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OS CINCO E OS CONTRABANDISTAS

ENID BLYTON

VOLUMES PUBLICADOS

1 - Os Cinco na Ilha do Tesouro


2 - Nova Aventura dos Cinco
3 - Os Cinco voltam à Ilha
4 - Os Cinco e os Contrabandistas
5 - Os Cinco e o Circo
6 - Os Cinco salvaram o Tio
7 - Os Cinco e o Comboio Fantasma
8 - Os Cinco na Casa do Mocho
9 - Os Cinco e a Ciganita
10 - Os Cinco no Lago Negro
11 - Os Cinco no Castelo da Bela-Vista
12 -Os Cinco na Torre do Farol
13 - Os Cinco na Planície Misteriosa
14 - Os Cinco e os Raptores
15 - Os Cinco na Casa em Ruínas
16 - Os Cinco e os Aviadores
17 - Os Cinco nas Montanhas de Gales
18 - Os Cinco na Quinta Finniston
19 - Os Cinco nos Rochedos do Demónio
20 - Os Cinco na Ilha dos Murmúrios
21 - Os Cinco e a Torre do Sábio

ILUSTRAÇÕES
DE EILEEN SOPER

ENID BLYTON
OS CINCO
E OS CONTRABANDISTAS

Tradução
MARIA DA GLUCA DE MOOTKZUMA

Colecção Juvenil
Nº 4

Empresa Nacional de Publicidade

CAP. I
O REGRESSO AO CASAL KIRRIN

Num lindo dia de Páscoa, os quatro pequenos e o seu


inseparável cão tomaram o comboio para Kirrin.
- Daqui a nada estamos lá, - disse Júlio, cada vez mais
forte e alto, de aspecto decidido, como já sabemos.
- Uf! •- fez Tim, o cão, já excitado, procurando espreitar
pela janela.
- Para baixo, Tim! Deixa a Ana ver!-disse o Júlio.
Ana, a quem chamavam também Anita era a irmãzinha mais
nova. Deitou a cabeça de fora da janela e confirmou:
- Estamos a chegar à Estação de Kirrin. Calculo que a Tia
Clara esteja à nossa espera.
- Certamente!-respondeu a Zé, prima da Ana, que mais
parecia um rapaz que uma rapariga por usar sempre cabelo
curto, e encaracolado.
Como seu primo Júlio, ela tinha um ar decidido e
desembaraçado.
Ana espreitou pela janela e comentou:
- É tão bom voltar para casa! Gosto da escola, mas muito
mais do Casal Kirrin, com os passeios à Ilha e ao Castelo.
Há tanto tempo que não vamos lá!
- Agora é a vez do David! Estamos à vista de Kirrin, David!
Nem ao menos neste momento és capaz de abandonar a leitura
por uns segundos ?
- disse Júlio voltando-se para o irmão mais novo, um
pequeno de semblante agradável, que ia sentado a ler.
- É um livro curioso! A história mais interessante que li
até hoje! -replicou David, fechando o livro.
- Ora! Aposto que não chega a ser tão interessante como as
aventuras que tivemos - acrescentou Anita.
E tinha razão. Aqueles cinco pequenos aventureiros,
incluindo o inevitável Tim, haviam conhecido as mais
excitantes histórias que possam contar-se. De momento,
porém, tinham a impressão de ir gozar umas férias
tranquilas e agradáveis, com escaladas aos montes e uma ou
outra passeata à Ilha de Kirrin, no barco da Zé.
- Eu, realmente, trabalhei muito nos últimos tempos. Bem
preciso dumas férias-disse Júlio.
- E até emagreceste! -comentou Maria José. É bom, porém,
lembrar, que ninguém a conhecia por este nome. Ela era,
para todos, a Zé.
Júlio sorriu:
- Não te rales, que eu engordarei no Casal Kirrin. Para
isso lá está a adorável Tia Clara. Vou gostar tanto de a
ver.
- Deus queira que meu pai não ande mal disposto. É natural
que tudo corra bem. A mãe diz que ele acabou agora de fazer
umas experiências, com muitos bons resultados - informou a
Zé.
O pai dela era um sábio e andava sempre preocupado com a
realização de ideias e teorias novas. Apreciava imenso a
tranquilidade, irritando-se muito sempre que o contrariavam
ou faziam

barulho. Valha a verdade, a filha parecia-se muito com o


pai.
As previsões saíram certas. A Tia Clara esperava-os. Os
quatro saltaram na plataforma e quase voaram para a abraçar.
A Zé chegou primeiro. Gostava tanto da mãe, que a defendia
sempre das más disposições do pai.
O Tim, por seu lado, latia de satisfação e num pulo tentou
lamber-lhe a cara.
- Para baixo, que me fazes cair! Está cada vez maior!
-comentou a Tia Clara, com alegria.
Tim estava de facto um canzarrão, e os pequenos gostavam
cada vez mais dele. Leal, muito manso, contemplava todos
com seus grandes olhos castanhos, tão expressivos, que
davam a entender que partilhava do contentamento geral.
Era, porém, a Zé que ele mais estimava, desde pequenino.
Todos os anos os dois iam para um colégio onde lhes
permitiam estas amizades. Aliás, se assim não fosse, a Zé
recusar-se-ia a ir à escola, mesmo na companhia da Ana.
Meteram-se todos no carro e partiram a caminho de Kirrin,
abafando-se o melhor possível, pois fazia muito vento e
frio.
- Está mais frio que no Inverno - protestou Anita, já a
tiritar.
- É da ventania - sentenciou a Tia Clara, embrulhando-se
num cobertor. - Parece que nunca mais pára e até aumentou
nestes últimos dias. Os pescadores já retiraram os barcos
da praia, com receio duma tempestade.
Os pequenos olharam. Lá estavam os barquitos, realmente. E,
então, o cenário evocou-lhes outros tempos em que ali
tinham tomado banho. Agora, só de pensar nisso sentiam
arrepios.
Tudo se apresentava ameaçador. O vento encrespava as águas,
enquanto nuvens enormes se deslocavam apressadamente no
horizonte. A rebentação das vagas causava um ruído medonho.
Tim começou a ladrar.
- Está quieto e calado, Tim! Tens de aprender a estar
calado em casa, se não o pai zanga-se contigo - disse a Zé
e, voltando-se para a mãe:
- Mãezinha, o pai continua agora muito ocupado ?
- Muito!-respondeu a mãe.-Mas agora trabalha menos, desde
que soube do vosso regresso. Quer andar um pouco com vocês.
As crianças entreolharam-se. Tio Alberto não era,
efectivamente, dos melhores companheiros. Faltava-lhe a
noção das coisas engraçadas, chegando ao ponto de não dar a
mínima atenção às brincadeiras dos garotos.
- Parece-me que as férias não vão ser muito divertidas, se
o Tio Alberto se lembrar de andar connosco - segredou David
para o Júlio.
- Chiu! - fez o outro, receando que a tia ouvisse e se
magoasse.
A Zé não se conteve, exclamando:
- Mãe, se o pai andar connosco, já sabe: fica ele
aborrecido e nós também.
Tanta franqueza desagradou à mãe que, suspirando, lhe disse:
- Não fales assim de teu pai, querida! Estou certa de que o
pai depressa se fartará de andar convosco. No entanto,
sempre lhe fará bem partilhar um pouco da alegria da gente
nova!
Cá estamos!-exclamou o Júlio, logo que o carro estacou em
frente duma casa antiga. - Casal Kirrin! Olhe como uiva o
vento, Tia Clara!
- É verdade. A noite passada nem nos deixou dormir
capazmente. Júlio, podes arrumar o carro, depois de se
tirarem as bagagens. Aí vem o vosso tio ajudar-te!
Tio Alberto apareceu. Era um homem alto, de olhar
inteligente e sobrancelhas carregadas. Sorriu aos pequenos,
beijou a Zé e disse:
- Sejam bem-vindos ao Casal Kirrin. Tenho muito gosto em
recebê-los.
Daí a pouco encontravam-se todos à mesa a

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tomar chá. Sabendo que a viagem era fatigante, a Tia Clara


preparara-lhes um óptimo lanche.
A Zé recostou-se na cadeira, aproveitando o momento para se
deliciar com aqueles bolinhos que a mãe tão bem cozinhava.
Fazendo os seus cálculos, Tim deitou-se ao lado dela. E, se
bem que não fosse norma darem-lhe comer àquelas horas, a
verdade é que lhe foram ter alguns bocadinhos à boca, mesmo
por baixo da mesa...
O vento continuava a uivar. As janelas batiam, as portas
rangiam, os tapetes ondulavam, como se alguém os puxasse a
ocultas.
- Até parece que andam ali cobras debaixo! Como que
adivinhando o pensamento da
Ana, Tim pôs-se a espreitar e rosnou. É que embora fosse um
cão inteligente, não chegava a compreender como os tapetes
se mexiam daquela maneira.
Tia Clara queixou-se outra vez do vento que não a deixara
dormir e, de repente dirigindo-se a Júlio, observou-lhe que
estava muito magro, talvez por trabalhar demasiado.
E, quando acabou prometendo que o faria engordar, os
pequenos riram a bom rir. Era justamente o que esperavam
ouvir da Tia Clara.
Estavam falando alegremente, quando um ruído vindo do
telhado os fez calar, espantados, incluindo o próprio Tim
que arremeteu com força.
- Lá vai mais uma telha. Que maçada! Temos de ver isto,
logo que passe a tempestade, para evitar que chova aqui
dentro - elucidou o Tio Alberto.
Bem esperaram os pequenos que ele voltasse para o seu
gabinete de trabalho, depois do chá, como habitualmente
sucedia. Queriam jogar, mas

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o tio Alberto não era companhia agradável, ainda que se


tratasse duma coisa tão simples como o jogo das escondidas.
- Vocês conhecem um rapaz chamado Pedro Lenoir? Suponho que
frequenta a tua escola, Júlio - perguntou o pai da Zé,
tirando uma carta do bolso.
- Pedro Lenoir... quer dizer o Fuliginoso. Sim, sim, anda
na classe do David... Esse é mesmo doido varrido - comentou
o Júlio.
- Fuliginoso ? Mas porque lhe deram tal nome? Acho que é
uma estupidez!-concluiu Tio Alberto.
- Se o visse não pensaria da mesma maneira. É negro como
tudo! Cabelo preto como a fuligem; olhos que parecem
pedaços de carvão e as sobrancelhas dão a impressão de que
foram metidas em carvão de pedra. Creio que Le-Noir quer
dizer - O Preto - em francês, não é verdade ? - terminou o
David, ainda a rir.
- Sim! Está tudo muito bem! Mas isso não é nome que se
ponha, seja a quem for. Imaginem! Fuliginoso!-sentenciou o
Tio Alberto, com gravidade. - Bom - continuou - eu tenho-me
correspondido com o pai desse rapaz, porque tratamos dos
mesmos assuntos. E, realmente, cheguei a perguntar-lhe se
estaria disposto a passar aqui uns dias, trazendo também o
Pedro.
- Óptimo! Não é má ideia o Fuliginoso vir passar aqui uns
dias. Que ele é mesmo doido. Nunca faz o que lhe
recomendam; dá saltos como um macaco e outras coisas mais.
Não sei se gostará muito dele.
Tio Alberto parecia desiludido ao ouvir estas palavras do
David. Detestava aquele género de rapazes.
- Bem! - exclamou, pondo de parte a carta. - Agora vejo que
devia ter-vos interrogado sobre o rapaz, antes de dizer ao
pai se podia trazê-lo. Enfim, veremos se é possível
resolver ainda o caso!
- Deixe lá! Deixe lá! -pediu a Zé, que simpatizava com esse
rapaz. Sempre passará cá uns dias.
- Veremos!-respondeu-lhe o pai, que já tinha decidido não
receber em sua casa um garoto tonto, que saltava como um
macaco.
No entanto, o que a Zé pretendia era fazer travessuras.
Por volta das oito horas, Tio Alberto retirou-se para o
gabinete, com grande satisfação dos garotos. Tia Clara
olhou para o relógio e aconselhou:
- Ana, já são horas de te deitares. E tu também, Zé.
- É só mais um joguinho, mãe! Vamos jogar todos - propôs a
Zé. - Ande, jogue também! Olhe, é a primeira noite que
passamos em casa, juntos. Nem que vá para a cama, não
poderei dormir com este temporal. Vá! É só um jogo, e
depois vamos deitar-nos que o Júlio está a bocejar
horrivelmente.

CAP. II
UMA SURPRESA NOCTURNA

Naquela noite acharam muito divertido subir os degraus,


antes de chegarem à cama. Estavam todos a cair de sono.
- Ainda se ao menos parasse a ventania - disse a Ana. -
Queres ver, Zé, a lua pequenina, a aparecer e a desaparecer
entre as nuvens?
- Deixa lá a lua em paz! E despacha-te se não constipas-te
- protestou a Zé. - Apre! Sempre tenho um destes frios!
Ana continuava a falar da janela:
- Não ouves o barulho das ondas? E o vento continua a
dobrar as árvores.
- Tim, salta para a cama!-ordenou a Zé encolhendo os pés! -
É bem bom estar em casa. Ao menos, já posso ter o Tim na
minha cama. Vale mais que uma botija de água quente aos pés!
- Mas não penses que pode ficar em cima da tua cama, cá em
casa. Não estás na escola. Ele pode muito bem dormir no
cesto, lá em cima - disse Anita, enroscando-se entre os
lençóis.
- Essa é boa! E eu não posso proibi-lo de vir para a minha
cama, à noite. Pode ser que não lhe apeteça dormir no
cesto. Não é verdade, Tim? Anda, aquece-me os pés. Onde
está o teu nariz? Deixa-me fazer-lhe uma festinha. Boa-
noite, Tim! Boa-noite, Ana!
- Boa-noite! Calculo que se o Fuliginoso vem para cá, há-de
ser engraçado - disse a Ana, sonolenta.
- Sim. Em qualquer dos casos, o meu pai fica aqui com o pai
dele e não sai com a gente. Eles lá se arranjam - respondeu
a Zé.
- É um senhor muito sisudo - disse a outra. - Nem gosta que
se riam.
De repente, ouviu-se um estrondo. As pequenas deram um
salto na cama.
- É a porta da casa de banho. Algum dos rapazes a deixou
aberta. É isto que irrita o pai! Olha, lá vai outra vez! -
preveniu a Zé.
- Que a fechem, o Júlio ou o David - disse a Ana que já se
sentia confortàvelmente na cama.
No entanto, o Júlio" e o David estavam precisamente a
pensar o mesmo em relação a elas. De modo que ninguém se
levantou para ir fechar a porta.
Em breve se ouviu a voz colérica do Tio Alberto, ainda mais
forte, que a barulheira da ventania.
- Fechem essa porta! Como posso eu trabalhar com um barulho
destes?
Saltaram os quatro da cama. Tim pulou também. Riram-se no
meio da confusão mas, eis que soaram os passos do Tio
Alberto.
Num salto voltaram todos para trás, com o próprio Tim.
O vento continuava a soprar rijamente. Tio Alberto e Tia
Clara foram também deitar-se. Ao abrir a porta do quarto,
esta escapou-se-lhe da mão e fechou-se com tanta violência
que fez saltar um vaso de cima duma estante próxima.
Espantado, Tio Alberto deu um salto, exclamando:
- Maldita ventania! Não há memória duma

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ventania assim! Se continua a aumentar, lá vão os barcos


dos pescadores.
- Não deve durar muito tempo, querido! É provável que ao
amanhecer tudo tenha serenado - disse a Tia Clara,
suavemente. Enganava-se. O vento continuou a soprar toda a
noite, rugindo e ululando, como se fosse um ser vivo.
Ninguém conseguia dormir. Tim conservava-se vigilante,
rosnando em surdina. Não estava satisfeito.
De madrugada, a fúria do vento aumentou. Ana pensava em
muitas desgraças, tremendo apavorada.
Inesperadamente, ouviu-se um ruído estranho e medonho, de
qualquer coisa que vergava e partia, dilacerando o espaço
como um grito enorme. As duas raparigas, aterrorizadas,
sentaram-se na cama. Que teria acontecido?
Júlio levantou-se e correu à janela. Lá estava o velho
freixo, como um gigante negro, vencido, à luz furtiva da
lua. Vergava, vergava cada vez mais!
- É a árvore que está a cair - gritou o Júlio, deixando
David desnorteado. - Garanto-te que, se cair, esmaga a
casa! Vai já avisá-las!
Gritando a plenos pulmões, Júlio saiu a correr:
- Tio! Tia! Ana! Zé! Desçam imediatamente! A árvore vai
cair sobre a casa!
A Zé saltou da cama, arrebatou o pijama e correu a avisar a
Ana, que logo se lhe juntou. À frente correu o Tim.
O Tio Alberto apareceu à porta do quarto mais a Tia Clara,
muito intrigados, apertando os roupões.
- Que vem a ser este barulho, Júlio?
Viam-se alguns curiosos pasmados diante daquele triste
espectáculo. - Tia Clara! -gritou Júlio, impaciente. -Venha
imediatamente que o freixo está a desabar sobre a casa! Não
ouve estalar? Vai esmagar o telhado e os quartos de cima.
Escute, aí vem ele!
Fugiram todos escada abaixo. Ouviu-se o telhado estalar e o
ruído das telhas que se espalhavam no chão.
- Ohl Querido!-disse a pobre Tia Clara, tapando os olhos. -
Bem me queria parecer que ia dar-se uma desgraça, Vês,
devíamos ter segurado aquela árvore. Pois, se eu já sabia
que ela não aguentava um temporal assim! Que terá
acontecido ao telhado?

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Ainda ouviram outros ruídos de menos estrondo. Pequenos


objectos que caíam, feitos em pedaços. Os pequenos nem
sequer faziam uma pálida ideia do que sucedera. Tim ficara
furioso e ladrava sem cessar; mas o Tio Alberto descarregou
tamanho soco sobre a mesa, que os fez estremecer.
- Façam calar esse cão! Olhem que o ponho a mexer daqui
para fora!-disse.
Ninguém conseguia, no entanto, fazer calar o Tim. Por fim a
Zé levou-o para a cozinha e fechou a porta.
- Até me parece que eu própria estou a ladrar e a rugir. A
árvore teria esmagado o telhado ? - perguntou Anita ao
Júlio.
Tio Alberto pegou numa lâmpada de algibeira e subiu
cuidadosamente as escadas, a examinar os estragos. Quando
voltou, vinha ainda mais pálido.
- A árvore entrou pela água-furtada, desfez o telhado e
arrasou o quarto de dormir das pequenas. A ramada maior
enfiou no quarto dos rapazes mas, felizmente, não chegou a
fazer estragos. No entanto, o quarto delas ficou numa
desgraça. Se lá estão ficavam esmagadas.
Houve um silêncio profundo. Bastava lembrarem-se que a Zé e
a Ana haviam escapado por tão pouco.
- Ainda foi bom espreitar e avisá-las - disse o Júlio
energicamente, ao ver como Ana se fazia pálida. - Coragem,
Ana! Pensa no que já tens para contar lá na escola.
Tia Clara então sugeriu que um pouco de cacau faria bem a
todos; mostrando-se assim decidida, embora no íntimo se
sentisse bastante perturbada.
- Vou já prepará-lo! Alberto, vai ver se ainda

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há lume no teu gabinete. Precisamos dum pouco de calor.


Por sorte o lume estava aceso. Reunidos à volta do fogão,
quando a Tia Clara apareceu com uma boa porção de cacau e
leite bem quente, todos a abençoaram.
Anita olhou curiosamente em redor ao sentar-se para tomar o
cacau. Afinal, era ali que o tio trabalhava e realizava as
suas descobertas; ali escrevia aqueles livros tão
complicados que ela era incapaz de perceber.
Não obstante, naquele momento o Tio Alberto dava a
impressão de ser pouco inteligente. Parecia, pelo contrário
muito alarmado e Ana em breve compreendeu porquê.
- Foi um milagre, nenhum de nós ficar ferido ou morto -
disse a Tia Clara com ar severo, prosseguindo:
"Disse-te uma dúzia de vezes, Alberto, que era preciso
amarrar aquela árvore. Eu bem sabia que era muito grande e
pesada demais para aguentar este vento. Sempre receei que
desabasse sobre a casa.
- Bem sei. Mas tenho tido tanto que fazer nos últimos meses
- disse o Tio Alberto, mexendo a chávena de cacau com força.
- Tens sempre essa desculpa para não cuidares das coisas
urgentes. Para o futuro, sou eu que passo a tratar disso.
Não podemos arriscar a vida, sem mais nem menos - concluiu
a esposa, suspirando.
- Realmente, uma coisa assim, só podia acontecer numa noite
de luar! - gritou o Tio Alberto, de mau humor, disparatado.
Depois serenou,

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ao notar que a esposa estava visivelmente perturbada, quase


a chorar. Pousou a chávena e, passando-lhe um braço em
volta da cintura, tranquilizou-a:
- Sei que sofreste um tremendo choque. Mas não te incomodes
que tudo se há-de remediar.
- Oh! Alberto! Vai ser pior agora! Onde vamos nós dormir?
Que havemos de fazer enquanto o telhado e o andar de cima
estiverem por consertar? Para mais com os pequenos aqui.
Lembra-te que vamos ter a casa cheia de operários, durante
semanas!
- Deixa isso comigo! Hei-de resolver tudo. Não te
aborreças. Para indisposição já basta. Mas vais ver que
tudo se arranjará.
Embora não acreditasse, Tia Clara sentiu-se mais
satisfeita. As crianças haviam escutado em silêncio,
enquanto bebiam o seu cacau bem quente.
Concluíram que o Tio Alberto era muito inteligente e sabia
imensas coisas, mas costumava desprezar casos urgentes como
aquele. Por vezes dava até a impressão de não viver neste
mundo.
De qualquer maneira, era praticamente impossível voltar aos
aposentos. Tudo desmantelado!
Tia Clara começou a empilhar cobertas sobre sofás. Destes,
havia um no gabinete de estudo, outro, enorme, na sala de
visitas e um mais pequeno, na sala de jantar. Encontrou
ainda uma cama portátil num armário e, com a ajuda de
Júlio, armou-a também.
- Temos de arranjar isto o melhor possível. Já não falta
muito para amanhecer, mas ainda podemos dormir um pouco -
propôs a tia.
- Ora vejam! Agora, como já fez estragos, abrandou. Amanhã
tomaremos decisões - disse ao Tio Alberto, aludindo à
ventania já menos violenta.
Apesar de muito fatigados, os pequenos não conseguiram
conciliar o sono. Ana, sobretudo, sentia-se deveras infeliz.
Como poderiam ficar no Casal Kirrin? Voltar para casa? Era
impossível! Os pais tinham-se ausentado por um mês e as
portas estavam fechadas à chave.
- Creio que não voltaremos para a escola. Seria horrível,
logo no princípio das férias - pensou Ana, enquanto
diligenciava instalar-se comodamente no sofá.
A Zé não era da mesma opinião. Queria-lhe parecer que os
mandavam para a escola, no dia seguinte. Por consequência,
isto queria dizer que não voltaria a ver o Júlio nem o
David durante as férias, porque eles iriam para outra
escola.
Tim era o único que não se mostrava triste. Deitado aos pés
da dona, ronronava um pouco, mas satisfeito. Enquanto
andasse na companhia da Zé que lhe importava o seu destino?
CAPÍTULO III
OS PLANOS DO TIO ALBERTO

O temporal amainara; -mas o vento ainda soprava com fúria


quando a manhã rompeu. Com grande alegria, os pescadores
verificaram então que os barcos haviam sofrido muito pouco.
Logo, porém, a notícia do acidente correu célere e juntou
no Casal Kirrin alguns curiosos que se não cansavam de
comentar o desastre.
As próprias pequenas se sentiam ufanas de contar que, só
por milagre tinham escapado ao peso esmagador daquela
árvore gigantesca que esmigalhara o telhado como uma casca
de ovo e destroçara impiedosamente os aposentos do andar
superior:
Nem a mulher que veio ajudar a Tia Clara se conteve que não
exclamasse:
- Isto vai durar semanas a consertar. Já falou aos
operários? Se fosse comigo chamava-os para verem o que é
preciso.
- Eu cuidarei de tudo, senhora Daly!-exclamou o Tio
Alberto. Minha mulher sofreu um grande abalo e por isso não
pode tomar este encargo. O que há a fazer, primeiro, é dar
destino aos pequenos. Não podem ficar aqui enquanto isto
estiver assim.
- Coitadinhos, o melhor ainda era mandá-los para a escola
outra vez! -exclamou a Tia Clara.
- Não! Tenho uma ideia melhor - acrescentou o Tio Alberto,
tirando uma carta da algibeira. - Melhor, mas muito melhor.
Recebi esta manhã uma carta dum amigo meu, o Lenoir, que
também se interessa pelas minhas experiências. Diz ele...
deixa ver... Ah! Cá está. E o Tio Alberto leu em voz alta:
"É muito amável o convite que me faz para ir passar aí uns
dias com o meu Pedro. Por consequência, permita-me que o
convide também para vir até aqui passar uma temporada com
os seus pequenos. Serão bem recebidos. A casa é grande e,
tanto o Pedro como a Maribelle, apreciarão muito a vossa
companhia".
Tio Alberto olhou para a esposa com ar triunfante.
- Aqui tens! É o que se chama verdadeiramente um convite
generoso! E não podia vir em melhor | ocasião. Pronto, está
resolvido! Mandamos os | garotos para casa deste meu amigo.
- Mas como é possível, Alberto, se nem sequer conhecemos
essa gente ? - disse a Tia Clara.
- É que o filho dele anda na escola com o Júlio e o David
e, demais sei eu que o Lenoir é uma pessoa excepcionalmente
inteligente - exclamou o Tio Alberto, como se isto tivesse
alguma importância para o caso. Vou já telefonar-lhe.
Deixa-me ver o número!
Tia Clara achou-se desarmada perante a rápida decisão do
marido, que pretendia talvez resolver e remediar tudo,
sentindo-se envergonhado pelas grandes responsabilidades
que lhe cabiam no desastre, devido ao seu habitual
esquecimento. Ele empenhava-se agora em demonstrar que
também sabia tomar decisões enérgicas. A pobre senhora
tremeu, só de ouvi-lo telefonar. Era uma temeridade mandar
as crianças para um local absolutamente desconhecido.
Lia-se a satisfação no rosto de Tio Alberto quando apareceu
em frente da esposa, após ter pousado o auscultador.
- Está tudo arranjado - esclareceu. - O Le-noir ficou
radiante. Tanto ele como a esposa e os filhos ficarão
encantados com a visita dos nossos rapazes. Até podiam ir
já, se arranjássemos um carro.
- Mas, repara, Alberto. Nós não sabemos quem é essa gente!
E os pequenos não hão-de gostar! Nem me admiro nada se a Zé
se recusar - retorquiu a esposa.
- Pois ainda bem que me lembras. É verdade Têm de deixar
aqui o Tim. Ao que me consta, o Lenoir não gosta de cães -
explicou o Tio Alberto.
- Então já sabes que ela não vai! Isto é uma loucura! Bem
sabes como a Zé e o Tim são inseparáveis - teimou a Tia
Clara.
- Desta vez terá de ser - disse o Tio Alberto,
absolutamente convencido de que a Zé não lhe alteraria os
planos.
- Olha! Aí estão eles! Vamos ver se nos entendemos.
Chamou-os para o gabinete e expôs-lhes a situação, no
momento em que os pequenos esperavam ouvir novidades pouco
agradáveis - o regresso à escola, possivelmente.
Tio Alberto principiou:
- Lembram-se de lhes ter falado num rapaz vosso amigo, a
noite passada? O Pedro Lenoir?
Vocês dão-lhe, até, um nome bastante esquisito.
- Há! Já sei! O "Fuliginoso"!-exclamaram, ao mesmo tempo,
Júlio e David.
- Pois é esse mesmo! Bom, o pai dele convida-vos a passar
uns dias em sua casa. Fica no Monte dos Contrabandistas -
esclareceu o Tio Alberto.
A surpresa não podia ser maior.
- Monte dos Contrabandistas?! Que vem a ser isso do Monte
dos Contrabandistas ? - perguntou o David, já excitado por
esse nome de fantasia.
- É o nome da localidade onde vivem. Trata-se dum edifício
bastante antiquado, construído no alto dum monte rodeado de
pântanos onde outrora havia mar. O monte era então uma
ilha; agora, porém, não é mais que uma elevação de terreno
sobre a região pantanosa. Um local muito interessante,
segundo dizem. Prestava-se muito ao contrabando, noutros
tempos - concluiu o Tio Alberto.
Esta breve narrativa veio aumentar o entusiasmo do grupo.
Para mais, tanto o Júlio como o David gostavam imenso do
pequeno Lenoir. Este, embora parecesse um pouco tonto, era,
de facto, divertido. Enfim, uma ocasião óptima.
- Bom! Em que ficamos? Querem ir para lá ou para a escola?
- inquiriu o Tio Alberto, com impaciência.
- Para a escola, não!-exclamaram todos a um tempo.
- Por mim, gostava bastante de ir para o Monte dos
Contrabandistas. Há-de ser um sítio formidável. De resto,
eu sempre gostei do Fuliginoso, em especial desde que ele
serrou uma perna da cadeira do nosso professor. Se querem
ver: quando o mestre se sentou, partiu-se logo! -exclamou o
David, com entusiasmo.
- Bem, bem! Não me parece motivo para gostar dele...
Afinal, estou a ver que o melhor seria voltarem para a
escola - reflectiu o pai da Zé, já um tanto duvidoso a
respeito das virtudes do pequeno Lenoir.
- Não, não! Vale mais irmos para o Monte dos
Contrabandistas - protestaram os pequenos em coro.
Era isso que ele pretendia: ouvir os garotos apoiarem os
seus planos; tanto assim que acrescentou:
- Muito bem! Realmente, eu já esperava essa decisão da
vossa parte e, por isso, ainda há pouco telefonei ao pai
Lenoir. Está verdadeiramente encantado com a minha decisão.
- E posso levar o Tim ? - interrogou a Zé, inesperadamente,
- Não. Tenho muita pena, mas o senhor Lenoir detesta os
cães - respondeu-lhe o pai.
- Pois também eu não gosto dele. Sem o Tim é que não vou -
replicou a Zé, de mau humor.
- Então fica sabendo que voltas para a escola. E acaba com
esses modos incorrectos. Bem sabes que não gosto de te ver
assim.
A Zé não fez caso das palavras do pai, contribuindo assim
para aumentar as apreensões dos outros, que receavam vê-la
estragar tudo. Na realidade, aquela aventura no Monte dos
Contrabandistas prometia muitas surpresas, mas melhor seria
ainda levarem também o Tim. No entanto, não iam agora
perder tamanha ocasião de se diver-

26

tirem, só porque a Zé teimava em andar sempre com o cão


atrelado a eles.
Seguiram para a sala de visitas. Ana muito convincente,
passou um braço pela cintura da Zé que a repeliu de mau
modo.
- Mas tu não vês que tens de ir com a gente ? Que horror,
voltares para a escola sozinha - disse-lhe Ana.
- Desde que o Tim ande comigo, tenho sempre companhia, fica
sabendo - respondeu-lhe a Zé.
Foi em vão que os outros lhe pediram que mudasse de
opinião. A todos repelia, acrescentando:
- Deixem-me em paz! Vou pensar. Digam-me cá: vocês fazem
alguma ideia do caminho que tomamos para chegar ao Monte
dos Contrabandistas?
- Vamos de automóvel, com certeza, contornando a estrada
que sobe ao longo da costa - esclareceu o Júlio. Porquê?
- Não faças perguntas! -respondeu ela, desaparecendo mais o
Tim. Eles, porém, não a acompanharam porque lhe conheciam
já o mau humor.
Em seguida a Tia Clara começou a fazer os preparativos da
viagem, embora fosse inteiramente impossível retirar muitas
coisas do quarto das pequenas.
Eis que aparece a Zé, sem o Tim, mas com ar de satisfação.
- Onde está o Tim ? - perguntou Ana imediatamente.
- Anda lá por fora - disfarçou a Zé.
- Sempre te decides a acompanhar-nos ? - perguntou o Júlio,
observando-a.
- Vou, sim. Já resolvi.
Não era, porém, sem motivos que a Zé se furtava aos olhares
do primo. E bem sabia porquê, como em seguida veremos.
Tia Clara preparou-lhes uma excelente merenda. Depois
esperaram a chegada do automóvel que não tardou.
Instalaram-se o melhor possível. Tio Alberto encheu-os de
recomendações para o seu amigo Lenoir.
Por fim, vieram as despedidas afectuosas da Tia Clara que
também não se poupou a recomendações:
- Espero que tenham muito boa viagem e se divirtam muito.
Escrevam, logo que chegarem!
- Olha! Não fomos dizer adeus ao Tim! Seguramente não te
vais embora, sem lhe dizer adeus!-exclamou Ana, admirada
com o seu esquecimento e mais ainda com o da Zé.
- Agora já não há tempo para essas coisas - apressou-se a
dizer o Tio Alberto; não fosse a Zé transformar os seus
planos. E ordenou ao motorista:
- Pode seguir! Mas tenha cautela, não vá com muita
velocidade!
Os garotos abandonaram o Casal Kirrin no meio dum
entusiasmo sem limites, gritando, e rindo, embora tivessem
ainda bem presente o cenário triste da casa esmagada pela
árvore gigante.
Mas, haviam escapado à escola e era isso afinal o que mais
importava.
Em breve esqueceram também o acidente, ficando-lhes apenas
no espírito a recordação

28

cada vez mais próxima do amigo Fuliginoso e o nome mágico


do Monte dos Contrabandistas.!
- Monte dos Contrabandistas! Extraordinário! Deve ser uma
casa muito velha, mesmo no cimo dum monte. Era uma ilha,
antigamente. Depois, o mar afastou-se -ficou apenas o
pântano. Curioso e muito engraçado - pensou Ana, como num
sonho.
Ninguém respondeu e muito menos a Zé, que se mantinha em
silêncio enquanto o carro avançava. Os outros olhavam para
ela de vez em quando, e cada vez mais se convenciam de que
todo aquele mutismo era por causa do Tim. Ela porém não
parecia muito aborrecida.
Ao chegarem a uma elevação do terreno, o carro começou a
subir. Mas, no instante em que iniciava a descida, a Zé
inclinou-se para a frente e tocou no braço do chauffeur,
esclarecendo:
- Não poderia parar um momento, por favor ? Está alguém à
nossa espera.
Júlio, David e Ana olharam para a Zé, surpreendidos. Ainda
mais espantado ficou o motorista que, por fim, abrandou,
quase até parar. Nesse momento ela abriu a porta do
automóvel e assobiou fortemente.
Viu-se que qualquer coisa avançava aos saltos e rompia pelo
carro dentro. Era o Tim! Pulando para todos os lados, não
se cansava de fazer festas e soltar alegres latidos - a
melhor demonstração do seu contentamento.
- Mas - exclamou o condutor, um tanto receoso - eu não sei
se a menina está autorizada a levar o cão. É que o seu papá
não me disse nada a esse respeito.
- Não se incomode! Há-de arranjar-se tudo.
Algo de imprevisto surgiu. Tim acabava de entrar no automóve
Não se preocupe. Siga - acudiu logo a Zé, que não cabia em
si de contente.
- Ora esta! -exclamou o Júlio. - Bem sabes que o senhor
Lenoir é muito capaz de o mandar embora.
- Ah, sim? Pois, se quiser mandá-lo embora, tem de mandar-
me a mim também - replicou a Zé, em atitude de desafio,
continuando: - O Tim está aqui e agora tem que ir comigo,
seja como for, fica sabendo!
- Assim é que é bom. Eu também não gostava de ir para o
Monte dos Contrabandistas sem o Tim - ajudou Ana, primeiro
abraçando a Zé e, a seguir, o inseparável amigo.
- Toca a andar para o Monte dos Contrabandistas! Vamos, que
deve haver por lá muitas surpresas! - gritou o David,
enquanto o carro arrancava novamente.

CAP. IV
A CAMINHO DO MONTE

O carro galgava a estrada ao longo da costa, penetrando,


uma vez por outra, algumas milhas para o interior. Para
maior satisfação daqueles viajantes de palmo e meio, raro
era o momento em que o oceano se afastava da paisagem.
Ao chegar a hora do almoço, o condutor informou-os duma
estalagem sua conhecida e muito boa.
Ao meio-dia e meia hora o automóvel estacou diante duma
velha estalagem que o pequeno bando invadiu imediatamente.
Júlio encarregou-se de velar por tudo e presidiu à mesa.
Reinava grande entusiasmo, de que o próprio Tim partilhou,
sobretudo quando viu à sua frente um prato a transbordar de
excelente comida, que era um sonho. Tim estava de parabéns
naquela casa porque o dono gostava muito de cães.
E foi a Zé que o incitou a comer, recomendando-lhe que
papasse tudo.
Enquanto saboreava os bons petiscos, Tim desejava de todo o
coração terminar ali a viagem, já que as atenções eram
tantas e a comida tão boa.
Terminada a refeição, levantaram-se e foram ao encontro do
motorista que ainda estava a almoçar com o estalajadeiro e
a mulher, na cozinha.
- Muito bem! Ouvi dizer que os meninos vão para a Terra dos
Abandonados. Tenham cautela!- disse o dono da estalagem,
erguendo-se.

32

- A Terra dos Abandonados? Onde fica o Monte dos


Contrabandistas, não é verdade? - interrogou o Júlio.
- É, sim senhor! -confirmou o bom homem.
- E porque lhe deram esse nome tão esquisito ? Deixaram lá
algumas pessoas abandonadas, quando era uma ilha,
naturalmente - arriscou Anita, sempre pronta a fantasiar.
- Não. Diz a lenda que, noutros tempos, o monte estava
pegado ao continente mas que abrigava nos seus
esconderijos, certas pessoas muito más. Ora, aconteceu que
um dos santos se irritou com o procedimento dessa gente e
pregou um piparote de tal ordem naquilo tudo que o monte
foi ter ao mar e se transformou numa ilha - concluiu o
estalajadeiro.
- E por isso lhe chamam ainda a Terra dos Abandonados. Mas,
naturalmente, modificou-se tudo para melhor, tanto que já
se pode ir a pé, do continente para lá, não é assim?-
perguntou o David.
- Sim. Há realmente uma estrada boa. Em todo o caso é bom
ter cuidado. Quem se afastar do caminho, desaparece no
lodaçal - replicou o dono da estalagem.
- Deve ser uma terra de surpresas, o Monte dos
Contrabandistas! Terra dos Abandonados! Um só caminho! Deve
ser uma aventura! -reflectiu a Zé.
- É tempo de partirmos. Bem sabem que é preciso chegarmos
antes da hora do chá. São as ordens do vosso tio - disse o
chauffeur, examinando o relógio.
Voltaram para o automóvel. Tim, aos saltos,

33

aos encontrões, acabou por instalar-se confortàvelmente


junto da Zé. Em boa verdade, o peso e o tamanho do Tim eram
demasiados para a sua pequena dona mas, como ela não teve
coragem de o enxotar, lá ficou.
À medida que o carro acelerava, tanto Ana como os seus
companheiros se deixavam adormecer. Principiava a chover. A
terra oferecia agora aspecto bastante triste.
Pouco depois, o motorista torceu um pouco, prevenindo Júlio
de que se aproximavam da Terra dos Abandonados, prestes a
deixarem o continente e a tomarem a estrada ao longo do
pântano.
Júlio, por sua vez acordou Ana. Despertaram todos à espera
duma surpresa mas grande foi a decepção. Um manto espesso
de neblina cobria o extenso pântano. Era uma barreira tão
densa que os pequenos não conseguiam perceber o mínimo
pormenor, mal distinguindo o leito da estrada por onde
seguiam, um pouco acima do extenso lamaçal. Uma vez ou
outra o nevoeiro mostrava-se menos cerrado e então notava-
se, dum lado e doutro, a vastidão desoladora da região.
- Só um minuto, por favor! Queria ver isto mais de perto -
disse Júlio ao motorista.
- Tenha cuidado, não se afaste da estrada. E a menina não
deixe sair o cão - preveniu o condutor, parando o carro. -
Olhe que se ele foge e salta para o pântano, é um ar que
lhe dá.
- Que quer dizer isso ? - interrogou Ana, com os olhos
muito abertos.
- Quer dizer que fica ali para sempre - apressou-se a
esclarecê-la o Júlio. Fecha-o no carro, Zé!
Por isso o Tim teve de conformar-se. Em vão sacudiu a
porta, procurando seguir os seus amigos. O motorista falou-
lhe, sossegando-o.
Mas Tim não se conformou e, ganindo de desespero, limitou-
se a seguir com os olhos ávidos de surpresa as evoluções do
grupo à beira do caminho.
Via-se uma fila de pedras balizando a estrada. Júlio ali
mesmo se arriscou a breves sondagens, concluindo
imediatamente:
- É só lama. Querem ver este pé ir já para baixo! Por mais
um pouco ficava aqui enterrado!
Como era natural, Ana não gostou mesmo nada de semelhante
demonstração, aconselhando Júlio a que voltasse para trás.
Coberto como estava pelo nevoeiro, o local oferecia um
aspecto fantástico, desolador. O próprio Tim deu por isso e
começou a ladrar dentro do carro. - O Tim ainda acaba por
estragar a porta do automóvel, se não vamos já para o pé
dele - preveniu a Zé.
Por fim voltaram, mas em silêncio. E Júlio pensou em
quantos aventureiros ali teriam ficado para sempre. O
condutor deu-lhe razão, citando o caso de muitos em que
nunca mais se havia falado. Dizem - continuou - que há um
ou dois caminhos para lá mas é preciso conhecê-los bem. Já
existiam antes da estrada.
- Que horror! Não se pensa mais nisso - disse Ana,
continuando: - Vê-se daqui a Terra dos Abandonados ?
- Lá está adiante, no meio da névoa - disse-lhe o condutor.
- Não vêem o cimo do monte a sobressair do nevoeiro ? É um
local bem estranho.

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As crianças olharam em silêncio. O monte destacava-se,


apresentando encostas rochosas como penhascos. Parecia que
se destacava do terreno, a oscilar entre a bruma. Os
edifícios, mesmo a essa distância pareciam antigos e
exóticos. Havia até alguns, encimados por torres.
E Júlio apontou, exclamando:
- Aquilo deve ser o Monte dos Contrabandistas. Parece um
casarão antigo. Reparem naquela torre. Que vista esplêndida
há-de ter!
Os pequenos contemplaram o local que iam conhecer dentro em
pouco e notaram que, embora atraente, a região oferecia um
aspecto enigmático.
- Até parece que tem lá dentro coisas secretas - disse Ana,
exprimindo desse modo aquilo que os outros também pensavam.
E acrescentou: - Deve ser um local com uma história muito
complicada.
O carro principiou a descer, lentamente, devido ao nevoeiro
que aumentava. A estrada, porém, apresentava ao meio uma
fila de marcos que se fizeram muito brilhantes quando o
motorista acendeu os faróis para se orientar. Depois, à
medida que se aproximaram da Terra dos Abandonados, a
estrada começou a enclinar-se mais.
Foi a ocasião de o condutor prevenir:
- Vamos passar agora debaixo dum grande arco. Era aqui que
ficava outrora o portão da cidade, que ainda hoje é rodeada
por uma muralha, como antigamente. Tem largura suficiente
para se andar lá por cima e quem partir dum ponto qualquer
e for caminhando, virá ter ao mesmo lugar.
Todas as crianças imaginaram bem o que aquilo seria e a
linda vista que poderiam obter daquele local, num dia
esplêndido de sol.
À medida que avançavam, a estrada tornava-se mais íngreme,
de maneira que o condutor teve de meter outra mudança. O
carro foi roncando, monte acima, até chegar ao arco. E, ao
passarem através duns portões abertos de par em par, as
crianças ficaram sabendo que se encontravam na Terra dos
Abandonados.
- Dá a impressão de havermos recuado séculos! - exclamou o
Júlio, examinando o casario, as lojas antigas, as ruas e os
vitrais de velhas portas solidamente construídas.
Subiram pela estrada que ondulava e alcançaram a entrada
dum portão grande com aplicações de ferro forjado. O
motorista chamou. Alguém correu a abrir a porta.
Desceram por caminho escabroso e foram parar próximo do
Monte dos Contrabandistas.
Sentiram-se espantados ao olharem para aquele bloco imenso
que parecia ameaçá-los. Era um edifício de tijolo e
madeira, ostentando uma fachada maciça como se fosse dum
castelo.
Por cima dos vitrais, notavam-se aqui e acolá, saliências
do telhado.
A torre do edifício, redonda e ponteaguda, erguia-se altiva
para o lado de nascente, exibindo janelas a toda a volta.
- Cá está o Monte dos Contrabandistas! Afinal, temos de
concordar que é um nome engraçado. Creio bem que houve por
aqui muito contrabando noutros tempos - disse o Júlio.
David apressou-se a tocar ao portão, puxando um cabo de
ferro, várias vezes.
37

Ouviram-se passos apressados. Por trás da pesada porta que


se abria lentamente, apareceram um rapaz e uma menina, ele
com a idade do David e ela pela idade da Ana, mais ou menos.
- Até que enfim! Estava a ver que nunca mais chegavam!-
exclamou um rapaz de olhar vivo e coruscante.
- É o Fuliginoso! - acudiu o David a explicar. As pequenas
não o conheciam mas tiveram ocasião de verificar que o nome
tinha certa razão de ser. A face escura, o cabelo negro, os
olhos retintamente pretos - tudo ajudava àquela alcunha. A
pequena, essa oferecia em relação a ele, profundo
contraste: - era pálida, quase transparente. Possuía cabelo
dourado, olhos dum azul puríssimo e umas sobrancelhas tão
ténues que mal se distinguiam.
- Apresento-vos Marybelle, minha irmã. Digam lá se não
parecemos mesmo a Bela e o Monstro? - gracejou o Fuliginoso.
Era muito divertido. A própria Zé, que de seu natural era
avessa a amizades instantâneas sentiu-se cativada pelos
modos do rapaz. Mas, de facto, haveria alguém capaz de
detestar aquele garoto de olhar cintilante e tão exóticas
maneiras?
- Venham daí!-comandou o Fuliginoso; e, dirigindo-se ao
motorista: - Meta o carro por aquela porta, acolá, que o
Block tratará de arrumar a bagagem e servir-lhe chá.
De repente, deixou de sorrir e ficou atónito: reparara no
Tim.
- Não me digam que é vosso.?!
- É meu, é! Não podia abandoná-lo, nem me separo dele por
coisa nenhuma! - arremeteu

38

a Zé, colocando à mão sobre a cabeça do Tim, em atitude


protectora.
- De acordo! Mas, sabes que ninguém pode trazer cães para
aqui ? - redarguiu o rapaz com imensa pena e receoso de que
dessem pelo cão. E acrescentou:
"O meu padrasto não quer ver cães nesta casa. Uma vez até
arranjei um grande sarilho: encontrei um cãozito, trouxe-o
para aqui e por causa disso apanhei uma sova tremenda.
Anita limitou-se a sorrir timidamente. A Zé, pesarosa,
mudou logo de humor, como de costume. Disposta a salvar a
situação, ela ainda propôs que se escondesse o Tim em
qualquer canto, enquanto ali estivessem. Percebendo que não
era bem sucedida, limitou-se a exclamar, colericamente:
- Pois eu volto já para casa; vou no automóvel. Adeus.
Saiu à procura do carro, prestes a partir. O pequeno Lenoir
fitou-a e em seguida gritou-lhe, já arreliado:
- Fica. Não sejas parva. Alguma coisa se há-de arranjar!

CAP. V
QUEM É O FULIGINOSO

O rapaz desceu a escada que ia ter à porta central. Os


outros acompanharam-no. Mary-belle entrou também, fechando
em seguida a porta com muito cuidado.
Havia uma pequena porta, precisamente no ponto onde a Zé
parara. O Fuliginoso empurrou-a, enquanto abria a porta
dando passagem aos outros.
- Não me empurres desta maneira! Olha que o Tim é muito
capaz de te morder! -replicou a pequena, de mau modo.
- Estás enganada! Os cães gostam muito de mim. Aposto que
se te esbofetear, ele não é capaz de me morder.
Entretanto encontravam-se já num corredor escuro, ao fim do
qual se via outra porta.
- Esperem só um minuto que eu vou ver se há visibilidade na
costa. Mas devo prevenir-vos de que o meu padrasto está em
casa e, se descobre o cão, manda-vos todos embora. É isso
precisamente o que eu quero evitar. Bem basta o tempo que
passei à vossa espera!
Dito isto, fez uma careta muito divertida que teve o condão
de os dispor bem, até a própria Zé, ainda um pouco amuada.
O senhor Lenoir era, naquele instante, o pavor da rapaziada.
Mesmo asssim, o Fuliginoso avançou em bicos de pés, na
direcção à porta ao fundo do corredor.
Vamos - disse o Fuliginoso em voz baixa - mas não façam
barulho e abriu-a. Deitou uma olhadela à sala e voltou para
junto dos outros dizendo:
- Claridade absoluta! Vamos seguir para o meu quarto pela
passagem secreta. Estejam descansados! Ninguém chegará a
ver-nos e, uma vez lá, é fácil resolver a situação do Tim.
De acordo?
Falar numa passagem secreta era o mesmo que propor-lhes uma
aventura fabulosa.
Avançaram em direcção à porta e penetraram no aposento,
sempre em silêncio.
Ao examinarem a sala, repararam nas paredes almofadadas, na
grande secretária e nos livros que rodeavam as paredes.
Devia ser um gabinete de estudo.
O Fuliginoso aproximou-se dum daqueles painéis, tacteou e,
carregando em determinado ponto, fez deslizar o painel para
o lado. Meteu a mão dentro e puxou em qualquer outro ponto,
fazendo deslizar um painel ainda maior, que deixou uma
abertura suficiente para eles passarem.
- Venham daí! Mas não façam barulho! - preveniu o rapaz em
voz baixa.
Passaram pela abertura, cada vez mais agitados. O audacioso
rapaz ficou para o fim, acabando por correr novamente os
dois painéis.
Posto isto, acendeu um pequeno archote que iluminou um
estreito corredor de pedra tão estreito que duas pessoas
passariam com muita dificuldade.
O Fuliginoso passou o archote ao Júlio, que ia à frente, e
recomendou-lhe:
- Vai sempre a direito, até encontrares uns degraus de
pedra. Depois sobes, voltas à direita quando chegares ao
cimo e segues sempre em frente, até encontrares uma parede.
Logo te direi o que há a fazer.
Júlio iniciou a marcha, mantendo o archote ao alto para
iluminar o caminho aos outros.
O corredor seguia efectivamente em linha recta. Mas, além
de estreito, era tão baixo que, do grupo, só a Ana e a
Marybelle conseguiam passar à vontade. Ainda assim, Ana
detestava aqueles corredores que lhe evocavam pesadelos. E
foi com grande alegria que ouviu o Júlio dizer:
- Cá estão os degraus. Vamos subir. Ao que o Fuliginoso
acrescentou:
- Não façam barulho. Estamos passando muito perto da sala
de jantar. Há outro caminho de lá para aqui. Cautela!
Compreendendo a situação delicada que a sua presença
representava ali, procuraram caminhar no maior silêncio, em
bicos de pés, marcha sobremaneira difícil para quem tinha
de avançar com os ombros pendidos e cabeça curvada.
Subiram catorze degraus, muito a pino, e quase em caracol.
Quando chegou ao cimo, Júlio voltou à direita, notando que
a passagem se elevava e estreitava como antes. Tão estreita
era que o Júlio notou ser impossível a passagem duma pessoa
gorda.
Avançou mais e mais, até que, com surpresa, foi esbarrar
contra uma parede de pedra.
Instintivamente agitou o archote, iluminando a parede de
alto a baixo. Nesse momento ouviu uma voz do extremo da
fila:
- É aí a parede, Júlio. Agora, aponta o archote para a
aresta da parede com o tecto e empurra com força o cabo de
metal que aí está!
Júlio brandiu o archote e descobriu logo o cabo. Passando a
luz para a mão esquerda, com a direita segurou o cabo e fez
força.
Num ápice, a pedra grande, ao centro da parede, deslizou
obliquamente, deixando um vasto espaço vazio.
Júlio não conseguiu dominar o espanto. Largando o cabo,
introduziu o archote na cavidade, descobrindo apenas
escuridão.
- Não te atrapalhes! É o caminho para o armário grande que
está no meu quarto. Avança, que nós vamos já. Não deve
haver gente no meu quarto - disse o pequeno explorador.
Júlio avançou e foi encontrar um vasto armário com as
roupas do Fuliginoso. Afastou-as, mas esbarrou contra a
porta. Abriu-a e recebeu como surpresa a luz viva do dia
que inundou o armário.
Um a um, os outros saltaram, embrenharam-se também nas
roupas e acabaram por receber de chapa a luz do dia que
inundava o aposento.
Tim, sempre intrigado e silencioso, seguia ao lado da Zé,
nunca a deixando um só momento. Como os outros, ele também
não gostara daqueles caminhos escuros, gozando agora o
prazer da luz do dia.
O Fuliginoso foi o último. Depois de fechar cuidadosamente
a abertura da passagem - por tal processo que o Júlio não
compreendera - veio reunir-se aos amigos e apressou-se a
tranquilizar a Zé:
- Aqui não há perigo. Está descansada. O meu quarto e o da
Marybelle ficam separados do resto do edifício por um
corredor enorme.
Para concretizar, abriu a porta e mostrou-lhes o quarto da
Marybelle, contíguo ao seu. A seguir, estendia-se um
corredor de paredes e chão empedrados, este último coberto
de esteiras. No extremo do corredor, havia uma janela
grande batida pela luz e uma porta de carvalho, avantajada.
A porta encontrava-se cerrada.
- Estão a ver? Estamos aqui todos à vontade. O Tim que
ladre, se lhe apetecer. Garanto-vos que ninguém ouve lá
fora - elucidou o irmão de Marybelle.

45

- E se aparece alguém? Com certeza que há quem cuide dos


vossos quartos - sugeriu Ana.
- A Sara, nossa criada, cuida dessas coisas, todas as
manhãs. É a única pessoa que aparece por cá. No entanto,
para evitar surpresas arranjei um processo de descobrir
qualquer intruso - respondeu ele.
Apontou para a porta no extremo do corredor. Os outros
olharam, admirados.
- Mas como sabes isso ? - interrogou o David.
- Arranjei uma engenhoca que faz um ruído de buzina no meu
quarto sempre que alguém abre aquela porta. Querem ver como
é?
Num salto alcançou a porta em questão e abriu-a. Ouviu-se
imediatamente um ruído de alarme, algures no quarto dele,
que os fez dar um salto, incluindo o próprio Tim.
O outro fechou a porta e voltou, satisfeito:
- Ouviram ? É ou não é uma boa ideia ? Estou sempre a
pensar em coisas assim.
Convencidos de que se encontravam num recanto bastante
exótico, voltaram para o quarto do Fuliginoso que, na
verdade, nada oferecia de especial, a não ser uma janela
com vitrais.
Ao contemplar a paisagem, Anita teve um calafrio. Nunca
pensara encontrar-se num precipício como o cimo do Monte
dos Contrabandistas.
- Reparem! Reparem! Que impressão faz olhar para baixo!-
disse ela, receosa.
Os outros rodearam-na e contemplaram o espectáculo estranho
que oferecia aquela elevação abrupta, talhada quase a pique
sobre o pântano.
O sol iluminava o vértice do monte, enquanto a neblina
descia densa sobre o pântano e o mar alto, só deixando a
descoberto escassa porção do terreno, mesmo ao fundo do
monte.
- Vê-se daqui muito bem o pântano e a orla do mar, quando a
atmosfera está límpida. Uma vista linda! De resto, é muito
raro poder-se distinguir onde o pântano acaba e o mar
começa. É preciso que as águas estejam muito azuis. Sabem,
antigamente o mar rodeava o monte e isto era uma ilha.
Engraçado, não é?
- Já sei. O estalajadeiro informou-nos. Mas porque recuou o
mar ? - inquiriu a Zé.
- Não sei. Dizem que foi recuando pouco a pouco. O mais
curioso é que existem uns planos para secar o pântano e
transformá-lo em campos. O que eu não sei é se algum dia
chegarão a pô-los em prática...-explicou o rapaz.
- Pois eu não gosto nada desse pântano. É um sítio
desolador! -disse Ana.
Nessa ocasião o Tim fez sentir a sua presença, como que
dando a entender à Zé que seria bom pensarem em ocultá-lo.
- É preciso resolver o caso do Tim. Bem vês que não podemos
tratá-lo de qualquer maneira.
- Já vamos tratar dele. Farei o possível para o manter ao
pé de nós. Mas, olha que se o meu padrasto o descobre, está
tudo perdido - redarguiu o Fuliginoso.
- Gostava de saber porque motivo detesta os cães. É capaz
de ter medo deles ? - lembrou Ana, intrigada.
- Não! Não é por isso. Não os quer cá em casa. É tudo
quanto posso dizer-te. Alguma razão deve ter, mas
desconheço-a. É um homem muito estranho, o meu padrasto!-
reflectiu o rapaz, pensativo.
- Que queres dizer com isso ? - perguntou David.
- Bom. Parece que tem imensos segredos. De vez em quando
aparecem aqui umas pessoas misteriosas, sem ninguém saber.
Para mais, já tive ocasião de assinalar luzes na nossa
torre, em certas noites. Só não cheguei a ver quem são e
qual a razão desses sinais - disse o pequeno explorador.
- Quem sabe se o teu padrasto é contrabandista - arriscou
Ana.
- Não creio. Contrabandista aqui, há só um e todos o
conhecemos. Vês acolá aquela casa, à direita, mais abaixo?
Vive ali. Tem uma fortuna incalculável. Chama-se Barling. É
tão poderoso que nem a polícia consegue meter-se com ele.
Faz o que quer - mas é o único. Tanto mais que ninguém se
arriscaria a fazer-lhe concorrência. É um homem temível -
concluiu o pequeno Lenoir.
- Afinal, nunca mais acabam as surpresas. Quer-me parecer
que ainda vamos tomar parte em qualquer aventura -
profetizou o Júlio.
- Não! Não penses em tal. Tens essa impressão por causa da
antiguidade deste sítio, repleto de caminhos secretos.
Apenas os contrabandistas se serviam deles noutros tempos.
Pois bem...!-ia a principiar o Júlio. - Calou-se, porém, e
todos olharam, admirados, para o engenhoso guia daquelas
paragens. O alarme secreto acabava de dar sinal: por certo,
alguém abrira a porta no outro extremo do corredor!

CAP. VI
O PADRASTO E A MÃE DO FULIGINOSO

- Depressa! Depressa! Vem aí gente! Que há-de ser do Tim ?


- exclamou a Zé tomada de pânico.
O Fuliginoso pegou no Tim pela coleira e despachou-o para
dentro dum velho armário, fechando-lhe a porta.
Já prevenido de que não podia fazer barulho, Tim lá ficou
na mais completa escuridão, com o pêlo todo eriçado, sempre
alerta.
Agora, para disfarçar, o Fuliginoso principiou a falar aos
seus amiguinhos num tom de voz bastante animado:
- Bom, nesse caso, acho que o melhor seria ir já mostrar-
vos os aposentos.
Preparava-se para continuar quando a porta se abriu,
deixando ver um homem de aspecto severo, de calças pretas e
casaco branco.
Ana pensou logo que se tratava de pessoa impenetrável e
misteriosa.
- Olá, Block - exclamou o Fuliginoso aereamente. E,
voltando-se para os outros:
- É o criado do meu padrasto, surdo que nem uma porta, mas
parece-me que, mesmo assim, percebe o que nós dizemos,
pelos movimentos dos lábios.
- Em qualquer dos casos, não me parece razoável dizer à
frente dele coisas que não diríamos se ele ouvisse -
acrescentou a Zé, que, a este respeito tinha coisas muito
suas.
Em tom monótono, Block explicou então:
- O seu padrasto e a sua mãe desejam saber porque se
desviou para aqui com os seus amigos, sem primeiro os
apresentar.
Enquanto falava, Block parecia notar a presença dum cão e
procurar localizá-lo, a ajuizar dos pensamentos receosos da
Zé.
Ela esperava, porém, que por felicidade o motorista não
tivesse feito qualquer referência ao Tim.
- Não calcula como fiquei contente ao vê-los! Tão contente
que vim logo com eles a direito para aqui. Eu vou já,
Block! -esclareceu o Fuliginoso.
O criado afastou-se sem um sorriso, sem qualquer expressão,
o que levou Ana a inquirir se ele já lá estava há muito
tempo.
- Veio para aqui há um ano - respondeu o rapaz. -Apareceu
cá de surpresa; tanto que, nem eu nem a minha mãe sabíamos
que ele vinha! Mal chegou, vestiu este casaco branco e foi
logo trabalhar para o gabinete do meu padrasto, sem dar uma
palavra. Creio que ele já o esperava, mas a minha mãe ficou
tão surpreendida! Com certeza não lhe tinha dito nada.
- Mas então ela é a tua mãe ou madrasta? - perguntou Ana.
- Não se pode ter ao mesmo tempo um padrasto e uma
madrasta. Ou uma coisa ou outra - replicou o Fuliginoso, um
pouco mal-humorado. - Ela é minha mãe e da Marybelle. Eu e
a Marybelle somos apenas meios irmãos, porque o meu
padrasto é o verdadeiro pai dela.
- Que trapalhada! -comentou Ana, no desejo de terminar.

50

- É verdade, já me esquecia, vamos lá embora!


- disse o Fuliginoso. - Na verdade, o meu padrasto parece
sempre bem disposto mas de repente, fica furioso por
qualquer insignificância.
- Espero que não seremos obrigados a vê-lo muitas vezes -
arriscou a dizer a Ana, pouco satisfeita, perguntando como
era a mãe do Fuliginoso.
- Parece um rato assustado!-elucidou ele.
- Vais gostar dela. É um encanto. Não gosta de viver aqui,
detesta a casa e vive aterrorizada com o meu padrasto. Não
que ela o diga; mas eu sei que é assim.
Até a Marybelle, que até aí não tomara parte na conversa,
acenou com a cabeça acrescentando:
- Eu também não gosto de viver aqui. Ficarei satisfeita
quando for para o colégio, como o Fuliginoso. Tenho pena de
deixar a minha mãezinha.
- Bom, vamos lá! - disse o Fuliginoso, abrindo caminho. E
continuou: - É verdade, o melhor é deixar o Tim fechado no
armário até voltarmos; não vá o Block fazer das suas. Vou
fechar a porta do armário e guardo a chave.
Entristecidos pela pouca sorte do Tim, os pequenos
acompanharam Marybelle e o Fuliginoso ao longo do túnel de
pedra. No fim, encontraram-se ao cimo duma escadaria, larga
e inclinada, que ia ter a um vasto recinto.
À direita ficava uma porta que o Fuliginoso abriu. Depois
entrou e dirigiu-se a alguém exclamando:
- Cá estão eles! Desculpe-me de os ter levado logo para os
meus aposentos. Na verdade, senti-me tão satisfeito!

51

- Continuas incorrigível, pelo que vejo - respondeu o


senhor Lenoir, em tom de gravidade.
As crianças examinaram-no. Sentado num cadeirão, viram um
homem de aspecto aprumado e inteligente, cabelo repuxado,
de olhos azuis como Marybellle. Estava sempre a sorrir, mas
com a boca, não com os olhos.
- Que olhar tão frio!-pensou Ana quando se aproximou para o
cumprimentar. Até aquela mão era fria. O enigmático senhor
sorriu-lhe, deu-lhe umas palmadinhas no ombro e continuou:
- Que menina encantadora! Vai ser uma esplêndida companhia
para Marybelle. Três rapazes para o pequeno e uma menina
para fazer companhia à Marybelle. Que divertido!
Naturalmente ele pensava que a Zé era um rapaz. Tinha
realmente motivos para isso, pois ela vestia, como sempre,
calção e camisola e usava como sabemos cabelo curto e
encaracolado.
Ninguém diria que a Zé era uma menina. Ela própria se
ocultava de o dizer. E foi assim que ela, o David e o Júlio
se dirigiram ao senhor Lenoir para cumprimentá-lo.
Afinal, ainda não tinham reparado na mãe do Fuliginoso.
Ela, porém, lá estava, quase escondida numa poltrona, como
se fosse uma boneca de olhos cinzentos e cabelo arruivado.
Assim despertou a atenção de Ana que não se conteve de
comentar:
- Ah! Tão pequenina!
O senhor Lenoir riu-se. Também não era para admirar porque
ele tinha de se rir por tudo e por nada.
A senhora Lenoir levantou-se então e sorriu.

Que menina encantadora - exclamou ele


Era da altura de Ana e os pés e as mãos tão pequenos que
ela nunca tinha visto coisa semelhante num adulto.
Ana simpatizara com ela. Cumprimentou-a e disse:
- É muito amável ter-nos recebido aqui. Naturalmente sabe
que a nossa casa foi esmagada por uma árvore.
O senhor Lenoir voltou a rir-se. Fez um trejeito e todos
sorriram cortezmente.
- Bom - continuou ele - espero que passem aqui uma boa
temporada. O Pedro e a Marybelle vão mostrar-vos a cidade
antiga e, se prometerem ter cautela, poderão ir ao cinema,
pela estrada que segue para o continente.
- Obrigado - exclamaram todos. Mas, o senhor Lenoir tornou
a rir, daquele modo curioso como só ele sabia rir.
- O seu pai é um homem muito inteligente - prosseguiu,
dirigindo-se ao Júlio, a quem tinha tomado pela Zé. -
Espero que ele venha cá buscá-los e, nessa altura, terei
muito prazer em falar-lhe. Realizámos as mesmas
experiências mas ele conseguiu ir mais longe do que eu.
- Ah!-fez o Júlio, delicadamente.
Nessa ocasião a senhorinha Lenoir principiou a falar num
tom de voz suave:
- O Block servir-vos-á as refeições na sala de estudo da
Marybelle, de modo que escusam de incomodar o meu marido.
Ele não gosta de conversas à hora das refeições.
O senhor Lenoir voltou a rir, olhando decididamente, com
aquele olhar glacial, para todos as crianças, e dirigindo-
se ao Pedro:
- Ficas sabendo que te proíbo mais uma vez, de andares por
aí em aventuras loucas, aos saltos pela muralha do castelo,
sobretudo por estarem cá os teus companheiros. Não quero
que lhes suceda ainda algum desastre. Prometes ou não?
- Eu não faço aventuras nem ando aos saltos, - protestou o
Fuliginoso.
- Não diga tolices - exclamou o senhor Lenoir, mostrando a
ponta do nariz completamente branca. Era mais um sinal da
cólera do senhor Lenoir, que Ana ignorava.
- Eu fui o melhor aluno da aula - protestou o Fuliginoso,
num tom ofendido, deixando contudo perceber que pretendia
fugir ao assunto.
A senhora Lenoir tomou nessa altura a defesa do pequeno
comentando:
- Realmente andou muito bem desta vez. Não te esqueças
disso...
- Basta!-trovejou o senhor Lenoir, fazendo desaparecer por
completo a expressão alegre da face das crianças. -Saiam,
saiam todos!
Júlio, David, Ana e a Zé escaparam-se da sala, seguidos
pela Marybelle e Fuliginoso que, ao fechar a porta, voltou
a fazer caretas, explicando:
- O que ele queria era estragar as nossas férias. Mas aqui
ninguém consegue divertir-se se não se aventurar em
explorações. Vão ver como eu conheço isto bem.
- O que é isso de catacumbas ? - perguntou Ana, meio
impressionada com a palavra.
- São túneis secretos cavados no interior do monte. Ninguém
mais os conhece. Já lá têm ficado perdidas muitas pessoas.
- Porque será que aqui existem tantas passagens secretas ?
- adiantou a Zé.
- É fácil de explicar - disse o Júlio. - Neste local viviam
muitos contrabandistas noutros tempos e com certeza tinham
de esconder-se com o contrabando muitas vezes. De resto,
segundo diz o Fuliginoso, ainda há aqui um contrabandista.
Chama-se Barling, não é verdade?
- Sim - confirmou o outro, acrescentando: - Vamos, que eu
vou mostrar-vos os vossos quartos. Ficam com uma linda
vista para a cidade.
Conduziu-os junto de dois quartos contíguos

55

em frente aos outros dois que ele e Marybelle ocupavam do


outro lado da escadaria. Eram pequenos mas estavam bem
mobilados. Ofereciam realmente - bem dissera o Fuliginoso -
uma vista maravilhosa por cima dos telhados e das torres do
Monte dos Abandonados, incluindo a casa de Barling.
A Zé e a Ana foram ocupar um dos quartos, cabendo o outro
ao Júlio e ao David. Evidentemente, a senhora Lenoir havia
notado que se tratava de duas raparigas e dois rapazes e
não uma rapariga e três rapazes, como pensava o enigmático
senhor Lenoir.
- São uns quartinhos bastante agradáveis com estes
caixilhos escuros. Haverá por aqui também passagens
secretas ? - comentou Ana.
- Não tenhas pressa! - respondeu o Fuliginoso, fazendo
outra careta. - Olha, aqui estão as vossas coisas. Alguém
desfez as malas. Naturalmente foi a Sara. É muito
simpática, muito gorda, tão divertida! Hão-de gostar muito
dela. Não se parece nada com o Block!
A Zé em certa altura começou a desconfiar de que o
Fuliginoso se esquecera do Tim e por isso perguntou:
- Que vai ser do Tim? Quero que ele esteja ao pé de mim;
que não lhe falte nada. Podes crer que preferia ir-me
embora a tornar o Tim infeliz.
- Descansa que ele está bem - respondeu o Fuliginoso. -
Poderá passear por aquele caminho secreto que dá para o meu
quarto e, quanto ao alimento, deixa isso também comigo.
Vamos treiná-lo todas as manhãs naquele caminho secreto que
fica a meio da cidade. Vai ser um sucesso.

56

A Zé porém, não se mostrou muito tranquila.


- Gostava que ele dormisse ao pé de mim; se não deita a
casa abaixo a uivar.
- Vamos tratar de tudo isso - prosseguiu o rapaz, um tanto
duvidoso. - Mas olha que tens de ter muito cuidado para
evitar sarilhos. Já sabes como é o meu padrasto!
Não era preciso dizer mais. Júlio olhou para o Fuliginoso
com curiosidade, perguntando:
- O nome do teu pai também era Lenoir ?
- Sim - respondeu o Fuliginoso - era primo do meu padrasto
e escuro como todos os Lenoir. O meu padrasto - que é louro
- é uma excepção. Até dizem para aí que os Lenoir louros
não são nada bons - mas, cautela, não digas nada disto ao
meu padrasto!
- Nem pensar nisso! - exclamou a Zé. - Julgo-o até capaz de
nos mandar cortar a cabeça! Vamos, vamos procurar o Tim!

CAP. VII
O MISTÉRIO DO POÇO ESCONDIDO

Foi grande a alegria dos pequenos ao saberem que podiam


tomar as refeições, a sós, na velha sala de estudo. Todos
queriam evitar a presença do senhor Lenoir, lamentando que
a Marybelle tivesse um pai tão irascível.
Não tardou a hora de recolher, no Monte dos
Contrabandistas. Mas a Zé só ficou tranquila quando viu o
Tim são e salvo, embora um tanto intrigado. O pior contudo,
ainda era conseguir levá-lo, à noite, para o quarto dela.
Era esta, talvez, a mais difícil manobra. Block tinha uma
arte especial de aparecer instantaneamente, sem ruído, com
um faro capaz de assinalar até a presença dum cão - segundo
a Zé.
Foi muito estranha a vida do Tim durante os dias que se
seguiram! Enquanto os pequenos permaneciam na habitação,
ele tinha de ficar naquela passagem secreta, errando,
intrigado e só, sempre alerta para o menor ruído daquele
sinal inventado pelo Fuliginoso, que o obrigava a recolher
ao armário imediatamente.
Quanto à alimentação, não havia que ter apreensões. Para
isso lá estava o Fuliginoso que, com grande espanto da
Sara, desviava misteriosamente da cozinha ossos e outro
comer ao seu alcance.
Todos os dias de manhã, o Tim era treinado. Da primeira vez
foi realmente excitante!
Efectivamente a Zé lembrara ao Fuliginoso

58

a sua promessa de passear o Tim diariamente, acrescentando:


- Que vai ser deste desgraçado? Por certo que não vamos
levá-lo à presença do vosso pai!
- Já te disse, minha parva, que conheço um caminho que fica
a meio do monte - retorquiu-lhe o Fuliginoso. Lá estaremos
todos em segurança e, mesmo que o Block ou qualquer outra
pessoa nos encontre, julgará que se trata dum cão vadio.
- Bom, nesse caso, mostra-nos o caminho - disse a Zé, com
impaciência.
Estavam todos reunidos no quarto do Fuliginoso, com o Tim
deitado sobre o colchão, ao lado da Zé. Era um local onde
se consideravam seguros, devido ao "besouro" que o
Fuliginoso inventara para dar alarme, quando alguém abrisse
a porta ao topo do corredor.
- Temos de seguir para o quarto da Marybelle. Mas já vos
previno de que apanhais um grande choque - disse ele.
Espreitou pela porta. A que ficava ao fim do corredor
estava fechada.
- Marybelle - preveniu ele - vai em bicos de pés ver se vem
aí alguém a subir as escadas. Se não vier ninguém raspamo-
nos imediatamente para o teu quarto.
Marybelle deslizou até junto da porta ao fim do corredor.
Abriu-a e imediatamente se ouviu o tal "besouro" no quarto
do Fuliginoso, fazendo o Tim ladrar furiosamente. Marybelle
espreitou, observando a escadaria e fez sinal negativo.
Precipitaram-se de chofre para o quarto de Marybelle que,
em seguida, veio reunir-se-lhes. Graciosa, reservada e
tímida, mais parecia um
59

ratito amedrontado, quando se juntou aos outros. Era a Ana


quem mais gostava dela, chegando a ralhar-lhe por ser tão
reservada.
Marybelle, porém, era muito sensível. Logo que lhe
ralhavam, principiava a chorar e fugia. O irmão afirmava
que ela havia de modificar-se quando fosse para o colégio,
sugerindo até que eram aquele casarão e o isolamento em que
vivia, as verdadeiras causas dessa timidez.
Encerraram-se no quartinho dela e fecharam a porta.
- E para evitar a espionagem do Block - disse ele numa
careta, fechando a porta à chave.
Posto isto, principiou a desarredar os móveis que estavam
junto das paredes. Os restantes começaram a auxiliá-lo,
meio surpreendidos.
- Que vem a ser essa ideia de afastar os móveis ? -
inquiriu o David, ainda às voltas com uma cómoda enorme.
- É para retirar este tapete grande. Colocaram-no aqui para
ocultar o alçapão. Pelo menos é a minha opinião - elucidou
o azougado rapaz.
Agora, com os móveis afastados, já era fácil arrancar o
tapete. Por baixo deste, apareceu outra cobertura, que se
tornou forçoso retirar também.
Foi nessa altura que eles deram com a tampa do alçapão,
rente ao sobrado, apresentando uma pega em forma de argola.
A excitação aumentou. Ali estava, afinal, outra passagem
secreta e, quem sabe, quantas mais!
O Fuliginoso puxou pela argola e levantou a pesada tampa
com muita facilidade. Todos olharam de surpresa, ficando
desiludidos.
Escuridão impenetrável!
O cesto foi descendo pouco a pouco

61

- Tem degraus ? - perguntou o Júlio afastando Ana, não


fosse ela cair.
- Não - disse o Fuliginoso, lançando mão duma lanterna que
trouxera consigo. - Olha!
Acendeu a lanterna e, num relance, os pequenos
compreenderam tudo. O alçapão deixava ver um poço
extraordinariamente fundo!
- Que grande profundidade! Para que teria servido isto ? -
perguntou o Júlio admirado.
- Naturalmente, era para ocultar as pessoas ou mantê-las
sob prisão - disse o Fuliginoso.
- É um esconderijo engraçado, não é ? - Imagina o barulho
que fazias, se caísses lá em baixo.
- Mas, como poderemos nós descer a tão grande profundidade
com o Tim ? - disse a Zé.
- Não tenho desejo nenhum de me aventurar.
O Fuliginoso começou a rir.
- Nem é preciso. Olha para aqui!-disse. Em seguida abriu um
armário, alcançou uma prateleira larga e puxou por uma
escada de corda, delgada mas resistente.
- Aqui tens! Podem descer por aqui.
- Mas não pode o Tim - exclamou a Zé, imediatamente. - Como
queres que ele suba e desça por esta corda?
- O quê? Não pode? Mas, então, se ele é tão esperto...
Sempre acreditei que o Tim fosse capaz duma coisa destas.
- Mas isso é um loucura - retorquiu a Zé com decisão.
- Esperem! Esperem! - disse a Marybelle de repente, já
muito corada por interromper a conversa. - Podemos tirar o
cesto da roupa e meter

62

o Tim lá dentro. Atamos-lhe uma corda e assim já pode


descer e subir.
Os outros olharam para ela.
- É uma ideia genial - exclamou o Júlio, entusiasmado.
- Óptimo, Marybelle! Com o cesto tudo se arranjava, mas
tinha de ser grande.
- Temos um, enorme, na cozinha que serve só quando cá temos
muita gente. Podíamos ir buscá-lo.
- Sim, sim - acrescentou o Fuliginoso. - Vou já tratar
disso.
- Mas então que desculpa darás ? - objectou o Júlio.
Entretanto já o Fuliginoso tinha desaparecido
precipitadamente, como de costume.
Júlio tornou a fechar a porta à chave para evitar que algum
estranho viesse dar com aquilo tudo em desalinho.
Em menos de dois minutos o Fuliginoso apareceu com um cesto
grande da roupa. Júlio abriu a porta, exclamando:
- Formidável! Como arranjaste?
- Não te incomodes! Eles não sabem disto. De resto, se
houver azar, o cesto volta imediatamente ao seu lugar.
Foram desenrolando a escada de corda ao longo do alçapão,
até atingir o fundo do poço. Depois foram buscar o Tim.
Este apareceu, mostrando satisfação por se encontrar outra
vez entre os seus amigos.
- Meu querido Tim - disse a Zé - deixa lá, que daqui a
pouco, já vamos reunir-nos todos.
- Primeiro desço eu - disse o Fuliginoso.
- Em seguida, vão descendo o Tim. Temos aqui esta corda. É
fina mas resistente. Amarra-se o cesto e prende-se a outra
ponta a um pé da cama, de modo que, quando voltarmos para
cima, já podemos içá-lo sem dificuldade.
Colocaram o Tim dentro do cesto. Foi grande a surpresa do
animal. A Zé apressou-se a tranquilizá-lo:
- Silêncio, Tim! Não te preocupes! Deixa lá que já vais dar
um lindo passeio.
Ao ouvir a palavra passeio, Tim ficou satisfeito. O que.
ele queria, realmente era passear ao sol e ao ar livre.
No entanto, embora desconcertado com aqueles procedimentos
a seu respeito, acabou por conformar-se com os conselhos da
sua dona.
- Na verdade é um cão extraordinário. Atenção, o Pedro vai
descer e temos de estar prontos para largar o Tim - disse a
Marybelle.
O Fuliginoso sumiu-se pelo buraco, levando a lanterna nos
dentes. Foi uma descida longa. Quando alcançou o fundo, fez
sinal com a lanterna.
Lá do fundo chegou a voz dele, como se viesse de muito
longe.
- Podem descer o Tim!
Arrastaram o cesto até à beira do alçapão. Depois, ele foi
descendo, oscilando, batendo aqui e acolá. Como era de
esperar, o Tim ladrou por não gostar da brincadeira.
Júlio e David tomaram conta da corda, descendo o Tim o mais
suavemente possível. Ouviu-se um ligeiro baque, quando
chegou ao fim. Fuliginoso desatou a corda e Tim saiu,
ladrando, aos saltos, mal se ouvindo, porém.
- Agora desçam, um por um, - ordenou o rapaz, agitando a
lanterna. - Fechaste a porta à chave, Júlio?
- Fechei, sim. Cuidado com a Ana. Vai descer já - respondeu
o Júlio.
Ana começou a descer, um pouco amedrontada ao princípio
mas, à medida que se habituava a enfiar os pés na escada de
corda, começou a serenar.
Os outros seguiram-na e em breve se encontraram reunidos
nas profundezas daquele poço enorme.
Olharam em redor, cheios de curiosidade. Notaram um cheiro
a bafio, sem dúvida proveniente daquelas paredes musgosas.
O Fuliginoso agitou outra vez a lanterna, deixando ver
várias entradas.
- Onde irão dar ? - perguntou Júlio, intrigado.
- Já uma vez te disse que este monte estava cheio de túneis
- respondeu o audacioso explorador. - Este poço foi cavado
no interior do monte, com ligação para muitos túneis que
vão dar às catacumbas, que são aos milhares. Contudo,
ninguém as explora com receio de se perder; que não seria o
primeiro nem o segundo caso. Para mais, desapareceu o único
mapa antigo destas regiões.
- É horrível! Eu é que não gostava de ficar aqui - disse
Ana, pouco satisfeita.
- Um belo local, para esconder contrabando. Ninguém o
descobriria - argumentou o David.
- Creio que os antigos contrabandistas conheciam isto palmo
a palmo - disse por sua vez o Fuliginoso.
"Toca a andar! - prosseguiu ele. - Vamos seguir pelo túnel
que dá para fora do monte. Temos de trepar um pouco, quando
chegarmos lá fora. Creio que não se importam.
- Nada. Somos todos bons alpinistas. Mas, diz-me cá: tens a
certeza de que não ficaremos aqui perdidos para sempre ? -
arriscou o Júlio.
- Mas com certeza que sei o caminho! Vamos embora!-
tranquilizou-os o Fuliginoso. E, brandindo, agitando a
lanterna, sempre à frente, iniciou a marcha através daquele
escuro e apertado caminho.

CAP. VIII
UM PASSEIO FASCINANTE

O túnel apresentava-se ligeiramente inclinado em rampa,


exalando um cheiro nauseabundo. Em certos pontos, havia
indício de poços, como aquele por onde tinham descido. O
Fuliginoso agitava a lanterna e elucidava:
- Olhem! Este vai dar à casa de Barling. Não se admirem! A
maioria das casas aqui construídas, têm ligação com os
poços, como a nossa. E alguns estão realmente bem
escondidos!
- Ali em frente há luz! - disse Ana, de repente. - Não, não
gosto deste lugar!
De facto, tratava-se da luz do dia, que penetrava através
duma caverna talhada na encosta do monte. Nesse momento, o
grupo reuniu-se naquele ponto para observar o que se
passava.
Encontravam-se fora do monte e da cidade, na vertente que
descia sobre o pântano. O Fuliginoso trepou por uma rocha,
colocando a lanterna no chão.
- Temos de chegar além! -disse, apontando. -Assim
alcançaremos um local onde a muralha da cidade é
nitidamente baixa, de maneira que podemos subir até lá.
Cuidado com o Tim, não vá ele meter-se no pântano!
O pântano, em baixo, oferecia um aspecto medonho. A Zé
estava muito preocupada com o Tim, mas sem grandes razões
porque o caminho, ainda que rochoso, e muito íngreme, era
facilmente acessível.
O aspecto do pântano era desolador.
Foram subindo, saltando de vez em quando, de rocha em
rocha. O caminho ia dar à muralha da cidade, ali bastante
baixa, como o Fuliginoso dissera. O azougade rapaz trepou
ao cimo da muralha, com tanta desenvoltura que parecia um
gato!
- Não era para admirar que lhe tivessem posto aquele nome
lá na escola - disse o David para o Júlio. - Lembras-te
dquela vez em que trepou ao telhado da escola, no outro
ano? Estava tudo à espera de que ele caísse mas afinal
sempre chegou a atar a bandeira.
- Vamos embora!-comandou o Fuliginoso. - Há visibilidade na
costa. Podemos iniciar já a escalada, que não anda ninguém
por estes sítios.
Não tardou que se encontrassem todos no cimo da muralha,
incluindo o Tim. Iniciaram então o passeio contornando o
monte na descida. Nesse momento começou a dissipar-se a
névoa, ao mesmo tempo que o sol rompia alegremente.
Encontravam-se diante duma cidade muito antiga. Algumas
habitações pareciam estar em ruína mas das chaminés saía
fumo, sinal de estarem habitadas. As lojas, de tipo
invulgar, apresentavam janelas altas e estreitas, encimadas
por goteiras.
Estavam admirando tão singulares arquitecturas, quando o
Fuliginoso avisou, sobressaltado, em voz baixa:
- Aí vem o Block! Não façam caso do Tim! Se ele começar a
brincar com a gente, fazemos de conta que é um cão vadio.
Fingiram não ver o Block mostrando-se muito interessados
pela montra duma loja. Então o Tim, sentindo-se desprezado,
correu para a Zé, saltitando como que a pedir que se
lembrassem dele.
- Sai daqui, cão!-exclamou o Fuliginoso, enxotando o Tim,
com muita surpresa para este. - Vai-te embora, não ouves? -
Andas perdido?
Tim, pensando que se tratava de outra brincadeira, começou
a ladrar com animação, saltando de contentamento ao redor
da Zé e do Fuliginoso.
- Vai-te embora, cão!-repetiu este, enxotando-o novamente.
Nesse momento, Block chegou ao pé deles, inexpressivo como
sempre. Apenas disse, naquele tom de voz monótona:
- Esse cão incomoda-vos ? Eu já o enxoto com uma pedra...
- Nem pense nisso - disse a Zé imediatamente.
69

- Porque não se decide a ir para casa? Pela minha parte o


cão pode estar aqui. Gosto bastante dele.
- O Block é surdo, minha tonta - apressou-se o Fuliginoso a
dizer. - É inútil falar-lhe.
E, com grande horror da Zé, Block pegou numa grande pedra,
fazendo menção de a atirar ao Tim.
Não teve tempo. Com um violento empurrão, segurando-lhe o
braço, a rapariga obrigou-o a largar a pedra.
- Quem lhe deu ordem para atirar pedras a este cão ? -
vociferou ela desesperada. - Atreva-se, que eu chamo a
polícia!
- Que vem a ser isto, Pedro ? Então, que vem a ser isto?
Os pequenos voltaram-se e viram na sua frente um homem
alto, de cabelo comprido. Era, na opinião de Ana, um homem
de configuração excepcional, com os pés e as pernas, muito
delgados e compridos.
- É o sr. Barling! Desculpe, não esperava!
- disse o Fuliginoso, cortezmente. - Não se incomode. Este
cão seguiu-nos e o Block quer atirar-lhe uma pedra. Ora a
Zé gosta muito de cães e por isso zangou-se com ele.
- Está bem. Mas, quem são esses garotos?
- perguntou Barling, examinando-os com aqueles olhos
oblíquos.
- Vieram para aqui passar uns dias porque a casa deles
sofreu um acidente. Quero dizer a casa do pai da Zé, em
Kirrin.
- Em Kirrin ? - disse Barling, parecendo lembrar-se dalguém.

70

- Creio que é onde vive aquele cientista muito amigo do


senhor Lenoir?
- Sim, é meu pai. Conhece-o ? - inquiriu a Zé.
- Já ouvi falar dele e das suas experiências famosas.
Suponho que o senhor Lenoir o conhece muito bem...
- Muito bem, não me parece - disse a pequena.
- Creio que se correspondem e, então, o meu pai telefonou-
lhe, a pedir que nos deixasse ficar aqui enquanto arranjam
a casa.
- E com certeza o senhor Lenoir ficou encantado. O teu pai
é na verdade uma pessoa admirável - acentuou o senhor
Barling, dirigindo-se ao Fuliginoso.
Os pequenos repararam na voz enfastiada com que ele se
exprimia, percebendo que o senhor Barling detestava o
Lenoir. Neste aspecto estavam de acordo com a agravante de
eles não simpatizarem também com este senhor Barling.
Tim viu outro cão e seguiu-o. Block levando um cesto,
desapareceu ao longo duma rua íngreme. Os pequenos
despediram-se de Barling, desejando não voltar a falar-lhe.
Foram logo em busca do Tim, dando expansão aos seus
sentimentos, assim que Barling se afastou.
- Felizmente conseguimos desembarçar-nos de Block!
Realmente ele é um animal mas tu, Zé, por pouco estragavas
tudo.
- Não quero saber disso para nada, de resto, eu tinha de
defender o Tim. Olha que já é ter pouca sorte, encontrar o
Block logo ao primeiro passeio - replicou a Zé, muito
senhora de si.
- É provável que não tornemos a encontrá-lo quando sairmos
com o Tim. Mas, no caso de o

71

encontrarmos, defender-nos-emos dizendo que o bicho não nos


pertence, que vem ter connosco sempre que nos vê. Não é
verdade ? - disse o Fuliginoso, com ar de quem estava muito
seguro das suas convicções.
Ainda tiveram ocasião de apreciar o esplêndido passeio.
Entraram num café muito antigo e regalaram-se a tomar taças
bem quentes de café com leite e compota. Tim saboreou
também uns bons bocados. Nessa ocasião a Zé lembrou-se de
lhe ir comprar carne, tendo o cuidado de escolher um talho
onde não conhecessem a senhora Lenoir. Compreende-se porquê.
Regressaram pelo mesmo caminho. Treparam pelos penhascos
depois encaminharam-se para a entrada do túnel, fazendo o
percurso subterrâneo até alcançarem o poço. Lá estava a
escada de corda, pronta para nova aventura. O Júlio e o
David subiram primeiro, enquanto a Zé, para grande surpresa
do Tim, o metia novamente no cesto. Amarrado solidamente,
lá foi aos tombos contra as paredes, ganindo, até que os
dois rapazes, já fatigados, pegaram no cesto e foram para o
quarto de Marybelle delatá-lo.
Faltavam dez minutos para a hora do jantar.
- Não há tempo a perder. Vamos fechar o alçapão, compor o
tapete e lavar as mãos - disse o Fuliginoso. E prosseguiu:
- Vou meter o Tim na passagem secreta, por trás do armário
do meu quarto. De caminho levo também a carne que tu
compraste. Poderá comer quando quiser. Onde está isso,
afinal? - perguntou à Zé.
Como resposta, ela quis saber, pela terceira ou quarta vez,
se ele não se esquecera de pôr lá um cobertor de lã para o
Tim dormir, bem como uma tigela com água.
- Já te disse que sim, escusas de tornar a perguntar -
respondeu-lhe o Fuliginoso, continuando:
"Arrumam-se só as cadeiras, o resto dos móveis ficam assim.
Se alguém nos perguntar dizemos que é por causa dum jogo
que fazemos em cima do tapete. Pois não! Era o que faltava!
Andar sempre a desarrumar tudo, de cada vez que levamos o
Tim a passear.
Chegada a hora do jantar, lá estava o Block e a Sara. Os
pequenos estavam com um apetite devorador, embora tivessem
provado umas boas guloseimas durante o agitado passeio de
que falámos. Por isso receberam com agrado aquela sopa
reconfortante que a Sara e o Block lhes serviram.
- Creio que conseguiram livrar-se daquele cão maçador -
disse Block, em tom monótono, deitando um olhar indignado à
Zé, por se lembrar da partida.
O Fuliginoso disse que sim com a cabeça. De nada serviria
falar porque o Block nada ouvia. Entretanto, Sara
preparava-se para distribuir o resto da comida que era boa
e abundante, para maior alegria dos insaciáveis visitantes.
Marybelle era a única que não participava desse entusiasmo,
por não ter grande apetite, apesar do passeio. A Zé, por
seu lado, ocupava-se também, a desviar e esconder pedaços
de carne com que queria mimosear o Tim.
Durante dois ou três dias tudo se passou normalmente.
De manhã o Tim dava o seu passeio. E não

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tardou que o grupo se sentisse perfeitamente apto para


descer e subir a escada de corda.
À tarde, instalavam-se no quarto do Fuliginoso ou no da
Marybelle, lendo ou brincando. O Tim fazia-lhes companhia,
sem receio de qualquer intruso. Lá estava o alarme para os
prevenir.
À noite a cena tornava-se divertida. Era a ocasião de
passarem o Tim para o quarto da Zé, às ocultas. Uma
operação arriscada, feita durante o jantar do senhor Lenoir
e sua esposa enquanto a Sara e o Block os serviam.
Felizmente, os pequenos jantavam primeiro, uma hora antes
dos senhores. Não podia ser melhor.
O Tim gostava daquelas manobras. À frente da Zé e do
Fuliginoso, em perfeito silêncio, tinha o cuidado de parar,
momento a momento, sumindo-se no quarto da sua dona, logo
que ali chegava. Metia-se debaixo da cama e só saía de lá
quando a Zé se ia deitar. Então saltava para cima da cama e
instalava-se comodamente aos pés dela, com a porta do
quarto fechada à chave. E, dia após dia o receio foi
desaparecendo porque, nem à Sara nem à senhora Lenoir
passava pela ideia a presença dum cão naqueles aposentos.
De manhã, a retirada do Tim constituía tarefa menos fácil,
que tinha de ser levada a cabo, antes de haver gente a pé.
A Zé acordava sempre à hora que desejava e, por isso, todas
as manhãs, por volta das seis e meia, se esgueirava com o
Tim. Dirigia-se ao quarto do Fuliginoso mas este estava já
acordado pelo barulho que a porta fazia ao fundo do
corredor.
- Creio que se têm divertido muito!-dizia o senhor Lenoir
quando encontrava os pequenos no salão ou nas escadas.
Respondiam-lhe sempre cortezmente mostrando-se muito
reconhecidos.
- Afinal, tudo se passa com a maior calma possível -
observou, meio desapontado, o Júlio.
E foi então que as surpresas começaram a surgir, tantas que
pareciam não mais acabar.

CAP. IX
O SEGREDO DA TORRE

Uma noite, Júlio foi repentinamente despertado por alguém


que abrira a porta do seu quarto.
- Quem está aí ? - perguntou.
- Sou eu - respondeu-lhe o Fuliginoso baixinho. - Anda ver
uma coisa!
Júlio acordou o David. Vestiram-se à pressa. Seguindo o
Fuliginoso, os dois irmãos entraram num pequeno e exótico
compartimento, situado na ala esquerda do edifício.
Havia ali de tudo: caixas, malas, brinquedos antigos,
armários com roupas velhas, vasilhas quebradas e outros
objectos sem valor.
- Atenção! Reparem!-segredou o Fuliginoso, conduzindo-os à
janela, donde se via a torre do edifício, em virtude da
posição em que ficava situada.
Olharam. Na verdade, começaram a surgir as swpresas. Com
grande espanto do Júlio, alguém se encontrava na torre a
fazer sinais, com uma luz que, ora acendia ora apagava, num
certo ritmo.
- Quem será? - articulou o Fuliginoso.
- O teu padrasto?-arriscou o Júlio.
- Nem penses nisso!-respondeu o outro. ,- Creio que ainda
há pouco estava a ressonar no quarto. Podíamos ir ver se
ele está realmente
- na cama.
- Bem, bem, vê lá em que te metes!-pre-
76

veniu o Júlio, agora pouco desejoso de mais aventuras em


casa estranha.
No entanto, encaminharam-se para o quarto do senhor Lenoir.
Ficaram convencidos. Efectivamente, ouvia-se o ressonar bem
conhecido do Lenoir.
- Talvez seja o Block. Ou muito me engano ou ele tem
segredos. Aposto que é o Block - garantiu o David.
- Não seria melhor ir ver se ainda está deitado ? -
bichanou o Fuliginoso. E prosseguiu: - Vamos. Se for o
Block, posso garantir-vos que se meteu nisto sem o meu
padrasto o saber.
- Ora, o teu padrasto podia tê-lo prevenido - disse o
Júlio, que também desconfiava do senhor Lenoir.
Encaminharam-se para os compartimentos onde dormiam os
criados.
Sara dormia num dos quartos com a ajudante de cozinheira.
Block dormia noutro quarto.
O Fuliginoso notou que a porta do quarto estava aberta.
Empurrou-a lentamente, até conseguir espaço suficiente para
espreitar. O luar inundava o aposento, perto da janela do
qual, se encontrava a cama do criado. Através daquela
iluminação furtiva o pequeno vislumbrou a sombra volumosa
do Block, destacando-se a mancha negra da cama.
Em vão apurou o ouvido, esperando ouvir-lhe a respiração,
Nem o menor ruído.
Afastou-se e puxou os outros para a escada, suavemente. Foi
Júlio quem, primeiro, quebrou o silêncio, segredando:
- Tens a certeza de que ele está deitado?

77

- Tenho. Não era Block - garanto-te - quem fazia os sinais


na torre. Mas quem será? Confesso-te que a história começa
a intrigar-me. Por certo que não é a mãe; nem a Sara; nem a
criadita. Andará por aqui algum desconhecido?
- Não pode ser, - redarguiu-lhe o Júlio um tanto
impressionado. Para mais - continuou - parece-me que o
melhor ainda era subir à torre a ver se descobrimos alguma
coisa. Naturalmente teremos de avisar o teu padrasto.
- Não. Ainda não. Quero, primeiro, certificar-me bem -
disse o Fuliginoso obstinadamente. - Vamos à torre, mas é
precisa muita cautela. Sobe-se uma escada de caracol,
bastante estreita. No entanto, não há que ter receio. Se
aparecer alguém, há muitos esconderijos para nos ocultarmos.
O que é que existe na torre ? - perguntou baixinho o David,
enquanto caminhavam em silêncio e na escuridão, apenas
recebendo, uma vez por outra, a luz furtiva do luar que se
escapava aqui e acolá por entre as cortinas corridas.
- Nada de importância. Uma cadeira ou duas, uma mesa e uma
estante. Vamos para lá nos dias muito quentes do Verão
tomar o fresco e gozar o lindo panorama - disse o
Fuliginoso.
Atingiram um pequeno patamar. Dali partia a escada de
caracol, que ia dar à torre. Puseram-se a observar em
redor. O luar caía sobre a escadaria, filtrado por uma
pequenina janela da parede, que mais parecia uma fenda.
- É melhor não subirmos todos - disse o Fuliginoso. Seria
muito difícil fugirmos, no caso de a pessoa que está lá em
cima se lembrar de descer repentinamente. Portanto, fiquem
vocês

78

aqui à espera, enquanto eu vou lá acima. Vamos a ver se


consigo descobrir qualquer coisa pelas frestas da porta ou
pelo buraco da fechadura.
Galgou surrateiramente, escada acima, desaparecendo logo na
volta da primeira espiral. Júlio e David ficaram em baixo,
esperando, protegidos pelas sombras. Por sorte, uma das
janelas tinha um cortinado imponente. Ocultaram-se,
envolvendo-se também no tecido para não arrefecerem.
O Fuliginoso havia alcançado o cimo da escada. O quarto da
torre tinha uma porta sólida, apainelada e bem travejada.
Para grande arrelia do rapaz, achava-se fechada, sendo
inútil também tentar espreitar.
Não havia fresta e o orifício da fechadura fora tapado. Só
lhe restava aplicar o ouvido.
Ouviu uma série de pequenos ruídos: clique, clique, clique,
clique, clique. Nada mais.
- É seguramente o ruído da lanterna com que estão fazendo
os sinais - pensou o rapaz. - Porque será que continuam a
fazer estes sinais, utilizando a nossa torre como se fosse
um posto de sinalização? Hei-de descobri-los!
De repente deixou de ouvir: clique... clique... Alguém
caminhava agora, ecoando os seus passos no empedrado da
torre. A porta abriu-se!
Num relance, o pequeno e audacioso espião compreendeu que
não dispunha já de tempo para se precipitar, escadas
abaixo. O mais que podia fazer era ocultar-se num daqueles
nichos a esperar que esse estranho não o descobrisse à sua
passagem.
Por felicidade nesse momento, a lua ocultara-se por trás
das nuvens, envolvendo assim o atrevido rapaz na mais
profunda escuridão. O desconhecido
Ocultaram-se por trás das cortinas, supondo que era o
misterioso sinalizador

80

aproximou-se e, ao descer a escada, roçou ainda no braço do


Fuliginoso.
Este, quase ficou sem pinga de sangue, esperando que uma
força misteriosa o arrancasse do esconderijo.
A misteriosa personagem não chegou, porém, a notar-lhe a
presença seguindo, escadas abaixo, quase sem ruído.
O Fuliginoso ainda pensou em persegui-lo. Não o fez, porém,
receando que o luar revelasse ao desconhecido a sua
presença. Assim, permaneceu no esconderijo, crente de que o
Júlio e o David estivessem bem resguardados; não fossem
eles pensar que aqueles passos eram dele.
Efectivamente, o Júlio e o David ouviram aqueles passos e
julgaram, ao princípio, que era o Fuliginoso. Não ouvindo,
no entanto, o menor sussuro, recolheram-se atrás das
cortinas, pensando na misteriosa personagem.
- O melhor era segui-lo - segredou o Júlio ao David.-
Sigamo-lo em silêncio!
O Júlio, embaraçado entre os espessos cortinados, não
conseguiu firmar-se bem no caminho. E o David, esse
deslizou rápida mas suavemente no encalce daquele intruso.
A lua rompera de novo, o que permitira ao David surpreender
ainda algumas imagens fugidias do desconhecido. Para onde
iria ele ?
Perseguiu-o até ao corredor. Depois, atravessou outro
terraço e chegou à escada de serviço, que conduzia aos
aposentos da criadagem. Iria para ali ?
Com enorme espanto, notou que o homem penetrava
silenciosamente no quarto de Block. Chegou-se à porta que
tinha ficado um pouco aberta.
Seguiu pelo patamar, até ao corredor. Não havia luz, a não
ser do luar. Nem uma palavra. Apenas um leve estalido que
bem poderia vir da cama.
David adiantou-se, cheio de curiosidade, na esperança de
ver algum homem acordar Block. Quem sabe se iria, até,
saltar pela janela!
Ficou surpreendido no limiar do aposento, ao verificar que
ninguém, excepto Block, se encontrava ali. Auxiliado pela
claridade da lua, que realçara outra vez, pôde ver
nitidamente o aposento vazio. Block suspirou e voltou-se na
cama. - É espantoso!-pensou David, intrigado. Como é
possível que um homem entre num quarto e desapareça
completamente, sem o mínimo ruído ? Para onde terá ido?
Voltou para trás à procura dos companheiros. Nessa altura
já o Fuliginoso havia descido a escada de caracol e
encontrado o Júlio, que o pusera ao corrente da aventura em
que o David se metera.
Foram procurá-lo. A escuridão fez com que esbarrassem uns
nos outros, deixando o Júlio apavorado.
- Bolas!-exclamou.-Sempre me pregaste um susto! Então,
chegaste a ver quem era?
David pô-los ao corrente das suas tentativas falhadas,
acentuando:
- Mal entrou no quarto do Block, desapareceu imediatamente.
Haverá alguma passagem secreta no quarto do criado?
- Nenhuma! - disse o Fuliginoso. -Esta parte do edifício é
muito mais recente que o resto da habitação. Não tem
segredos. Realmente, não posso calcular o que terá sucedido
ao homem. Muito estranho tudo isto. Que motivos o trarão
aqui e para onde irá este indivíduo misterioso?
- Temos de esclarecer este mistério! Mas, diz-me cá, como
descobriste estes sinais ? - perguntou o Júlio ao
Fuliginoso.
- Isto aconteceu há tempos e foi por simples acaso -
respondeu-lhe o outro. - Uma noite em que não conseguia
dormir, dirigi-me àquele local, em busca dum livro antigo,
que me lembrava de ter visto por ali. E, de repente, olhei
para a torre e notei os sinais luminosos.
- Curioso!-disse o David.
- Pois bem!-prosseguiu o endiabrado rapaz - lá voltei mais
algumas vezes à espera de ver novos sinais e consegui, por
fim. Da primeira vez fazia um luar esplêndido; da segunda
vez, também.

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Portanto, na próxima vez em que haja luar, volto lá a ver


se descubro os mesmo sinais. E não faltou!
- Para onde deita aquela janela onde nós vimos os sinais ?
Para o mar ou para terra ? - perguntou o Júlio, bastante
pensativo.
- Deita para o mar. Há alguém no mar que recebe aqueles
sinais. Só Deus saberá quem é - elucidou o Lenoir Júnior.
- Naturalmente são contrabandistas. Mas, com certeza, não é
assunto com o teu padrasto. Seria melhor irmos à torre ver
se fazemos alguma descoberta.
CAP. X
TIM DÁ O ALARME

No dia seguinte foi grande o espanto das raparigas quando


souberam da aventura da última noite.
- É curioso - disse Ana, bastante admirada - quem será que
vem para aqui fazer sinais? O mais estranho é ter entrado
no quarto do Block, estando ele deitado.
- Porque não nos chamaram? - perguntou a Zé.
- Porque não tivemos tempo. Para mais, o Tim era muito
capaz de atirar-se ao desconhecido - retorquiu o David.
- Com certeza o homem esteve a fazer sinais aos
contrabandistas - disse o Júlio pensativamente,
acrescentando: - Naturalmente, vieram de França num barco,
aproximaram-se o mais possível do pântano, esperaram pelo
aviso para saberem se havia visibilidade e depois tomaram o
caminho já conhecido através do pântano. Cada homem trazia,
portanto, um archote para não se afastar dos outros nem
cair no lodaçal. Havia, seguramente, alguém à espera deles,
nas margens do pântano, pronto a receber as mercadorias.
- Mas, quem será ? - disse o David. - O senhor Barling não
é, com certeza, embora tenha fama de contrabandista, porque
os sinais eram daqui e não da casa dele.
- Pois bem - concluiu a Zé - veremos se

85

conseguimos descobrir esta marosca. Não há dúvida que se


trata dum mistério, quer o saiba teu padrasto, ou não!
Voltaram a discutir o caso à hora do pequeno almoço. Block
entrou na sala sem que Ana desse por isso.
- Que espécie de contrabando faz o senhor Barling ? -
perguntou ela, inadvertidamente.
Como resposta recebeu um forte pontapé no tornozelo que a
deixou desesperada.
- Que vem a ser isto...? - articulou ainda, recebendo em
seguida pontapé mais violento. Só então deu pelo Block.
- Mas, se ele é completamente surdo! - justificou ela.
Block começou a arrumar as coisas, como sempre indiferente.
O Fuliginoso notou que ela estava bastante perturbada,
continuando a friccionar o tornozelo magoado. Quando Blòck
saiu, ela não se conteve que não lhe dissesse:
- Que ideia foi essa de me aplicares um pontapé assim?
Porque não havemos de falar, à vontade, se ele é surdo? ( -
É isso que dizem, realmente - retorquiu o outro. - Por mim
não o nego. No entanto, sempre te digo que lhe notei uma
expressão irónica quando me perguntaste pelo contrabando do
senhor Barling. Quem sabe se ele ouviu o que tu disseste?
- Isso julgas tu! - disse Ana, ainda a esfregar o
tornozelo. - Mas seja como for, previno-te de que não
voltas a magoar-me desta maneira. Bastava tocares-me com o
pé. Se não quiserem que se fale à frente do Block, muito
bem; mas garanto-te que ele é surdo que nem uma porta!
- A Ana tem razão. Ontem à mesa deixei cair um prato, que
se fez em pedaços e ele nem sequer se voltou - disse o
David.
- Seja como for, não confio no Block. Não sei se sabem que
há surdos capazes de perceberem os movimentos dos lábios -
redarguiu o Fuliginoso.
Saíram com o Tim para o passeio do costume. Tudo seguia
agora com a maior facilidade.
Nessa manhã, tornaram a encontrar o Block. Este voltou a
examinar o cão, muito intrigado ao ver que era o mesmo.
- Aí está outra vez o Block!-disse Júlio em voz baixa. -
Não enxotem o Tim. Faz-se de conta que é um cão perdido que
vem juntar-se-nos todas as manhãs.
Deixaram o Tim andar com eles e quando o Block apareceu,
fizeram-lhe sinal para seguir. Ele, porém, não se conteve e
observou:
- Parece que esse cão gosta muito dos meninos.
- É verdade. Agora faz-nos companhia todas as manhãs. Julga
que gostamos dele. É engraçado, não é ? - disse o Júlio.
Block contemplou o Tim, que começou a ladrar.
- Tenham cautela, não o levem para casa se não o senhor
manda-o matar - preveniu o criado. Júlio, vendo a Zé fazer-
se muito corada, a rebentar de cólera, apressou-se a dizer:
- Mas que parvoíce! Quem é que pensa levar o cão para casa?
Block, evidentemente, não ouviu. Deitou um

87

olhar venenoso ao Tim e seguiu o seu caminho, voltando-se


uma vez ou outra para observar o fiel companheiro dos
garotos.
- É horrível ouvir estas barbaridades - disse a Zé
desgostosa.
Quando regressaram ao quarto da Marybelle, nessa manhã,
apesar do novo encontro, procederam como era hábito. E
preparavam-se para deixar o Tim na passagem secreta, às
voltas com umas boas guloseimas, quando este deu sinal.
A Zé notou-lhe o pêlo eriçado, o olhar fixo na porta e
segredou:
- Há gente lá fora. O Tim deu sinal. É melhor começarmos a
falar em voz alta, fingindo que estamos a jogar. Eu meto-o
no armário onde se põe a escada de corda.
Principiaram imediatamente a conversar, enquanto a Zé fazia
desaparecer o Tim dentro do armário, recomendando-lhe
silêncio.
- Agora sou eu - disse o Júlio, tirando um baralho de
cartas de cima da estante. - Desta vez ganhaste, mas agora
ganho eu, David.
Começaram a falar em voz alta, dizendo o que lhes vinha à
cabeça, enquanto jogavam às cartas. Gritavam a todo o
instante, ganhei!, procurando mostrar-se vivamente
entusiasmados, e de tal modo que ninguém diria o contrário.
A Zé foi a primeira a notar que alguém mexia na porta
suavemente.
Quem quer que fosse procurava abrir a porta e entrar, sem
ser notado. Mas, infelizmente para esse intruso, a porta
encontrava-se fechada à chave.
Lentamente, a maçaneta da porta foi girando em sentido
contrário.

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Seguiu-se silêncio, ficando os do grupo sem saber quem era


o estranho visitante.
Então a Zé fez uma experiência. Recomendando aos outros que
continuassem a rir e a gritar, correu a tirar o Tim do
armário, esperando que ele farejasse a estranha personagem.
Tim correu à porta do quarto, farejou com cuidado, voltando
depois junto da Zé, muito preocupado, agitando a cauda.
- Pronto - disse a Zé - quem quer que era foi-se embora. O
melhor seria levá-lo já para o quarto enquanto há
visibilidade - disse ela para o Fuliginoso, continuando: -
Quem seria ?
- Devia ser o Block - respondeu-lhe o rapaz, abrindo a
porta e espreitando.
Não viu ninguém. Avançou em. bicos de pés até à porta do
fundo e espreitou. Dum salto alcançou a Zé e informou-a de
que estava tudo em ordem.
Não tardou muito que o Tim se encontrasse na passagem
secreta a trincar os seus biscoitos favoritos.
A breve trecho, o Tim habituara-se e arriscara-se mesmo a
fazer a exploração doutros corredores. Tinha também um
pouco de espírito contrabandista!
- É tempo de irmos almoçar - disse o Davíd. - Mas tem
cautela, Ana, não fales nisto quando o Block estiver junto
de nós, que ele é capaz de ler nos nossos lábios.
- Está bem - disse Ana, com indignação. - Nunca pensei que
ele fosse capaz de perceber os movimentos dos lábios. É
preciso ser muito inteligente.
Sentaram-se à mesa para almoçar, servidos

89

apenas por Block. Sara tinha saído. O criado serviu-lhes a


sopa e saiu também.
De repente ficaram surpreendidos e apavorados, ouvindo o
Tim ladrar com força.
- Não ouviram ladrar? É o Tim. Deve andar perto daqui. São
capazes de o descobrir - disse o Júlio.
- Nem uma única palavra à frente do Block! Façamos de
contas que não ouvimos nada, se ele tornar a ladrar. Que
raio será ? - disse o Fuliginoso.
- É assim que costuma ladrar quando está satisfeito. É
capaz de andar à caça dalgum rato. Oxalá que se cale -
disse a Zé.

90

Block entrou no momento em que o Tim acabava de ladrar,


Pouco depois voltou a ladrar.
Júlio observava Block com atenção.
O criado serviu-lhes a carne sempre em silêncio. Não
deixou, porém, de olhar para os rapazes intencionalmente,
como se pretendesse captar a expressão fisionómica ou as
palavras deles.
- Que rica sopa! Tenho de confessar que a Sara é uma
cozinheira esplêndida - disse o Júlio olhando os outros.
- E aqueles bolinhos no forno - acrescentou Ana.
- Uf-uf! - fez o Tim novamente, lá de longe.
- Olha, Zé, a tua mãe consegue fazer os mais deliciosos
pudins que eu tenho comido - disse o David, tentando levar
o Tim a calar-se. - Não sei como se terão arranjado no
Casal Kirrin com o tecto naquele estado.
- Uf! - tornou a fazer o Tim, talvez apanhando o rato outra
vez.
Block serviu-os e desapareceu. Júlio dirigiu-se para a
porta, no intuito de verificar se ele teria ficado à
espreita.
- Bolas! Estou convencido que o Block não é surdo como uma
porta. Ia jurar que ele ficou surpreendido quando o Tim
ladrou - disse o Júlio.
- Pois bem, se ele tivesse ouvido, o que não creio, - disse
a Zé - deveria ter ficado muito surpreendido ao ver-nos
falar sem fazer caso do Tim.
De repente ouviram passos e principiaram a empilhar os
pratos esperando que o Block viesse buscá-los.
Abriu-se a porta da sala. Não era, porém,

91

Block. Com grande surpresa, viram aparecer o senhor Lenoir,


sonindo como de costume e examinando tudo.
- Com que então satisfeitos e bem comportados, não é
verdade? O Block tem-vos tratado bem? - perguntou o senhor
Lenoir, com aquelas maneiras irritantes de quem se dirige a
garotinhos.
- Muito bem, obrigado. A Sara é uma cozinheira exemplar -
respondeu o Júlio, delicadamente, em pé.
- Óptimo! Óptimo!-disse o senhor Lenoir.
Os pequenos desejavam ardentemente que ele se retirasse sem
demora, receando que o Tim voltasse a ladrar. O senhor
Lenoir, contudo, não se mostrava apressado.
E foi então que o Tim, para pouca sorte, voltou a ladrar:
Uf! Uf!

CAP. XI
OS EMBARAÇOS DA ZÉ

Ao ouvir aquele ruído, o senhor Lenoir aplicou o ouvido, um


tanto desconfiado, em vão procurando nos pequenos quaisquer
indícios de admiração.
Tornou a escutar, sem resultado. Em seguida pegou num livro
de desenho do Júlio e pôs-se a examiná-lo.
Eles compreenderam a manobra. Júlio pensou que o senhor já
deveria ter suspeitado da presença do Tim e procurava
certificar-se pelos seus próprios meios. Na verdade, era a
primeira vez que o enigmático senhor se dirigia à sala de
estudo.
Tim ladrou novamente, desta vez mais de longe, razão para
que no nariz do senhor Lenoir aparecesse aquele sinal
branco, expressão da cólera que Mary-belle e o Fuliginoso
tão bem conheciam.
- Ouviram aquele barulho ? - perguntou, acentuando bem as
palavras.
- Que barulho, senhor?-respondeu o Júlio delicadamente.
Tim voltou a ladrar.
- Não se façam parvos! Também não ouviram agora ? -
acentuou o senhor Lenoir.
Nesse momento passou uma gaivota que deixou no espaço um
lamento, acompanhado pela brisa marítima.
- Talvez sejam as gaivotas. Chegam a miar como os gatos -
replicou David, com vivacidade.
Se apanho esse cão, mando-o matar - O quê ? - disse o
senhor Lenoir furioso. - Nesse caso também ladram como os
cães?
- É possível. Afinal, se conseguem imitar os gatos, é
natural que imitam os cães - prosseguiu David, com ares de
quem estava verdadeiramente pasmado.
Tim ladrou outra vez, manifestando viva satisfação. A
cólera do senhor Lenoir chegou ao auge, explodindo:
- Também não ouviram agora? Serão capazes de me dizer o que
é isto?
Extremamente perturbados, os pequenos fingiram apurar o
ouvido, à espera de novo barulho.
- Não consigo ouvir nada, absolutamente nada! - exclamou o
David.
- Ouvi agora o vento - disse a Ana.
- Quanto a mim, apenas oiço as gaivotas - acrescentou o
Júlio, colocando a mão em concha atrás do ouvido.
- Pela minha parte, só oiço o bater da porta. Talvez seja
isso - arriscou o Fuliginoso com uma expressão deveras
inocente.
Enquanto o pai lhe deitava um olhar iracundo, a Marybelle
sugeriu, muito timorata, que talvez fosse do ranger da
janela.
- Bem sabem vocês que é um cão! Porque ocultam a verdade?
Digam-me onde está e quem é o dono!-vociferou o colérico
senhor, com a ponta do nariz cada vez mais embranquecida.
- Um cão? Que eu saiba, não há por aqui nenhum - acudiu o
Júlio, esforçando-se por mostrar grande estranheza.
Estas observações ingénuas aumentaram a cólera do senhor
Lenoir, que màl se conteve, cerrando os punhos e retraindo-
se para não o esbofetear.
- Ah! Sim? Pois então escutem e digam-me se aquilo é ou não
é o ladrar dum cão ? - prosseguiu o dono da casa, batendo
bem as sílabas, ostensivamente.
Viram-se na necessidade de escutar temendo qualquer gesto
violento.
Desta vez, porém, Tim não voltou a dar sinal, talvez porque
o rato, ou o que quer que fosse, lhe houvesse escapado ou
estivesse às voltas com ele.
- Lamento muito, senhor Lenoir, mas realmente não consigo
ouvir nenhum cão a ladrar - disse o Júlio, mostrando-se um
tanto ofendido.
- Nem eu!-disse também o David, fazendo coro com os outros.
O senhor Lenoir convenceu-se finalmente de que os pequenos
diziam a verdade, pois também não conseguia agora ouvir
nada. Isso não o impediu, contudo, de prevenir severamente:
- Não quero cães em minha casa. Se apanho algum, fiquem
sabendo que o mando envenenar.
Felizmente o senhor Lenoir saiu rapidamente e a tempo de
evitar que a Zé explodisse de cólera, estragando tudo. Ana
procurava acalmá-la.
Mordendo os lábios e fazendo-se de várias cores, a Zé
explodiu furiosamente gritando e batendo com o pé no chão:
- Não tolero uma coisa destas! Não posso!
- Cala-te! Não sejas parva! Olha que o Block está a chegar
dentro dum minuto. Temos de nos fingir muito admirados com
isto, não vá o criado perceber as nossas conversas - disse
o Júlio.
Nesse instante precisamente, Block entrou trazendo o pudim.
Como sempre, a mesma face inexpressiva, o que levava a Ana
a dizer, um tanto fantasista, que aquilo talvez fosse uma
máscara de cera!
- É curioso, como o senhor Lenoir pensou que era um cão -
começou o Júlio, logo combatido pelos outros que desejavam
intrigar o Block.
Em seguida foram para o quarto do Fuliginoso e reuniram-se
em conselho de guerra.
- Que vai ser do Tim se o teu padrasto o descobre ? -
perguntou a Zé.
- Ele é capaz de conhecer as passagens secretas. Se o Tim
se atira a ele, estamos arranjados.
- Não sei se conhece as passagens secretas;

96

isto é, suponho que sabe da sua existência, mas talvez


ignore onde ficam as entradas. Eu próprio, se as descobri,
foi inteiramente por acaso.
- Assim vou-me embora. Não quero que envenenem o Tim -
disse a Zé.
- Não pode ser. Ou vamos todos ou não vai nenhum. Mas, em
todo o caso se nos vamos embora, fica este mistério por
resolver - disse o Júlio.
- Por favor, não pensem sequer em ir-se embora nesta
ocasião. Olhem que ele fica furioso - respondeu o pequeno
Lenoir.
A Zé hesitou. Não queria, de facto, estragar a vida ao
pequeno aventureiro mas, por outro lado, receava muito a
sorte do Tim.
- Bom, então telefono ao meu pai e digo-lhe que estou cheia
de saudades; que quero voltar para casa. Vocês podem ficar
e descobrir tudo. Não me parece sensato estar aqui
arriscando a vida do Tim.
- argumentou outra vez a Zé.
Ficaram tristes e pensativos, quase vencidos por estes
argumentos. Júlio suspirou. Ao fim e ao cabo, ela que
fizesse o que lhe apetecesse.
- Está bem - disse o Júlio - telefona ao teu pai, se isso
te agrada. Há um telefone lá em baixo e creio que não está
lá ninguém.
A Zé esgueirou-se, alcançando o telefone e pediu o número
indicado.
Ficou à espera, durante muito tempo. Depois, ouviu o sinal
de que o telefone da sua casa, em Kirrin, estava a tocar.
Imaginou o que iria dizer ao pai. Uma única ideia a
dominava: voltar para casa, fosse como fosse.
Mas da outra casa ninguém respondia. Porquê ? - pensou a Zé.

97

Finalmente a telefonista informou-a de que ninguém


respondia.
Pousou o auscultador, desiludida. Estariam os pais fora de
casa? Restava-lhe tentar outra vez.
Três vezes tentou, três vezes ficou desnorteada. Ninguém
lhe respondia. Preparava-se para regressar, quando uma voz
feminina a interpelou suavemente. Era a senhora Lenoir, a
perguntar-lhe:
- Tentou telefonar para casa? Não teve resposta ?
- Procurei telefonar três vezes para o Casal Kirrin, mas
nunca tive resposta. Como ainda não me escreveram...-disse
ela, desanimada.
- Bom, sabe, esta manhã disseram-nos que se torna
impossível viver ali enquanto andarem em obras - disse a
gentil senhora, amavelmente. - O seu papá sentia-se
perturbado com tanto barulho, de modo que resolveram
abandonar a habitação durante uma semana, mais ou menos. É
isto o que informa a sua mamã. No entanto, o meu marido
soube do caso e decidiu escrever-lhes a convidá-los para
virem passar aqui uma temporada. Esperamos que nos
telefonem amanhã, a dar uma resposta. Hoje era impossível
responderem-nos porque já tinham saído.
- Ah! -fez a Zé muito admirada por a mãe não lhe ter
escrito a pô-la ao corrente de tudo.
- A sua mãe disse que lhe escreveu mas as cartas aqui -
elucidou a senhora - demoram mais. Temos muito gosto em
receber os seus pais. O meu marido então está encantado com
a notícia! Diz que o seu papá é um verdadeiro génio.
A Zé calou-se, voltando para ao pé dos outros muito séria.
Abriu a porta do quarto do Lenoir
98

Júnior, deixando transparecer na sua fisionomia algumas


notícias.
- Não posso voltar para casa com o Tim. Meus pais não
conseguem suportar o barulho das obras e por isso,
resolveram ausentar-se por uns dias! -disse ela.
- Pouca sorte, Zé. Mesmo assim estou satisfeito por saber
que ficas cá. Acredita que me custava muito se tu ou o Tim
se fossem embora - manifestou o Fuliginoso.
- A tua mãe escreveu aos meus pais pedindo-lhes para passar
aqui uns tempos - disse a Zé. - Não sei o que há-de ser do
Tim. Com certeza que me vão perguntar por ele. Não lhes
posso dizer que o entreguei ao pescador ou coisa parecida.
Não sei que lhes dizer.
- Havemos de pensar nisso. Talvez eu arranje por aí alguém
que trate dele - lembrou o Fuliginoso.
- Óptimo! Já podíamos ter pensado nisso há mais tempo!
-comentou ela com impaciência.
Era, contudo, impossível tratar do caso nesse dia porque a
senhora Lenoir lhes havia pedido para ficarem na sala de
desenho a jogar com ela. De modo que nenhum chegou a sair
para resolver o problema do Tim.
- Não tem importância. Esta noite fica na minha cama.
Amanhã veremos - reconsiderou a Zé.
Era a primeira vez que a senhora Lenoir se propunha fazer-
lhes companhia.
- Compreendem - disse ela - o senhor Lenoir foi para o
continente tratar de assuntos importantes. Quando está em
casa, não gosta que o incomodem. É por esse motivo que eu
tenho andado

99

mais afastada de vocês. Hoje, porém, cá estou a fazer-vos


companhia.
Júlio meditou nas palavras da senhora. Não iria o marido
tratar de contrabando? Alguém cuidaria das mercadorias. É
muito provável que o senhor Lenoir estivesse implicado
naquela questão dos sinais misteriosos.
O telefone retiniu estridentemente. A senhora Lenoir
levantou-se.
- Espero que seja o telefonema do vosso pai ou da vossa mãe
- disse ela para a Zé. - Talvez lhe traga algumas
novidades. Quem sabe se eles chegam já amanhã.
Dirigiu-se para o hall. Os pequenos ficaram à espera
ansiosamente. Viriam ou não viriam os pais da Zé?

CAP. XII
BLOCK FICA SURPREENDIDO

A senhora Lenoir voltou sorridente e explicou à Zé:


- Era o seu papá a telefonar. Diz que vem amanhã, sozinho.
A mamã não pode vir; fica a ajudar a sua tia que está um
pouco adoentada. Em qualquer caso recebemos- com muito
prazer o seu papá. O meu marido, especialmente, terá muito
gosto em conversar com ele a respeito daquelas experiências
que ambos têm realizado.
Os pequenos preferiam a visita da tia Clara. No entanto,
como esperavam que o Tio Alberto se embrenhasse na
discussão científica, concluíram que tudo iria correr pelo
melhor.
Acabaram de jogar com a senhora Lenoir e prepararam-se para
recolher aos aposentos. Era a ocasião da Zé ir buscar o
Tim. O Fuliginoso, por sua vez, tratou de ir ver se havia
boa visibilidade na costa, estranhando a ausência do Block.
Do padrasto sabia ele que ainda estava ausente. A Sara
cantava na cozinha, enquanto a ajudante fazia malha junto
dela.
O Block saiu, com certeza - pensou ele - enquanto ia avisar
a Zé. Mas, ao atravessar o patamar que dava para o
corredor, notou duas manchas escuras e salientes por baixo
das pesadas cortinas que encobriam a janela. Ficou especado
mas compreendeu e, sem se perturbar, gizou imediatamente um
plano.

101

- Então o tipo suspeita de que temos um cão que costuma


dormir no quarto da Zé ou do Júlio? Vem aqui expiar?
Espera, que já vais ver! - cogitou ele.
Ao saber aquela notícia a Zé ficou alarmada, mas o
Fuliginoso tranquilizou-a.
- Arranjo uma corda. Em seguida descemos ao patamar. De
repente começo a gritar: - "Está aqui um ladrão!" Atiro-me
a ele, vocês correm em meu auxílio, o Júlio e o David
ajudam-me a envolvê-lo nas cortinas e amarramo-lo dizendo
que é um ladrão.
Os outros começaram a rir. Estavam convencidos de que o
antipático Block havia de apanhar uma boa lição.
- Eu vou já buscar o Tim, não vá ele também fazer das suas
- comentou a Zé receosa.
- Segura-o bem e leva-o depressa para o teu quarto -
comandou o Júlio.
Encaminharam-se para o esconderijo onde Block se
encontrava. Houve um leve movimento dos cortinados, prova
de que o espião lá estava.
A Zé e o Tim ficaram encobertos na porta do corredor.
Ouviu-se um grito de guerra que fez vibrar Tim e a sua
dona. Saltando sobre o Block inesperadamente, Fuliginoso
gritava a plenos pulmões:
- Um ladrão! Socorro! Está aqui um ladrão!
Descarregando toda a sua cólera sobre a antipática
personagem, o rapaz vibrou-lhe uns valentes socos que o
deixaram desnorteado. Preparava-se para reagir, quando
Júlio e o David surgiram em auxílio do audacioso camarada.
A uma violenta sacudidela, as pesadas cortinas

102

cederam, descendo sobre a cabeça de Block que, a breve


trecho, se achou envolvido e imobilizado.
Como se isso não bastasse, a trave que suspendia os
cortinados despregou-se também, desabando sobre as costas
do homem.
A própria Ana se aventurou a dar alguns piparotes.
Marybelle porém, tímida como sempre, ficou de parte, apenas
gozando o espectáculo.
No meio de tanta confusão, a Zé ainda quis desviar-se. Era
tarde. Entusiasmado, o Tim precipitou-se na luta, atirando-
se às pernas do Block.
Como era de esperar, o criado soltou um grito de pavor e
desespero. E foi só quando a Zé se decidiu a bater-lhe que
ele, obedientemente, se retirou, compreendendo a ousadia.
Arrastando a cauda, foi enfiar-se no quarto da dona e
meteu-se debaixo da cama espreitando a medo.
- Como se atreveu? Não vê que podia ter estragado tudo? E,
agora, que mordeu no Block? Vai ser um sarilho - disse ela
mostrando-se zangada. - Não saia daqui, que eu vou ver o
que se passa.
O Tim agitou suavemente a cauda como quem entendia e
prometia obedecer.
A Zé encaminhou-se para o patamar e foi encontrá-los, ainda
a lutarem com o Block, que não conseguia livrar-se da
rapaziada.
De repente, apareceu o senhor Lenoir acompanhado pela
esposa, verdadeiramente apavorada.
- Que vem a ser isto? Está tudo doido? Que pouca vergonha a
uma hora destas!-vociferou o colérico senhor.
- É um gatuno! Está aqui amarrado! - explicou o Fuliginoso.

103

O senhor Lenoir galgou as poucas escadas que o separavam da


cena, viu aquela figura envolvida nas pesadas cortinas e
exclamou:
- Um salteador ? Um ladrão ? Como o descobriram?
- Estava escondido por trás das cortinas. Conseguimos
apanhá-lo e amarrá-lo. Talvez fosse melhor chamar a polícia
- concluiu Júlio.
Então, ouviu-se uma voz que vinha do interior das
cortinas:-Deixem-me sair daqui! Tirem-me daqui para fora!
Estou mordido!
- Oh! Céus!-exclamou o senhor Lenoir fora de si.-Mas vocês
amarraram o Block! Libertem-no já.
- É impossível! Não pode ser o Block! -protestou o
Fuliginoso.
- Faça o que lhe dizem - ordenou o padrasto, furioso. Ana
reparou na ponta do nariz do senhor, já a fazer-se branca e
receou uma tempestade.
Os rapazes desataram a corda com relutância. Block afastou
a cortina e apareceu com a habitual expressão fechada,
desta vez mais vincada pelo medo e pelo ódio.
- Não compreendo! Olhe para a minha perna, senhor! Estou
mordido! Foi um cão, com toda a certeza! Veja a minha perna
- gemeu o Block.
Na verdade, lá estavam as marcas de cor violáceas dos
dentes do atrevido Tim. Por pouco mais teria ficado sem um
pedaço de carne.
- Que eu saiba, não está aqui nenhum cão - disse a senhora
Lenoir timidamente, subindo as escadas. Creio que não foi
um cão.
- Então quem foi ? - interrogou Lenoir com arrogância,
voltando-se para a pobre senhora.

104

- Podia ter sido eu, nesta confusão - exclamou Fuliginoso


repentinamente com grande surpresa e satisfação dos outros
companheiros. O rapaz continuou mostrando-se triste: -
Quando perco a cabeça, nem sei o que faço. Sou capaz de lhe
ter mordido...
- Basta!-Não diga mais asneiras! Dou-lhe uma sova se chego
a saber que anda por aí a dar dentadas. Vamos, Block,
levante-se. O seu estado não é tão mau como pretende -
disse o senhor Lenoir.
- Não sei que tenho! Parece que sinto o gosto da carne do
Block na minha boca. Vou já lavar os dentes - disse o
azougado rapaz, abrindo e fechando a boca.
Mal teve tempo de escapar-se a uma boa bofetada,
esgueirando-se para longe, a pretexto de ir lavar os dentes.
Os companheiros contiveram o riso muito a custo. Que ideia
tão cómica aquela de morder o Block. A verdade, porém, é
que nem o senhor nem a senhora Lenoir seriam capazes de
imaginar quem teria mordido o criado.
- Já todos para a cama!-ordenou o senhor Lenoir,
continuando: - Amanhã veremos, quando chegar o vosso tio,
ou pai, ou lá o que é. - Não têm vergonha de fazer uma
desordem destas em casa estranha? Amarrarem o meu criado!
Fiquem sabendo que se ele abandonar a casa, a culpa é vossa!
Foi o que eles quiseram ouvir. Quem dera que o Block se
fosse embora, uma vez que pretendia descobrir a presença do
Tim.
Contudo, Block ficou. Na manhã seguinte

105

entrou, como de costume, na sala de estudo com o pequeno


almoço. Deitou um olhar de rancor ao Fuliginoso e disse:
- Prepare-se, hein!, que alguma coisa lhe vai acontecer por
estes dias; a você e a esse cão que me mordeu. Ou julgam
que eu não sei que foi um cão?
Os pequenos entreolharam-se em silêncio. O Fuliginoso fez
uma careta, traçando uns rabiscos na mesa, com a colher e
dizendo:
- Acautele-se você, também. Volte a espiar e verá como fica
outra vez amarrado. E olhe que os meus dentes estão sempre
prontos!...
Acabou mostrando-lhe os dentes. Block, porém, ficou
impávido e saiu. fechando suavemente a porta.

106

- Que lindo trabalho!-disse o Fuliginoso. A Zé, no entanto,


ficou alarmada, com receio de alguma partida do Block. Os
seus olhos exprimiam ódio e vingança ao falar. Por isso a
Zé desejava de todo o coração retirar, quanto antes, o Tim
daquela casa.
Nessa manhã sofreu um choque terrível ao saber que o quarto
do Lenoir Júnior estava destinado ao pai dela. - Tenho de
ir dormir para o quarto do Júlio e do David. O Block e a
Sara estão a retirar as coisas do meu quarto para o deles.
Mas tenho esperança de safar o Tim antes de vir o teu pai.
- Deixa ver se eu consigo retirá-lo já - disse a Zé.
Saiu, como quem ia ao quarto da Marybelle procurar qualquer
coisa. O Block, no entanto, ainda se encontrava no quarto
do Fuliginoso e lá se conservou toda a manhã a pretexto de
limpezas.
A Zé não conseguiu descansar. Toda a manhã rondou
inutilmente.
Block deitou a Zé uns olhares curiosos, enquanto exibia
ostensivamente uma ligadura para destacar mais a dentada.
Por último abandonou o quarto e a Zé entrou em seguida. Ele
voltou quase imediatamente enquanto a Zé se esgueirava para
o quarto da Marybelle.
Block. voltou e saiu outra vez, obrigando a pequena a
ocultar-se de novo.
Numa das vezes o criado apanhou-a quase a abrir a porta do
armário.
- Que faz aí? Não andei a limpar o quarto para a menina o
sujar! Fora daqui!-gritou, enfurecido.

107

A Zé saiu e de novo esperou que Block se retirasse porque


ele tinha de ir cuidar do almoço.
Enfim, saiu. Ela voou para o quarto do Fuliginoso, desejosa
de libertar o pobre Tim.
Com grande espanto verificou que não conseguia abrir a
porta. Estava fechada e a chave encontrava-se em poder do
Block.

CAP. XIII
A ZÉ VÊ-SE EM APUROS

Absolutamente desnorteada, a Zé decidiu ir procurar o


Fuliginoso e pô-lo ao corrente do que se passava. Foi
encontrá-lo no quarto do Júlio a lavar as mãos, preparando-
se para o almoço.
- Escuta - disse - temos de recorrer à passagem secreta,
onde nos conduziste pela primeira vez; é para libertar o
Tim.
- Impossível! - disse Fuliginoso. - O meu padrasto utiliza
agora esse caminho. Nem calculas do que ele era capaz, se
descobrisse ali algum de nós. Tem lá os relatórios das
últimas experiências para mostrar ao teu pai.
- Não quero saber disso! De qualquer maneira o Tim há-de
sair de lá, se não morre de fome - disse a rapariga.
- Qual história! O Tim não se perde. Sempre há-de apanhar
alguns ratos!-objectou o Fuliginoso.
- Então morre de sede. Bem sabes que não tem água naqueles
caminhos secretos - recalcitrou a Zé.
Por causa do Tim, chegou a perder o apetite.
Não descanso enquanto não descobrir maneira de arrancar o
Tim do esconderijo, suceda o que suceder - pensou ela. - Se
vou dizer aos outros, eles são capazes de se opor ou
estragar tudo. O Tim é meu e portanto é a mim que compete
libertá-lo.

109

Depois do almoço reuniram-se no quarto do Júlio para


estudar o problema. A Zé acompanhou-os mas, a breve trecho,
saiu, prometendo voltar em menos dum minuto.
Não fizeram caso e continuaram a discutir as escassas
possibilidades de retirar o Tim. Concordaram em que o único
processo viável seria entrar no gabinete de estudo e
penetrar na passagem secreta, sem serem vistos.
- Mas, se eu vos digo que ele agora trabalha nesse gabinete
e fecha a porta à chave, com certeza - ponderou o audacioso
explorador.
Haviam passado, entretanto, dez minutos. A Zé não voltara
ainda.
- Que andará ela a fazer ? Já há dez minutos!
- comentou Ana, intrigada.
- Naturalmente foi ver se a porta do meu antigo quarto
ainda está aberta. Deixa-me ir ver - disse o Fuliginoso
erguendo-se."
Não a encontrou; nem no seu antigo quarto nem no outro da
Marybella. Decidiu ir ver ao quarto dela. Em vão, desceu as
escadas e procurou-a. Nada!
Voltou para junto dos companheiros, bastante intrigado.
- Não a encontrei! Onde estará ela? - interrogou, já
alarmado.
Ana ficou também assustada. - Que teria sucedido à Zé?
- Iria ela para o tal gabinete? Era o mesmo que ir para a
caverna do leão - arriscou Júlio.
- É verdade! E eu que nem sequer me lembrei disso! Vou
ver!-disse o Fuliginoso.
Desceu as escadas e encaminhou-se cautelosa-

110

mente para o gabinete do senhor Lenoir. Pôs-se a escutar cá


de fora. Não vinha nenhum rumor de dentro. Estaria lá o
padrasto?
Hesitou; e por fim bateu à porta, pensando que, se o
padrasto respondesse, ele subiria as escadas num relâmpago,
antes de a porta se abrir.
- Quem é? Entre! Quando será que me deixam em paz ? - disse
o senhor Lenoir, manifestamente irritado.
Como uma flecha, o rapaz galgou as escadas, desaparecendo
antes de ser visto. Chegado ao pé dos companheiros,
informou-os de que a Zé não se encontrava no gabinete, uma
vez que o padrasto se achava ali a trabalhar.
- Então onde estará ? Oxalá que ela não tenha partido sem
nos avisar. Olhem que deve andar por aí. Não a julgo capaz
de abandonar o Tim - sugeriu o Júlio.
Foram encontrar o Block na cozinha, depois de terem
vasculhado a casa inteira.
O criado estava a ler um jornal. Ao vê-los, exclamou:
- Que desejam? Daqui não levam nada!
- Nem é preciso. Como vai a sua perna ? - disse o
Fuliginoso.
Como resposta, o criado deitou-lhe um olhar tão furioso que
eles desapareceram logo da cozinha.
Nada tendo descoberto, o Júlio e o David ficaram de
atalaia, enquanto o outro foi ver, se, por acaso, a Zé se
teria introduzido nos aposentos da criadagem. Era uma ideia
estúpida mas, uma vez que ela não aparecia, tornava-se
imperioso procurá-la por todos os cantos.
Em vão. Desanimados, foram para o quarto

111

do Júlio, rogando pragas àquela casa maldita que só lhes


dava trabalhos.
O Fuliginoso concordou. Era, realmente, uma habitação
impossível. Nem ele, nem a mãe nem a Marybelle se sentiam
bem. Só o padrasto se mostrava satisfeito.
- Onde estará a Zé? Por mais que pense, não consigo
descobrir. Mas tenho a certeza de que não está no gabinete
do teu padrasto - disse ela para o Fuliginoso.
Enganava-se, porém.
A Zé tinha pensado entrar ali, na esperança de abrir a
porta corrediça. Ao chegar à porta do gabinete verificou
que estava fechada.
- Apre! Anda tudo contra mim! Mas não desisto!-resmungou,
desesperada.
Tentou entrar pela janela do gabinete que dava para um
pequeno pátio. Estava fechada. Voltou para trás, esperando
apanhar a chave com que abriria a porta. Impossível.
De repente, ouviu a voz da senhora Lenoir, na sala em
frente do hall. Apavorada, só teve tempo de levantar a
tampa duma arca enorme. Meteu-se lá dentro e esperou,
ajoelhada.
Não tardou a ouvir o senhor Lenoir:
- Quero ter tudo em ordem para mostrar ao meu amigo.
Espero, portanto, que não me perturbem.
A chave girou na fechadura da porta do gabinete, que voltou
a fechar-se com um leve estalido, mas sem ficar fechada à
chave.
Oculta dentro da velha arca, a Zé começou a ponderar, em
cata duma solução. Pensou entrar no gabinete, alcançar a
passagem secreta onde o

112

Tim se encontrava. Ela sabia que essa passagem comunicava


com o antigo quarto do Fuliginoso, sendo certo que, algures
iria encontrar o Tim. Uma vez junto do seu fiel
companheiro, cuidaria de resolver. Talvez o pequeno Lenoir
conhecesse alguém da terra, capaz de se encarregar do
animal.
O senhor Lenoir tossiu e remexeu uns papéis. Abriu e fechou
um armário. Estava decididamente muito ocupado.
Pôs-se a monologar, dizendo em tom irritado: - Afinal, onde
pus eu isto?
A porta abriu-se inesperadamente e o senhor Lenoir saiu. A
Zé mal teve tempo de descer a tampa da arca, que levantara
para tomar um pouco de ar. A tremer, ajoelhou outra vez e
aguardou a passagem do dono da casa.
Vislumbrou uma oportunidade. Talvez ele se demorasse só uns
minutos. Nesse caso, podia ter tempo de entrar na passagem
secreta. Levantou a tampa da arca. Num salto alcançou o
gabinete, procurando descobrir o ponto onde o Fuliginoso
carregara pela primeira vez.
Ainda não havia tacteado sequer a superfície lisa da
madeira quando o rumor de passos que se aproximavam a pôs
de novo em sobressalto. Não decorrera um minuto e já o
senhor Lenoir estava de volta.
Buscou aflitivamente qualquer sítio, onde ocultar-se.
Atentou num grande sofá junto à parede e a custo se
escondeu debaixo dele, por pouco se livrando de ser
apanhada.
O senhor Lenoir entrou, acendeu uma lâm-

113

pada por cima da secretária e sentou-se, a examinar uns


documentos.
A pequena mal conseguia respirar. Sentia o coração bater
contra as costelas; achava-se desorientada ao pensar que
teria de permanecer ali, quem sabe se algumas horas. Que
pensariam os outros? Por certo já tinham dado pela sua
ausência.
Realmente, assim acontecera. Nesse momento encontrava-se o
Fuliginoso junto à porta do gabinete, hesitando em bater.
Ela ouviu bater levemente - tac-tac - e ficou ainda mais
assustada. Foi então que, da secretária, o senhor Lenoir
resmungou, impaciente:
- Quem é? Entre! Quando será que me deixam em paz?
Respondeu-lhe o silêncio. Ninguém entrou. O senhor Lenoir
repetiu:
- Entre, faz favor! Silêncio apenas.
Levantou-se e abriu a porta com violência. Ninguém! O rapaz
acabara de fugir - como sabemos.
- São eles, com certeza, mas se apanho algum, deixo-o a pão
e água!
Era tal o seu desespero que a Zé desejaria estar em toda a
parte menos ali. Pois, que diria aquele senhor colérico e
misterioso se acaso soubesse que ela estava a dois passos
da secretária?
O senhor Lenoir conservou-se cerca de uma hora no gabinete
de trabalho. O tempo passava e a pequena cada vez se sentia
mais embaraçada.
Por fim notou que bocejava. Sentiu-se mais aliviada. Ia
retirar-se, certamente. Seria o momento adequado para
salvar o Tim.
O senhor tornou a bocejar. Depois, arrumou os papéis e
dirigiu-se para o sofá. Instalou-se, como quem se prepara
para dormir, colocando um cobertor sobre os joelhos.
Quando o sofá gemeu sob o peso do corpo, a Zé tentou conter
a respiração, não fosse dar por ela.
Não tardou a ouvi-lo ressonar. O senhor Lenoir dormia,
enfim. A Zé esperou mais uns minutos. Quando julgou a
ocasião propícia começou a mexer-se devagarinho,
esgueirando-se do fundo do sofá.
Levantou-se, caminhou em bicos de pés, na direcção da porta
corrediça. Tacteou outra vez, procurando descobrir o ponto
onde deveria carregar para que o painel deslizasse.
Por mais que procurasse não conseguiu encontrar qualquer
referência. A aflição fê-la corar intensamente, enquanto
deitava uma furtiva olhadela ao senhor Lenoir adormecido.
O desespero tornou-a mais nervosa. Procurava aflitivamente
o ponto misterioso quando uma voz profunda e grave a
arrancou à agitação, deixando-a na mais cruel expectativa:
- Que faz aí? Que arrojo vem a ser este?
Voltou-se e deu com o senhor Lenoir, já acordado. Ele
dirigira-se-lhe em termos que mais uma vez, permitiam supor
tratar-se dum rapaz.
Ficou indecisa, aterrorizada; sobretudo quando lhe notou a
ponta do nariz embranquecida pela cólera.
Correu para a porta; inutilmente, porém.
Num salto alcançou-a e, segurando-a asperamente, perguntou-
lhe:
- Que fazia no meu gabinete? Porque veio

115

aqui bater à porta? Gosta destas brincadeiras, hein? Eu lhe


direi!
Abriu a porta e chamou em voz alta:
- Block! Vem cá! Sara, diz ao Block que preciso de lhe
falar!
Block apareceu, vindo da cozinha, como sempre inexpressivo.
O senhor Lenoir pegou num pedaço de papel, rabiscou umas
palavras, e deu a ler ao criado. Este acenou com a cabeça.
- Ordenei-lhe que o leve para o seu quarto e que o ponha a
pão e água o resto do dia. Vai aprender a portar-se bem. E,
se houver reincidência, eu próprio me encarrego de o
castigar - disse o senhor Lenoir com arrogância.
- O pior é o meu pai - disse a Zé em voz trémula.
- O seu pai há-de concordar, quando souber da partida que
acaba de fazer-me. Agora, vá para o seu quarto e olhe que
só pode sair de lá amanhã. Eu me encarrego de apresentar as
desculpas ao seu pai, logo que chegue - replicou, irónico,
o arrogante senhor.
O criado empurrou a Zé pelas escadas acima, aproveitando a
ocasião para se vingar das partidas que lhe haviam feito.
No momento em que chegava à porta do seu quarto, a Zé
lembrando-se de que os seus amigos se encontravam no quarto
contíguo ao seu, ainda lhes gritou:
- Júlio! David! Socorro! Socorro! Depressa!

CAP. XIV
MAIS UM ENIGMA

Júlio, David e outros correram em auxílio da Zé. Mas, ao


chegarem, já o Block tinha fechado a porta violentamente.
- Que faz você aqui ? - gritou o Júlio, revoltado.
Como resposta, Block voltou-lhe as costas. Júlio agarrou-o
por um braço e gritou-lhe bem alto aos ouvidos:
- Abra a porta imediatamente! Está a ouvir?
Block continuou impávido, afastando o braço de Júlio. Este
insistiu com violência mas o criado desculpou-se dizendo:
- O senhor Lenoir ordenou-me que a castigasse.
- Abra a porta!-teimou o Júlio, tentando arrancar-lhe a
chave. Então, a antipática personagem, erguendo
repentinamente a mão, aplicou-lhe um tremendo soco quase o
deitando por terra.
Quando o Júlio se recompôs e tentou persegui-lo, já ele
tinha desaparecido.
- Grande besta!-exclamou ainda. Depois, dirigindo-se à Zé:
- Que te aconteceu ?
Através do buraco da fechadura, a Zé pô-los ao corrente de
tudo. Lamentaram a sua pouca sorte, enquanto o Fuliginoso
se apressava a pedir-lhe desculpa em nome do padrasto,
acrescentando:
O miserável levantou a mão e agrediu o Júlio - Ele nunca
teria feito isto se soubesse que se tratava duma rapariga.
Está convencido de que tu és um rapaz.
- Não tem importância. O que mais me preocupa é o Tim. Mas
garanto-vos que não hei-de comer. Não quero ver esse
monstro - respondeu-lhes a Zé.
- Onde durmo eu então esta noite? Tenho as minhas coisas no
teu quarto - lamentou Ana.
- Deixa lá! Dormes comigo-arriscou-se a dizer a tímida
Marybelle. Empresto-te um cobertor. Que irá pensar o teu
pai, de tudo isto?
- Isso é o menos. Julga que foi por alguma das minhas
birras do costume. Olha que não se importa. Ainda se ao
menos a mãe viesse com ele - disse a Zé.
Reinava grande inquietação. As coisas não estavam a correr
bem.

118

Chegada a hora do chá, reuniram-se na sala de estudo e


decidiram guardar para a Zé um pedaço de bolo de chocolate
que lhes fora dado saborear.
Tomaram o chá. Ela ficou só e desesperada, pensando
sobretudo no Tim.
Sentiu-se insatisfeita e pensou em fugir. Aproximou-se da
janela e olhou.
Perante aquela paisagem viu-se forçada a mudar de ideias.
Saltar pela janela equivalia, com toda a certeza, a uma
queda gravíssima.
Ao desânimo, porém, sucedeu a alegria. Teve uma ideia
luminosa: utilizar a escada de corda que tão bem tinha
provado nas frequentes descidas ao poço.
Primeiro, a corda ficava na prateleira do armário, no
quarto da Marybelle. Depois passara para o quarto dela, não
fosse alguém descobri-la. A escada de corda lá estava
escondida no guarda-fato, fechado à chave.
Segurando aquele maravilhoso instrumento, a Zé saboreou
antecipadamente o prazer da aventura.
A hora não era, porém, conveniente. Havia algumas janelas
que podiam denunciar uma escalada em pleno dia. Por isso
resolveu esperar pela noite. Quando os outros voltaram,
apressou-se a participar-lhes baixinho através da porta:
- Desço sobre a muralha, faço um pouco do percurso, depois
entranho-me no edifício. Quando todos estiverem a dormir,
entro no gabinete e trato de descobrir a passagem secreta.
Conto com o teu auxílio - disse ela para o pequeno Lenoir.
- Mas não te esqueças de me arranjar alguma comida.
- Entendido!-disse o outro, recomendando:

119

- espera que a noite desça! O Block foi deitar-se com uma


grande dor de cabeça mas a Sara e a Henriqueta estão na
cozinha.
Mal anoiteceu, a Zé preparou-se e desceu pela escada de
corda. Bastou-lhe para tanto estender apenas um quarto da
escada. A altura não era muita.
Com a escada bem presa às pernas da cama, desceu sem ser
notada.
Passou diante da janela da cozinha que, por sorte, tinha as
persianas corridas. Em poucos momentos achou-se com os pés
sobre a muralha. À cautela havia trazido uma lanterna que
lhe prestou valiosos serviços.
Meditou, primeiro, sobre o caminho a seguir. Procurava
evitar a todo o custo, um encontro com o Block ou o senhor
Lenoir. O melhor ainda era procurar qualquer local da
cidade já conhecido e começar depois as pesquisas.
Caminhou ao longo da faixa mais ampla da muralha, que
oferecia aspecto irregular, toda esburacada e pedregosa. A
lâmpada porém, ajudava-a a caminhar, projectando uma
claridade suave mas regular à sua volta.
Ora contornava alguns estábulos e lojas antiquadas, ora um
pátio e uma ou outra casa.
Envolta na escuridão, podia agora examinar o que se passava
no interior de algumas habitações iluminadas, mas sem
cortinados nas janelas.
Viu, por exemplo, uma pequena família, reunida à mesa,
irradiando alegria. Noutra casa viu um senhor, solitário, a
ler e a fumar. Noutra via-se uma senhora a fazer malha e
escutando a rádio.
Aproximou-se doutra casa, muito grande. A

120

muralha seguia quase junta ao edifício, num local talhado a


pique sobre o pântano.
Reparou numa janela iluminada e ficou surpreendida. Era o
Block, com certeza! Não podia sér outro. A mesma cabeça, as
mesmas orelhas, os mesmos ombros!
Para quem estaria ele a falar?
Firmou-se mais e descobriu. Era aquele senhor Barling - o
bem conhecido contrabandista da região!
Mas, o outro seria, efectivamente, o Block? O criado era
surdo e este homem escutava atentamente e respondia ao
outro, embora ela não conseguisse distinguir o que diziam.
- Não é muito decente o que eu estou a fazer. No entanto,
um caso assim! Será realmente o Block? Se ao menos ele se
voltasse para eu o reconhecer...
- pensou.
Mas não. Quem quer que fosse, continuava sentado, de costas
para a Zé. Barling falava animadamente, com o comprido
rosto iluminado pela lâmpada, enquanto Block - se acaso era
Block - escutava atentamente e acenava com a cabeça a todo
o instante.
A Zé ficou intrigada. Como poderia ser o Block se ele era
surdo como uma porta?
Saltou da muralha para uma pequena passagem e dirigiu-se ao
seu destino. Junto à porta principal do misterioso edifício
foi abordada inesperadamente pelo Fuliginoso que a esperava
oculto na sombra.
- Vamos por aqui! Deixei a porta lateral aberta. Preparámos
tudo para ti - disse.
Deslizaram pela porta lateral, seguiram em

121

bicos de pés atravessando o hall e o gabinete, até


alcançarem o quarto do Júlio. Não se tinham esquecido dela.
- Roubei a despensa - segredou o Fuliginoso. A Henriqueta
tinha saído. Sara fora ao correio.
O Block deitara-se com uma valente dor de cabeça - explicou.
- Então, como poderia ser o Block? Mas era ele, com toda a
certeza! -monologava a Zé, intrigada.
- Que estás a dizer ? - perguntaram os outros,
surpreendidos.
A Zé sentou-se no sobrado e principiou a comer os bolos e
pastéis. Tinha uma fome devoradora! Mas, mesmo com a boca
cheia, foi descrevendo a sua aventura, durante a qual
topara com aquele diálogo misterioso em casa de Barling.
- Garanto-vos que vi o Block a conversar com o Barling.
Escutava e respondia. Tenho a certeza - afirmou a Zé.
- Como sabes isso? Viste-lhe a cara?-perguntou, duvidoso, o
Júlio.
- Não! Mas tenho a certeza que era o Block. Se não, vai ao
quarto dele, ver se está deitado. Olha que ainda não teve
tempo de regressar. Tinha um copo cheio duma bebida
qualquer. Aquilo ainda demora. Anda, vai lá ver!-propôs a
Zé.
O rapaz desapareceu, mas voltou num ápice.
- Está deitado está. Vê-se a sombra e o volume da cabeça.
Certamente não há dois Blocks. Que vem a ser isto, afinal?
- interrogou, um tanto confuso.

CAP. XV
AS SURPRESAS CONTINUAM

De facto, a situação apresentava-se bastante crítica,


sobretudo para a Zé, que não tinha ilusões acerca daquilo
que vira. No entanto, os outros mostravam-se pouco
dispostos a acreditar, uma vez que ela não conseguira ver
de frente aquele que julgava ser o Block.
- Já chegou o meu pai?-perguntou ela, de repente,
lembrando-se de que estava prevista a chegada dele nessa
noite.
- Já. Por pouco me atropelava. Se não dou um salto para o
lado... Foi mesmo antes de chegares, no momento em que ia
esperar-te - respondeu o rapaz.
- Afinal, que vai ser do Tim? Temos de libertá-lo esta
noite. Parece-me, no entanto, que o melhor seria voltar
para o meu quarto pelo mesmo caminho, não vá o Block dar
pela minha fuga - considerou a Zé. - Espero que se deitem
todos, saio outra vez pela janela e venho ao teu encontro.
Não te esqueças!
- Talvez não seja tão fácil como te parece. Bom, mesmo
assim, podes contar comigo. Acho, que o melhor seria
voltares já para o teu quarto - disse o Fuliginoso.
- Está bem, deixa-me levar mais alguma coisa para comer -
disse, metendo uns bolitos na algibeira e recomendando: -
Ouve, não te esqueças de ir bater à porta do quarto quando
Pegou no copo e despejou-lhe a água pelas costas abaixo
estiverem todos deitados, para evitar surpresas
desagradáveis. Depois nos encontraremos.
Mal se tinha refeito da aventura quando o Block apareceu,
trazendo apenas um prato com pão e um copo com água, que
deixou sobre a mesa.
- Aqui tem - disse.
A Zé olhou para aquela cara de pau e tão indisposta ficou
que sentiu ímpetos de lhe pregar qualquer partida.
Pegando no copo de água despejou-o raivosamente no pescoço
do Block que, apanhado de surpresa, ainda se voltou,
disposto a qualquer violência. Sabendo, porém, que o Júlio
e o David estavam perto, receou as consequências e desistiu.
- Hei-de vingar-me! Eu tratarei de fazer desaparecer o
vosso cão!-vociferou.
Saiu, fechando a porta à chave. Assim que ele se afastou, o
Júlio não se conteve que não ralhasse com a Zé.
- Para que fizeste isso, parva? Assim, cada vez nos detesta
mais.
- Bem sei, mas não consegui dominar-me. Os companheiros
retiraram-se, indo ao encontro do senhor Lenoir. A Zé ficou
triste, Jamentando a sua solidão, embora pudesse abandonar
o quarto, se lhe apetecesse.
Os camaradas não tardaram, com a pressa de relatarem o
encontro com o pai da Zé.
- O Tio Alberto vem horrivelmente fatigado e ficou muito
aborrecido ao saber das tuas dia-bruras. Disse até que
ficarás fechada à chave todo o dia de amanhã, se não
pedires desculpa - acrescentou o Júlio.
A Zé não respondeu. Não estava na sua índole pedir desculpa
naquelas circunstâncias, sobretudo ao recordar o semblante
hipócrita do senhor Lenoir.
- Agora vamos jantar. Eu me encarrego de tirar um pouco de
sopa para comeres. Fica alerta, que eu mais logo virei aqui
bater à porta a avisar-te de que estão todos já deitados -
explicou o Fuliginoso.
A Zé estendeu-se na cama, a meditar. Havia tantas coisas
que a intrigavam! Sentia-se incapaz de esclarecer o
mistério dos sinais do alto da torre, o caso do Block, a
sua conversa com o Barling - se acaso era o Block... Pois,
como poderia ser o criado se a dar crédito ao Fuliginoso,
ele estava deitado na cama?

125

Por fim adormeceu.


Ana e Marybelle foram deitar-se; mas antes, chegaram-se à
porta do quarto a segredar-lhe boa-noite. A Zé mal acordou
para lhes responder. Os outros foram para o quarto do
David, de que agora tinham de partilhar.
À meia-noite a Zé acordou sobressaltada. Alguém batia à
porta do quarto, suavemente mas com impaciência. Era o
Fuliginoso.
- Vou já - respondeu-lhe a Zé. Pegando na lanterna,
dirigiu-se à janela, desceu pela escada de corda, saltou da
muralha e em breve se encontrou com o rapaz junto à porta
lateral do edifício.
- Já estão todos deitados. Estava a ver que nunca mais se
deitavam - disse referindo-se ao pai da Zé e ao padrasto.
- Vamos - disse ela, impaciente. Alcançaram a porta do
gabinete. Lenoir Júnior fez girar a maçaneta.
- Está outra vez fechada e bem fechada - sussurrou o rapaz,
desiludido.
- E nós que não nos lembrámos disso! Ora bolas! Que havemos
de fazer agora? - comentou a Zé, desanimada.
O Fuliginoso concentrou-se por alguns instantes. Depois
segredou:
- Só há uma solução. Meto-me no quarto do teu pai - ou seja
o meu antigo quarto de dormir - quando ele tiver
adormecido. Em seguida entro no armário, abro a porta da
passagem secreta, vou à procura do Tim e trago-o pelo mesmo
caminho. Oxalá que o teu pai não acorde!
- Obrigado. Não calculas como te fico agra-

126

decida. Agora compreendo a tua dedicação. Mas eu também


podia fazer isso - sugeriu a Zé.
- Não! Além de conhecer o caminho melhor que tu, deves
concordar que não é nada consolador andar só nestas
paragens por volta da meia-noite - replicou ele, muito
senhor de si.
A Zé subiu as escadas em companhia do camarada. Atravessou
o vasto patamar, alcançando a porta do extremo da passagem
que dava para o interior do quarto do Fuliginoso, onde o
pai dela, dormia agora.
- É verdade! E se o alarme acorda o meu pai?
- perguntou, com inquietação, a Zé.
- Tem juízo! Julgavas então que eu me tinha esquecido?
Desliguei-o, logo que transformaram o meu quarto - disse.
Abriu a porta que dava para a passagem e escutou junto ao
antigo quarto. A porta estava fechada.
Aplicaram-se a escutar, com atenção.
- Parece-me que o teu pai está um pouco agitado - disse o
Fuliginoso, continuando: - Espero o momento de entrar; em
seguida meto-me no armário e vou à passagem secreta à
procura do Tim. Logo que o apanhe, trago-to.
Talvez fosse melhor esperares no quarto da Marybelle. A Ana
está lá também - aconselhou ele.
A Zé entrou no quarto onde Marybelle e Ana estavam a
dormir. Deixou a porta aberta, de maneira a pressentir a
chegada daquele aventureiro de palmo e meio. Por momentos
sentiu como seria bom ter a seu lado, a fazer-lhe
companhia, o fiel Tim.

127

O Fuliginoso entrou no quarto onde o pai da Zé tentava, a


essa hora, conciliar o sono.
Caminhando à cautela, escolhendo o piso mais sólido para
evitar quaisquer ruídos, foi-se aproximando duma cadeira,
cujas dimensões exageradas bastavam para ocultá-lo e,
esperou.
Mas a viagem longa e a discussão científica com o senhor
Lenoir, haviam roubado o sono ao Tio Alberto.
O rapaz tanto esperou que sentiu ganas de adormecer,
chegando a bocejar em silêncio.
Enfim, o pai da Zé adormeceu. Pouco tempo decorrido, crente
de que o Tio Alberto dormia profundamente, resolveu sair do
esconderijo. Preparava-se já para entrar em acção quando um
ligeiro ruído, -semelhante ao estalar duma porta, lhe
desviou o olhar.
Reinava a mais perfeita escuridão, mas, da janela do
aposento, com as cortinas arredadas, recortava-se uma
mancha quadrada de tom cinzento. O rapaz atentou naquilo.
Estaria alguém a abrir a janela?
A janela continuava imóvel. No entanto alguma coisa se
passava, de bastante estranha.
Havia junto à janela um assento largo e cómodo, onde o
Fuliginoso costumava sentar-se para contemplar o horizonte.
Neste momento dava-lhe a impressão que a parte superior do
assento se deslocava para cima, pouco a pouco, coisa que
ele nunca julgara possível. Estaria ali alguém a manobrar
na escuridão?
Continuou a examinar. Chegou um momento em que a tampa do
assento, já bastante erguida, ficou encostada ao caixilho
da janela. E, então,

129

viu sair de dentro, cautelosamente, um indivíduo de grande


estatura, sem fazer ruído.
Arrepiado de medo, o rapaz nem conseguia articular um som.
O pavor aumentou, porém, quando essa figura humana, que
tacteava por cima da cama fez um gesto brusco e violento,
ouvindo-se um som abafado, onde se achava o pai da Zé. O
Fuliginoso calculou que o Tio Alberto tivesse sido
amordaçado para não gritar.
O intruso levantou o corpo inerte e dirigiu-se para o
assento junto à janela, aí colocando o pai da Zé. De tal
maneira as coisas se tinham passado que ele nem sequer
mexia um braço.
Num repente o rapaz libertou a voz e gritou:
- Que vai fazer ? Quem é o senhor ? Recordando-se de que
tinha trazido a lâmpada acendeu-a e, apontando-a, descobriu
uma cara conhecida.
- Senhor Barling! - gritou.
Então, sentiu uma forte pancada na cabeça e de nada mais se
lembrou.
O misterioso assaltante levara-o também pelo mesmo caminho
do Tio Alberto.
Entretanto, a Zé acordara aos gritos do camarada, tendo
ainda ouvido distintamente a exclamação do Fuliginoso: -
Senhor Barling!
- Que seria?-pensou. Ana e Marybelle dormiam. Procurou
alcançar a lâmpada e, no meio de tanta barafunda, foi
esbarrar contra uma cadeira.
Apanhou por fim a lanterna, acendeu-a e foi ver. A outra
porta estava precisamente como havia ficado quando o
Fuliginoso entrara: entreaberta. Escutou. Nenhum ruído.
Lembrava-se de ter ouvido

130

como que o barulho duma queda após o último grito do


Fuliginoso. Que seria?
Chamando a si toda a coragem, apontou a lâmpada pela porta
entreaberta do quarto onde dormia o pai. A cama estava
vazia e o quarto sem viva alma. Adiantou-se. Abriu a porta
do armário, espreitou por baixo da cama, corajosamente.
Enfim, abeirou-se do assento da janela, confusa e
horrorizada.
Onde estaria o pai? Onde estaria o seu pequeno amigo? Que
teria acontecido naquela noite?

CAP. XVI
HORAS DE PAVOR

Ao abeirar-se do assento junto à janela, a Zé havia notado


um leve ruído vindo do corredor.
Rápida como uma flecha, esgueirou-se para dibaixo da cama.
Alguém se aproximava!
Levantou a sanefa da cama, procurando ver o que se passava.
Quem quer que era chegou à porta e parou, dando indícios de
escutar. Depois aproximou-se da plataforma da janela.
A Zé procurou ver e escutar o melhor possível, adaptando os
olhos à escuridão. Conseguiu ver uma figura que se
recortava no rectângulo cinzento da janela, meio curvada
sobre o assento.
A misteriosa personagem principiou a trabalhar às escuras,
dando a impressão de mexer numa tampa e em pequenos
objectos metálicos.
A tarefa durou cinco minutos, depois do que o indivíduo se
esgueirou, evitando fazer barulho.
Uma vez mais a Zé se convenceu de que estava em presença do
Block, embora a escuridão o impedisse de reconhecê-lo
capazmente.
Notara, porém, aquela maneira de tossir, de vez em quando,
que era hábito do criado. Mas, se era ele, que iria fazer
ao quarto do pai, junto ao assento da janela?
Parecia-lhe estar num pesadelo, envolvida em mistérios
impenetráveis. Onde estaria o pai?

133

Onde estaria o Fuliginoso? Porque teria ele gritado daquele


modo ? Estava certa de que ele era incapaz de gritar assim,
estando o pai ali a dormir.
Transida de medo, conservou-se debaixo da cama por mais
algum tempo. Depois escapou-se ao de leve e saiu do quarto.
Caminhou pelo longo corredor, abriu a porta ao fundo e
escutou.
Ouviam-se apenas ligeiros ruídos: uma janela que abanava,
um móvel que estalava; nada mais.
Muito pesarosa, a Zé tinha agora uma única preocupação:
informar o David e o Júlio, pô-los ao corrente de tão
misteriosos acontecimentos.
Alcançou o patamar e entrou no quarto dos rapazes.
Estavam acordados, aguardando a chegada do Fuliginoso, do
Tim e da Zé. Com grande espanto notaram que a Zé vinha só e
desolada.
Quando os informou do que havia observado os dois rapazes
sofreram nova desilusão. Foi o Júlio quem decidiu
imediatamente fazer uma batida à habitação, em companhia
dos dois. Enquanto enfiava o pijama não se conteve que não
comentasse:
- Parece-me que as coisas estão a tornar-se muito sérias.
Partiram, indo primeiro acordar a Ana e a Mary-belle, que
ficaram horrorizadas. Não tardou que os cinco se
encontrassem no quarto donde haviam desaparecido o seu
companheiro e o pai da Zé.
Júlio fechou a porta, puxou as cortinas e acendeu a luz.
Sentiram-se mais confortados. Na verdade era bastante
desagradável andar errando pela casa à luz duma lanterna.
Contemplaram o quarto, envolto em silêncio.
Nada havia que deixasse prever o que se passara. A cama
estava remexida e vazia. Via-se no chão a lanterna do
Fuliginoso, no sítio onde caíra, certamente.
A Zé tornou a repetir aquilo que ouvira mas ninguém
conseguiu perceber.
- Não compreendo! Chamar o senhor Barling? Mas, porquê, se
era o teu pai quem se encontrava ali?-perguntou-lhe o Júlio.
- Está bem. Mas tenho a certeza que foi o nome Barling que
ele pronunciou. Quem sabe se esse senhor entrou no armário,
através da passagem secreta, para fazer qualquer patifaria
e voltou pelo mesmo caminho, levando consigo os outros que
o tinham descoberto? - sugeriu a Zé.
Esta explicação era aceitável, em último caso, mas não
plausível. Abriram o armário, afastaram as roupas, em busca
da passagem secreta. Com grande surpresa, deram pela falta
da pequena pega de ferro que servia para empurrar a pedra
que encobria a passagem. Alguém a teria arrancado, criando
aos rapazes uma situação embaraçosa pois agora não
conseguiriam abrir o caminho.
- Repara! Também desapareceu isto. Portanto, Zé, essa
estranha personagem não regressou por este caminho -
argumentou o Júlio.
A Zé fez-se pálida. E ela que tanto esperava libertar o
Tim, trazendo-o pelo corredor secreto até ao armário. Só
ele poderia ajudar a resolver o enigma.
- Estou convencido de que o senhor Lenoir sabe de tudo isto
e o Block também. Aposto que era o Block quem tu viste aqui
esta noite, a traba-

135

lhar na escuridão. Naturalmente estão os dois combinados -


assegurou o David - Bom, se assim é, não podemos contar ao
senhor Lenoir o que se passou. Também não merece a pena
dizer à tua mãe, porque ela seria capaz de ir contar ao teu
pai. Que fazer? - interrogou o Júlio.
Ana principiou a chorar. Marybelle, horrorizada e confusa,
começou também a choramingar. A Zé sentiu as lágrimas nos
olhos mas dominou-se. Era demasiado orgulhosa para chorar.
- Quero vê-lo! Onde estará ele ? - choramingou a Marybelle,
que adorava o irmão.
- Não te incomodes! Amanhã iremos procurá-lo - disse o
Júlio amavelmente. - Esta noite é impossível. Não está
ninguém que nos possa ajudar aqui. O melhor é irmo-nos
deitar e resolver o caso amanhã. Talvez já tenham voltado
nessa altura. Se assim não for, teremos de-arranjar alguém
que informe o senhor Lenoir. Veremos como reage. Se ficar
surpreendido e perturbado, logo saberemos se está metido no
assunto. Será necessário tomar qualquer decisão: chamar a
polícia ou revolver a casa de alto a baixo para os
encontrar. Logo veremos.
Todos se sentiram um pouco mais confortados com estas
palavras de encorajamento. Júlio aparentava firmeza e
calma. Todavia, achava-se quase tão perturbado como os seus
amigos. Ele, sentia a gravidade dos acontecimentos a ponto
de desejar que as pequenas não se encontrassem ali.
- O melhor - disse - será vocês, Ana, Zé e Marybelle, irem
deitar-se no outro quarto. Fechem a porta à chave e
conservem a luz acesa. Eu e ó

136

David dormimos aqui, no quarto dele, também com a luz


acesa, para vocês estarem mais tranquilas.
As três raparigas foram para o quarto da Marybelle,
extremamente fatigadas. Anita e Mary-belle meteram-se na
cama e a Zé estendeu-se num divã tapando-se com um bom
cobertor.
Apesar dos acontecimentos, dentro em pouco já dormiam,
confiadas na protecção que lhes dispensava a presença
próxima dos rapazes.
Estes conversaram ainda um pouco, depois de se terem
estendido a descansar na cama onde o Tio Alberto se deitara
pouco tempo antes.
Adormeceram, convencidos de que não haveria mais surpresas,
nessa noite. Júlio, porém, tinha o sono leve; estava pronto
a acordar ao mais pequeno ruído.
Na manhã seguinte as surpresas continuaram. Coube a vez a
Sara que, ao entrar no quarto onde se deitara o recém-
chegado, não queria acreditar no que via, ao dar com os
dois rapazes deitados na cama destinada ao senhor.
Apartou as cortinas da janela. E, mal segurando o bule
cheio de chá, deu largas à sua admiração, exclamando:
- Que vem a ser isto ? Onde está o vosso tio ? Porque
vieram os meninos para aqui?
- Depois saberá. Pode levar o chá, - concluiu o Júlio, que
não confiava muito nos segredos da Sara.
- Pois sim! Mas onde está o vosso tio? Foi para o vosso
quarto? Digam-me o que aconteceu! - continuou ela.
- Olhe, se quer vá ver se ele lá está - respondeu-lhe o
David, que desejava ver-se livre

137

dela, crente de que naquela casa estava tudo doido. Deixou


o bule com o chá. Os rapazes levaram-no para o quarto das
raparigas, imediatamente, tomando-o aos poucos por terem
uma chávena apenas.
Nesse momento acabara de chegar a Sara, acompanhada por
Henriqueta e Block cuja expressão era, como sempre, apagada.
- Não está ninguém no seu quarto, menino Júlio - adiantou-
se a dizer Sara.
Entretanto, Block soltava uma exclamação de desespero,
contemplando a Zé com furor. Ele, que a julgava encerrada
no quarto, acabava de encontrá-la no da Marybelle a tomar
chá.
- Como é possível? Fique sabendo que vou contar tudo ao
senhor Lenoir - exclamou ele, furioso.
- Nem mais uma palavra! Proíbo-o de falar assim com a minha
prima. Desconfio que você também está metido nisto. Faça o
favor de se explicar! - ordenou o Júlio.
Block não deu sinais de haver percebido. Júlio ergueu-se,
revoltado:
- Fora daqui! Está a ouvir? Parece-me que a polícia vai
obrigá-lo a falar! Fora daqui!
Sara e Henriqueta sentiram-se mal. Tantos acontecimentos em
tão pouco tempo, era demais. Olharam para Block bastante
espantadas e retiraram-se. O criado, por sua vez, saiu
também deitando um olhar odioso àquele rapaz tão decidido.
- Eu já vou ter com o senhor Lenoir - disse ele,
desaparecendo.
Não tardou que o senhor e a senhora Lenoir chegassem ao
quarto da Marybelle.

138

A senhora parecia viver num outro mundo. Lenoir, o esposo,


mostrava-se intrigado e bastante surpreendido.
- Afinal, que vem a ser isto? Block diz-me que o seu pai
desapareceu - principiou ele.
- E o meu irmão, também - gemeu a Marybelle, rompendo outra
vez num choro convulsivo.
A senhora Lenoir soltou um grito:
- O quê? Que dizes tu, Marybelle?
- Deixa, Marybelle, que eu explico tudo - adiantou o Júlio,
receando que a pequena fornecesse alguns esclarecimentos a
mais. Ao fim e ao cabo, o senhor Lenoir estaria na posse de
todos os segredos, de modo que seria parvoíce revelar-lhe
quaisquer suspeitas.
- Diz-me o que aconteceu, Júlio. Depressa!
- suplicou a senhora Lenoir, deveras transtornada.
- O Tio Alberto desapareceu esta noite da cama. O irmão da
Marybelle desapareceu também. É possível que voltem,
naturalmente - concluiu o Júlio.
- Júlio! Vejo que me está ocultando alguma coisa. Conte-me
tudo. Como se atreve a ocultar o que sucedeu? - insistiu o
senhor Lenoir, observando-o com atenção.
- Conta Júlio, conta - suplicou a Marybelle. Júlio parecia
obstinado e pouco satisfeito. Nesse momento, a ponta do
nariz do senhor
Lenoir principiou a fazer-se branca.
- Vejo-me forçado a chamar a polícia. Talvez isso lhe
agrade mais - prosseguiu ele.
Júlio ficou surpreendido.
- Nunca supus que desejasse falar com a polícia. Deve ter
de ocultar muitos segredos - concluiu Júlio, de si para si.

CAP. XVII
AUMENTA A CONFUSÃO

O senhor Lenoir ficou bastante espantado com as observações


do Júlio. Durante uns momentos, reinou no aposento o mais
profundo silêncio. Júlio havia sido um tanto violento.
Finalmente, o dono da casa preparava-se para falar quando
se ouviram passos. Era o Block.
- Vem cá, Block! Preciso duns esclarecimentos - disse o
senhor Lenoir.
O criado continuou imóvel à entrada da porta, parecendo não
ter ouvido. Lenoir acenou-lhe com impaciência.
- Não! Não devemos contar, seja o que for, à frente do
Block. Ele não nos merece confiança - disse o Júlio com
firmeza.
- Que quer dizer com isso? Não lhe admito quaisquer reparos
a respeito dos meus criados. Para mais, este merece-me
inteira confiança - respondeu Lenoir.
Júlio permanecia no mesmo estado de espírito. No olhar de
Block notou uma expressão de ódio e replicou-lhe da mesma
maneira.
- Sim, senhores! Ora aqui está uma coisa inacreditável -
disse o senhor Lenoir, procurando evitar, a todo o custo,
um acesso de cólera. -Não sei o que se passou, vejo-me
rodeado de mistérios e vocês recusam-se a informar-me,
esquecendo que eu sou dono desta casa. Exijo que me contem
tudo o que sabem!
Quer-me parecer que a polícia resolve este caso. Desapareça!
- Seria preferível contar à polícia - disse o Júlio,
fixando o criado. Este, porém, não se mostrou atingido.
- Saia daqui - disse o senhor Lenoir para o criado, ao ver
que era impossível arrancar uma palavra ao Júlio na
presença do servo. E continuou:
- O melhor é virem para o meu gabinete. Não quero fazer
figura de parvo ou ignorante, se tiver de chamar a polícia
para deslindar este enigma.
Júlio estava cada vez mais confuso. Perante a decisão do
senhor Lenoir, prevendo a vinda da polícia, admitia já que
ele não estava implicado no caso.
Era um quadro desolador. Ao lado deles, a senhora Lenoir
chorava, enquanto Marybelle soluçava. O senhor Lenoir,
procurando tornar-se mais amável, beijou a pequenita e
passou um braço pela cintura da esposa, tentando
tranquilizá-las:
- Não se aborreçam. Tudo se há-de esclarecer, nem que eu
tenha de chamar a polícia em peso. Tenho umas desconfianças
e olhem que não devo enganar-me...
Júlio estava cada vez mais admirado com o que ouvia.
Seguiram para o seu gabinete de trabalho, que ainda estava
fechado. O senhor Lenoir abriu-o e foi arrumar uma porção
enorme de papéis que se encontravam sobre a secretária.
- Bom, vamos lá ver então - disse ele para o Júlio,
tranquilamente. - Desta vez a ponta do nariz não se fizera
branca, sinal de que o senhor Lenoir se vira forçado a
vencer os acessos de cólera, perante a obstinação do Júlio.
- - Parece-me que nesta casa só acontecem coisas
desagradáveis - disse o rapaz não sabendo bem como
principiar - Receio bem ter de contar tudo à polícia. -
- Não me fale por enigmas! Até parece que sou algum
criminoso! Diga-me o que se passa nesta casa!-concluiu ele,
com impaciência.
- Por exemplo, os sinais da torre - arriscou o Júlio,
observando a reacção.
Só conseguiu distinguir uma expressão de viva surpresa no
rosto do senhor Lenoir. A esposa, como que despertando,
gritou de repente:
- Sinais? Mas, que sinais?
Júlio contou as primeiras observações do pequeno
desaparecido, as dele e do David, explicando que, depois
dos sinais luminosos feitos da torre, haviam visto uma fila
de luzes tremelicantes através do pântano, contornando a
orla marítima.
O senhor Lenoir ouviu atentamente, fez algumas perguntas a
respeito de dias e horas, anotando o facto de o sinalizador
haver seguido para o quarto de Block e desaparecido.
- Saiu pela janela, certamente - disse Lenoir,
acrescentando:
- Garanto-vos que o Block nada tem a ver com isto. É
bastante fiel e, de resto, só me tem ajudado. Desconfio,
sim, do senhor Barling, porque ele não pode fazer sinais na
casa onde vive. Serve-se da minha que fica em boa posição.
Não há dificuldades que o impeçam disso. Conhece os
caminhos secretos desta casa, melhor que eu!
Ficaram convencidos de que o senhor Barling era o autor
daqueles sinais luminosos e, convencidos também de que o
senhor Lenoir nada teria a ver com os passeios nocturnos.
- Não me admiro se o Block ignorar o que se passa. Creio-
prosseguiu o Lenoir-que o Barling é a pessoa mais indicada
para nos fornecer esclarecimentos. Vamos a ver se o Block
chegou a suspeitar dalguma coisa.
Júlio mal conteve um trejeito. Se o senhor Lenoir ia pôr o
Block ao corrente do que se passava, então era melhor não
fornecer mais pormenores, uma vez que o criado também devia
estar metido no assunto.
- Vou sondar o Block e se não conseguir esclarecer o caso,
trato de chamar a polícia - disse Lenoir à saída do quarto.
Agora era o Júlio que procurava fugir às perguntas da
senhora Lenoir. Por isso se apressou a mudar de assunto,
inquirindo:
- Que temos para o pequeno almoço? Estou cheio de fome!
Foram comer, à excepção de Marybelle, que não conseguiu
tomar qualquer alimento, só de pensar na pouca sorte do
irmão.
- Parece-me - disse o Júlio quando se encontraram sós - que
o melhor era fazermos algumas pesquisas por conta própria.
Não seria má ideia ir examinar já o quarto onde dormia o
teu pai, Zé. Suponho que existe ali uma passagem secreta,
além da que já conhecemos.
- Qual é a tua opinião a respeito daquilo que aconteceu
esta noite?-interrogou David.
- Enfim, creio que o rapaz entrou no quarto e escondeu-se,
esperando que o Tio Alberto adormecesse para agir à vontade
- sugeriu o Júlio, prosseguindo:
- Enquanto ele esperava, escondido, alguém surgiu de
qualquer lado com a intenção de raptar o Tio Alberto.
Ignoro o motivo mas foi assim. O nosso companheiro apanhado
de surpresa soltou um grito. Imediatamente agredido, não
tornou a gritar e em seguida foi transportado juntamente
com o Tio Alberto, por algum caminho que desconhecemos.
- Foi assim, com certeza! Foi o Barling que os raptou! Por
isso eu ouvi aquele grito:-Senhor Barling! Naturalmente
descobriu-o, ao acender a lâmpada - acrescentou a Zé.
- É provável que estejam em casa dele - sugeriu Anita, de
repente.
- É verdade! E eu que não me tinha ainda lembrado disso!
Palavra que estou na disposição de ir até lá abaixo ver o
que há... - propôs o Júlio.
- Eu também gostava de acompanhar-vos - disse a Zé.
- Não. Esse senhor Barling é um tipo bastante perigoso. É
melhor ficares aqui com a Marybelle. O David acompanha-me.
- Já te disse que quero ir. Não me julgas capaz de me
portar como um rapaz ? - principiou a Zé, irritada.
- Não duvido. E por isso mesmo acho que deves ficar junto
da Ana e da Marybelle, a fazer o nosso lugar, não vão,
também, raptá-las... - retorquiu energicamente o Júlio.
- Não vás, Zé. Fica ao pé de nós - pediu a Ana.
- Pois bem! Em qualquer dos casos, não me parece uma
aventura sensata. Esse Barling não vos deixa entrar. E,
mesmo que lá entrassem, não conseguiam descobrir todos os
caminhos secretos que há em casa dele. Devem ser tantos!
A Zé tinha razão mas o Júlio teimou. Saiu acompanhado pelo
David, depois do pequeno almoço. Encaminharam-se para a
casa do Barling mas ficaram desapontados. Tudo fechado.
Bateram à porta, tocaram a campainha. Ninguém lhes
respondeu.
As janelas fechadas, com as cortinas corridas. Da chaminé,
nem o menor indício de fumo.
- O senhor Barling foi passar o dia fora. Saiu esta manhã
com o automóvel. Os criados saíram também - elucidou o
jardineiro que andava a tratar das flores.
Ah! -fez o Júlio, realmente admirado. -Não viu, talvez, um
homem e um rapaz dentro do carro?
O jardineiro ficou surpreendido com esta pergunta original
e abanou a cabeça, respondendo:
- Não. Ia só. Era ele quem guiava.
- Obrigado - disse o Júlio, voltando para casa, com o David
e cada vez mais intrigado.
Que teria acontecido aos dois prisioneiros? E porque diabo
teriam raptado o Tio Alberto?
Júlio lembrava-se de que o senhor Lenoir não tinha
procurado qualquer justificação para o rapto do Tio. Afinal
saberia ele de alguma coisa que ocultava por conveniência?
Ao mesmo tempo que isto se passava, a Zé tomara a liberdade
de fazer algumas pesquisas por sua conta e risco. Entrara
no quarto do Tio Alberto e procurara descobrir se existia,
realmente, qualquer passagem secreta que o Fuliginoso
ignorasse.
Sondou as paredes. Voltou o tapete e tacteou o soalho,
palmo a palmo. Voltou a examinar o armário, desejando
forçar a passagem secreta para ir buscar o Tim. A porta do
gabinete, ao fundo da escada, continuava fechada à chave.
Só o senhor Lenoir poderia decidir da situação. Ela, porém,
receou as consequências e não se resolveu.
Preparava-se para abandonar o aposento quando

147

topou junto à janela qualquer coisa que lhe reteve a


atenção. O que quer que fosse, tinha caído. Curvou-se e
apanhou um pequeno parafuso. Olhou em redor. Donde seria?
Teve dificuldade em encontrar outros parafusos, do mesmo
tamanho. Num instante, contudo, os olhos desviaram-se-lhe
para o assento da janela. Lá estavam os parafusos fixando a
grossa prancha de carvalho à parte inferior da armação.
Seria dali, aquele que acabava de encontrar? Mas porquê? Se
os outros estavam tão bem aparafusados? Pôs-se a examinar
um. De repente, soltou um grito que mal conseguiu abafar.
- Falta aqui um, ao meio, deste lado. Deixa-me ver...-
principiou tentando coordenar as ideias.
Recordou-se da noite anterior. Depois de ter fugido para
baixo da cama onde, pouco antes dormia o pai, deu pela
entrada de misteriosa personagem que se aproximou da janela
e tacteou junto ao assento. Recordava-se daqueles
ruidozinhos, dando a ideia de que o desconhecido mexia em
pequenos objectos metálicos. Agora compreendia: esse
desconhecido tivera a atarrachar os parafusos.
- Houve alguém que desaparafusou o tampo do assento da
janela, a noite passada e que na escuridão, deixou cair um
dos parafusos - pensou a Zé, sentindo-se cada vez mais
agitada.
- Mas porquê ? Para ocultar alguma coisa sob o assento da
janela? Parece oco e, que eu saiba, nunca lá se escondeu
coisa alguma.
Apesar destas conclusões tiradas à primeira vista, a Zé
estava convencida de que havia ali algum segredo. Lembrou-
se de ir buscar uma chave de parafusos.
Voltou com a peça de ferramenta, fechou a porta à chave
para evitar as más surpresas do Block e deitou mãos ao
trabalho.
Iria desvendar o mistério?
CAP. XVIII
SUCEDEM-SE AS DESCOBERTAS

Ainda não havia arrancado o último parafuso quando ouviu


umas pancadas na porta, que a deixaram em sobressalto. Não
respondeu, receando que fosse o Block ou o senhor Lenoir.
- Zé! Estás aí?
Reconheceu a voz do Júlio e correu a abrir a porta. Meio
surpreendidos, os rapazes entraram, seguidos pela Ana e a
Marybelle. A Zé tornou a fechar a porta à chave.
- O senhor Barling partiu, deixando tudo fechado. E é tudo
quanto sabemos. Mas, que estás a fazer?-:interrogou o
Júlio, surpreendido pelo espectáculo.
- Estou a desaparafusar o assento da janela - respondeu a
Zé, contando-lhes o seu achado. Juntaram-se todos para ver.
- Bravo! Deixa, que eu acabo,- propôs o David.
- Não, obrigada. Eu trato disto - disse a Zé. Extraiu o
último parafuso e levantou a tampa do assento.
Olharam para dentro mas ficaram decepcionados. Uma espécie
de armário vazio - eis o que lhes apareceu, ao cabo de
tanta expectativa. Aquela armação dava a ideia duma caixa
com uma tampa aparafusada a servir de assento.
- Ora bolas!-exclamou o David, fechando

150

a caixa. - Creio bem que não esteve aqui ninguém a


aparafusar isto. Deve ter sido ilusão tua-concluiu.
- Não pode ser! - replicou a Zé com brevidade. E,
levantando outra vez a tampa, saltou para dentro daquela
espécie de armário, batendo com os pés no fundo,
energicamente.
Ouviu-se um ligeiro ruído seco. O fundo do armário deu de
si, cedeu imediatamente como um alçapão, mal dando à Zé
tempo suficiente para se agarrar num dos lados.
À custa de muita ginástica conseguiu saltar para fora,
deixando todos mal refeitos do susto.
Quando se decidiram a olhar, -descobriram um buraco com
cerca de oito pés de profundidade que, mais abaixo se
alargava, talvez comunicando com alguma das passagens
secretas que davam para os túneis subterrâneos. Quem sabe
se aquele ia ter à casa do Barling?
- Ora vejam! Quem supunha uma coisa assim? Nem o
Fuliginoso! Aposto que ele não sabe disto!
- Vamos descer para ver onde vai dar? Talvez encontrássemos
o Tim - sugeriu a Zé.
Ouviram mexer na maçaneta da porta, que, felizmente estava
fechada à chave. Em seguida um bater impaciente e uma voz
de pessoa irritada:
- Porque fecharam a porta à chave? Abram imediatamente! Que
estão a fazer aí?
- É o pai!-segredou a Marybelle muito espantada. - O melhor
será abrir.
A Zé desceu a tampa imediatamente, sem ruído. Queria evitar
que o senhor Lenoir, desse pela sua última descoberta; de
tal modo se arranjaram que, quando o senhor entrou no
quarto,

151

já se havia acomodado tudo, como se nada fosse com eles.


- Estive a falar demoradamente com o Block e, pelo que
averiguei, ele não sabe de nada. Ficou até muito admirado
com essa história dos sinais da torre. Na opinião dele, o
que quer que seja não parte do Barling. É uma conspiração
contra mim.
- Ah! - fizeram os pequenos, incapazes todavia, de
acreditar no Block, como o senhor Lenoir acreditava.
- Ficou tão perturbado que até o aconselhei a ir repousar
um pouco, enquanto não tomamos qualquer decisão - concluiu.
Eles não acreditaram; calculando até que o criado iria
aproveitar o tempo para fazer alguma das suas.
- Vou trabalhar mais um pouco. Já telefonei à polícia mas,
infelizmente, o Inspector não estava. Ficaram de me avisar,
logo que ele chegue. Espero que não façam diabruras
enquanto eu estiver a trabalhar - concluiu o senhor Lenoir.
Os pequenos não lhe responderam. O senhor esboçou um
daqueles habituais sorrisos e saiu.
- Deixa-me ir ver se o Block está de facto deitado - disse
o Júlio, assim que o dono da casa se afastou.
Dirigiu-se para a ala do edifício onde ficavam os quartos
de dormir dos criados e parou junto ao quarto do Block sem
fazer o mínimo ruído.
A porta estava entreaberta. Júlio espreitou e viu a forma
do corpo do Block na cama, junta-

152

mente com a mancha escura da cabeça, apesar de as cortinas


estarem corridas.
Correu a informar os companheiros:
- Salvou-se por pouco. Não seria melhor irmos explorar o
poço junto da janela?
- De acordo!-responderam todos. Contudo, não era empresa
fácil saltar da altura de oito pés sem acidente!
Júlio foi o primeiro a tentar. Ficou desiludido e preveniu
o David:
- Temos de arranjar um pedaço de corda e amarrá-la aí em
qualquer sítio para evitar uma queda.
Mas, no momento em que o David se dispunha a ir procurar
uma corda, o Júlio voltou a chamá-lo:
- Já não é preciso. - Está tudo resolvido. Há aqui uns
nichos à volta do poço. Podemos descer apoiando neles os
pés.
Assim, desceram todos. A Zé, porém, falhou um ou dois
nichos e caiu desamparada, felizmente sem se magoar.
Tal como tinham pensado, o poço conduzia a outra passagem
secreta do edifício, formada por degraus de tal modo
inclinados que em breve se encontraram abaixo do nível da
habitação, não tardando a atingir a encruzilhada dos túneis
que sulcavam o monte. Pararam.
- Reparem. O melhor é não avançarmos mais, se não acabamos
por nos perder. O Fuliginoso não está connosco e a
Marybelle não conhece estas passagens - disse o Júlio.
- Escutem! Vem aí gente! -exclamou o David em voz baixa.

153

Ouviram passos vindos do túnel à esquerda. Ocultaram-se o


melhor possível. Júlio apagou a lâmpada.
- Dois! Um, muito alto e esguio. O outro, era o Block, com
certeza! Se não era o Block, era o diabo por ele - disse a
Ana, à medida que os dois indivíduos saíam do túnel mais
próximo.
Os homens iam falando em voz baixa. Mas, como poderia ser o
Block, se ele era surdo e estava, além disso, a dormir ? Na
verdade, mal tinham ainda passado dez minutos, desde que o
Júlio o vira deitado no quarto. Existiam, portanto, dois
Blocks, como a Zé havia já admitido ?
Os homens desapareceram noutro túnel e, com eles, a luz
viva das lanternas que traziam. Ouvia-se ao longe o eco das
suas vozes.
- Vamos segui-los ? - disse o David.
- Acho preferível não os seguirmos. Podemos desviar-nos ou
perdermo-nos também. Admitamos, até, que eles voltam para
trás, de repente Grande sarilho, hein? - reflectiu o Júlio.
- Tenho a certeza que o primeiro era o senhor Barling. Não
lhe vi a cara por causa da luz da lâmpada mas era tal e
qual ele, muito alto e esguio - disse Ana, num relance.
- E o senhor Barling não tinha saído de casa ?
- recordou a Marybelle.
- Isso julgamos nós. De resto, pode ter regressado já, se
era ele. Quem sabe para onde foram?... Talvez falar com o
meu pai e com o Fuliginoso - sugeriu a Zé.
- É muito natural - disse o Júlio. No entanto, o melhor é
voltarmos para trás, se não ainda acabamos por nos perder
nestas encruzilhadas.

154

Voltaram pelo mesmo caminho, alcançaram o fundo do poço que


já conhecemos e treparam sem dificuldade, fincando os pés
nos nichos.
Entraram no quarto, contentes por tornarem a ver a luz do
sol que inundava a janela. Contemplaram o horizonte. O
nevoeiro voltava a descer sobre os pântanos embora a luz do
sol ainda brilhasse no cimo do monte.
- Vou aparafusar o tampo do assento - disse Júlio, pegando
na chave de parafusos e descendo o tampo. Não convém -
disse - que saibam da nossa descoberta. Aliás, estou
convencido que foi ele quem desaparafusou a tábua para o
Barling poder entrar aqui. Depois, tornou a aparafusar,
procurando deixar tudo em ordem, de modo que ninguém desse
pela manobra.
Colocou à pressa os parafusos, olhando em seguida para o
relógio e comentando:
- São quase horas do almoço e estou cheio de fome. Quem
dera que eles estivessem aqui a fazer-nos companhia. Que,
por certo, não lhes aconteceu mal nenhum; nem ao Tim. É
verdade, deixa-me ir ver se o Block ainda está deitado.
Não se demorou mas o seu rosto revelava maior surpresa.
- É curioso - disse. - Lá está na cama.
À hora da refeição, porém, Block não apareceu. Sara"
justificou a falta, explicando que o criado tinha pedido
que não o incomodassem, no caso de faltar.
- Está, naturalmente, com aquelas valentes dores de cabeça.
É possível que à tarde se ache melhor - disse a cozinheira.
Em vão ela procurou saber mais pormenores

155

do que se havia passado. Os pequenos gostavam muito dela


mas tinham chegado a uma situação em que era lógico
desconfiar de toda a gente no Monte dos Contrabandistas.
Não conseguindo obter a mínima informação a cozinheira
saiu, dando largas ao seu desespero.
Depois do almoço, Júlio procurou o senhor Lenoir para
resolver a situação embaraçosa em que se encontravam. Ao
proceder assim, não lhe repugnava admitir que o senhor
Lenoir se tivesse desculpado com a ausência do Inspector
para ganhar tempo.
Quando o Júlio bateu à porta do gabinete e entrou, foi
encontrar o senhor Lenoir bastante irritado:
- Tenho estado à espera do Block. Estou farto de tocar a
campainha e não me aparece. Porquê? Preciso que me
acompanhe à polícia.
- Eu vou avisá-lo. Sei onde é - disse o Júlio, radiante com
aquela oportunidade de apanhar o Block numa falta.
Subiu as escadas, alcançou o pequeno patamar, galgou a
escada de serviço que dava para os quartos da criadagem e
empurrou a porta entreaberta do quarto do Block.
Dava, realmente, toda a impressão de estar a dormir. Júlio
chamou-o em voz alta mas depois lembrou-se que o criado era
surdo.
Adiantou-se e alçando uma das mãos com força, procurou
agarrar e sacudir o ombro do criado, debaixo da roupa.
Sentiu nas mãos qualquer coisa inerte e mole. Puxou a roupa
e, qual não foi o seu espanto, quando notou que do Block
nem sequer havia sinais.

156

Apenas se encontrava na cama uma bola enorme, pintada de


preto, para dar a ideia da cabeça sob os lençóis e, ao
longo do leito, o travesseiro a fazer o lugar do corpo.
- Agora percebo a partida que nos prega quando precisa de
sair. Verifica-se, portanto, que foi ele quem passou esta
manhã no túnel e quem a Zé viu a falar ontem com o Barling,
através da janela. Está provado que não é surdo.
Habilidoso e miserável é o que ele é! - concluiu o Júlio.

CAP. XIX ,
AS JUSTIFICAÇÕES DO SENHOR BARLING

Algo de estranho se passava, entretanto, com os dois


captivos.
Narcotizado e amordaçado, Tio Alberto foi conduzido ao
poço, por baixo da janela e dali transportado por Barling e
o seu criado a um dos túneis subterrâneos.
Quanto ao Block, ficara um pouco distante, mas de atalaia e
pronto a completar a manobra dos outros, aparafusando o
tampo do assento, para dissimular o rapto.
Depois do Tio Alberto, foi transportado também aos baldões,
o Fuliginoso. Atrás deste saiu Barling, explicando ao seu
fiel servidor:
- Leva também esse rapaz. É o filho do Lenoir. Desta
maneira ficará sabendo quanto custa ser espião. Além disso,
servirá ainda para aumentar contra mim, o ódio do Lenoir.
Ao entrar no túnel, Barling estacou e, tirando da algibeira
um novelo de corda, disse para o criado:
- Pega! Amarra essa ponta àquele prego acolá em cima e vai
desenrolando, à medida que avançarmos. Não é por mim, que
conheço bem o caminho; é por causa do Block. Preciso que
ele amanhã vá levar alguma comida aos nossos prisioneiros.
Palavra que não me convém mesmo nada que ele se perca por
aí. Voltaremos a enrolar a corda, pouco antes de eles
chegarem ao local, para evitar que descubram o caminho.

158

O criado amarrou a corda ao prego que o Barling lhe


indicara e foi desenrolando à medida que avançava. Era o
processo ideial de evitar quaisquer enganos no caminho que,
nalguns túneis, atingia milhas de comprimento.
Ao cabo de oito minutos, já os prisioneiros se encontravam
numa espécie de caverna, ao lado dum túnel bastante longo,
mas estreito. Como apetrechos, apenas um banco e alguns
cobertores, uma caixa a servir de mesa e um jarro com água.
Foi Fuliginoso o primeiro a recuperar os sentidos. Deitado
no chão, ergueu-se de repento, levando a mão à cabeça ainda
dorida. Incapaz de compreender onde estava, contemplou o
Tio Alberto, que jazia inerte e inconsciente, respirando
profundamente.
- É inútil falar-lhe hoje. Amanhã veremos. O Block virá,
também, comigo - disse Barling.
Ao ouvir estas palavras, o rapaz olhou e viu a estranha
figura do contrabandista. Recordando imediatamente o que
sucedera, mas estranhando o local, adiantou-se a perguntar:
Que vem a ser isto, senhor Barling? Porque me agrediu?
Porque me trouxeram para aqui?
- É o castigo dum rapazelho que se atreve a meter o nariz
onde não é chamado! -exclamou o outro continuando: - Vais
fazer companhia ao nosso amigo, acolá naquele banco. Está
descansado que ele dorme até amanhã. Quando acordar, podes
dizer-lhe tudo o que se passou e preveni-lo de que voltarei
aqui, em breve, para conversar amigavelmente com ele.
Resta-me prevenir-te de que, se não queres desaparecer para
sempre, é melhor ficares aí quietinho, até ver.
159

O pequeno empalideceu. Sabia que o Bar-ling falava a sério.


Sentindo-se confuso, preparava-se para dirigir mais algumas
perguntas ao contrabandista, quando notou que ele lhe
voltava as costas, partindo sem mais explicações, com o
criado.
Ainda vociferou, ao dar pela falta da lanterna: - Não me
deixem sem luz!
Como resposta, apenas onviu na escuridão ressoarem os
passos, cada vez mais distantes dos dois homens que se
afastavam.
Sem luz, rodeado pelo silêncio, levou a mão ao bolso,
procurando a lâmpada. Num relance recordou que a deixara
cair no quarto, ao ser agredido. Então, tacteou até
encontrar o banco, procurando despertar o pai da Zé.
Não podia mais com o isolamento e a solidão.
Aproximou-se, tentando despertá-lo. Puxou pelos cobertores.
Tio Alberto dormia.
Ouviu, vindo de mais longe, o ruído da água que caía gota a
gota: diip! drip! drip!
Não tardou que o ruído da água, gotejando, se lhe tornasse
insuportável, parecendo não mais acabar:-drip! drip! drip!
Não podia mais com a solidão. Decididamente teria de falar
com alguém.
Sacudiu aquele corpo inerte, pensando como haveria de
chamá-lo, uma vez que não lhe conhecia o sobrenome.
Chamar-lhe "pai da Zé" - pensou, Seria uma maneira
ridícula. E foi nesse momento que lhe veio à ideia como os
outros o chamavam:
- Tio Alberto! Tio Alberto! Acorde! Acorde! Por favor,
acorde!
Acorde! Tio Alberto, acorde!
Finalmente, o Tio Alberto deu sinal de si. Abriu os olhos e
escutou em plena escuridão, aquela voz imperiosa:
- Acorde, Tio Alberto! Acorde! Diga qualquer coisa! Tenho
medo! Não me deixe só!
Pensando que era o Júlio ou o David, Tio Alberto lançou-lhe
um braço à roda do pescoço, puxou-o para si e exclamou:
- Está bem! O quê? Que é, Júlio? É o Júlio ou o David? Vão
dormir. Vão dormir.
E caiu de novo num sono profundo ainda sob a influência dos
narcóticos. O rapaz, porém, sentiu-se mais reconfortado e
fechou os olhos, seguro de que não voltaria a adormecer.
Adormeceu, porém, imediatamente, ao contrário do que
esperava. Toda a noite dormiu a
161

sono solto, que só o despertar do Tio Alberto conseguiu


interromper.
Este começara por estranhar a dureza do leito, mais
estranhando ainda encontrar outra pessoa na cama. Incapaz
de coordenar ideias, estendeu a mão no gesto de quem ia
acender a lâmpada da cabeceira mas foi bater na cara do
Fuliginoso.
Que era aquilo, afinal?
Principiava a sentir-se angustiado quando a voz do
Fuliginoso o transportou à realidade:
- Já está acordado? Ainda bem, Tio Alberto! Desculpe
chamar-lhe assim. Como sei apenas que é pai da Zé e tio do
Júlio...
- Bom. Mas quem me está a falar ? - perguntou o Tio
Alberto, intrigado.
Então o rapaz explicou-lhe o que se passara. O Tio Alberto
escutou com muita admiração, comentando a seguir:
- Mas, porque fizeram isso? Nunca ouvi falar dum caso assim
na minha vida!
- Não sei - respondeu o rapaz - que motivos levaram esse
senhor Barling a raptá-lo. Quanto a mim, sei que foi por eu
ter descoberto o que ele estava a fazer. Seja como for, ele
promete voltar ainda esta manhã com o Block e, segundo me
disse, deseja conversar consigo amigavelmente. O pior é
termos de esperar aqui. É impossível descobrir o caminho
por esta rede de túneis no meio da escuridão.
Esperaram. Barling chegou daí a pouco, acompanhado pelo
Block que trazia comida para os dois prisioneiros.
- És um miserável, Block!-disse o Fuliginoso, ao ver o
criado à luz da lâmpada. - Como

162

te atreveste a uma coisa destas? Verás o que te acontece,


quando o meu padrasto souber. Ou então também ele está
metido nisto...
. - Cuidado com a língua - respondeu-lhe o criado.
O rapaz comentou, estupefacto:
- Ah! Mas tu não és surdo, afinal! Grande velhaco! E foi
assim que chegaste a saber tudo, miserável!
- Aplica-lhe o correctivo que merece; eu não tenho tempo
para tratar de fedelhos - disse o Barling sentando-se sobre
a caixa.
- Pois decerto; não quero perder a ocasião - disse o Block,
sarcàsticamente, desenrolando um baraço de corda.
O pequeno ficou alarmado. Saltou do banco e deu um grito.
- Deixa-me primeiro falar com este senhor - continuou o
Barling. - Depois tratarás desse. Faz-lhe bem esperar um
pouco.
Tio Alberto havia escutado tudo, sem dar sinal de si. E,
antes que Barling iniciasse o discurso, foi ele quem se
adiantou, falando em tom severo:
- Exijo-lhe uma explicação! Quero ser imediatamente
reconduzido ao Monte dos Contrabandistas. E fique sabendo
que terá de prestar contas à polícia!
- Vamos, não se perturbe! Vale mais falarmos doutro
assunto. Quero fazer-lhe uma proposta deveras generosa.
Como é de esperar, eu conheço o motivo da sua vinda aqui e
as razões porque o senhor e o seu amigo Lenoir se
interessam tanto por essas experiências...-disse o
contrabandista, serenamente.

163

- Mas, como é possível ? - reflectiu o Tio Alberto.-Talvez


espionagem.
- Sim, sim! Aposto que foi o espião do Block! - gritou o
Fuliginoso, indignado.
O outro não fez caso do comentário e prosseguiu, dirigindo-
se ao cientista:
- Meu caro senhor, dir-lhe-ei em breves palavras, aquilo
que pretendo e me parece fácil. Suponho haverem-lhe dito já
que eu sou contrabandista. É verdade. E é verdade também
que o contrabando me dá importantes lucros. De resto, o
contrabando aqui é coisa fácil. Compreende-se porquê:
ninguém se atreve a vigiar os pântanos ou a impedir a
passagem dos meus homens. Só eu e uns tantos mais
conhecemos esse caminho secreto. Quando as noites se
mostram favoráveis, eu, ou de preferência o Block, tratamos
de fazer os respectivos sinais do cimo da torre do Monte
dos Contrabandistas...
- Ah! Então sempre era o Block!-gritou o rapaz.
Barling prosseguiu:
- As mercadorias chegam e nós aguardamos o momento
favorável para as recolher. Depois tapamos a carga muito
bem, de modo que ninguém possa desconfiar.
- Creia que ainda não cheguei a perceber a razão desse
discurso. Nada disso me interessa. Só me preocupa o plano
da secagem do pântano. Quero lá saber do contrabando!
Ao que o outro replicou, delicadamente:
- Exactamente, meu querido amigo! Bem o sei. Vi os vossos
planos e tomei, até, conhecimento das vossas experiências.
Mas, repare: a secagem do pântano significa, nem mais nem

164 I

menos, o fim dos meus negócios. Desaparecido o pântano,


construídas as casas, abertas as estradas, desaparecida a
neblina, desaparece também o contrabando! Construam ali um
porto, na orla do pântano!-e os meus barcos nunca mais
poderão passar despercebidos, carregados de valiosas
mercadorias! E não será apenas o dinheiro, o que eu perco.
Acabará, por igual, esta excitação que, para mim, vale mais
que a própria vida!
- Isso é uma loucura! - argumentou o Tio Alberto,
contrafeito.
Aquele aventureiro tinha realmente o seu quê de loucura.
Sentia imenso prazer no contrabando, numa época em que tal
género de vida estava prestes a desaparecer. Amava, por
assim dizer, a aventura das pequenas embarcações através da
neblina; confortava-o saber que os seus homens iam
caminhando com o contrabando, através do pântano em
direcção ao local combinado.
- Mais valia que você tivesse nascido há um século. Isso já
não é trabalho para a nossa época - disse o Fuliginoso,
também convencido de que o contrabandista não tinha o juízo
todo.
Barling voltou-se, colérico, e, à luz escassa da lanterna,
sentenciou:
- Mais uma palavra e garanto-te que vais cair no pântano!
O pequeno compreendeu que assim sucederia. Tio Alberto
pensou o mesmo. Olhando para o Barling com desespero,
perguntou-lhe:
- Afinal, que tenho eu a ver com isto ? Porque me arrastou
para aqui?
- Bem - continuou Barling - eu sei que o senhor Lenoir está
prestes a adquirir os seus planos

165

com o fim de secar o pântano. Sei, além disso, que esse


senhor pretende fazer um belo negócio, vendendo o terreno
depois de seco. Tudo quanto aqui está lhe pertence; mas só
eu consigo utilizar, realmente, o pântano. E não quero que
o sequem. Serei eu - e não o senhor Lenoir - quem lhe
compra os planos!
- Quer dizer: pretende também secar o pântano - disse o Tio
Alberto, admirado.
Barling riu sarcàsticamente:
- Não! Os seus planos, os resultados das suas experiências
- será- tudo queimado! Quero o pântano, tal como é,
secreto, envolvido em neblina, apenas acessível a mim e aos
meus homens. Portanto, meu caro senhor, queira dizer-me
quanto pretende e assinar este documento, pelo qual os seus
planos ficarão sendo exclusivamente meus.
Posto isto, apresentou um documento ao Tio Alberto. O
pequeno susteve a respiração.
O cientista agarrou no documento, rasgou-o em pedacinhos.
E, atirando-os à cara do senhor Barling, disse-lhe com
irritação:
- Não faço negócios com doidos nem com velhacos!
Block soltou um grito de dor e recuou

CAP. XX
TIM ENTRA EM ACÇÃO

Ao ouvir estas palavras, Barling empalideceu, enquanto o


Fuliginoso gritava entusiasmado:- Bravo, Tio Alberto!
Enfurecido, Block avançou para o rapaz e, segurando-o pelo
ombro, levantou a corda, pronto a castigá-lo.
- Assim mesmo! Trata primeiro desse e depois do outro. Vais
ver como lhes faz bem este regime! - disse Barling com
ironia.
O rapaz soltou um grito. Tio Alberto correu em auxílio mas
a corda voltou a descer sobre o pequeno indefeso.
Inesperadamente, porém, ouviu-se o ruído de passos muito
apressados.
Atacado sem esperar, Block soltou um grito de dor e recuou,
deixando cair a lanterna.
Em plena escuridão, ouviu-se um rugido feroz que os deixou
apavorados.
Block procurava fugir. Mas incapaz de libertar-se, mal
chegou a gritar.
Barling avançou, sendo atacado também.
Os dois prisioneiros não conseguiam ocultar o seu pavor.
Esperavam um ataque a todo o momento. Pensavam já num rato
gigante ou qualquer animal feroz que habitasse aquelas
paragens.
O animal feroz, porém, revelou-se repentinamente:- ladrou!
O pequeno compreendeu imediatamente:

168
- Tim! És tu, Tim! Bravo! Atira-te a eles!
Os outros dois homens tolhidos pelo medo, nada conseguiram
fazer.
Correndo a bom correr, escaparam-se pelo túnel, mal
seguindo a corda que lhes indicava o caminho.
Tim perseguiu-os até muito longe. Depois, satisfeito com a
inesperada proeza, voltou para junto dos seus amigos, sendo
recebido com grande alegria.
-Mas, como descobriste o caminho? Deves estar cheio de
fome! Aqui tens! Come! -disse-lhe o Fuliginoso.
Tim devorou tudo. Havia passado fome e sede, durante alguns
dias, mal conseguindo caçar uns ratos e sugar umas gotas de
água.
- Tio Alberto! O Tim é que podia levar-nos para casa. Ouve,
Tim, és capaz de nos ensinar o caminho? - prosseguiu o
pequeno explorador, em apuros.
Tim arrebitou as orelhas, deu uma corrida mas não tardou.
Farejara o inimigo naquelas imediações. Ele bem sabia que
nem o Barling nem o Block eram para brincadeiras.
Não se atrapalhou, contudo. Conhecia já, pela experiência
dos últimos dias, outros caminhos que comunicavam com o
exterior. Um deles era o que dava para o pântano.
E, assim partiram, rodeados pela escuridão, indo o Tim à
frente a indicar o caminho ao Tio Alberto que o segurava
pela coleira.
A viagem era difícil e arriscada, ainda pior devido ao
estado de espírito do Tio Alberto. Este, deveras
constrangido, descalço e apenas envolto

169

no pijama e num cobertor, chegava a duvidar do próprio Tim,


à medida que desciam e tropeçavam, esbarrando, ora aqui,
ora acolá.
O Fuliginoso acompanhava-o, muito aconchegado a ele.
Chegaram, enfim, à orla do pântano, na base do monte. O
espectáculo era desolador. O nevoeiro cerrado impedia os
dois foragidos de procurarem qualquer caminho.
- Não tem importância. Tim sabe o caminho e leva-nos à
cidade - disse o Fuliginoso.
Num instante, porém, o cão estacou, pôs-se a escutar,
mostrando-se agitado, incapaz de prosseguir. Que se passava?
Como resposta à inquietação dos dois, Tim partiu a galope,
voltando pelo túnel donde haviam saído.
- Tim! Tim! Não nos deixes! Vem cá! -gritou o rapaz.
- Tim desapareceu. Porquê ?
- Bom! Creio que o melhor será tentarmos seguir por este
terreno pantanoso - disse o Tio Alberto, tacteando com o pé
a dureza do terreno.
Restava-lhes apenas a abertura do túnel ou a encosta
íngreme e penhascosa do monte, de acesso impossível.
- Sentemo-nos e esperemos um pouco, a ver se o Tim volta -
disse o Fuliginoso.
Sentaram-se numa rocha à entrada do túnel e esperaram.
Enquanto esperavam, o Fuliginoso foi meditando nos outros
camaradas, imaginando a surpresa deles ao darem pela sua
falta.
- Sempre gostava de saber o que andam a fazer - disse em
voz alta.
Os outros, como já sabemos, não se tinham poupado aos
maiores esforços para descobrir o paradeiro dos
desaparecidos.
De tal modo se tinham desenrolado os factos que o senhor
Lenoir se convencera que o Block era um espião e não um
criado fiel, como julgara a princípio.
Ao notar essa modificação, Júlio decidiu-se a falar com
mais franqueza, contando ao senhor Lenoir como haviam
descoberto a passagem secreta por baixo da janela e a
presença de Barling e do Block nos túneis subterrâneos.
- Santo Deus!-exclamou, nitidamente alarmado.- Barling
endoideceu! E o Block? Não querem lá ver? Decididamente
isto é uma conspiração! Agora percebo o motivo de tudo o
que se tem passado. Descobriram os meus planos e os do seu
tio e querem impedi-los de qualquer forma, se não lá vai o
negócio do contrabando. Bonito! Quem sabe, até, o que terá
acontecido! Um caso sério!-concluiu o senhor Lenoir.
- Se ao menos aqui estivesse o Tim - exclamou
inesperadamente a Zé.
O senhor redarguiu admirado:
- Quem é o Tim?
- Bom, já agora mais vale contar tudo - adiantou-se a dizer
o Júlio, explicando as mil e uma habilidades de que se
haviam servido para ocultar o cão.
- Que parvoíce! -comentou o senhor Lenoir, com enfado. -
Podiam-me ter dito, que eu arranjaria alguém para cuidar
dele, aí na cidade. É que

171

não posso suportar a presença de cães nesta casa; nem os


quero ver ao pé de mim.
Os pequenos sentiram-se envergonhados da sua atitude.
Afinal, o senhor Lenoir não era tão mau como parecia.
- Gostava de ir procurar o Tim, enquanto o senhor atende a
polícia. Não há perigo: conhecemos o caminho para a
passagem secreta; é pelo seu gabinete - concluiu a Zé.
- Ah! Já sei! Foi por isso que se escondeu ali, ontem à
tarde. Julguei que fosse alguma partida... Pois bem, vá ver
então se o encontra. Mas uma coisa lhe peço: não o traga
para aqui. Realmente, não consigo tolerar a presença de
cães.
Dito isto, tratou de telefonar outra vez para a polícia.
Marybelle e a esposa ficaram ao pé dele, muito chorosas,
enquanto a Zé, o David, o Júlio e a Ana, mais decididos, se
esgueiraram para o gabinete.
- Vamos todos procurar o Tim. Tanto havemos de gritar e
assobiar que ele acabará por descobrir-nos - disse a Zé.
Procederam como de costume e em breve se encontraram no
estreito corredor que estabelecia ligação entre o gabinete
do Lenoir e o quarto de dormir do Fuliginoso.
Onde estaria o Tim? Que lhe teria acontecido? Foi então que
a Zé se adiantou a explicar:
- Lembram-se de o Fuliginoso nos ter dito que havia outra
ligação entre este corredor e a sala de jantar ? Pois eu
suponho que vi uma porta ou qualquer coisa de semelhante
quando lá passámos. Naturalmente, o Tim empurrou-a e meteu
por outro caminho.

172

Voltaram para trás em fila indiana. Alcançaram a sala de


jantar ou, melhor será dizer, a parede que ladeava a sala
de jantar, com a respectiva porta, pequena e bem
dissimulada, que a Zé notara ao passar. A um empurrão da
audaciosa rapariga, a porta abriu sem dificuldade e tornou
a fechar, com um ligeiro estalido. Só abria de um dos lados.
- Ora aqui está! - concluiu ela - foi por aqui que o Tim
entrou.
Empurrou a porta outra vez, mais e mais, até deixá-la
segura, de modo a não tornar a fechar-se espontaneamente.
- Vamos procurá-lo!-propôs ela.
À entrada, a própria Ana viu-se forçada a curvar a cabeça.
Em seguida deram com um corredor semelhante ao que acabavam
de deixar, embora um pouco mais largo.
Júlio notou que o corredor ia descendo:
- Creio - disse - que vai ter àquela passagem onde
costumamos levar o Tim quando descemos pelo poço. Reparem!
Aqui fica o poço!
Continuaram a chamar o Tim, a assobiar-lhe. Tim não
aparecia. A Zé começou a sentir-se triste.
- Atenção! - exclamou o David - deve ser este o sítio onde
estivemos da outra vez, quando descemos aqueles degraus,
depois da passagem junto à janela. Olhem, aqui está o túnel
onde descobrimos o Barling e o Block.
- E se eles fizeram mal ao Tim? - pensou a Zé, aterrorizada.
O receio da Zé tornou-se contagioso. Efectivamente, era
para estranhar que aqueles dois indivíduos, fora da lei,
deixassem o Tim em paz, uma vez que ele se encontrasse
próximo. Longe andavam

173

de pensar que, naquele mesmo instante, o seu fiel


companheiro se encontrava ao lado dos dois prisioneiros.
Foi o Júlio que os desviou de ideias tristes, mostrando-
lhes o que acabava de descobrir.
- Reparem - disse, apontando a lâmpada, - reparem nesta
corda estendida ao longo do túnel. Porque será?
- Naturalmente é deste túnel que o Block e o Barling se
servem. É lá em baixo que devem estar os prisioneiros. Hei-
de encontrá-los! Quem quer vir comigo?
Eu!-exclamaram todos, a um tempo, sentindo-se incapazes de
abandonar a Zé um só instante.

CAP. XXI
UMA VIAGEM PELAS ENTRANHAS DO MONTE

Desceram pelo túnel. Júlio tacteava a corda, enquanto os


outros seguiam de mãos dadas para não se perderem.
Uns dez minutos decorridos, alcançaram a caverna onde na
noite anterior tinham estado os dois prisioneiros.
- Atenção! Devem ter estado aqui e algo de estranho se
passou - disse o Júlio, apontando a lanterna que iluminou
um banco, umas cobertas e uns pedaços de papel rasgado.
A Zé fez imediatamente o seu raciocínio:
- Barling trouxe-os para aqui e abandonou-os. Quando
voltou, fez uma proposta ao meu pai, que a recusou.
Lutaram; a lanterna caiu e quebrou-se! Oxalá não lhe tenha
acontecido alguma desgraça.
Júlio entristeceu. - Deus queira que não se perdessem por
esses túneis malditos. Nem o Fuliginoso os conhece, a bem
dizer.
- Vem aí gente! Apaga a luz, Júlio - preveniu o David, de
repente. o
Júlio apagou a luz. Deixaram-se ficar na escuridão, à
escuta, a um canto da caverna.
Ouviram-se passos cautelosos que pareciam de duas ou três
pessoas, e cada vez se aproximavam mais. Quem quer que
fosse vinha pelo túnel onde a corda se encontrava. , -
Talvez sejam o Barling com o Block que

175

vêm procurar o pai, para lhe falar outra vez. Afinal, já se


foi embora! -segredou a Zé.
Uma luz intensa, que inundou a caverna, deixou-os sem pinga
de sangue. Ouviu-se a voz de Barling:
- Céus! Mas que vem a ser isto? Júlio ergueu-se e esplicou:
- Viemos procurar o nosso tio e o nosso camarada. Onde
estão?
- O quê? Já não estão cá? E esse cão feroz já desapareceu
também?
- Esteve aqui o Tim ? Para onde foi ? - perguntou a Zé,
exaltada.
Barling vinha acompanhado por dois homens: o criado e o
Block. Pousouv a lanterna e exclamou:
- Querem dizer, com isso, que ignoram onde eles estejam?
Pois garanto-vos que, se abandonarem este lugar, nunca mais
voltarão.
Ana soltou um grito de horror:
- Fique sabendo que foi por sua culpa!
- Deixa, não digas nada!-ordenou-lhe o Júlio, voltando-se
para o Barling:
- Parece-me que o melhor é acompanhar-nos e esclarecer a
situação. Olhe que o senhor Lenoir já está tratando do caso
com a polícia.
- Sim! Então podemos ficar aqui mais um pouco. Considero-
vos meus prisioneiros. Desta vez não conseguireis fugir.
Arranja corda, Block.
Block avançou, acompanhado pelo outro criado. Os dois
seguraram a Zé com violência.
Ela gritou: - Tim! Tim! Onde estás ? Acode-me! Tim!
Tim não apareceu.

176

Depois de terem amarrado a Zé, com as mãos atrás das


costas, voltaram-se para o Júlio.
- Doido! É preciso ser doido para fazer uma coisa destas!-
disse o Júlio para o Barling, que se entretinha a segurar a
lanterna junto dele.
- Tim! Tim! Tim!-gritava a Zé, tentando desenvencilhar-se.
Tim não ouviu; mas, de algum modo sentiu que a sua dona
estava em perigo. E foi nesse momento que abandonou os
fugitivos errantes, para enfiar pelo túnel com uma
violência indescritível.
Preparavam-se para amarrar o Júlio, quando a caverna foi
abalada por uma espécie de furacão.
- Aí está outra vez esse cão terrível! -gritou Block,
apavorado. - Onde está a sua espingarda, senhor Barling?
Tim não quis saber de espingardas. Num salto deitou ao chão
o Block, depois atirou-se ao Barling, rasgando-lhe o ombro.
- Chamem esse cão! Chamem esse cão, que ele mata-nos! -
gritou o Barling, levando a mão ao ombro.
Ninguém se manifestou. O Tim faria o que lhe apetecesse.
O criado do Barling fugira nos primeiros momentos de
confusão. Os outros dois intrusos juntaram-se-lhe em
seguida, errando pelo túnel, às escuras, em busca da corda.
Após a perseguição, Tim voltou, muito satisfeito. A Zé foi
a primeira a receber as suas carícias. E tão grande foi a
sua surpresa que as lágrimas lhe correram pela cara abaixo.
Desatem-me! - pediu ela.
David libertou-a e ao Júlio. Depois abraçaram

177

o Tim com um entusiasmo indescritível e disseram-lhe:


- Agora já podes levar-nos junto dos outros. Deves saber
onde estão.
Tim partiu, agitando a cauda. A Zé segurava-o pela coleira,
enquanto os companheiros seguiam em fila, de mãos dadas.
Prevenidos com dois archotes e uma lanterna, fizeram-se ao
caminho sem dificuldade de maior. Agora não tinham receio
de se enganar. Tim explorara bem o túnel, aproveitando o
seu magnífico faro para guiar a porto seguro os seus
amiguinhos.
- Que animal maravilhoso! Creio que é o cão mais esperto de
todo o mundo!-disse a Ana.
- Certamente!-opiniou a Zé, que sempre tivera a melhor
opinião a respeito do Tim. Viram - continuou ela - como o
Tim nos socorreu quando o Block se preparava para amarrar o
Júlio? Ele bem sabia que precisávamos de auxílio!
- Creio que desta vez nos leva para o pé do teu pai e do
Fuliginoso. Não vês como desce, tão seguro de si ? Aposto
que daqui a pouco estamos no pântano - disse o David para a
Zé.
Chegaram, por fim, à base do monte. À saída do túnel, a Zé
soltou um grito:
- Olha! Lá estão eles!
- Tio Alberto!-gritaram o Júlio, o David e a Ana. -
Fuliginoso! Até que enfim!
Os outros dois voltaram-se, muito surpreendidos. Num salto
ergueram-se e foram ao encontro do cão e dos pequenos, que
nunca mais acabavam de dar largas à sua alegria.
- Como chegaram aqui? Foi o Tim que vos

178

conduziu? Realmente abandonou-nos e desapareceu pelo túnel


- disse o Tio Alberto para a Zé, dando-lhe um grande abraço.
- Que aconteceu? - perguntou o Fuliginoso inquieto por
saber novidades.
-Tantas coisas!-disse a Zé, contente. - Que felicidade
encontrarmo-nos todos aqui! - E imediatamente principiaram
a contar as mil e uma peripécias por que haviam passado.
- Bom! Seria melhor regressarmos, senão a polícia começa a
fazer pesquisas para nos encontrar. Vão ver a surpresa do
senhor Lenoir - concluiu o Júlio.
- Não me agrada muito ir em pijama por essas ruas fora -
objectou o Tio Alberto, aconchegando o cobertor.
- Não se incomode. Há nevoeiro - disse a Zé arrepiada com a
humidade. E voltando-se para o companheiro fiel:
- Tim, ensina-nos o caminho. Tenho a certeza de que não te
enganas.
Tim nunca havia andado pelas imediações daquele túnel mas
não se atrapalhou. Partiu, contornando o sopé do monte,
enquanto os seus amigos o seguiam, comentando, admirados, a
maneira como o Tim se esmerava na escolha dum caminho
seguro. Só um cão extraordináriamente inteligente seria
capaz de descobrir o caminho próprio, tanto mais que o
mínimo descuido seria a queda no pântano.
- Hurrah! Olhem a estrada! -gritou o Júlio, de repente, ao
descobrir o caminho que dava para o monte.

179

Aos saltos, alcançaram caminho mais seguro. Tim procurou


também saltar.
Alguma coisa acontecera, porém. Ao formar o salto, caíra no
pântano, e em vão tentara desembaraçar-se.
- Tim! Esperem! O Tim caiu no pântano e está a afogar-se!
Espera, Tim, espera que eu vou já! -gritou a Zé,
desesperada.
Preparava-se para descer ao pântano e salvar o Tim. O pai
conseguiu ainda agarrá-la.
- Queres morrer afogada ? Deixa que ele consegue sair -
disse o Tio Alberto.
Enganava-se, porém. Cada vez se afundava mais.
- Salvem-no! Salvem-no!- gritou a Zé, tentando fazer alguma
coisa. - Acudam-lhe! - suplicou ela.

CAP. XXII
AFINAL TUDO SE ARRANJA

Mas que poderiam eles fazer?Apenas lastimar a pouca sorte


do Tim que, em vão, lutava com todas as suas forças no meio
do lodo.
- Lá vai ele para baixo!-gritou a Ana, a chorar, num
desespero.
De repente, ouviu-se o ruído dum camião. A Zé fez sinal:
- Pare! Pare! Venha ajudar-nos que o nosso cão vai morrer
afogado - gritou a Zé desvairada.
O camião parou. Num relance, Tio Alberto examinou a carga
que trazia e, ajudado pelo Júlio, arrancou imediatamente
algumas pranchas. Caminharam em direcção ao pântano e,
lançando umas poucas de tábuas, correram a salvar o Tim.
A seguir veio o motorista com mais tábuas para substituir
as que se haviam sumido já no lodo.
- O Tio Alberto já salvou o Tim. Está a arrancá-lo do
pântano. Aí vem ele-disse a Ana.
A Zé, comovida e extremamente pálida, sentara-se, de
repente, na orla da estrada, ao ver que o Tim fora salvo.
Não fora, porém, empresa fácil. A lama espessa dava a
impressão de querer sugá-lo.
Enfim, já liberto, avançou através das pranchas semi-
submersas, sendo recebido de braços abertos pela dona que
exclamou:

182

- Oh! Tim! Que susto nos pregaste! Ai! O cheiro que tu


deitas! Que eu não me importo! Não queria que tu morresses!
O motorista do camião olhou com tristeza para as tábuas que
se afundavam. Então, o Tio Alberto, ainda que pouco à
vontade naquelas roupas de ocasião, apressou-se a
tranquilizá-lo:
- Aqui não tenho dinheiro - disse - mas se o senhor se
dignar passar pelo Monte dos Contrabandistas, eu me
encarregarei de recompensá-lo pelas suas tábuas e pelo
auxílio valioso que nos prestou.
- Pois sim! Olhe, eu vou levar carvão à outra casa a seguir
ao Monte dos Contrabandistas. Talvez queiram aproveitar.
Ali há espaço bastante, no camião - disse o motorista,
deitando uma olhadela ao trajo exótico daquele senhor.
A noite descia. O nevoeiro aumentava. Sentiam-se fatigados.
Por isso a oferta não podia ser melhor.
Saltaram para o camião. O carro subiu, roncando encosta
acima, não tardando a chegarem ao Monte dos Contrabandistas.
- Voltarei amanhã. Agora não posso demorar-me. Boa-noite a
todos - disse o condutor.
Um tanto abalados pela fadiga e pelas emoções, os
inesperados visitantes tocaram à campainha. Sara correu a
abrir a porta, ficando quase muda de espanto ao dar com
aquele grupo.
- Louvado seja Deus! Já aqui estão! Que alegria! Olhem que
a polícia anda por aí à vossa procura. Já desceram às
passagens secretas, foram a casa do senhor Barling,..

183

Tim irrompeu pelo hall, empapado em lama quase seca, que


lhe dava um aspecto curioso. Sara soltou um grito:
- Que é isto ? Pode lá ser um cão ?
- Vem cá, Tim! - disse a Zé, lembrando-se de que o senhor
Lenoir não gostava de cães. - A Sara não se importa que ele
fique aí na cozinha? Realmente não posso mandá-lo para a
rua. Não calcula as proezas que praticou.
- Anda daí! Anda daí! O senhor Lenoir pode tolerar o Tim,
ao menos uns minutos, com certeza - disse-lhe o pai, farto
de tanta conversa.
- Pode ficar comigo, pode. Eu me encarrego de lhe dar um
banho. Disso é que ele precisa. E o senhor precisa de
vestir-se, certamente. Os senhores estão na sala de espera.
Encaminharam-se para a sala, enquanto o Tim seguia
docilmente para a cozinha na companhia de Sara.
Ao ouvir semelhante vozearia o senhor Lenoir correu a abrir
a porta da sala.
A senhora Lenoir abraçou-se ao pequeno, chorando
copiosamente. Marybelle abraçava-o e acarinhava-o.
O senhor Lenoir esfregou as mãos e deu-lhes umas
pancadinhas nas costas exclamando:
- Óptimo! Óptimo! Ainda bem que chegaram sãos e salvos!
Hão-de ter muito que contar!
- Um caso muito estranho, na verdade - disse Tio Alberto. -
Mas, antes de mais, tenho de cuidar dos meus pés. Andei
umas poucas de milhas descalço.
Por entre pedaços de narrativas, a cozinheira andava numa
roda-viva, ora preparando roupa e água quente para o Tio
Alberto aliviar os pés, ora levando comida e bebidas
quentes aos demais recém-chegados.
Não podia ser maior a excitação. E, agora que o perigo
havia passado, os pequenos sentiam-se orgulhosos de terem
participado em tão estranhas aventuras.
Com a chegada da polícia, principiaram os interrogatórios.
Todos queriam fornecer informações e pormenores. O
Inspector, contudo, achou melhor interrogar somente o Tio
Alberto, o Fuliginoso e a Zé, uma vez que estes conheciam
quase tudo.
No meio daquele cenário, o senhor Lenoir era, por certo,
quem se mostrava mais surpreendido. E, quando ouviu falar
das propostas que Barling fizera para a compra dos planos
da secagem do pântano, e até, da maneira franca como
admitira a condição de contrabandista, não conseguiu
dissimular a sua admiração.
- Que loucura! Nem parece deste tempo! - exclamou o
Inspector.
- O mesmo lhe disse eu - comentou o pequeno aventureiro.
- Ainda tentámos apanhá-lo em flagrante. Impossível!
Esquivava-se sempre. Vejam como se lembrou de colocar aqui
o Block para espiar e fazer sinais da torre. Parte-se do
princípio que ninguém desconfiaria dele, uma vez que
passava por surdo sendo, assim, incapaz de perceber
qualquer conversa-concluiu o Inspector.
- Não acham que seria melhor ir procurar o Block, o Barling
e o outro homem? Devem andar

185

perdidos pelos túneis; tanto mais que, dois deles, foram


mordidos pelo Tim - informou o Júlio.
- É verdade! Afinal foi esse cão que vos salvou. Já é
preciso ter sorte. Lamento que o senhor Lenoir não goste de
cães. No entanto, há-de concordar que, sem ele, tudo
estaria perdido - disse o Inspector.
- Sem dúvida. Mas devo dizer que o Block também os
detestava. Talvez por temer que o denunciassem. Pois bem:
onde está então esse animal prodigioso? Não me importo de o
ver por uns instantes, embora continue a detestar cães -
disse o senhor Lenoir.
- Vou já buscá-lo. Oxalá que a Sara lhe tivesse dado banho.
Estava tão sujo -justificou a pequena, saindo.
Tim apareceu. Mas era um novo Tim! Sara tivera o cuidado de
o tratar com esmero. Depois do banho, ofereceu-lhe uma
esplêndida refeição que o deixara com óptimo aspecto.
- É um grande amigo, este Tim! -exclamou a Zé com
solenidade.
Tim contemplou o senhor Lenoir e em seguida aproximou-se,
levantou delicadamente a pata direita para o cumprimentar,
seguindo as regras que a Zé lhe ensinara.
O senhor Lenoir ficou literalmente espantado. Nunca pensara
que um cão pudesse ter maneiras tão elegantes.
Cumprimentou-o conforme pôde, mas Tim conteve-se e retirou
delicadamente a pata, soltando um ligeiro uf!, como quem
dizia passou bem?, e voltou para o pé da Zé, tranquilamente.
Avançou para o senhor Lenoir e levantou delicadamente a
pata dianteira, a cumprimentar - Nem parece um cão!-
exclamou o senhor Lenoir, vivamente surpreendido.
- Mas pode ter a certeza de que é um cão, extraordinário e
muito mais inteligente que a maioria dos cães. Sempre dá
licença que ele fique comigo, enquanto estivermos aqui?
Pode-se arranjar na cidade uma pessoa que cuide dele -
sugeriu a Zé.
- Está bem. Atendendo às suas qualidades excepcionais...-
disse o senhor Lenoir, fazendo um grande esforço para ser
generoso. Só lhe peço que o conserve longe de mim. Creio
que um rapaz tão inteligente deve compreender, não é
verdade?

187

Os outros fizeram uma pequena careta quando o senhor Lenoir


lhe chamou rapaz. Nunca havia reparado que se tratava duma
rapariga. Já agora ficaria sem o saber.
- Garanto-lhe que não tornará a vê-lo. Muito obrigado por
tudo - respondeu-lhe a Zé satisfeita.
O próprio Inspector simpatizara com o Tim. Examinou-o com
atenção e propôs à Zé:
- Quando quiser desfazer-se dele, já sabe! Conte comigo!
Não imagina os serviços que este animal pode prestar-nos.
Como era de esperar, a Zé nem sequer respondeu a esta
sugestão. Seria incapaz de o abandonar, por qualquer preço.
Não obstante, o Inspector viu-se forçado, no dia seguinte,
a pedir a colaboração do Tim.
Barling e os companheiros haviam desaparecido e não davam
quaisquer indícios de existência. Foi por isso que o
Inspector pediu à Zé se deixava o Tim ir explorar os
túneis, em busca dos desaparecidos que acabariam por morrer
de fome.
Tim partiu e, ao cabo de algumas pesquisas pelos túneis
subterrâneos, descobriu os seus inimigos, em estado
lastimoso.
Não lhes fez mal. Limitou-se a conduzi-los ao local
combinado, onde a polícia os esperava já. E aqui terminou a
canseira destes homens singulares.
Então, o senhor Lenoir sentiu desejos de se justificar aos
polícias:
- Devem estar satisfeitos - disse. - Durante muito tempo
bem procuraram acabar com o contrabando, chegando a
desconfiar de mim. Mas Barling era bastante esperto e, ao
conhecer os

188

nossos planos de secagem do pântano, compreendeu


imediatamente que tal empreendimento era um golpe mortal no
seu contrabando. Assim acabariam todas as peripécias e a
riqueza que lhe davam esses negócios secretos. É bom
lembrar que a polícia encontrou nada menos que uma caverna
cheia de mercadorias.
Agora que tudo passara, os pequenos sentiam-se importantes
por terem participado em tão misteriosas aventuras.
De um erro apenas se sentiam culpados: haverem julgado o
senhor Lenoir muito pior do que era, de facto.
- Sabem que vamos deixar o Monte dos Contrabandistas ? -
disse o Fuliginoso. - A mãe ficou de tal maneira abalada
com o meu desaparecimento que ele lhe prometeu sair daqui,
se eu voltasse. Ficámos todos contentes; eu também não
gosto disto.
- Bom, se vocês ficam satisfeitos, eu nada tenho a dizer -
comentou o Júlio. - Creiam, no entanto, que este local me
agrada bastante: o nevoeiro, os caminhos secretos, o cimo
do monte... Lamento não poder voltar aqui, se vocês partem
para sempre.
- Também eu - acrescentaram o David, a Ana e a Zé.
- É a terra das aventuras! Não é verdade, Tim? Que tal? -
exclamou a Zé dando-lhe umas palmadas carinhosas.
- Uf! - fez o Tim agitando a cauda, a manifestar intensa
satisfação de que a Zé também partilhava.

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- Agora, felizmente, terminaram as aventuras. Estou farta!-


disse a Marybelle.
- Mas não estamos nós!-exclamaram os outros.
E, para eles, continuariam ainda muito mais aventuras - que
estão reservadas somente a quem gosta de aventuras.

FIM

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