eu acho... Vou procurar um gancho para
pendurar a mim mesmo. Sim!... Já é abominável o bastante ser
um ator, mas um escritor!!...??26

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10
A revisão do texto em Russo de Minha Vida na Arte saiu das prensas no
início de setembro de 1926, em uma tiragem de 6.000 cópias, um número
muito significativo para a época, e em papel revestido com vinhetas ilustrativas.
Como Stanislávski esperava, esta versão permaneceu como a base para todas
as traduções para outras línguas que não o Inglês. Infelizmente, não se pode
fazer uma comparação linha por linha com a versão [Norte] Americana com
base nos manuscritos, pois, embora o manuscrito da edição Russa encontra-se
nos arquivos do Teatro de Arte de Moscou, o texto Russo original da versão
[Norte] Americana de 1924 desapareceu. O fraseado original de Stanislávski
pode ser inferido/conjecturado [conjectured] apenas a partir das traduções de
Robbins, que são literais ao nível da ingenuidade, ou [a partir] daquelas
passagens na versão Russa que são idênticas. Com as correções, adições e
anotações de Koiranski e Robbins, os originais datilografados de Stanislávski
provavelmente constituíam um palimpsesto.27 O [livro] Minha Vida na Arte
[Norte] Americano teve como uma motivação subjacente a necessidade de
explicar a Rússia para os estrangeiros, em particular a alteração sísmica dos
velhos estilos de vida para os novos. Consequentemente, continha uma série
de generalizações sobre o caráter Russo e a cultura (p. ex.: ‘Nossa arte ainda
cheira à terra’), que seria escandaloso/chocante [egregious] e desnecessário
para um leitor Russo. Tal tipologia enfática está clara a partir do primeiro
capítulo, intitulado ‘A Velha Rússia’, que [lhe] deu um caráter quase folclórico.
Ele pode ter sido destinado a ajudar o público [Norte] Americano a entender o
contexto de uma peça como Czar Fiódor [Tsar Fyodor], produzido pela primeira
vez em 1898, mas ainda apresentada na década de 1920 como uma peça de
deslumbrante exotismo.
Voltando-se para a versão Russa de 1926, o que primeiramente nos
impressiona/atinge é a quantidade de alterações [one is first struck by the
number of changes] feitas em conformidade com a ideologia Soviet. Quase
todas as referências religiosas são retiradas. A Mãe de Tio Vânia já não lê as
obras do Professor Serebriakov como se elas fossem a Bíblia, ela
simplesmente ‘lê avidamente’. A comparação de Gordon Craig de Hamlet a
Cristo é modificado para ‘o melhor dos homens’, embora a alusão ao Gólgota

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inexplicavelmente continua/permanece [stands]. Foi-se o campesino amante de
teatro que ‘parecia fazer uma cerimônia de transmutação ao tomar uma sopa’,
e, é claro, a última frase do livro, ‘Que o Senhor [Deus] [the Lord] possa me
ajudar na minha tarefa!’ teve de se tornar mais branda: ‘Este trabalho conta
com minha boa vontade e espero realizá-lo em meu próximo livro.’28
A censura do Partido Comunista em meados de 1920 não era tão rígida
como havia de se tornar. Ainda assim, a necessidade de se conformar com a
ideologia Soviet elimina a simpatia inicial de Stanislávski com a sociedade pré-
revolucionária. A observação irônica de Tchekhov que [diz] ‘Nossa pequena
nobreza são pessoas maravilhosas’ desaparece. O leitor não é capaz de
fazer/não é confiável para fazer [The reader is not trusted to make] a distinção
entre as sociedades pré e pós Revolucionária, e dessa forma a crítica de
Tchekhov ‘não é culpa deles que a vida na Rússia mata a iniciativa e o melhor
dos começos e interfere com a ação livre e a vida de homens e mulheres’
também é excluída. Nada mais se ouve do aborrecimento de Stanislávski
quando as apresentações de Um Inimigo do Povo [An Enemy of the People]
foram interrompidas por manifestações políticas.
O pudor Soviet é responsável por pelo menos um corte, que é
engraçado, já que o próprio Stanislávski foi o mais decoroso/decente
[decorous] dos homens. Já não somos tratados com a imagem de Gordon
Craig ‘em seu traje Adâmico, deitado numa banheira gelada na hora de um frio
de - 25 graus’.
Em geral, qualquer coisa que possa parecer depreciativa ou indiscreta é
suprimida na edição Russa, e isso é mais evidente nos capítulos que tratam de
Tchekhov. Alguns dos amigos de Tchekhov, particularmente o escritor Ivan
Bunin, opôs-se tenazmente ao modo ao qual o escritor foi retratado em Minha
Vida na Arte. Por exemplo, a conversação de Tchekhov, como registrada por
Stanislávski, é repleta da partícula enfática zhe, que Bunin insistiu, não era
uma característica do discurso de Tchekhov.29 O que Bunin não sabia era que
a imagem de Tchekhov foi consideravelmente atenuada daquela [que aparece]
na edição [Norte] Americana. A história das respostas à queima roupa

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29
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[pokerfaced replies] de Tchekhov a perguntas sobre suas peças é seguida na
edição Russa de ‘Este foi mais um exemplo do sábio e profundo laconismo de
Tchekhov’, e a anedota sobre os efeitos sonoros para o fogo em As Três Irmãs
[Three Sisters] é igualmente comentada com 'E é aí que a essência de
Tchekhov e sua concepção profundamente lacônica foi mostrada/exposta
[displayed].’ Presumivelmente, estes comentários são feitos para evitar que o
leitor pense em Tchekhov como irreverente/superficial [flippant]. Uma descrição
do ‘riso puro e infantil’ de Chekhov, na verdade qualquer referência ao seu riso
é cortada. Procura-se [One seeks] em vão na edição Russa pela piada de
Tchekhov sobre uma bomba, sua elevada opinião [acerca] de Meyerhold, seu
ser ‘machucado/magoado [hurt], confuso e [até] mesmo insultado’, sua atitude
para com Ibsen, sua[s] pesca[rias], sua citação de O Inspetor Geral [The
Inspector General], e sua alusão ao ator Artyom como um típico Eslavo [Slav],
todas [elas] características da edição [Norte] Americana. O efeito é
despersonalizar e deificar Tchekhov, para removê-lo da esfera
simples/singela/familiar [homely] e acessível, e transformá-lo em um deus de
estanho [a tin god] no panteão da literatura Russa. Para restabelecer o
equilíbrio, a edição Russa finaliza seu capítulo sobre Tchekhov com uma
prolongada/enfadonha explicação [lengthy explanation] de por que ele não está
desatualizado/ultrapassado [out of date], por que ele é progressivo, e como o
Teatro de Arte procura trazer à tona [to bring out] ‘o sonho, o leitmotiv' em suas
peças. Tchekhov estava fora de moda no teatro Soviético na experimental
década de 1920, e Stanislávski sentiu a necessidade de justificar sua
continuada adesão ao repertório do Teatro de Arte.
Outras mudanças na versão Russa têm a ver com os indivíduos: já não
é Olga Knipper quem desmaiou no palco, mas ‘uma das atrizes’. Algumas
[mudanças] são meramente cosméticas [merely cosmetic], como quando um
‘sorriso perverso’ é atenuado simplesmente num ‘sorriso’. Para a maior parte
[das mudanças], no entanto, a tendência é por contradizer [to second-guess] os
acontecimentos do passado e usá-los para justificar as políticas do presente. A
afirmação na versão [Norte] Americana de que Nemirovitch e Stanislávski não
achavam [que] O Jardim das Cerejeiras [The Cherry Orchard] [estivesse]
pronta para estrear e achavam-na chata não é nem mesmo sussurrada na
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versão Russa. Em 1924, Stanislávski explicou que a montagem do Teatro de
Arte da peça quase simbolista de Leonid Andreyev A Vida do Homem [The Life
of Man] havia falhado porque não tinham conseguido ‘encontrar e criar em nós
mesmos e nas apresentações o espírito sombrio/melancólico/carregado
[gloomy soul] de Andreyev, o verdadeiro misticismo que buscávamos no palco
naquele momento, [era] o [bater em] retirada do realismo [the retreat from
realism] e a entrada nas esferas do abstrato’. Em 1926, evitando qualquer
insinuação de que pudesse ser teatralmente desejável atingir/alcançar [o]
misticismo [to achieve misticism], Stanislávski atribuiu o fracasso a uma perda
do encanto [to a fall from grace]: ‘Ao nos separarmos do realismo, [nós] os
atores, nos sentimos impotentes e um tanto perdidos’.
Se muito do frescor e da espontaneidade de Minha Vida na Arte é, por
assim dizer, viciado por trazê-la à conformidade com os ditames da política do
Partido, Stanislávski e Gurevich dificilmente podem ser responsabilizados, pois
eles estavam se esforçando para manter o Teatro de Arte vivo e em tempos
bem difíceis de lidar. Há, de fato, compensações pelas omissões. Novos
capítulos sobre Gorki, sobre a produção de Caim, de Byron (no entanto, menos
a observação encontrada na edição [Norte] Americana de que Caim era uma
pedra de toque/um prato cheio [a touchstone] para o público campesino
[peasant audiences]), uma boa quantidade de material sobre o treinamento dos
cantores (o resultado do trabalho experimental de Stanislávski com estudantes
de música) e sobre o estado criativo [creative mood], e os comentários sobre a
originalidade dos personagens em O Jardim das Cerejeiras [The Cherry
Orchard] fazem sua primeira aparição. Um novo penúltimo capítulo,
provavelmente uma revisão excluída da edição [Norte] Americana, detalha a
hostilidade de Stanislávski em resposta ao conceito Meyerholdiano de
teatralidade. Este é o material que poderia primeiramente ter chateado o
frequentador de teatro [Norte] Americano de 1924, mas era de grande interesse
para o universo do teatro Russo em 1926, e, do nosso ponto de vista, deve
intrigar o estudante moderno de atuação e o historiador de teatro.30
Uma das principais omissões da versão Russa é uma grande melhoria: a
narrativa romântica de Stanislávski do enredo de A Gaivota [The Seagull]. Para

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esclarecer o público [Norte] Americano sobre uma peça que ele achava que
pudesse estar para além deles, ressaltou o talento de Konstantin,
caracterizando Trigorin como um ‘patife sedutor’ [‘scoundrelly Lovelace’], e na
esperança de que a recitação de Nina do solilóquio na pequena peça de
Konstantin [Konstantin’s playlet] iria ‘forçar Treplev e os espectadores no teatro
a derramar lágrimas sagradas provocadas pelo poder da arte’. Creditada pela
autoridade de Stanislávski, esta interpretação equivocada influenciou as
críticas em Língua Inglesa e produções teatrais por décadas e está longe de se
extinguir. Se Stanislávski caiu nesta efusiva má interpretação da versão de
1926 a mando de Lyubov Gurevich (que foi provavelmente a responsável pela
'culta, suave, elegante, poética, livre, encantadora, inesquecível’ podada
descrição de Tio Vânia), ou porque ele tinha desenvolvido uma visão mais
sofisticada, ou porque o novo público proletário não estava para ser cortejado
por tais sentimentalismos burgueses, é um ponto discutível. O resultado,
contudo, é o de reforçar a tessitura intelectual [intellectual fabric] da obra.
Edwin Duerr salientou que tal reforço, devido à experiência editorial de
Gurevich, melhorou muito a organização do livro.

Os 61 capítulos originais, a maioria deles reintitulados, são


aumentados para 72. Além disso, as duas primeiras seções,
chamadas de ‘Infância Artística’ e ‘Adolescência Artística’, pp.13–
116, são um novo arranjo das originais pp.3–147; [o] Cap. III
torna-se [o] Cap. I, [o] Cap. IV continua [como] Cap. V, tornando-
se dois capítulos com restos/sobras suficientes [enough left over]
para páginas posteriores. [O] Cap. IX é empurrado à frente do
Cap. VI, que inclui material do Cap. VII, etc. A terceira seção,
‘Adolescência Artística’, pp.119–342, ao passo que foi muitas
vezes reparagrafada, resumida por cortes, reescrita e ampliada,
contém muito do novo material.31

Esta reorganização reduz a natureza desconexa de certas seções e


disciplina/organiza [disciplines] a recorrência temática das ideias-chave.
Finalmente, uma vantagem da edição Russa sobre a [Norte] Americana
é que, em qualquer das emendas de Lyubov Gurevich, a linguagem é do
próprio Stanislávski: simples, muitas vezes coloquial, às vezes pomposa, ou

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rebuscada, mas uma linguagem que é claramente a voz de um indivíduo.
Depois de ler excertos do rascunho ainda não polido/não ajustado [unpolished]
[da versão] Russa de Minha Vida na Arte Gurevich expressou um entusiasmo
que ainda parece justificado. Ela os declarou ‘uma das mais notáveis obras de
biografia [memoir] escrita que já me aconteceu de ler, combinando
encantadores humor e leveza de narração com incomum e corajosa
autoanálise psicológica e arraigada integridade artística. É escrita com talento
literário verdadeiro – mesmo as figuras descritas de passagem ficam em
pé/aparecem diante [stand before] do leitor como se estivessem vivas. E ela vai
viver por um longo, longo tempo. Ou irei comer minha cabeça!’.32
A biografia de Stanislávski é, certamente, ao lado de outros clássicos da
autobiografia Russa, a de Sergey Aksákov ou de Leon Tólstoi (e para os
homens da geração de Stanislávski, Tólstoi era tido como um modelo de
perfeição moral, a ser imitado em sua sinceridade e impiedosa auto crítica). Ela
oferece a mesma rica e detalhada evocação de um passado distante, o mesmo
aumento circunstancial do crescimento de uma sensibilidade, o mesmo estilo
de narrativa direta que mantém o leitor virando as páginas como se ela fosse
um romance. Minha Vida na Arte é altamente seletiva: não há nada sobre sua
vida de casado ou de seus filhos. Não se poderia nunca apreender a partir dela
que ele administrou/gerenciou [managed] a tecelagem de sua família até a
eclosão da Revolução. O modo confessional de Rousseau é alheio/estranho a
ele. A este respeito, se assemelha às biografias/memórias [memoirs] deixadas
por cientistas como Darwin e Fabre, exclusivamente um registro do
crescimento intelectual. ‘Intelectual’ não é, no entanto, uma palavra que se
aplique a Stanislávski. Ele não frequentou a universidade e se deparou com as
ideias de vanguarda de seu tempo apenas quando elas estiveram correntes no
Zeitgeist [they were current in the Zeitgeist].33 Muito de seu gosto pela música,
artes plásticas e literatura tinha se formado no final do século XIX e ele muitas
vezes teve que ser instruído nas mais recentes/novas tendências [newest
trends] por Nemirovitch-Dantchenko. Ele era apolítico e não religioso, ou
melhor, era um liberal instintivo e crente, sem convicções inflexíveis em

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qualquer esfera [either realm]. Para ele, a arte era o ser tudo e o fim de tudo,
um substituto para a religião, um ideal atingível, indisponível na vida cotidiana.
Neste sentido, ele era totalmente um homem do teatro.
O título Minha Vida na Arte é, portanto, inteiramente preciso/apropriado
[accurate]. O poder de descrição de Stanislávski é esbanjado não em eventos
domésticos ou fenômenos naturais, mas nas cenas de bastidores, nos
episódios nas salas de ensaio, performances observadas a partir da plateia, ou
das coxias. Ele nunca cede à análise psicológica, mas está alerta para a
impressão externa que surpreende a imaginação do artista em ação. Os
impulsos para a arte parecem sempre vir do exterior/de fora [from outside]. Isso
o conduz a evitar atenção demasiada à vida privada ou idiossincrasias
pessoais, para ser elegante em sua discrição. Não há retratos de corpo inteiro
de pessoas, exceto quando elas são avaliadas como artistas ou pessoas que
tiveram uma influência sobre a arte. Sem discorrer extensamente sobre
qualquer fenômeno, Stanislávski administra para evocar a natureza precisa de
um dado intérprete/ator [player] ou montagem.
O que mantém o livro [longe] de ser uma mera coleção de anedotas ou o
inventário de uma longa carreira é seu recorrente tema da questão: através
dele Stanislávski mostra a si mesmo na busca do segredo da inspiração
artística. Em suas negociações com a editora Academia [Soviética], ele
especificou:

Embora eu normalmente chame meu livro de biografia (às vezes


até mesmo uma autobiografia), este título é muito convencional e
pode dar a impressão errada. Este livro é sobre o processo
criativo do ator, escrito na forma de uma confissão pelo próprio
ator, uma narrativa de suas buscas/aventuras [his quests] e
descobertas, sucessos e fracassos, sua incansável luta para fazer
inteligível sua criatividade, descobrir suas leis internas e o
segredo de seus efeitos sobre o espectador. Na medida em que o
material básico do livro são as impressões e experiências do
próprio ator, é claro que [o livro] é reminiscente/retrospectivo
[reminiscent] e documentário/documental [documetary], mas é
seletivo na sequência de um tema estritamente reservado,
seguindo um princípio claramente definido...34

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Como Dom Quixote ou Christian, de Bunyan, ele nunca perde de vista o
ideal, não importa o quanto ele está ferido ou espancado [bruised or battered]
pelo fracasso, não importa o quão longe ele se desvie para o caminho errado.
Sincero em sua representação de seus erros e tentações, Minha Vida na Arte é
realmente o Progresso de um Peregrino, com cada artista, encontrado por seu
protagonista, servindo como um mensageiro. Stanislávski tinha consciência das
implicações devocionais de seu livro:

Tenho dito que o título chama a atenção para a famosa obra


religiosa ‘Minha Vida em Cristo’ [‘My Life in Christ’]. Não importa,
se ocorrer essa associação a qualquer um não será um problema.
Pelo contrário, sublinha a ideia coexistente em meu livro, de
buscas e feitos heroicos, a ideia de servir a uma missão
sublime.35

Consequentemente, se estamos a ‘repensar Stanislávski’, como um


historiador nascido na Rússia colocou uma vez,36 faríamos bem ao começar
com esta nova tradução da versão que seu autor considerou definitiva. Uma
combinação única de narrativa pessoal, história cultural, teoria estética e
reflexões sobre o treinamento do ator, Minha Vida na Arte é uma pedra angular
do teatro moderno.

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