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Ritual, Schechner e performance 67

RITUAL, SCHECHNER E PERFORMANCE

Regina Polo Müller


Universidade Estadual de Campinas – Brasil

Resumo: O artigo trata da experiência realizada no estágio pós-doutoral com Richard


Schechner no Departamento de Estudos da Performance da Tisch School of the Arts/
New York University, abordando a natureza da pesquisa desenvolvida pela autora,
seus antecedentes e desdobramentos. O objetivo é apresentar de modo biográfico
resultados da pesquisa e do processo de criação em performance realizados com o
apoio das teorias da performance de Victor Turner e Richard Schechner. A pesquisa
compreendeu trabalho de campo como observadora participante do processo de
criação e montagem da peça teatral YokastaS, dirigida por Schechner. A criação
pela autora de uma performance apresentada em Congresso científico é abordada
como a etapa final de um percurso de transformações e passagens como pretende
considerar o estágio realizado, visando caracterizar um fazer antropológico
construído através de depoimentos da experiência pessoal.

Palavras-chave: antropologia da performance, performance, ritual e teatro,


Schechner.

Abstract: The article is about the author’s experience in the pos-doctoral studies in
the Performance Studies Department of Tisch School of the Arts/NYU with Richard
Schechner, approaching the kind of research developed by the author, its antecedents
and what was unfolded from it. The aim is to present, in biographic way, the results of
the research and the process of creation in performance accomplished with the
theoretical approach from Richard Schechner and Victor Turner. The research included
the fieldwork as participant observer on the production process of the play YokastaS
directed by Schechner. The creation of a performance exhibited by the author in a
scientific meeting is considered as the last step of a transformation path and
passageways as she considers her studies in USA were in order to have an
anthropological work built through the researcher’s own experience.

Keywords: anthropology of performance, performance, ritual and theatre, Schechner.

Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 11, n. 24, p. 67-85, jul./dez. 2005
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Nova Iorque, 5 de abril de 2003. Em relatório do estágio pós-doutoral na


New York University, departamento de Performance Studies da Tisch School
of the Arts, eu dizia que o “desejado aprofundamento da metodologia de traba-
lho artístico do professor Richard Schechner encontrou condições que se reve-
laram fundamentais para a obtenção de resultados da pesquisa”, superando as
expectativas com relação ao plano de trabalho estabelecido inicialmente. Nes-
se plano, de acordo com a sugestão do professor, eu pretendia participar do
curso “Ritual, Play, and Performance”, ministrado por ele, e, na medida do
possível, participar de workshops por ele dirigidos, tendo como objetivo
aprofundar o conhecimento e discutir, tendo este autor como interlocutor, sua
metodologia de criação em artes cênicas. Ocorreu que, paralelamente aos es-
tudos teóricos, passei a realizar trabalho de campo tornando-me observadora
participante do processo de criação, sob sua direção, da peça YokastaS, ence-
nada no teatro La MaMa. Tive a oportunidade de experienciar, desde o início,
em novembro de 2002, o processo de criação e de preparação dos intérpretes,
bem como assistir às apresentações públicas, algumas vezes participando como
contra-regra. Meu papel no grupo, e o crédito no material de divulgação, entre-
tanto, foi o de observadora (observer), também referida como antropóloga/
observadora (anthropologist/observer).
As categorias descritivas e analíticas da reflexão teórica que Schechner
(1973, 1982, 1985, 1988, 1994, 2002) faz a respeito de sua obra, construídas por
ele próprio, se encontram na intersecção entre as ciências humanas, a estética
e a biologia. Sua estreita relação com a antropologia, bem como suas inspira-
ções e diálogos com a psicanálise, filosofia e biologia constituem o referencial
teórico básico. Este largo espectro de teorias clássicas e contemporâneas so-
bre ritual e play se organiza em torno dos conceitos de performance e
performatividade, uma das principais contribuições teóricas de Schechner.
No curso “Ritual, Play, and Performance”, eu estudava os conceitos, o
referencial teórico que possibilitaria compreender melhor a obra de Schechner,
cuja contribuição aos estudos da performance foi construída a partir de uma
reflexão sobre a relação entre ritual e teatro. No ano de 2002, ele havia lançado
o livro Performance Studies, an Introduction (Schechner, 2002), no qual apre-
senta as fontes teóricas de sua tese sobre as relações entre ritual, play e
performance, tema do curso e desdobramento de suas pesquisas mais recen-
tes. Ao mesmo tempo, este último livro é apresentado em formato didático,
com exercícios e sugestões de leitura para a pesquisa, produto de uma das
dimensões profissionais de meu interlocutor. Dentre suas inúmeras atividades,

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a de professor e formador de pesquisadores representa uma interessante e


importante faceta. Talvez, entretanto, não aquela que ame preferencialmente.
Assisti também a seu curso “Experimental Performance, 1960s-Present
(mostly USA)”, que trazia, antes de mais nada, uma excelente etnografia das
artes cênicas nos Estados Unidos na segunda metade do século XX. Não poderia
ter havido modo mais fértil de fazer o levantamento das produções e experiências
cênicas que compreendem o contexto em que a metodologia de Schechner se
desenvolveu, como havia me proposto realizar no projeto de pesquisa.
Farto material documental audiovisual (vídeo e fotografia) foi apresenta-
do nos cursos, parte pertencente ao arquivo pessoal e parte à da Bobster Library
(New York University). Nesse segundo curso, o pesquisador considerou o pe-
ríodo em questão como de grande crescimento da performance experimental,
quando surge um novo gênero – a arte da performance (performance art). Ao
mesmo tempo, segundo Schechner, antigos gêneros foram reconcebidos e
reestruturados, podendo-se constatar, atualmente, que o teatro convencional
ocupa apenas uma faixa na variada gama de novas abordagens que então sur-
giram e tiveram continuidade até os dias de hoje, nas quais se conectam as
artes, os rituais, as ações político-sociais e as comunidades locais.
Assisti ainda a seminários sobre The Performance Group, do qual ele foi
um dos fundadores e diretor, The Wooster Group, originado de uma dissidência
do primeiro, por iniciativa de uma de suas principais atrizes, Elizabeth LeCompte,
e o Squat Theater, este último com a participação no seminário de um de seus
membros, Klara Plotai. Foi, entretanto, a leitura do livro que Schechner escre-
veu em 1971-72 sobre o que chamou de “practice of environmental theatre”
(Schechner, 1973), vivida de 1967 a 1980, incluindo a experiência no The
Performance Group, que me colocou as principais questões que orientaram o
trabalho de campo sobre a montagem de YokastaS, realizada 30 anos depois.
Na verdade, essa leitura não somente produziu questões de pesquisa como
também despertou fascínio sobre uma trajetória que eu passava a conhecer
através de farta documentação, depoimento e análise do próprio sujeito das
experiências em pauta. E, ainda, eu estava tendo a oportunidade de participar
de uma delas, sentindo-me muito privilegiada por, desse modo, realizar um ver-
dadeiro mergulho na obra daquele “guru whose principles and influence have
survived a quarter-century of reaction and debate”: é desse modo que o autor
do livro é mencionado na contracapa da nova edição ampliada de Environmental
Theatre (Schechner, 1994), espécie de “bíblia de uma nova geração de artistas
de teatro”, também segundo a mesma apresentação. Entre este livro, para

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artistas, e o mais recente, para estudiosos da performance (Schechner, 2002),


se descortinava para mim toda uma vida e obra artística e intelectual que eu
testemunhava agora, a partir de uma espécie de síntese, curiosa por comparar
o guru dos anos 1960-1970 ao professor cujo trabalho de diretor tomou o rumo
da produção artística aliada ao ensino e pesquisa acadêmica. Os dilemas da
criação coletiva, do papel do diretor e suas relações com os atores, da improvi-
sação e rigor técnico e estético, do texto dramatúrgico e texto performático, do
lugar do corpo e do espaço entre os atores e o público, do engajamento político
e apego à tradição do teatro antigo (os clássicos gregos), estavam no primeiro
livro, e agora eu os via (e vivia com o grupo), como num papel de investigador
vigilante da herança do guru Richard Schechner.
Eu havia chegado até ele através de Victor Turner, quer dizer, das leituras
de suas últimas obras (Turner, 1982, 1988), que construíram a antropologia da
performance, parte da antropologia da experiência, segundo ele próprio. Esta
proposição teórico-metodológica de Turner está alicerçada no drama como
analogia da vida social e na ponte entre o ritual e o teatro, percurso que contou
com a companhia de Schechner no final dos anos 1970, início dos anos 1980.
Escreve Turner (1982, p. 7):

The essays in this book chart my personal voyage of discovery from traditional
anthropological studies of ritual performance to a lively interest in modern theatre,
particularly experimental theatre.

Turner escreveu From Ritual to Theatre (1982) e Schechner escreveu


From Ritual to Theatre and Back (1988).
Eu também tenho sido artista e antropóloga. Formada na USP e Unicamp
e atriz de um grupo de teatro surgido no movimento da contracultura em São
Paulo nos anos 1970, o Dzi-Croquettes, estudei as sociedades indígenas e de-
senvolvi meu corpo decorado em performance como meio de expressão. Pro-
duzi teses antropológicas profissionalmente e apresentei performances como
lazer, após uma tentativa frustrada de viver de teatro. O que consegui fazer foi
uma antropologia para atores e dançarinos, quando ingressei na carreira do-
cente universitária. Por conta dessa migração da etnologia indígena para o
ensino e pesquisa em dança, encontrei um caminho para fazer esta ponte em
Turner, aquele mesmo de Floresta de Símbolos (2005) e O Processo Ritual
(1974) de minha formação antropológica. Conheci este outro Turner, por sua
vez, através de Geertz (1993) que representava, nesse momento, minha moti-

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vação para a reconciliação com a teoria antropológica. Estivera até então, em


meus trabalhos de interpretação da dança nos rituais dos Asuriní do Xingu e de
danças de religiosidade popular no interior de São Paulo, apoiada na análise do
discurso da escola francesa.1 Em Geertz (1983, p. 31), na analogia do texto
como configuração da teoria social, o conceito de “inscrição”, a fixação do
sentido, é a chave para a transição da escrita como discurso para a ação como
discurso. Esse conceito de “inscrição” diz respeito à contextualização históri-
co-social do discurso, ou seja, a relação entre discurso e as condições de pro-
dução de sentido (Müller, 1993). Eu estava preocupada nessas pesquisas com
a noção de persistência do significado da ação em geral (Geertz, 1983, p. 31).
E, através de um enfoque interdisciplinar, passei a cotejar as formulações deste
autor às da análise do discurso, no caso, a fixação de sentido e a tensão
constitutiva entre o novo e o tradicional, entre a variação (polissemia) e o
sedimentado (paráfrase), na produção do discurso. A proposta metodológica da
análise do discurso está inscrita na perspectiva da enunciação (na lingüística)
que, por sua vez, se relaciona a orientações recentes do campo das ciências
humanas. Na lingüística, um de seus precursores é Bakhtin, que considera a
relação com o outro o fundamento da discursividade. As reflexões desse autor
dizem respeito ao “princípio dialógico”, isto é, ao caráter constitutivo da interação
enunciativa. Para ele, a natureza da linguagem é fundamentalmente dialógica,
ou seja, a linguagem é enunciação e a enunciação é basicamente social. Ou
seja, a substância da língua é o fenômeno social da interação verbal (dialogia)
realizada através da enunciação (Bakhtin apud Müller, 1998, p. 274). O proces-
so da enunciação é uma atualização temporal e espacial do sujeito em seu
discurso. Pela teoria da enunciação não se analisa, pois, o texto realizado como
um produto, mas se procura refletir sobre o ato de produção desse texto. Tra-
tava-se, a meu ver, da noção de “inscrição” de sentido a que se refere Geertz
ao apresentar a analogia do texto na antropologia contemporânea. Na antropo-
logia interpretativa de Geertz e na antropologia da experiência de Turner en-
contrei uma perspectiva de interdisciplinaridade entre ciências humanas e ciên-
cias sociais, as quais consideram a dimensão estética e sensível da experiência
social e permitem a contextualização cultural do significado. Suas obras exami-
nam justamente a performance teatral e a do ritual. Do diálogo entre os dois,

1
Estou me referindo particularmente a teóricos da análise do discurso, como Michel Pêcheux,
Dominique Maingueneau, Eni Orlandi.

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sobre dilemas da analogia do drama para a vida social como referência teórica
para as questões metodológicas da pesquisa em artes cênicas, fui me
direcionando, conduzida por Turner, a aprofundar a teoria da performance e a
metodologia de criação artística de Richard Schechner como diretor. Assim,
em 2001, eu escrevia a ele sobre meus interesses e, uma vez recebida como
visiting scholar no departamento onde leciona e aceita como pesquisadora de
sua obra, logo tive a oportunidade de pedir para conhecer sua atuação artística.
Eu desejava conhecer o diretor de teatro, o “guru” do teatro experimental ame-
ricano que havia iniciado Victor Turner (1982, p. 9, 10). Diziam no departamen-
to de Performance Studies que de modo diferente do que ocorrera comigo, em
geral ali se chegava a Turner através de Schechner.
Grande parte de meus colegas de cursos eram atores e dançarinos. Entre
eles, havia também excelentes performers, e Marina Abramovic esteve numa
atividade coletiva do departamento, conversando sobre a performance que ha-
via apresentado na época em Nova Iorque, The House with the Ocean View.
Em uma das aulas do curso sobre as teorias da performance, “Ritual,
Play, and Performance”, cujo título no programa era “Ritual and Play Compared.
A Neurological Perspective on Ritual”, Schechner ministrou um workshop
que chamou de “Experiencing Light Trance”, para o qual devíamos estar ves-
tidos para dançar (ao lado do título da aula lia-se a observação “come dressed
to dance”). A participação neste workshop representou o primeiro passo de
realização do verdadeiro projeto que me levava para fora do país e para este
contexto acadêmico-artístico em particular. Minha intenção verdadeira, para
além daquela expressa acima no relatório para a agência financiadora, foi viver
um período de reclusão e rito de passagem para uma nova fase profissional e
pessoal. Afastada do cotidiano de trabalho e de meu meio-ambiente, viver en-
tre os americanos significaria experiência semelhante à vivida entre os Asuriní
do Xingu, o contato e comunicação com o outro que nos leva a refletir sobre
nós próprios e acionar processos de transformação e redefinição de identidade.
Nesse ambiente de artistas e pesquisadores e tendo Schechner como an-
fitrião, senti-me pronta para a travessia. Livre de compromissos estabelecidos
por outros – agora a livre-docência permitia a liberdade da autodeterminação –
, estranha em outra cultura de modo a ganhar igualmente a liberdade de agir
como um diferente, sentia-me muito à vontade para me comportar segundo
minhas próprias buscas. Schechner pedia para nos vestirmos com roupa leve,
modo adequado para o trabalho corporal que desenvolveria conosco, isto é,
exercícios de respiração e movimentos de dança em grupo. Eu fui com todos

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os colares que havia trazido comigo, um grande volume de peso. O uso de um


monte de colares pelas mulheres asuriní nas danças rituais sempre me intrigou.
Se a proposta do workshop era a de explorar o estado de transe provocado
pelo movimento e respiração realizados pela execução da dança, eu tinha para
mim um laboratório para testar o estado das Asuriní do Xingu ao dançarem, e,
portanto, obter experiência semelhante com um elemento diverso da proposta
de meu “adviser” americano. Em lugar da leveza, o peso. Em lugar do corpo à
vontade, carregar quilos de contas que potencializam o peso da gravidade, a
puxada do corpo para o chão. Eu experimentava juntar a experiência da me-
mória do corpo na aldeia indígena com a do corpo na cidade de Nova Iorque,
ambas na situação de reclusão e suspensão de minha vida regular. Schechner
apenas perguntou se eu iria participar daquele modo e eu expliquei meu objeti-
vo, dizendo que pretendia experimentar um “light trance” à moda das mulheres
asuriní. Esta experiência seria retomada no terceiro passo de minha passagem
por este portal, imagem que eu atribuía simbolicamente aos estudos em Nova
Iorque.
Sobre esta relação entre a vida com os Asuriní do Xingu e a estada nos
Estados Unidos, escrevi em um dos relatórios sobre o processo de criação e
encenação de YokastaS que, durante o trabalho de campo com o grupo teatral,
eu freqüentemente o comparava com a experiência de pesquisa entre os índi-
os. Destacando as semelhanças, propunha então nesse estudo tratar dos se-
guintes temas: 1) o ritual indígena e o dia-a-dia na aldeia e as sessões de mon-
tagem e exibições da peça e o viver em Nova Iorque; 2) a relação com o
“outro” na situação de pesquisa e a experiência existencial (viver num meio
cultural diferente do pesquisador); 3) o crescimento pessoal: viver entre os
índios e entre os americanos, participando de seus rituais; 4) a língua, a comu-
nicação, os canais de percepção.
O segundo passo importante que tornaria aquele estágio pós-doutoral uma
experiência iniciática foi me integrar ao grupo de teatro da East Company of
Artists, de Richard Schechner, na montagem da peca YokastaS. Sua atuação
nessa companhia representa talvez, esta sim, a realização de um de seus obje-
tivos mais caros, o de formar e estimular jovens atores de diversas tendências
e formações artísticas, num encontro profícuo de diferenças, catalisado por sua
incrível energia de levar à frente seus experimentos.
Convidada por ele a participar do grupo desde a primeira reunião de ato-
res, produtores, assistentes de direção e dramaturgos, em resposta ao meu
pedido de conhecer sua atuação artística, fui apresentada como antropóloga/

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observadora. A partir de então, tornei-me, segundo depoimento posterior2 de


um dos atores, o olhar deles sobre si próprios. O fato de serem observados por
alguém que não expressava comentários ou reações, porque estava ali para
observar, criava uma situação de reflexividade na qual o ator podia preencher o
vazio de uma observação silenciosa com aquilo que imaginava que eu estivesse
sentindo e interpretando. Era um olhar que estava sempre ali, acompanhando
tudo o que acontecia, distante pelo silêncio, mas, ao mesmo tempo, muito próxi-
mo pela intimidade criada pelo encontro quase diário e com os exercícios de
ioga, compartilhamento corporal e sensorial, respiração e contato físico. Eu
apenas me pronunciava quando interpelada pelo diretor, cuja proposta de cria-
ção do texto e interpretação nos laboratórios incluía a presença de público em
todas as sessões. Eu era o público cativo, outros convidados eram alunos dos
cursos, professores do departamento, professores convidados, figurinista,
iluminador, produtor, etc.
Não se fizeram uma só vez laboratórios e ensaios sem público. E, em
todos, Schechner pedia a opinião dos que os assistiam. O processo de work in
progress, como ele próprio definia o trabalho com o grupo, consistia em labora-
tórios conduzidos, inicialmente, através de técnicas projetadas por Schechner
em torno da idéia de “corpo emocional”. E, fundamentalmente, através dos
textos produzidos por ele e por Saviana Stanescu, escritora dramaturga rome-
na, os quais eram reescritos a duas mãos, a partir dos laboratórios.
Pude observar inicialmente, e era minha expectativa pelas leituras de seus
livros, particularmente Environmental Theatre (Schechner, 1994), osse dada
mais ênfase ainda a essas técnicas durante todo o processo, técnicas que, a
partir de estímulos imagéticos, textuais, sonoros, poéticos e psicofísicos, pro-
moviam a construção do “cavalo”, “médium” ou ator, integrada à construção
dos personagens. Por minha expectativa, Schechner daria ênfase ao corpo na
construção do texto dramatúrgico e cênico, pois atribui a ele o “começo e o fim
de toda atuação performática: “All performing work begins and ends in the
body.” (Schechner, 1973, p. 132). A ação do corpo nos processos de treina-
mento do ator cênico recebeu diversas interpretações e métodos de realização
nas artes cênicas contemporâneas, como o orientalismo incorporado às técni-

2
Após as apresentações públicas, final dessa etapa dos trabalhos da ECA com YokastaS, a atividade
seguinte de minha pesquisa foi entrevistar todos os atores, cujos depoimentos foram gravados e
constituem parte do material etnográfico.

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cas de treinamento do teatro experimental americano, como se via nos exercí-


cios de ioga que abriam todas as sessões, inclusive o aquecimento antes da
apresentação pública. Assim, na criação de YokastaS encontrava-se essa marca
de ênfase na ação corporal, mas, efetivamente, o lugar estruturante da criação
dramatúrgica coube ao texto. Em confronto e/ou dialogando com a dimensão
corporal e expressiva, o tema desenvolvido literariamente pelos autores provo-
cava a criação e desenvolvimento de personagens e sua interpretação, o que,
por sua vez, oferecia material para a reescritura e criação do texto em co-
autoria. Entre, de um lado, as improvisações nos laboratórios estimuladas pelo
texto e, de outro, a direção de Schechner sobre a interpretação dos atores e
marcação das cenas, a dinâmica do processo de montagem de YokastaS apre-
sentou duas fases: a primeira, dos workshops de treinamento físico relaciona-
dos aos laboratórios de improvisação, e os próprios laboratórios, fontes de ma-
terial para a escritura da peça, e a segunda, de encenação da mesma sob
direção de Schechner. Com essa passagem de uma fase à outra, pude observar
certa tensão entre os atores. Havia momentos de resistência por parte deles, e
as muitas mudanças no texto e, conseqüentemente, nas marcações e na dire-
ção de interpretação, eram causa de descontentamento. Em entrevistas que fiz
posteriormente com os atores, a esse descontentamento quanto à relação entre
eles e o diretor, preocupado então em estabelecer o frame, a estrutura cênica,
o score, somava-se certa decepção quanto ao que esperavam – e eu acres-
cento, idealizavam – a respeito da proposta artística do “guru” do teatro expe-
rimental americano. Como concluí no estudo realizado (Müller, 2003, p. 203),

[…] contrariando a expectativa por parte do público e dos atores, o texto e sua
encenação sob uma direção constituíram a estrutura da proposta […] a principal
novidade residiria na importância do texto, particularmente na sua estrutura que
representaria as bases da proposta estética atual que reproduz, ao mesmo tempo,
os princípios da obra experimental de Richard Schechner.

Transcrevo aqui outros trechos de minha interpretação, na tentativa de


buscar compreender os “30 anos nesta peça” e reencontrar nosso “guru”:

Compreendi, no final, que, neste caso, não se tratava de desconstrução para se


obter a construção, a partir da ação e da experiência sensorial e corpórea do ator,
mas da intertextualidade entre as duas dimensões, o texto e a performance, com as
contradições e confrontos constitutivos deste processo. Utilizando conceitos do
próprio Schechner (1982, p. 29), compreendi que a ênfase maior seria dada ao

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“texto dramatúrgico” (“dramatic text”) e não ao “texto da performance”


(“performance text”), o verdadeiro “score” a partir do qual a experiência de “flow”
em “playing” poderia ser vivenciada pelos atores que, desse modo, levariam
também o público a compartilhar do teatro como um ritual de transformação. E,
como na acepção do ritual enquanto experiência reflexiva, residiria na performance
de uma estrutura, ou seja, na participação dos membros da comunidade de atores
e de espectadores – no caso destes, manifesta ou não – o meio pelo qual a arte
pode realizar esta experiência. (Müller, 2003, p. 200).

Sobre a estrutura do “texto performativo” como chamei o script final de


Stanescu e Schechner, escrevi:

Durante as apresentações no teatro La MaMa, a partir do resultado final (texto e


encenação), obtido na fase anterior, os atores continuaram a construir os
personagens, experimentando ser YokastaS e seu parceiro. E deste modo,
conseguindo mais ou menos, um dia sim, outro nem tanto, provocar posicionamento
do público sobre sua própria experiência enquanto protagonistas da situação
apresentada. Este desfecho foi obtido pela multiplicidade do personagem e pelo
final sem fim e aberto do texto e encenação. (Müller, 2003, p. 202).

Finalmente, para apresentar como hipótese dessa interpretação um prin-


cípio fundamental da atuação de Schechner como autor e diretor, na verdade
uma dica dada pelo próprio, digo que com YokastaS ele “pretendeu ir tão longe
quanto possível no seu objetivo de se divertir com o processo, isto é, estar
sempre ensaiando, estar sempre em situação de ensaio, estar sempre ‘playing’”
(Müller, 2003, p. 202).
Produzi esse texto ainda em Nova Iorque, como também dei início a um
trabalho de criação em performance, o terceiro passo de minha travessia. Este
começaria com um pé em Nova Iorque, outro em Campinas e o próximo no 51o
Congresso Internacional dos Americanistas, em Santiago do Chile, em julho de
2004.
O tema de um dos simpósios desse congresso para o qual fui convidada a
participar, “Arte, Música e Globalização na América Latina” e a sugestão, no
convite das organizadoras, de se apresentar uma peça musical ou teatral a um
público ávido por “anthro-performances”, mais a inspiração para “me divertir
com o processo”, foram os estímulos para eu colocar em prática o desejo de
uma transformação nos meus estudos sobre os Asuriní do Xingu e na minha
relação com o mundo acadêmico.

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Desde o início de minha convivência com os Asuriní do Xingu, ouvi muitas


vezes o convite para dançar, “sazaha oforahai”, nos rituais que realizavam para
trazer os espíritos à aldeia e vivenciar os eventos cosmogônicos da origem dos
tempos. Nunca dancei a noite toda, nos três dias seguidos de um “maraká”,
ritual xamanístico de cura e de propiciação para garantir a caça e a colheita.
Apenas uma vez, no ritual cosmogônico “turé”, consegui participar durante toda
uma noite, incumbida que fora de encarnar a função/personagem mítico da
kavarivandara, a mulher que acompanha Kavara, o guerreiro sobrevivente, o
duplo do eu na unidade do ser humano vivo, indivisível (Müller, 1990, p. 109, 272).
Paramentada com os ornamentos, colares e pulseiras, bandoleiras e cin-
tos de miçangas, coco, contas e dentes de macaco, penugem de gavião na
cabeça e pernas e tinta de jenipapo cobrindo todo o corpo, consegui chegar ao
final do rito do “kavara”, do choro aos mortos, junto à grande panela japepaí,
no centro da casa comunal.
Foi pouco para quem viveu, muitas e muitas vezes, a situação de ser con-
vidada insistentemente a dançar para agradar aos espíritos. Foi insignificante
para quem foi convidada pelos Asuriní do Xingu para participar desse momento
de instauração do momento cosmogônico de se encarnar, na vivência ritual, o
“isso e aquilo”, o ser humano e o ser mítico.
Dancei muito pouco, perante as inúmeras vezes em que as mulheres me
ofereciam a prazerosa atividade de compartilhar o canto e o movimento coleti-
vo de corpos se abraçando, ao som e ritmo do iafu, o chocalho do xamã, ou do
avai’ip, o bastão de percussão da mulher xamã, ou, ainda, da melodia e ritmo
das clarinetas turé. Eu deveria ter dançado muito mais.
A performance que eu desejei realizar para o Congresso dos Americanistas
estaria baseada nessa memória e no encontro com formas de manifestação da
cultura nativa do continente norte-americano, no contexto da multiculturalidade
e da demanda comercial do mercado mais radicalmente marcado pela
globalização. Assim, foram diversas as razões pelas quais a música dos índios
cree chegaram a mim no processo de criação. Antes, porém, de explicar isso, é
necessário falar como esse processo foi desencadeado, o que nos leva a outra
marca da experiência multicultural vivida no âmbito do mundo ocidental, mais
particularmente norte–americano e mais ainda, das artes da performance nos
Estados Unidos: a presença das técnicas corporais do oriente incorporadas nas
décadas de 60 e 70 no teatro e dança. Estou falando dos exercícios de ioga que
precediam as sessões de laboratórios e ensaios da montagem de YokastaS.
Nos últimos 12 anos, minha pesquisa sobre ritual entre os Asuriní do Xingu,
iniciada em 1976, desdobrou-se na investigação da dança no ritual indígena e

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sua relação com a performance contemporânea. Assim, no estudo do processo


de criação desenvolvido pela metodologia de Richard Schechner, eu trazia, além
do método da antropologia, a experiência de ter pesquisado rituais indígenas.
Observava, por exemplo, que algumas práticas desse teatro americano são
ritualizadas, produto da experiência de Schechner nas pesquisas que realizou
sobre rituais na Ásia e entre várias sociedades “nativas” ou “aborígenes” e, ao
mesmo tempo, na sua profissão como diretor teatral na tradição experimental.
Nesses momentos, no processo de encenação desenvolvido por Schechner,
criava-se, ou pretendia-se criar, o sentimento de “communitas” (Turner, 1974,
1982), retirando os atores do cotidiano e levando-os para o plano dos sonhos e
fantasias. Esse processo é realizado através da condição de playing e é dirigi-
do por uma estrutura. No caso dos rituais em sociedades tradicionais, essa
estrutura é encontrada em sua cosmologia e mitologia. No teatro, a atividade
de playing está baseada na estrutura que é representada pelo script, o tema, a
narrativa dramatúrgica. São a atividade de playing e o caráter processual do
ritual e das artes cênicas que permitem sua comparação e a conceituação de
ambos como “performance cultural” (Singer apud Turner, 1988, p. 21). Por
outro lado, dentre as linguagens das artes cênicas, é a performance a que mais
se aproxima, a meu ver, da experiência ritual nas sociedades indígenas. A
reelaboração e atualização dos conteúdos dos rituais indígenas no contexto
histórico corresponde, na experiência artística contemporânea ocidental da
performance, à elaboração subjetiva do ator performático. Ele propõe à audi-
ência, com seu script dramatúrgico, o mesmo exercício de reflexividade sobre
a realidade, através da experiência estética. Citando Turner (1988, p. 22),

[…] if the contrivers of cultural performances, whether these are recognized as


individual authors, or wether they as representatives of a collective tradition,
genuises or elders, hold the mirror up to nature, they do this with “magic mirrors”
which make ugly or beautiful events or relationships which cannot be recognized
as such in the continuous flow of quotidian life in which we are embedded. These
mirrors themselves are not mechanical, but consist of reflecting consciousness
and the products of such consciousnesses formed into vocabularies and rules,
into metalinguistics grammars, by means of which new unprecedented
performances may be generated.

A escolha da linguagem da performance para participar do simpósio sobre


arte e globalização, tendo como objeto de reflexão a dança entre os Asuriní do
Xingu, povo indígena da Amazônia, partiu assim de uma experiência de pesqui-

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Ritual, Schechner e performance 79

sa teórico-prática. Eu propunha também nesses estudos cotejar a metodologia


de Schechner à de Graziela Rodrigues, pesquisadora em dança brasileira, cujos
pontos em comum podem ser salientados. Para Rodrigues (1997), o processo
de formação do bailarino intérprete e criador ocorre ao se penetrar manifesta-
ções populares brasileiras que contenham o sentido de resistência cultural, re-
lacionando-o com realidades onde a devoção vivida pelo corpo é uma habilida-
de de sobreviver como ser humano. A convivência com essa realidade promo-
ve a experiência de ruptura, através da qual se constrói a linguagem do corpo
em sua relação com a história, a identidade e o inconsciente coletivo. No pro-
cesso que Rodrigues propõe desenvolver a criação e a interpretação em dança,
encontra-se igualmente a “transformação/transportação” e a conjunção entre
preparação técnica, laboratório e ensaio referidos por Schechner (1985) ao
cotejar os dois gêneros de “performance cultural”, o ritual e a arte da
performance, através da convergência entre o vivido pelo artista performático
e pelo iniciando no ritual. Segundo este autor, tanto na performance cênica
artística quanto no ritual, o padrão processual implica em separação, transição
e incorporação, citando as fases da iniciação ritual para Van Gennep (apud
Schechner, 1985, p. 20). Usando suas categorias, Schechner considera o pre-
paro técnico, o laboratório e o ensaio como ritos preliminares, de separação. A
performance em si é a liminaridade, análoga aos ritos de transição. O relaxa-
mento e o retorno são pós-liminaridade, ritos de incorporação. Através dessas
fases, acentuadamente marcadas, as pessoas iniciadas no ritual sofrem trans-
formação permanentemente, enquanto que nas performances, de um modo
geral, as transformações são temporárias. Schechner as denomina, então,
“transportações”. Para ele, como as iniciações, as performances fazem de
uma pessoa, outra. Mas diferentemente das iniciações, completa, “performances
geralmente tratam daquilo que o performer recobra de seu próprio eu”
(Schechner, 1985, p. 20, tradução minha). No processo desenvolvido pela
metodologia de Graziela Rodrigues, pesquisa de campo e laboratório desembo-
cam numa personagem a ser “incorporada” (a liminaridade nesse caso pode
corresponder ao que denomina “incorporação” da personagem, a performance
em si, e a transformação/transportação de que fala Schechner). No processo
de desenvolvimento da personagem, o primeiro sujeito a ser pesquisado pelo
bailarino é ele mesmo, tal como a autora relata:

Tendo como princípio a “estrutura física”, o corpo-sentido é sistematicamente


trabalhado. Procura-se atingir, a nível profundo, os ossos e músculos envolvidos

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em cada matriz de movimento. Esta associação às imagens internas provoca


sensações distintas em cada pessoa. O desdobramento das temáticas, provindas
das manifestações culturais pesquisadas, é realizado a partir da incorporação de
seus campos simbólicos, considerando-se as dinâmicas específicas de cada uma
delas. Estas fontes provocam um conflito no bailarino, levando-o a questionar
sua Identidade. Estes conflitos são vistos como importantes elementos nas
linguagens da dança, já que os seus movimentos são trabalhados. O percurso
interior (imagens e registros emocionais) é desenvolvido em interação com o
movimento exterior, buscando-se sempre uma qualidade que seja resultante da
realidade do sujeito-bailarino. (Rodrigues, 1997, p. 147).

A pesquisa de campo que venho realizando desde 1976 entre os Asuriní


do Xingu me proporcionaria a experiência corporal e a memória de uma “estru-
tura física” a ser trabalhada na criação da performance que trataria justamente
da questão de minha identidade na convivência com eles e da subjetividade da
experiência estética no contexto intercultural. Eu me propus a refletir sobre o
tema do simpósio a partir da experiência do pesquisador, construindo esse per-
sonagem como texto performático a ser apresentado à audiência, formada por
outros pesquisadores, e com ele suscitar a discussão. Pretendi propor uma
forma de produzir conhecimento no contexto acadêmico e antropológico, em
particular, de modo a responder ao desafio proposto pelas organizadoras do
simpósio.
Assim, eu tinha a pesquisa em andamento na New York University e a
experiência de viver a dança entre os Asuriní do Xingu como ponto de partida
para criar a “anthropo-performance”, título tomado do termo “anthro-
performance”, como as organizadoras do simpósio denominaram outras for-
mas possíveis de apresentação dos trabalhos. Tinha também uma sala na Tisch
School of the Arts, no número 721 da Broadway, sexto andar, e tempo para
ficar dançando o quanto quisesse ou pudesse. Nessa sala, assisti aos cursos de
Richard Schechner e aos ensaios da peça YokastaS. Nessa sala, participei dos
exercícios de ioga, no aquecimento dos laboratórios e ensaios. Nessa sala, iri-
am se misturar o viver entre os Asuriní do Xingu e entre os americanos, obser-
vando e participando de suas “performances culturais”. O corpo da ioga e o
corpo da dança asuriní iriam se misturar como movimento, cujas matrizes asso-
ciadas à imagem interna e registro emocional, provocariam a incorporação da
personagem.
No primeiro laboratório, iniciei a sessão com exercícios de ioga e, na se-
qüência do exercício final de respiração, o som do “om” se transformou no som

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do canto das mulheres asuriní acompanhando o xamã no ritual do “maraká”.


Outra referência ou dado da memória, nesse caso, recente, foi o workshop
“Experiencing Light Trance”, ou o primeiro passo da travessia em curso, como
o chamei e descrevi acima. Sete meses depois, quando dei início ao processo
de criação da “anthropo-performance” e o som do canto das mulheres asuriní
veio do “om” da prática indiana da ioga, tive como certo que eu dançaria do
modo como dancei no workshop: com todos os colares que trazia comigo.
Para realizar a dança, seriam necessários os sons do xamã cantando e da
percussão do chocalho. Outras sessões aconteceram, nas quais eu dançava
uma média de três horas, três vezes na semana, com o som de uma gravação
da música do “maraká”. Nestas sessões, passei ainda a executar, ao som de
outra gravação, o canto-dança do ritual xamanístico “tauva”, realizado só por
mulheres. Essas gravações constituíram a partitura musical da performance,
sobre a qual sobrepunha minha voz. Do movimento do corpo, dançando a core-
ografia no espaço e do movimento dos passos da dança das mulheres asuriní,
de três a quatro horas ininterruptas, vieram outros movimentos que o corpo foi
levado a fazer, não mais a dança delas, mas algo sem identificação que pedia
outro som. Em busca de algo que preenchesse de sentido e de cinestesia o
movimento que vinha da dança asuriní, mas não era mais ela, fui a uma loja de
produtos artísticos de povos indígenas americanos que se localizava exatamen-
te à frente da Tisch School, na Broadway. Eu conhecia essa loja, junto a uma
galeria de arte de artistas nativos, pois freqüentava o Native American Indian
Museum e lá soube de sua existência. Os dados da experiência da antropóloga
vivendo nos Estados Unidos, determinada por seu interesse em etnologia indí-
gena, certamente faziam parte do processo de “bricolage” na criação da
performance. Estava ali, bem à minha mão, a possibilidade de encontrar um
som. E encontrei: quando ouvi as mulheres cree, no canto que acompanha o
solo masculino, com a percussão do tambor, não tive dúvida que era outra
versão da mesma estrutura de música ritual de povos indígenas e, portanto,
uma solução para dar continuidade à incorporação da personagem. Esse canto
feminino é um grito aos meus ouvidos. E completava perfeitamente a dança-
canto sem identificação.
Desde o começo do processo, sabia também que dançaria somente com
os colares, mais as pulseiras e uma calça íntima. De um lado, seria como dan-
çam atualmente as mulheres asuriní, mas, de outro, seria a maneira pela qual eu
exporia meu corpo numa entrega, ou melhor, despojamento, perante a audiên-
cia de pesquisadores e antropólogos. Uma nudez que se inspirava em algumas

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performances que assisti em Nova Iorque, realizadas por mulheres, nas quais o
erotismo se transforma, com a exclusão do “glamour” de peças íntimas deco-
rativas, e em seu lugar o sentido de proteção se sobrepõe à conotação sexual
ou sensual da nudez. Completariam a incorporação da personagem as unhas
enormes e coloridas das mulheres afro-novaiorquinas, as quais me fascinavam
pelo uso incondicional, fosse qual fosse a atividade por elas exercidas. E sandá-
lias havaianas.
Graziela Rodrigues me dirigiu na fase final de criação. Tomou forma o
grito das mulheres cree com o qual passei a interromper imediatamente o mo-
vimento da dança asuriní, substituído por uma posição estática. Somente uma
expressão facial era realizada: a boca se abria ao máximo possível juntamente
com o arregalar dos olhos. Os braços subiam ao máximo da altura possível
numa tensão, a partir de cujo clímax braços e músculos da face passavam a
relaxar, até o máximo possível do relaxamento. Em seguida, retornava à dança
das mulheres asuriní e me dirigia à mesa dos palestrantes, onde colocava nova-
mente a capa que deixara numa cadeira, no início da performance. Retirava-
me na seqüência e voltava à sala, terminada a música dos índios cree.
A dança foi realizada nas bordas da sala, em torno das cadeiras onde se
sentava o público, situado então no centro do espaço da coreografia. Às vezes,
fazia um gesto de convite à dança, com o braço e mãos. Num determinado
momento, ao som da música do ritual asuriní “tauva”, só de mulheres, cuja
dança é realizada em círculo, deixei o trajeto em torno do público e dancei num
espaço sem as cadeiras. Voltei a contornar as cadeiras e o público, até o mo-
mento do canto das mulheres cree, quando estancava o movimento da dança,
como já descrito.
Havia 15 pessoas participando do simpósio. Nos primeiros cinco minutos
da performance, cujo tempo foram os 20 minutos estabelecidos para cada co-
municação, um dos participantes se levantou e se retirou, depois de perguntar a
uma das organizadoras até quando eu ficaria fazendo “aquilo”. Penso que é
justamente a instauração de outro tempo, diferente da exposição oral convenci-
onal, que provocou nos presentes a reflexão sobre a forma como a performance
suscitava inquietações que tentavam responder. Uma das observações feitas
pelos participantes foi a de que a repetição do movimento, após um primeiro
momento de identificação de uma dança, deixava em suspenso conteúdos que,
não sendo expressos pelo código convencional da linguagem oral e científica,
aguardariam a própria participação do público para sua enunciação. Para mim,
como tive oportunidade de expor, respondendo à pergunta feita sobre a diferen-

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Ritual, Schechner e performance 83

ça entre a “palavra” e a “performance”, o sentido de dançar envolvendo espa-


cialmente as pessoas presentes e repetir o movimento por um certo tempo que
certamente suscitaria a pergunta do desistente (até quando ela ficaria fazendo
aquilo) era o de estar presente, compartilhar aquele momento de indagações,
vivenciar esse encontro em torno de questões que nos colocávamos, o tempo
suspenso da experiência coletiva de se compartilhar a reflexão, através de
sensações, de laços de comunicação sensível, estética e cinestésica, como no
ritual. À outra pergunta feita, se se tratava da busca de um estado de transe
através do movimento repetitivo da dança, respondi que se poderia chamar
assim o resultado pessoal da performance, considerando-se que ocorria sim a
incorporação de uma personagem, de maneira semelhante à incorporação de
outros seres nos rituais xamanísticos, por exemplo, ou à transformação experi-
mentada pelos praticantes desses rituais, que os leva vivenciar outras dimen-
sões cósmicas, o estado subjuntivo o “as if” da liminaridade definida por Turner
(apud Schechner, 1985, p. 102).
Essa personagem, incorporada nesse contexto, trazia a experiência do
antropólogo que coloca sua subjetividade, através de seu corpo, despido e
travestido, “como se” estivesse naquele momento compartilhando a perplexi-
dade a que se submete, quando experimenta sensível e sensorialmente a arte
do “outro”. Nesse campo de estudos das artes de povos nativos em confronto
com a sociedade capitalista global, que conflitos vive o pesquisador? De que
experiência sensível é feito seu conhecimento sobre essa realidade? Como
essa experiência se encontra envolvida na produção desse conhecimento? Es-
sas são algumas das questões que tento neste outro momento, da escrita e da
reflexão teórica, formular. Na verdade, eu não as tinha antes. Na verdade, não
sei se essas são as questões mais importantes para o trabalho proposto.
Meu objetivo foi de que houvesse tantas e diversas questões quanto cada
um dos participantes pudesse se fazer, pois o sentido dessa forma artística é o
sentido aberto que proporciona a criação de conteúdos particulares a cada
espectador participante. Tenho, entretanto, uma certeza apenas, para concluir
o ciclo que se iniciou em Nova Iorque, continuou em Campinas e foi apresenta-
do em Santiago do Chile, na reunião científica que discutiu a arte e a arte do
“outro”: eu não poderia participar de outra maneira a não ser essa. Não poderia
por ter sido estimulada pelo convite desafiador das organizadoras, por estar em
momento de reclusão, fora de meu país, estimulada por outras “performances
culturais”, motivada a criar e compartilhar com os colegas antropólogos a cria-
ção de novas formas de conhecer, refletir e produzir conhecimento. Isto é,

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conhecer, refletir e produzir conhecimento sobre e a partir da experiência de


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Recebido em 31/05/2005
Aprovado em 04/07/2005

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