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(DES)ENCONTROS DE CORPOS DE CRIANÇAS E ADULTOS NAS BRINCADEIRAS

INFANTIS

Joaquim Ramos1
Resumo: O artigo analisa a relação corporal estabelecida pelas crianças com um pesquisador adulto, do sexo masculino,
no momento de brincadeiras no parquinho, a partir da inversão do contrato geracional, pois diferentemente do que
ocorre no cotidiano da instituição, o evento focaliza o momento em que as crianças cuidam desse adulto. Como parte da
pesquisa de doutorado, realizada em duas turmas de educação infantil, na cidade de Belo Horizonte/Brasil, o autor
buscou captar a perspectiva das crianças sobre as relações estabelecidas no espaço institucional e utilizou para a
produção de dados, a observação participante, os registros fotográficos, fílmicos e do caderno de campo. Como atores
sociais, as crianças produzem sentidos sobre as relações de gênero a partir das interações que estabelecem entre si e
com os adultos. Assim, o texto discute modos genuínos que meninos e meninas utilizam para perceber e explorar o
corpo do adulto. Essa inversão de papéis – pouco comum nas práticas de cuidado e de educação – provocou
estranhamentos na vice-diretora e na coordenadora que, de modo veemente, questionaram o fato de o corpo do
pesquisador se transformar em objeto de brincadeiras das meninas. Por fim, o texto discute a necessidade de se
considerar, em pesquisas com crianças, a corporeidade como categoria de análise nas relações entre adultos com as
crianças e adultos entre si nessa primeira etapa da educação básica.

Palavras-chave: infância; educação infantil; corpo; adultos e crianças.

1. A pesquisa: na relação intergeracional, encontros e desencontros de corpos

A Igreja diz: o corpo é uma culpa. A Ciência diz: o corpo é uma máquina. A
publicidade diz: o corpo é um negócio. E o corpo diz: eu sou uma festa
(Eduardo Galeano, 2002).

Produzido a partir de dados empíricos que compõem o corpus de análise de minha tese de
doutorado, o texto analisa como, de modo sui generis, os corpos de crianças e adultos encontram-se
e desencontram-se, aproximam-se e distanciam-se por meio de distintos significados socialmente
produzidos no âmbito da educação infantil. No limite do artigo, apresento alguns dados empíricos
para analisar os diferentes sentidos atribuídos por adultos e crianças aos corpos, em um processo de
interação entre o pesquisador e alguns sujeitos, inclusive as crianças, de uma instituição pública de
educação infantil, localizada em um bairro da periferia de Belo Horizonte.

Nas tessituras cotidianas em que mulheres e homens, meninos e meninas se encontram para
alinhavar as atribuições vinculadas à educação e ao cuidado em instituições educativas, há inúmeros
marcadores identitários que colocam em evidência tudo aquilo que é tido como norma, deixando às
margens, em especial, nos espaços institucionais, o que se apresenta como diferente ou como
representante da exceção. De modo especial, dentro desse universo tão específico da educação
infantil – primeira etapa da educação básica – há muito o que se discutir sobre os significados
socialmente construídos sobre corpo, sexualidade, gênero, diferenças e afins. Assim, de modo

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Estudante do Doutorado Latino-Americano/Programa de Pós-Graduação: conhecimento e inclusão social em
educação, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisa Histórico-
Cultural na Sala de Aula (GEPSA), FaE/UFMG.

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focalizado, o objetivo do artigo é tecer análises sobre como o corpo do pesquisador, ao ser tocado
por crianças de quatro anos de idade, apresenta diferentes sentidos para os diferentes sujeitos: de um
lado, as crianças que brincavam com esse corpo adulto e, no plano discursivo, conversavam sobre
essa ação; de outro lado, os adultos que, como espectadores e em nome de uma moralidade pública,
colocaram em xeque a ação e, no meio de crianças que brincavam e de adultos que observavam, o
artigo analisa também a forma como o pesquisador se posicionou frente a esse processo interativo e
como esses múltiplos olhares acarretaram posicionamentos conflitantes sobre os corpos e as
relações de gênero no interior do espaço institucional de educação infantil.

Para esse empreendimento, apresento parte de material empírico de pesquisa de doutorado,


em curso na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (Doutorado Latino-
Americano) que apresenta como principal objetivo, a partir de uma abordagem contrastiva entre
duas instituições de educação infantil – uma situada em Belo Horizonte (Brasil) e outra localizada
em Bogotá (Colômbia), compreender as estratégias de resistência produzida por crianças desses
dois países frente às regulações impostas por adultos/educadores em contextos institucionais de
educação e de cuidado.

Metodologicamente, a pesquisa adota uma abordagem qualitativa, (MINAYO, 1994, p. 22),


devido à natureza singular e delimitada do referido objeto de estudo. Analiticamente, a investigação
assume uma lógica etnográfica, com o objetivo de construir um ponto de vista êmico, ou seja,
tencionando captar o ponto de vista de dentro, dos membros do grupo pesquisado (GREEN,
DIXON, ZAHARLICK, 2005). Além da observação participante, a pesquisa utiliza a entrevista com
adultos, roda de conversas com meninos e meninas, filmagens e fotografias, desenhos produzidos
pelas crianças vinculados à oralidade.

Ao direcionarmos o olhar para os corpos de meninas e meninos, as palavras de Galeano,


colocadas como epígrafe neste texto, matizam contribuições que ampliam nosso entendimento
acerca dos modos como as crianças estabelecem relação com o mundo, transformando o corpo –
suporte material no qual se fundem agência e estrutura (dimensões constitutivas das relações
humanas) – em lócus da experiência subjetiva vivida (COUTINHO, 2010). Quando é permitido à
criança se aproximar do corpo alheio (no caso, de um adulto), esses diferentes corpos, como
mediadores, possibilitam a emergência de novas aprendizagens e descobertas, marcadas,
simultaneamente, por representações distintas (de gênero, de sexualidade, de geração, dentre outras)
e por processos de produção/apropriação/criação de novos sentidos. Na realidade, brincar com as

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crianças é um ato de recíproco de trocas. E assim, nas brincadeiras, o corpo se transforma no local
onde se materializa o social. A criança ao utilizá-lo como forma de expandir o mundo, ligando-o ao
lúdico, quando possível, faz derivar outros sentidos para as interações sociais, para a ocupação de
tempos, de espaços e para o manejo de diferentes artefatos, confirmando, desse modo, a existência
de ilimitadas formas para a construção de conhecimentos e de saberes. Dito de outro modo, nas
interações sociais, as crianças aprendem e apreendem o mundo em seu entorno, mobilizando
integralmente seus corpos; isto é, fazendo um trocadilho, com seus corpos, de variadas maneiras, as
crianças aprendem de corpo inteiro.

2. Brincando com o corpo do pesquisador: inversão da ordem do cuidar para alteridade

Durante o processo de observação participante, no campo de pesquisa, ao inserir-me num


momento de brincadeiras junto a um grupo de meninas, foi possível presenciar e participar de um
evento2 em que diferentes sentidos se amalgamavam nas relações entre adultos e crianças,
colocando em evidência modos distintos de significar os corpos de adultos e de crianças naquele
espaço institucional. Estavam presentes dezessete crianças de quatro anos de idade, sendo dez
meninos e sete meninas. Ao chegar, dirigi-me à sala de referência dessa turma, que àquela altura já
se organizava para, juntamente com o professor de apoio, se dirigirem ao parquinho.

Acompanhei as crianças até aquele espaço e passei a observar as brincadeiras de meninas e


meninos. Entre risos e correrias, as crianças se espalhavam por todos os lados, em interações
diversas. Naquele ir e vir, dali de onde eu estava, foi possível observar um grupo de meninas que
brincavam de casinha. Sem incomodá-las, aproximei para observá-las mais de perto. Ana3, a menor
das três, com ar de seriedade e com uma pequena boneca de plástico, desnuda, nas mãos,
aproximou-se de mim e convidou-me para brincar, atribuindo a mim o papel de pai da boneca.

Aceitei de imediato o convite e com a boneca em mãos, iniciei um diálogo com a mesma,
nos moldes praticados pelas próprias crianças. Agora, totalmente desinteressado das demais
atividades que ocorriam no parquinho. Simulei uma conversação entre pai e filha, exatamente como
as crianças costumam fazer. Ana, vez ou outra, mexendo em outros brinquedos, fazia algum

2
Na perspectiva da etnografia interacional (GREEN, DIXON, ZAHARLICK, 2005), o evento é concebido como “o
conjunto de atividades delimitado interacionalmente em torno de um tema comum num dia específico. Um evento não é
definido a priori, mas é o produto da interação dos participantes. É identificado analiticamente observando-se como o
tempo foi usado, por quem, em quê, com que objetivo, quando, onde, em que condições, com que resultados, bem como
os membros sinalizam mudança na atividade” (CASTANHEIRA, 2004, p. 70).
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Por questões de ordem ética os nomes das crianças e dos adultos foram substituídos por nomes fictícios.

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comentário também, como se, de modo tácito, sem necessidade de combinados ou explicações, ela
própria fosse a mãe da boneca/criança.

Dado momento, a bonequinha caiu no chão e, imitando o choro de uma criança, naquela
interação de brincadeira, entreguei-a para Ana cuidar, atribuindo, discursivamente, no plano do faz
de conta, essa incumbência à mãe da menina/boneca. Enquanto isso, uma segunda menina – Suelen
– se aproximou e disse que iria passar batom em mim. Portava um giz de cera nas mãos. Iniciou o
ritual de passar o batom, simulando que pintava meus lábios. Em seguida, trocando a cor do
“batom” – de vermelho, para marrom – disse que iria, neste momento, colorir o meu corpo. Sem
demonstrar resistência ou constrangimento, permiti que ela “pintasse” também o meu corpo.
Enquanto essas ações ocorriam, uma terceira menina – Cristina – com uma escova de brinquedo na
mão, se pôs a pentear os meus cabelos. Ana, deixou a boneca de lado e se pôs a me passar perfume
e a simular que estava fazendo a minha barba. Estávamos envolvidos nessa brincadeira de faz de
conta, através do toque e da palavra: ao mesmo tempo em que elas me “arrumavam para a minha
namorada”, dialogávamos sobre aquela ação. Ana, Suelen e Cristina, por diversas vezes, às
gargalhadas, iam relatando o que cada uma fazia em meu corpo.

Após algum tempo, Cristina, olhando atentamente para os meus cabelos e em seguida para a
minha barba meio grisalha, disse para as coleguinhas que eu estava ficando velho. Assenti e
emendei a conversa perguntando se ela gostava de cabelos brancos. Parando o que fazia, sem
responder minha pergunta, ela apenas afirmou que seu pai também estava ficando velho e com
cabelos brancos. Logo em seguida, continuou o que havia, momentaneamente, interrompido.

Após “pintar” o meu rosto, como se fosse exímia maquiadora, Suelen iniciou a pintura do
meu peito, abrindo o primeiro botão da minha camisa. Desta maneira, com o giz de cera,
inicialmente, “pintou” a parte de cima do meu peito e em seguida, não se inibiu de continuar a
pintura, abrindo mais um botão de minha roupa.

Pela potencialidade daquela ação, eu que havia iniciado a gravação do evento com o celular,
solicitei ao professor que continuasse filmando para mim. Assim, após abrir todos os botões de
minha camisa, Cristina continuou “pintando” o meu corpo, até tirar totalmente a minha camisa.
Todos nós ríamos da brincadeira e do jeito das três meninas relatarem o que faziam. Simulei sentir
vergonha do corpo sem camisa e assim, sob os protestos delas, que queriam continuar a brincadeira,
encerramos aquela o processo de “embelezamento” e de “cuidados”. Vesti a camisa agradecendo a
elas e agradecendo também aos meninos que haviam, de modo tímido, sem muitas interferências, se

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aproximado da brincadeira. Logo em seguida, finalizou o horário do parquinho. Crianças e adultos
retornaram à sala de referência.

3. Crianças, adultos, corpos, gênero e sexualidade na educação infantil


O conceito de gênero tornou-se, particularmente nas ciências humanas e sociais, não apenas
um instrumento de análise, mas também um instrumento de autoconstrução humana no bojo das
relações sociais que devem ser fundadas na justiça e na igualdade, a partir do reconhecimento e do
respeito pela diferença. A palavra gênero, conforme ressalta Marília Pinto de Carvalho (2012), era
usada especialmente para nomear as formas masculinas e femininas na linguagem e foi apropriada
como um termo contrastante com sexo, designando, desta forma, o que era socialmente codificado
como masculino ou feminino. Para essa autora, há, entretanto, outra definição mais recente de
gênero que não se opõe a sexo,

mas inclui a percepção a respeito do que seja sexo dentro de um conceito socialmente
elaborado de gênero, uma vez que assume que as próprias diferenças entre os corpos são
percebidas sempre por meio de codificações e construções sociais de significado. O gênero
não seria um conceito útil apenas na compreensão das interações entre homens e mulheres,
mas uma parte importante dos sistemas simbólicos e como tal, implicado na rede de
significados e relações de poder de todo o tecido social (CARVALHO, 2012, p. 403).

Desta forma, a categoria gênero tem sido cada vez mais usada para referir-se a toda
construção social que se relaciona à distinção e hierarquia entre o masculino e o feminino e se
articula com outras categorias, dentre as quais, é possível destacar a de sexualidade, classe,
raça/etnia, geração, dentre outras. Como enfatizado por Nicholson (2000), além de gênero ter sido
desenvolvido e sempre ser usado em oposição a “sexo”, para descrever o que é socialmente
construído, em oposição ao que é biologicamente dado, também tem sido usado como referência a
qualquer construção social que tenha a ver com a distinção masculino/feminino, incluindo as que
separam corpos “femininos” de corpos “masculinos”. Para autora,

'Gênero' é uma palavra [...] usada de duas maneiras diferentes, e até certo ponto
contraditórias. De um lado, o 'gênero' foi desenvolvido e sempre será usado em oposição ao
'sexo', para descrever o que é socialmente construído, em oposição ao que é biologicamente
dado. Aqui, 'gênero' é pensado como referência a personalidade e comportamento, não ao
corpo; 'gênero' e 'sexo' são, portanto, compreendidos como distintos. De outro lado, 'gênero'
tem sido cada vez mais usado como referência a qualquer constituição que tenha a ver com
a distinção entre masculino/feminino, incluindo as construções que separam corpos
'femininos' de corpos 'masculinos' (NICHOLSON, 2000, p. 09).

Assim, se o corpo é concebido a partir de uma compreensão social, o sexo não pode ser
independente do gênero. Apesar do segundo sentido, por ela descrito, ser amplamente difundido
entre as feministas, ainda é perceptível uma forte influência do primeiro sentido em conceber o

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corpo à margem, isto é, fora da cultura e da história, mas concebido como “um cabide de pé, no
qual são jogados” diferentes casacos que são entendidos como “artefatos da cultura”
(NICHOLSON, 2000, p. 12).

No evento apresentado na seção anterior, percebe-se que, ao se articular as categorias corpo,


infância e gênero, diferentes representações simbólicas – entendidas por Nicholson (2000) como
simbologias sobre gênero – são lançadas na interação por adultos e crianças.

Uma primeira dimensão da análise daquele evento aponta para a centralidade do corpo
adulto na interação com as crianças. Na brincadeira, procurei não exercer nenhuma forma de
cerceamento, pois logo de início, sou convidado a brincar e a mim é outorgado o papel de pai (que
de modo geral, no imaginário coletivo, representa figura central na família nuclear). Talvez, essa
posição central na brincadeira seja atribuída à minha figura masculina, a minha maior idade e, é
claro, ao meu corpo que abarca essas e outras características e difere substancialmente dos corpos
das crianças. De modo genérico, é um corpo grande imponente e que age sobre os corpos das
crianças, principalmente em um contexto de educação infantil, no qual as práticas de cuidados e
educação são executadas pelos adultos nos e através dos corpos de meninos e de meninas. Isso
demarca uma primeira relação de poder em que os corpos de crianças são conformados, adornados,
cuidados e educados por adultos.

Nesta interação, as três meninas ao brincarem com um homem adulto, realizavam uma
aproximação corporal pouco recorrente no âmbito das instituições de educação infantil e, de certo
modo, controversa, ao inverterem a ordem das relações de cuidado. Consecutivamente, deram
outras lógicas ao contrato geracional: neste momento, não eram elas as destinatárias das ações de
cuidados por parte dos adultos, como comumente ocorre; ao contrário, as meninas eram quem, ao
brincar, cuidavam de um corpo adulto. E não se tratava de um corpo qualquer, mas sim de um corpo
masculino, com marcas identitárias e com todas características de um homem adulto. Por vezes, ao
serem questionadas sobre o que elas faziam, de maneira risonha, afirmavam recorrentemente, que
estavam cuidando de mim para eu ficar bonito para a minha namorada. Pensando nesse evento, essa
afirmação me fez crer que as meninas reconheciam que aquela ação (cuidar de um homem adulto)
era pouco comum, além de inusitada e que só se tornou exequível por meio da brincadeira porque
um homem (adulto), na condição de pesquisador, não se importou de ser tocado por elas,
constituindo, dessa maneira, um acontecimento pouco comum nas instituições de educação infantil.

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Assim, essas reiteradas afirmações sobre cuidar do meu corpo para a minha namorada,
pareceu-me uma justificativa estratégica, pois nesta afirmação ficou subsumido a ideia de que por
tratar de um ato complexo, à medida em que partes encobertas do corpo são gradativamente
desvestidas, é pouco admissível que seja feita sem uma justificativa, legitimando, dessa forma,
ações pouco convencionais no âmbito das brincadeiras. Assim, primeiro, brincam de pentear-me, de
fazer minha barba, deixar-me perfumado e de maquiar-me para o suposto encontro com minha
namorada. Em seguida, apoiando-se no discurso dos cuidados e do embelezamento do corpo para
esse possível encontro, decidem ampliar as explorações corporais e passam a cuidar de um corpo
encoberto. Num misto de exploração, ludicidade e interação, Suelen, de modo gradativo, tira minha
blusa e passa a “pintar” meu tórax e abdômen, firmemente apoiada no discurso (comum e, por
vezes, supervalorizado em nosso senso comum) do embelezamento do corpo, em especial, do corpo
de um homem que irá ao encontro do corpo de uma mulher; no caso, da namorada.

Em dado momento do evento, a outra menina, por nome de Cristina, percebe as marcas
etárias que revelam a distância geracional entre os corpos, em especial de um corpo-adulto de um
sujeito que brinca em relação a outros corpos e traz discursivamente o corpo do próprio pai para a
cena e, ao afirmar que, em função da barba e dos cabelos grisalhos, eu estava ficando velho, essa
criança deu indícios de reconhecer a existência de corpos que se diferem, que se deterioram com a
passagem do tempo e, por outro lado, se assemelha a outros corpos de uma mesma geração.

Contudo, as crianças não foram as únicas a expressarem os sentidos e os significados sobre


o corpo do adulto-pesquisador. A direção e a coordenação da instituição, de modo contrário ao que
as crianças expressaram, demonstraram, também no plano discursivo e em nome da comunidade
escolar, que esse encontro entre os diferentes corpos (os das crianças e o do pesquisador) poderia
gerar conflitos com a comunidade por ser inconveniente naquele espaço do brincar. Essa questão
será desenvolvida na seção a seguir.

4. (In)compreensões, encontros e desencontros de corpos no contexto da pesquisa


Para Louro, Gelipe e Goellner (2005), a tradição do humanismo ocidental nos ensinou a
pensar o corpo como o elemento menos nobre dos pares corpo-alma, corpo-espírito, corpo-mente,
corpo-razão. A compreensão de que o corpo ocupa o lugar da natureza, do primitivo, o lado animal
e instintivo em oposição ao lugar da cultura, do civilizado, do racional ou do humano é,
indubitavelmente uma herança da racionalidade positivista ocidental. Entretanto, para que o produto
dessas dicotomias fosse tido como verdadeiro e funcional, foi necessário tornar esses polos como

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exteriores, independentes e incontaminados um ao outro, fazendo com que o corpo não fosse
pensado como instância da cultura ou da política e, dessa maneira, aqueles e aquelas que se
ocupavam da educação pareciam despreocupados com ele. No entanto, a não preocupação escolar
com o corpo é apenas aparente, pois todos os processos educativos sempre estiveram – e estão –
preocupados em vigiar, controlar, modelar, corrigir, construir os corpos de meninos e meninas,
jovens, homens e mulheres, tornando-os objeto da mais meticulosa atenção, não apenas das escolas,
mas de várias instâncias sociais (LOURO, 1999).

Desse modo, conforme afirmou Galeano na parte inicial desse texto, se para a igreja o corpo
significa culpa, para o mercado significa negócio e é reificado pela ciência, cabe, então, perguntar:
o que pensa a escola sobre o assunto? Não precisamos de muitas elucubrações para responder a essa
indagação, basta visitar as nossas próprias memórias, de modo especial, nossas lembranças do
tempo de criança. Louro (1999) nos lembra que a educação escolar tem um modo muito específico
de tratar os corpos de crianças, jovens e adultos e de se incumbir de limitar as ações desses mesmos
corpos, deixando-os com visíveis marcas desse espaço institucionalizado, capacitando-os para
ficarem sentados por muitas horas e difundindo modos próprios para a expressão de gestos ou
conformando os comportamentos indicativos de interesse e de atenção no sentido de atender aos
específicos objetivos institucionais.

Na escola, o corpo é moldado aos afazeres voltados às ocupações do intelecto e por isso,
exige-se dele determinado tipo de postura e disciplina. Mesmo não explicitado, de acordo com as
instituições escolares, desde a educação infantil, corpos dóceis apresentam pressupostos básicos
para ajudar a impulsionar a qualidade da educação, pois a obediência contribui para a preservação
da ordem e da disciplina. Assim, com prescritivas argumentações, a escola exige “uma postura de
aluno” no espaço institucional: dentre outros, é possível destacar o silenciamento das vozes, a
acomodação de corpos em espaços distintos, a quietude de movimentos, o não incômodo ao colega
e aos professores e a preservação da “paz”, tudo isso deve reinar no ambiente escolar, o que,
supostamente, faz sobressair, de modo mais evidente, um sujeito mais capacitado para enfrentar os
desafios da vida e se dar bem no futuro. Esse tipo de argumentação que para os estudantes funciona
de modo tautológico, é veiculado de reiteradamente no ambiente escolar. Postos em fileiras, os
corpos perfilados precisam obedecer aos comandos exigidos e prescritos nos ordenamentos dos
espaços que ocupam. Parece aprazível à instituição escolar o “aprisionamento de corpos”, o que
sugere, de alguma maneira, a intenção de fazer “aflorar” o conhecimento e o pensamento crítico,
ficando as vozes dissonantes e os corpos que não se enquadram, fora do jogo e em condição

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marginal. Nas palavras de Hooks (1999), nós, professores(as), estamos treinados a aceitar a
separação entre o corpo e a mente. Entramos na sala de aula como se somente a mente estivesse ali.
“O mundo público da aprendizagem institucional é um lugar onde o corpo tem de ser anulado, tem
que passar despercebido (HOOKS, 1999, p. 115).

Contudo, no que concerne às especificidades da educação infantil – tanto no que tange à


indissociabilidade das situações de cuidado e educação e ainda a centralidade dada às interações a
às brincadeiras de meninas e meninas – corpos de adultos e crianças são colocados na cena
pedagógica, fazendo com que essa invisibilidade seja posta à prova. Ou seja, há uma implicação
muito significativa quando o assunto são os corpos de adultos e crianças na educação infantil.

Por mais que a legislação brasileira tenha avançado nos últimos anos (com possibilidade,
agora, neste último período da vida política brasileira, de enormes retrocessos), representações de
gênero ainda envolvem os corpos de adultos e crianças no interior das escolas e também das
instituições de educação infantil. Em outra pesquisa (RAMOS, 2011; 2017), percebi que a inserção
de homens na docência de crianças de até seis anos de idade, é marcada por um distanciamento
destes profissionais das práticas de cuidados, em função da proximidade dos corpos de um homem
com os corpos das crianças. Desse modo, os profissionais de educação infantil do sexo masculino,
vivenciavam um processo denominado de período comprobatório4, um período em que a
comunidade escolar avaliava se este profissional representava (ou não) algum risco
físico/corporal/sexual às crianças.

Em relação ao evento apresentado na introdução desse artigo, percebi que mesmo tendo
obtido a confiança de adultos e crianças, não era conveniente que corpos de crianças se
aproximassem demasiadamente de corpos adultos, em especial, do corpo de um homem adulto
inserido nas brincadeiras infantis relacionadas ao cuidado, pois o que se seguiu deixou-me reflexivo
e incomodado. Ao final daquela tarde de trabalho no campo de pesquisa e já me preparando para
sair da instituição, fui convocado pela vice-diretora, e pela coordenadora para uma conversa, às
portas fechadas. A vice-diretora, de maneira enérgica, iniciou a conversa afirmando ter presenciado

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Ao analisar a inserção e permanência dos professores do sexo masculino na docência da educação infantil, identifiquei
que esses profissionais, para além do cumprimento do período probatório (inerente ao serviço público), passam também
por outro período de avaliação denominado de estágio comprobatório. Esse período de comprovação se conforma,
como um conjunto de rituais que possibilita a aceitação (ou não) dos professores homens como parte constitutiva da
comunidade escolar. Ritos que acontecem nas temporalidades, nos espaços e nas relações travadas por eles com as
famílias, com as demais profissionais da instituição e, inclusive, com as crianças. Somente após a constatação de que
esses sujeitos (professores homens) são idôneos, possuem capacidade, competência e uma sexualidade ilibada, recebem
então o aval para atuarem junto às crianças sem tanta vigilância e tantos receios.

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aquela “cena”, da janela de sua sala, e precisava entender o que havia acontecido. Por isso, segundo
ela, havia ido à sala das crianças para questioná-las sobre o ocorrido no parquinho, antes mesmo de
me chamar para conversar. Fiquei surpreso com a reação das duas gestoras. Até aquele momento,
eu não imaginava que a convocação era para tratar da brincadeira ocorrida minutos antes, no
parquinho e nem que haveria uma repercussão tão negativa.

Tentei, sem muita escuta, explicar que havia sido apenas uma brincadeira entre um adulto e
três crianças, presenciada por outros adultos e outras crianças. Entretanto, o principal argumento
utilizado por elas era o de que alguém da comunidade poderia ter presenciado aquela cena e nesse
momento político em que o país atravessa, ações como essas poderiam não ser toleradas. A vice-
diretora completou a ideia:

“Nosso país é muito cristão e quando mexe com sexo, com gênero sexual (sic), ainda
prevalece muito isso. Nem nós mesmos estamos preparados. Quando eu vi, de longe, eu
disse: - eu não tô acreditando... elas tiraram a camisa dele! Gente do céu! A única coisa
que passou pela minha cabeça foi se um outro homem entra aqui. Imagina um pai entrando
aqui?” (Vice-diretora da instituição)

Em meu entendimento – talvez, míope – havia a explícita clareza de que ninguém poderia
colocar maldade naquela brincadeira, por se tratar de um acontecimento que, mesmo não sendo
parte da rotina da instituição, não representava nenhum tipo de maldade ou apresentava qualquer
conotação sexual, no entanto, essa compreensão estava, diametralmente, contrária ao pensamento
das gestoras que, de modo reiterado, enfatizavam o medo de que alguém da comunidade pudesse
presenciar aquela cena, pois eu deveria saber “o quanto a comunidade é difícil e tem uma
mentalidade diferente da nossa”. Assim, mesmo não concordando com a argumentação das duas
gestoras, explicitei, rapidamente, minha posição e, sem polemizar, disse ter compreendido, pedi
licença e saí.

5. Considerações finais
As diferentes concepções sobre ser homem, ser mulher, ser menino, ser menina, no interior
de uma instituição educativa, podem ser ressaltadas ao pensar o corpo como marcas societárias e
históricas, no entanto, é preciso compreender o sujeito em toda a sua inteireza e em suas mais
diversas dimensões: biológica, afetiva, cognitiva, psicológica, histórica, cultural, estética, lúdica,
linguística... É necessário compreender as concepções que os seres humanos desenvolvem a
respeito do corpo e como o comportamento corporal está condicionado a fatores sociais, históricos e
culturais, pois o corpo, dentre outras atribuições, revela a nossa singularidade e caracteriza o grupo

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social a que pertencemos. O corpo é uma construção sociocultural e política e como produto e
produtor de cultura, é construído ao longo da vida, apresentando suportes sociais contraditórios.

O evento acima apresentou infinitas nuances e envolveu modos distintos para a construção
de sentidos sobre os comportamentos dos diferentes sujeitos, criando, dessa maneira, alguns
percepções diferenciadas para os envolvidos. Por parte das crianças, retomando a epígrafe de
Galeano (2002), o corpo, naquele momento, era pura festa e continuou sendo festa até o final do ano
letivo. Por parte das gestoras, o corpo ou os corpos era(m) pura interdição e representavam perigo.
Já o pesquisador, buscou evitar confronto nas relações, em conformidade com os ordenamentos das
gestoras (vice-diretora e coordenadora) e de modo precavido, a partir desse acontecimento procurou
não ter o corpo tocado ou tocar os corpos das crianças.

Logo que a vice-diretora iniciou sua argumentação, foi possível perceber que a tentativa de
convencê-la seria improdutiva e desse modo, cabia ouvi-la, sem contestação ou resistência. Apesar
de não convencido pelas argumentações apresentadas, fiz algumas poucas ponderações, na tentativa
de explicar o quanto estamos impregnados de prescrições sociais e o quanto aguçamos os nossos
preconceitos com argumentos atravessados pela presença de “um outro” ausente – e que pode nem
existir. Entretanto, no momento em que mencionaram a política nacional e a “Escola sem Partido5”,
convenci-me de que, efetivamente, nenhum argumento seria capaz de dissuadi-las ou fazê-las
relativizar os conceitos já formados. Dessa maneira, convicto do conservadorismo (sempre)
presente em nossa sociedade e em nossas instituições escolares, após escutar os argumentos
proferidos, já bastante afetado por aquelas palavras, de maneira polida, pedi licença e saí.

6. Referências bibliográficas

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Educação Pública. Cuiabá, v. 21 n. 46, p. 401-412 maio/ago. 2012.

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aula. 1. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. v. 1. 191p.

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Em artigo intitulado: “Escola sem partido: estratégia golpista para calar a educação”, da Revista Carta Capital do dia
13 de abril de 2017 (https://www.cartacapital.com.br/educacao/escola-sem-partido-estrategia-golpista-para-calar-a-
educacao) “É no contexto do golpe político em curso no Brasil de 2016 que situamos a análise do Projeto Escola Sem
Partido (PLS 193/2016, PL 1411/2015 e PL 867/2015). Esse projeto visa eliminar a discussão ideológica no ambiente
escolar, restringir os conteúdos de ensino a partir de uma pretensa ideia de neutralidade do conhecimento. Trata-se de
uma elaboração que contraria o princípio constitucional do pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, assim
como o da liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber, considerando como
válidos determinados conteúdos que servem à manutenção do status quo e como doutrinários aqueles que representam
uma visão crítica”.

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
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corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.

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LOURO, Guacira Lopes, FELIPE, Jane, COELLNER, Silvana Vilodre. Corpo, gênero e
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RAMOS, Joaquim. Um estudo sobre os professores homens da educação infantil e as relações


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(mestrado em educação) Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. 139 p.

(MIS)MEETING OF BODIES BETWEEN CHILDREN AND ADULTS DURING


CHILDHOOD GAMES
Abstract: This paper analyzes the bodily relation established by children in contact with an male
adult researcher during chilhood games, parting from an inversion of the concept of ‘generational
contract’, in which, unlike what commonly happens in the school daily life, the focus leans on the
moment when the children take care of the adult. As part of his doctorate research, that took part
between two elementary school classes of Belo Horizonte/Brazil, the author tried to reach the
children perspective about them established relations in this institutional space and has used as
methodology the ‘participant observation’, photographic and film records and his fieldwork
notebook. As social actors, children produce different meanings about gender relations, parting
from them interaction between themselves and with adults. In this direction, this paper deals with
the genuine ways throughout boys and girls put in action in order to perceive and explore the adult’s
body. This inversion of roles – slightly unusual among care and educational practices – has caused
strangeness on the vice-director and coordinator, who questioned the use of the researcher body as
an object of girl’s plays. Finally, the paper discuss the need to consider, among academic researches
about childhood the ‘corporeity’ as a category of analysis to explore the relations between adults
themselves and with children in the context of elementary education.

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
Key-words: childhood; elementary education; body; adults; children

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

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