Você está na página 1de 9

SENTIMENTALE REPORTAGE: UMA INTERPRETAÇÃO HÍBRIDA E

PERSPECTIVISTA DAS MISCIGENAÇÕES NAS ESPÉCIES


COMPANHEIRAS EM JOSEPH ROTH

Dóris Lutz1

Resumo: O presente artigo tem como propósito discutir as fronteiras entre humano e não-humano,
especialmente no que tange à dicotomia homem/animal e natureza/cultura. Argumentos de Donna
Haraway em seu “Manifesto das espécies companheiras”, bem como Viveiros de Castro em seu
“Perspectivismo Ameríndio” e Dominique Lestel nas “Comunidades híbridas” enriquecerão o
diálogo que buscará exemplos no conto “Sentimentale Reportage” de Joseph Roth, publicado pela
primeira vez em 1927, no jornal “Frankfurter Zeitung”. Em minha pesquisa de mestrado, proponho,
a partir de uma perspectiva política, a tradução do conto mencionado com o intuito de trabalhar as
relações de poder na tradução e suas possíveis confluências com as teorias ecofeministas
animalistas. Em “Sentimentale Reportage”, o escritor austríaco faz forte crítica às questões de raça
pura, as quais, segundo o próprio autor, derivam também de miscigenações. Roth trabalha, mais
especificamente, o abandono e a consequente matança de cães que não possuem raça definida. Ao
organizar o tema da raça pura de forma a gerar dubiedade entre a raça pura para cães e a raça pura
para humanos, o escritor propicia o exercício da desconstrução de hierarquia entre espécies, cujo
assunto será discutido neste trabalho por meio dos autores acima mencionados.

Palavras-chave: Joseph Roth; Miscigenações; Não-humano

Introdução

Em Sentimentale Reportage 2, conto de Joseph Roth, publicado em 1927, no jornal


Frankfurter Zeitung, o escritor austríaco de origem judaica, critica as questões de raça pura, e realça
que estas também derivam de miscigenações. Roth trabalha, mais especificamente, o abandono e a
consequente matança de cães que não possuem raça definida. Embora o autor, buscasse criticar o
antissemitismo da época por meio de uma alegoria aos cães e suas raças, o conto propicia, na
atualidade, o exercício da desconstrução de hierarquia entre humanos com gêneros, etnias, religiões
e classes diferentes, bem como entre humanos e não humanos 3. Este artigo propõe discutir sobre a
domesticação de animais e os animais de estimação, assim como discorrer sobre os aspectos que

1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução – PGET, UFSC, Florianópolis, Brasil.
2
Reportagem Sentimental. Todas as traduções aqui apresentadas são minhas e fazem parte da minha pesquisa de
mestrado.
3
Este tema faz parte do meu objeto de pesquisa de mestrado, onde será desenvolvido de forma mais abrangente e
dialogada com as teorias da tradução.

1
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
provocam a hierarquia entre humanos e entre humanos e animais, tais como as ideias de
propriedade, mercadoria e utilidade presentes na lógica do capital.
Tendo como ponto de partida o ser humano como agente geológico, aquele que modifica a
química da terra, altera os níveis do mar e muda o clima (Chakrabarty, 2013, p. 9) e com intenção
de descentralizar o humano e concebê-lo como espécie interdepende das demais para sua
sobrevivência, essa análise busca enfatizar as relações entre os seres humanos e não humanos. Para
isso, dialoga-se entre o artigo intitulado A animalidade, o humano e as “comunidades híbridas”, de
Dominique Lestel (2011), o Manifesto das espécies companheiras (2016) e Companhias
Multiespécies nas naturezaculturas (2011), de Donna Haraway e com a concepção de “sujeito”
apresentada por Eduardo Viveiros de Castro em seu artigo Perspectivismo e multinaturalismo na
América indígena (2004), relacionando os argumentos com exemplos do conto escolhido.

As relações entre animalidade e a humanidade

Com o propósito de levantar questionamentos a respeito das fronteiras que separam o


humano do animal e dos laços que os unem Lestel discorre sobre como o ser humano teria cessado
de ser um animal, ao passo que mostra como é imprecisa a lista de observações da distinção entre
humanos e animais. Para o filósofo, apesar de todas as circunstâncias a respeito da humanização
oferecerem uma definição do humano “elaborada a partir de traços que o distinguem sem
ambiguidade dos animais, nenhuma é totalmente satisfatória.” (Lestel, 2011, p. 35). Assim, ele se
remete ao ser humano como um animal “cuja natureza é não tê-la”, já que ele mesmo faz suas
próprias leis. Segundo o pensador, a humanização não se produziu contra a animalidade, mas ao
contrário, com ela. A humanização não é tanto uma ruptura com a animalidade quanto uma
mudança radical das relações entre humanos e animais. Assim, da mesma maneira que seria
incompleta uma definição do humano se o animal fosse ignorado, buscar caracterizar a animalidade
de forma independente do humano também parece ser dificilmente pensável, na visão do autor. Se
isso fosse possível, poderia se supor que as relações entre humanos e animais são acidentais e
superficiais, enquanto, ao contrário, elas se mostram essenciais para ambos os grupos (Lestel, 2011,
p. 36). Nesse contexto, o autor lembra que “se a noção de animalidade não serve para caracterizar
nem o animal nem as margens do humano”, talvez ela permita a percepção de algo mais complexo:
“a relação entre o humano e o animal”, uma vez que a animalidade remete, dessa forma, “mais ao
que lhes é comum do que aquilo que os distingue” (2011, p. 36, 37).

2
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
Também Donna Haraway chama a atenção para a relação entre humanos e animais,
especialmente no que concerne aos animais domésticos, denominados “espécies companheiras”
pela autora. Para ela, “os seres não pré-existem às relações” (Haraway, 2016, p. 719), ou seja, os
seres se constituem entre si, por meio de suas relações; “não há sujeitos e objetos pré-constituídos”
(2016, p. 720). Segundo a autora, haveriam “conexões parciais”, nas quais ninguém é definido por
ser completo e nem parte (2016, p. 721), antes por um entrelaçamento definido como “uma história
de coabitação, coevolução e sociabilidade corporificada interespécies” (2016, p. 717).
Enquanto isso, Lestel observa que é abundante a “cegueira conceitual” dos humanos no que
tange à situação de trocas entre humanos e animais, a qual “se traduz pela pobreza de suas reflexões
acerca da questão” (2011, p. 40). Percebe-se, dessa forma, a aproximação dos argumentos de
Haraway e de Lestel, uma vez que ambos valorizam as conexões entre humanos e animais. É dele
que vem a indagação de porque o ser humano aceitaria de bom grado sua relação com o animal sob
o modo da ruptura e não da comunicação ou da comunhão (Lestel, 2011, p. 40). O autor se dedica a
questionamentos a respeito da singularidade do animal, bem como da dificuldade de se pensar o
humano através do não humano, ou melhor, em conceber o humano na textura da animalidade, uma
vez que o animal representa para o humano “uma alteridade particular, portadora de sentido” (2011,
p. 41).
Dentro desse contexto, Lestel discute a questão da domesticação, do amansamento, da caça
e do ritual de combate. O filósofo sustenta que a animalidade surge de ações com4 o ser humano, as
quais suscitam as relações privilegiadas com espécies distintas em diferentes culturas. Os
privilégios podem ser embasados em diversificados critérios em cada local. Neste ponto, o autor
chama a atenção para o papel da mídia nas culturas ocidentais que justificam os critérios
(cognitivos) escolhidos a partir de uma crença na continuidade da evolução (Lestel, 2011, p. 43).
A partir da noção de relações privilegiadas em cada cultura, Lestel argumenta que a busca
da definição da animalidade por oposição ao humano, e não por sua complementaridade, conduz
naturalmente à exclusão de todo um conjunto de questões que toda comunidade híbrida apresenta.
Para o autor, todas as culturas formam em algum ponto um grau de comunidade híbrida. Como
“comunidade híbrida”, Lestel define toda relação entre humanos e animais, onde há
compartilhamento de interesses e de sentidos: “a ideia de ‘comunidades híbridas’ torna-se uma
noção central para que a riqueza das relações entre humanos e animais seja introduzida: estas se

4
Grifo meu.

3
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
construindo pelo compartilhamento de sentidos e de interesses que não são, entretanto,
estabelecidos por um contrato social de deveres mútuos” (2011, p. 25).
Dentre o compartilhamento de interesses, encontram-se o fornecimento mútuo de
possibilidades nutritivas, interesses de proteção e de reprodução, bem como os interesses
intelectuais, definidos pela curiosidade mútua em se aproximarem (Lestel, p. 44, 45). O
compartilhamento mútuo de interesses é facilmente reconhecido quando o animal em questão é
domesticado e já não sobrevive sozinho no ambiente, necessitando do humano para obter proteção,
alimentação e poder se reproduzir, bem como acima argumentado.
O compartilhamento de sentidos remete à solidariedade da comunidade e à abertura do
outro, ambos proporcionados pelo animal de estimação. Nesse ponto, faz-se relevante lembrar os
argumentos de Donna Haraway, a qual diz que o conceito de “animal de companhia”, veio
historicamente das teorias veterinárias. Este conceito confere ao animal, pela primeira vez, a
posição de não ser visto por seus donos como alimento e nem alimentar-se deles. Lestel nota que
são os animais de estimação que proporcionam ao humano pensar seu próprio lugar nessa
comunidade; e conciliar tais compartilhamentos é a dificuldade encontrada pela comunidade
híbrida. A grande necessidade encontrada pelos humanos em formar essas comunidades híbridas é,
para o autor, tão difícil de apreender porque “ela repousa sobre uma incapacidade real de
compreender o que é verdadeiramente o animal.” (Lestel, 2011, p. 47).
No intuito de compreender o que é ser aquele vivente e como é perceber o mundo conforme
aquele olhar, Lestel concilia suas ideias com aquelas apresentadas no por Viveiros de Castro, uma
vez que ambos falam da adoção do ponto de vista do animal. No entanto, Viveiros de Castro
concebe o status de humano para todo sujeito, e sujeito é todo ser para o qual se atribui um ponto de
vista. Para o perspectivismo ameríndio, o ponto de vista cria o sujeito e será sujeito quem se
encontrar ativado ou ‘agenciado’ pelo ponto de vista (2004, p. 229).
A noção universal no pensamento ameríndio seria, conforme Viveiros de Castro, um estado
originário de indiferenciação entre humanos e animais. Cada espécie de ser aparece aos outros seres
como aparece para si mesma — como humana (Viveiros de Castro, 2004, p. 229). Então, a
condição original comum aos humanos e animais não é a animalidade, mas a humanidade – tendo
outrora sido humanos – os animais e outros seres do cosmos continuam a ser humanos, mesmo que
de modo não evidente, ou melhor: “o referencial comum a todos os seres da natureza não é o
homem enquanto espécie, mas a humanidade enquanto condição” (Viveiros de Castro, 2004, p.
230).

4
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
Os animais como propriedade

Donna Haraway resume a história dos cães referindo-se aos diversos usos dos cães ao longo
da história: a estimação, o transporte, a caça, o pastoreio e a guerra. Entretanto, a história dos usos
não é suficiente para mostrar como esses cães foram tratados, bem como a autora destaca (2016, p.
725). Considerando a domesticação dos animais em geral, Lestel busca a distinção entre os
processos de: (i). apropriação do animal pelo humano; (ii). a familiarização do humano e do animal;
e (iii). a utilização do animal pelo humano (2011, p. 38). Para ele, a domesticação acontece tanto
para os humanos quanto para os animais, ela é, portanto, conjunta e recíproca, o que constitui “o
fundamento maior das comunidades híbridas”.
O processo de domesticação com as três distinções apresentadas por Lestel denota foco de
maior relevância no humano, portanto, uma relação baseada no antropocentrismo. Ademais, é
relevante acrescentar que o primeiro e especialmente o terceiro item da distinção são bastante
controversos entre os estudos que se propõem não antropocêntricos, uma vez que nessa distinção, as
fronteiras entre o humano e o animal são fundamentadas, ao invés de serem questionadas. Objeta-se
aqui essa forma ainda comum de se pensar o convívio, o tratamento e a tutela de animais por meio
da apropriação e consequente utilização do animal pelo humano.
Sônia T. Felipe sublinha que já há 3000 anos antes de Cristo o que importavam eram os
objetos de propriedade: “escravos e escravas humanos, bois, cabras, cães e gatos aparecem nas
tábuas da lei, sempre relacionados a preços, custos, usos e valor comercial. Destruir um elemento da
propriedade de um homem livre [...] implicava em multa, [...]. O sofrimento do maltratado (humano
ou não-humano) não tinha valor algum. O dano à propriedade, sim” (2007, p. 180).
Quem considera animais de estimação suas propriedades, encontra saída por meio do
abandono daqueles que já não apresentam mais utilidade, entretanto, geram despesas. O conceito de
“utilidade” para esses animais é bastante frequente, por exemplo, com os cães de guarda ou de caça,
conforme Roth aborda em seu conto: “supus que o dono comprara o cão – na crença de que fosse
um fox. Porém, quando viu que no cachorro cresceram orelhas de um cão de caça, decidiu descartar
o animal” (Roth, 1930, n.p.). Os motivos para o abandono variam, e dentre eles, talvez os destaques
maiores possam ser atribuídos para: (i). falta de adequação à função previamente pensada; (ii).
doenças; e (iii). velhice, já incapazes de praticar tal função. O mesmo conceito de “utilidade” pode
ser o responsável que esses animais não sejam considerados seres com necessidades próprias de sua
espécie a serem respeitadas e assistidas. Donna Haraway se debruça também sobre a questão do

5
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
abandono, seja pela precipitação na hora da compra, pela falta de conhecimento ou pela dificuldade
de adaptação:
Moldados geneticamente em função das competições com pastoreio de ovelhas desde o
século XIX, esta raça tornou este esporte merecidamente famoso em vários continentes.
Esta é a mesma raça de cães que domina o esporte de agilidade em minha vida. É também a
raça abandonada em grande quantidade, a ser resgatada por voluntárias/os dedicadas/os
ou sacrificada em abrigos para animais,5 porque as pessoas que assistem a esses famosos
espetáculos de TV sobre tais cães talentosos querem comprar um no mercado de animais de
estimação, que se expande para suprir a demanda. As/os compradoras/ es por impulso
rapidamente deparam-se com um cão sério a quem não podem satisfazer com o trabalho
requerido pelo border collie (HARAWAY, 2016, p. 735).
A reflexão de Haraway vem ao encontro da presente discussão a respeito da visão do animal
como mercadoria, bem como a intrigante questão da miscigenação. Esse pensamento é reafirmado
por Roth. O autor procura realçar o tema principalmente no que concerne aos cães doentes:
Além disso, o cão estava doente. [...] Essa doença por certo fortaleceu, senão originou, a
decisão do proprietário de abandonar o cão. Ainda assim, confio que, no mínimo, a
bondade do coração humano seja capaz de suportar um miscigenado. Mas um miscigenado
para curar, ainda que fosse apenas com uma pomada, supera suas forças. Afinal, somos
apenas humanos (ROTH, 1930, n.p.).
Como se pode perceber, Roth enfatiza a miscigenação como maior responsável pela decisão
do abandono e procura, a partir disso, questionar também o que seria ser “humano”. Assim, depara-
se, então, com os valores hierárquicos como: (i). o conceito de “propriedade” ligado diretamente
com (ii). a cultura de tratar o animal a partir de sua utilidade e (iii). o conceito de raças e espécies.
A interlocução entre Roth e Haraway continua também quando a autora busca conexão do
tema com as investigações feministas. Para ela, trata-se da “compreensão de como as coisas
operam, quem está em ação, o que pode ser possível e como agentes mundanos poderiam de alguma
forma ser responsabilizados e amar uns aos outros de forma menos violenta” (Haraway, 2016, p.
720). Tal pensamento se relaciona diretamente com o conto, quando o narrador reflete que ele
mesmo poderia ter cuidado do cão, mas mesmo o seu coração só tem qualidades humanas (Roth,
1930, n.p.). Além de ser realçado novamente o questionamento sobre o significado de ser “humano”
e das virtudes do humano, contata-se forte crítica de Roth a estas qualidades consideradas
“humanas”, quando este se preocupa em enfatizar que mesmo seu coração somente possui estas
características.
A discussão entre os temas poderá ser aprofundada ao se considerar os “sentimentos de
identificação” abordados por Haraway (2011, p. 407) e abordar que a temática das relações de
poder entre gêneros perpassa as barreiras das categorizações de espécies. Sônia T. Felipe (2012, p.
51, 52) explicita a condição das fêmeas de espécies não humanas como forma de demonstrar que a

5
Grifo meu.

6
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
rede discriminatória sexista ultrapassa espécies. Ela argumenta que as porcas, as vacas, as galinhas,
as cabras, as cadelas entre tantas outras fêmeas não só nascem para engordar e serem abatidas.
Essas serão primeiramente confinadas, exploradas, violentadas e somente quando não forem mais
úteis para o fornecimento de leite, ovos e filhotes para os humanos – serão descartadas6, abatidas.
Conforme Haraway (2011, p. 393), esse processo de “tornar matável”, de “forçá-las a viver
e se multiplicar até o máximo alcance possível” é apenas uma parte. A autora menciona que essas
fêmeas são forçadas a gerar valor e a ser valor a qualquer custo para elas. Neste contexto, é
importante destacar a grande semelhança entre estes animais e as pessoas que precisam trabalhar
nesses sistemas, assim como também as terras e águas poluídas pela produção intensiva de animais.
Seus argumentos são consonantes com aqueles de Viveiros de Castro, acerca do sujeito, da
formação do sujeito e de sua perspectiva. Para Haraway, tanto animais quanto pessoas “são
tornados matáveis e exploráveis na produção e reprodução por serem reduzidos a seres que não
podem ser sujeitos e objetos de suas próprias vidas, seres sem historia, sem relações natural-sociais
que importam, sem tempo, seres sem trabalho ou diversão”, são, portanto, “tornados incompetentes,
de modo a serem reduzidos à condição de valor” (Haraway, 2011, p. 393). Haraway chama a
atenção para a responsabilidade de não perpetuarmos os extermínios de “multiespécies humano-
animal-vegetal”: tornar os animais “alguém e não algo” poderia ser um bom meio de iniciar o
processo (2011, p. 394-396). Essa sequência de exploração de humanos e não humanos acontece
principalmente pela “concentração industrial, monopólio da alimentação e criação de gado, trabalho
barato dividido por gênero, região e raça/etnia são crucias para essa indústria extrativa humano-
animal-vegetal altamente capitalizada” (2011, p. 396). Essa fragilidade dos seres em sua
possibilidade de serem explorados ou mortos não é condição necessária à sua existência, mas sim
um cálculo do capital, no qual não se exterioriza a diferença entre as espécies, mas sim a
vulnerabilidade que marca as vidas e os viveres inconstantes, frágeis, pobres, que - para essa lógica
do capital - nada mais são, senão mercadorias.

Considerações finais

6
Para mais informações sobre a violência consentida e praticada ver:
<http://www.cnpsa.embrapa.br/SP/suinos/manejoprodu.html> ou
<http://www.agricultura.gov.br/arq_editor/file/Aniamal/Bemestar-
animal/protocolo_de_bem_estar_para_aves_poedeiras_final_11_07_08.pdf>. Acesso em: jan./2017.

7
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
Esta análise se concentrou em discorrer sobre as relações entre humanos e não humanos e
sublinhou as consonâncias entre o conto Sentimentale Reportage e os argumentos de Haraway,
principalmente no que diz respeito ao animais de estimação como propriedade passível de ser
abandonada caso não apresentem a utilidade previamente pensada. A concepção de “propriedade” é
centralizada, uma vez que a partir dela a relação hierárquica é estabelecida. Em Roth essa hierarquia
fica estampada também pela frequência com que as palavras “dono” ou “proprietário” são
utilizadas. O autor se vale desse artifício, entretanto, para tratar do abandono e da morte de cães
miscigenados, assim que a miscigenação for percebida. Com base nessa reflexão, questionou-se
sobre o que significa ser “humano”, e o que significa ser “cão”: se há a necessidade de um cão, para
ser um cão, ser de raça pura. Embora Sentimentale Reportage seja uma alegoria, destacou-se aqui
como que o conto lido na época atual dialoga diretamente com Haraway e pode ser interseccionado
com os estudos de Lestel e Viveiros de Castro.
Assim, este artigo buscou por um lado relacionar diferentes áreas que dialogam e
questionam as relações e os limites que aproximam e interligam o humano do não humano muito
mais que os distinguem. Por outro lado, realçou a teia de discussões que questionam as
características que definem o sujeito (humano ou não humano) como um ser de uma ou de outra
espécie, assim como também as fronteiras entre as espécies humanas e não humanas. Conclui-se
então, que pensar-se singular envolve romper com categorias de valoração da vida, respeitar as/os
demais, valorizando cada qual dentro de suas especificidades no intuito de contemplar sujeitos (e
não objetos) de uma vida, conceito este que se propõe para todos os humanos e não humanos.

Referências Bibliográficas

CHAKRABARTY, DIPESH. O clima da história: quatro teses. Publicado originalmente em


Critical Inquiry, 35 (2009). Tradução: Denise Bottmann, Fernanda Ligocky, Diego Ambrosini,
Pedro Novaes, Cristiano Rodrigues, Lucas Santos, Regina Félix e Leandro Durazzo. Coordenação
e Revisão: Idelber Avelar.
FELIPE, SÔNIA T.. Dos Direitos morais aos Direitos Constitucionais: Para além do especismo
elitista e eletivo. Revista Brasileira de Direito Animal. Salvador: Instituto de Abolicionismo
Animal, Ano 2 – Número 2 – jan/jun 2007, pp. 169-186. Disponível em:
<https://www.animallaw.info/sites/default/files/brazilvol2.pdf>. Acesso em: agosto./2016.
______. Galactolatria: mau deleite. Implicações éticas, ambientais e nutricionais do consumo de
leite bovino. São José: Ecoânima, 2012.

8
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
HARAWAY, DONNA. Companhias Multiespécies nas naturezaculturas. Entrevista de Sandra
Azeredo. In: Maria Esther Maciel (org.) Pensar/escrever o animal: Ensaios de zoopoética e
biopolítica. Florianópolis: Editora UFSC, 2011, p. 389-418.
________. The Companion Species Manifesto – Dogs, People, and Significant Otherness. Chicago:
Prickly Paradigm Press, 2003. [fragmento] In: Isabela Brandao; Ildney Cavalcanti; Claudia de Lima
Costa; Ana Cecilia A. Lima (orgs). Traducoes da cultura: Perspectivas criticas feministas (1970-
2010). Florianópolis: Editora Mulheres, 2016.
LESTEL, DOMINIQUE. A animalidade, o humano e as comunidades híbridas. In: Maria Esther
Maciel (org.) Pensar/escrever o animal: Ensaios de zoopoética e biopolítica. Florianópolis: Editora
UFSC, 2011, p. 23-55.
ROTH, JOSEPH. Sentimentale Reportage. In: Panoptikum. 1930. Disponível em:
<http://gutenberg.spiegel.de/buch/panoptikum-4271/11>. Acesso em: jan./2017.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena. O
que nos faz pensar, [S.l.], v. 14, n. 18, p. 225-254, sep. 2004. Disponível em:
<http://www.oquenosfazpensar.fil.puc-rio.br/index.php/oqnfp/article/view/197>. Acesso em: jun./
2017.

SENTIMENTALE REPORTAGE: A HYBRID AND PERSPECTIVISTIC


INTERPRETATION OF MISCEGENATION IN COMPANION SPECIES IN
JOSEPH ROTH
Astract: The purpose of this presentation is to discuss the boundaries between human and non-
human, especially regarding the human/animal and nature/nurture dichotomy. Arguments by Donna
Haraway in her The Companion Species Manifesto, as well as Viveiros de Castro in his Amerindian
Perspectivism and Dominique Lestel in Hybrid Communities will enrich the dialogue, which will
find examples in the short story Sentimentale Reportage by Joseph Roth, published in the
Frankfurter Zeitung for the first time in 1927. In my master’s degree research I propose, from a
political perspective, to translate the abovementioned short story with the intention of working the
power relations in the translation and their possible confluences with ecofeminist and animalist
theories. In Sentimentale Reportage, the Austrian writer strongly criticizes the issue of purebred
animals, which, according to the author also derive from miscegenation. Roth addresses, more
specifically, the abandonment and consequent killing of mixed-breed dogs. When organizing the
theme of purebred animals in a way that a purebred for dogs and a pure race for humans become
dubious, the writer provides the exercise of deconstruction of hierarchy between species, which will
be discussed in this work through the aforementioned authors.

Keywords: Joseph Roth; Miscegenation; Non-human

9
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

Você também pode gostar