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Vivian Abenshushan
tradução
Notas
sobre os
doentes de
velocidade
CADERNO DE LEITURAS N.105 / NOTAS SOBRE OS DOENTES DE VELOCIDADE / VIVIAN ABENSHUSHAN 2
NOTA DA EDITORA
Valery Larbaud
CADERNO DE LEITURAS N.105 / NOTAS SOBRE OS DOENTES DE VELOCIDADE / VIVIAN ABENSHUSHAN 4
Penso em uma história política da velocidade. À margem tenho que dizer: eu também co-
Começaria com os revolucionários franceses nheço o êxtase da velocidade. Uma noi-
disparando em direção a todos os relógios das te, para viajar no contrafluxo da rodovia
praças públicas. Cidade do México-Cuernavaca, saí da ci-
dade na véspera do ano-novo. O restante
O que é um relógio? Uma forma de parcelar a do mundo, por sua vez, parecia retornar
existência em fragmentos definidos e ativida dela. Do outro lado, o tráfego se movia
des regulamentadas. Um adorno com funções como um molusco. Do meu, a rodovia es-
policiais. tava deserta. Foi então que sentei o pé
no acelerador, atenta à aparição de algum
Relógios de sol ao redor dos quais se deslo carro. Viajava sozinha. Quando vou com
cam as sombras, inúteis em um dia nublado. meu marido e meu filho, não passo dos 110
Relógios em que escorriam gotas de água km/h, por precaução. Me tornei uma mo-
ou a areia deslizava. Artefatos aproximados torista lenta e as viagens longas, na estra-
e inexatos, anteriores ao relógio mecânico, da, quando vou ao volante, costumam ser
alheios à produtividade. Os revolucionários eternas. Temo a velocidade porque conhe-
franceses disparavam contra outro tipo de ço minhas debilidades. Sou uma mulher
relógios, os mesmos que presidiram a vida ansiosa e presa fácil dos vícios. Após dez
regrada dos monastérios desde o século XI e, anos sem fumar, meus pulmões ainda não
mais tarde, as torres das prefeituras de toda a se recuperaram de minhas noites de vicia-
Europa. Esses relógios de precisão se difundi da em tabaco. E voltar a escrever depois
ram durante o Renascimento nas cortes reais, disso foi tão difícil e doloroso que procurei
onde se investiam fortunas para aperfeiçoá não associar meu “trabalho intelectual” a
-los. Aparatos cada vez mais sofisticados, nos nenhuma outra substância tóxica. Tenho
quais finalmente habitariam os ponteiros de medo da dor da perda, do insuportável dia
minuto e segundo, ditando cada movimento seguinte. Naquela noite, porém, as condi-
dos homens, símbolos de poderio e controle ções haviam abolido para mim o limite de
social, os tiranos do cotidiano. velocidade. A rodovia estava submersa na
escuridão e sobre ela, atravessando-a, as
O agricultor trabalhava em conformidade com linhas fluorescentes do asfalto adquiriam
os processos cíclicos da natureza; o artesão o uma densidade cósmica. Lembro que es-
fazia segundo o tempo necessário para aper cutava a música eletrônica do Air a todo
feiçoar seus objetos. O operário, por outro volume: sons interestelares e atmosferas
lado, trabalhava seguindo as necessidades da subaquáticas estendidos durante longos
indústria, fundada no princípio de “mais pro minutos. Trip-hop. Descia à toda velocida-
dução em menos tempo” (as origens da nossa de por um túnel de curvas perigosas cui-
pressa). À medida que as pessoas se muda dadosamente sinalizadas. Aquilo parecia
ram do campo para a cidade e começaram a o pavilhão do ouvido do mundo. No meu
trabalhar nos mercados e nas fábricas, nos corpo (a boca do estômago, os músculos),
primórdios do capitalismo, seus dias foram palpitava uma emoção ambígua: metade
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se rebaixando a segmentos cada vez mais medo, metade excitação. Por acaso eu es-
finamente divididos. O tempo para trabalhar tava às portas de uma percepção distinta?
e o tempo para comer, o tempo para abrir as No umbral da transgressão? A luz intensa
portas e o tempo para fechá-las, a hora das sobre o fundo negro, a desaparição da
assembleias e as reuniões nas tavernas, a hora paisagem, uma sensibilidade acústica in-
de dormir e a de voltar a começar. tensificada, a proximidade do perigo: tudo
aquilo propiciava uma sensação de falta
“O relógio converte o tempo de um processo de gravidade. A velocidade é isso: perder
da natureza em uma mercadoria que se pode peso. De repente, eu era um peixe no aquá-
medir, comprar e vender, como telas ou sabões” rio, um astronauta flutuando entre nuvens
(George Woodcock). de gás e matéria escura. Atravessava uma
experiência estética que pouco ou nada se
Quem são os únicos que não têm pressa? Os afastava dos estados alterados de cons-
vagabundos, os farristas, os desocupados ciência. Eu sentia a embriaguez do líqui-
e as crianças, que são as imperadoras do do, a vertigem daquela noite estrelada que
tempo verdadeiramente livre, esse que ainda apenas me mostrava o movimento, a fuga,
não entrou na sala escura dos interrogató a ultrapassagem. E eu não tinha tomado
rios. Todas elas se encontram em posse de nada; todo o efeito dependia da velocida-
seu tempo e enquanto brincam ou caminham de. Em algum momento, tive o desejo de
a esmo não há um ponteiro que lhes recorde ir ainda mais rápido, sentir talvez a proxi-
a hora. Entre esses se encontram também os midade da morte. Como tinha acontecido
preguiçosos, os que abandonam as tarefas, os comigo tantas outras vezes com o cigarro,
que desertam. A preguiça é isso, “uma estra me encontrava às portas de um prazer su-
tégia subjetiva para desrespeitar as coerções blime (sombrio e belo e inevitavelmente
do relógio” (Barthes). O preguiçoso é, segundo doloroso) de que emergia um tipo de pres-
a etimologia latina, um homem lento. Alguém sentimento metafísico que alguns piegas
que desafia de maneira indireta o dogma uni ainda chamam eternidade.
ficador da prontidão, um rebelde passivo: faz
as coisas, é verdade, mas mal e com demora. Em 1977, Bill Gates foi detido em Albu
querque por dirigir em excesso de veloci-
Trocar a frase: “Trabalhar contrarrelógio” por dade. Uma famosa foto o mostra posando
“trabalhar contra o relógio”.1 para a ficha policial com um sorriso ado-
lescente e cândido. Acontecia-lhe com
1 [Nota do tradutor] No original: “Cambiar la frase: frequência, reincidia sem remorsos. Dois
‘Trabajar contra reloj’ por ‘trabajar contra el reloj’.” anos antes havia fundado a Microsoft, uma
A autora se opõe, portanto, à corrida contra o tempo companhia de software em que trabalha-
- “contrarrelógio”, expressão de alguns esportes, como va e programava todos os dias até o ama-
o ciclismo, em que vence aquele que obtiver o menor
tempo no cronômetro - e defende uma espécie de
nhecer (inclusive nos fins de semana). Sua
libertação da tirania do tempo totalmente dividido e única distração: os automóveis. Porsche
regrado, “útil”, simbolizado pelo relógio. 930, Porsche 959, Mercedes, Jaguar XJ6,
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Como assinalou Lewis Mumford, o relógio é a Carrera Cabriolet 964, Ferrari 348. Trocava
máquina-chave da era das máquinas, por sua de marca com os tremores de um viciado.
influência tanto na tecnologia como nos costu Amava a velocidade quase tanto quanto a
mes humanos. Em seu coração mecânico batia programação. Mas não se tratava, no fun-
já o motor do progresso obsessivo com a velo do, de uma mesma vocação? Chegar mais
cidade, cujo primeiro clímax é o automóvel. longe, cada vez mais rápido. O espírito do
turbocapitalismo encarnado em uma única
“Um dos maiores prazeres da vida é viajar em pessoa. Não é por acaso que um de seus
uma carroça que corre a toda brida”, disse o livros sobre a importância da internet no
Doutor Johnson no século XVIII. mercado se titule: Negócios à velocidade
do pensamento.1
Um século mais tarde, em 1849, o escritor inglês
Thomas de Quincey aderiu à celebração da velo A velocidade destrói. Não é por isso que no
cidade, mas, ao olhar o mundo pela primeira vez fundo nos parece sedutora? Penso em to-
a partir do banco de uma carruagem-correio, das essas pessoas que assinam suas apó-
intuiu (“em um relâmpago de terrível intuição lices de seguro contra acidentes como se
simultânea”) que se tratava de um prazer abo fossem as atas de sua sentença de morte.
minável, em cujo fundo se assomava a possi E depois de olhar os esqueletos de carros
bilidade de que a viagem acabasse mal, entre batidos pendurados pelos guindastes, não
veículos batidos, rodas e pernas retorcidas, deveríamos pensar, como fez J. G. Ballard,
em meio a uma incompreensível confusão. No que, se na verdade temêssemos o acidente,
fundo da velocidade espreitava a morte súbita. a maioria de nós seria incapaz de comprar
um carro, quanto mais dirigi-lo? Mas na
The English Mail-Coach2 é um dos primeiros verdade acontece o contrário. Passamos
relatos sobre a perda de controle de nossas boa parte de nossa vida no carro, embora
próteses técnicas. Em meio à vertigem do novo lhe dirijamos diariamente nossas queixas.
veículo, entre saltos e sacudidas, De Quincey O século XX, diz Ballard, alcança quase
entendeu que na aceleração existe algo irre sua mais pura expressão na rodovia. Até
sistível e proibido, uma sedução trágica de a chegada da internet, o carro foi a prisão
consequências incalculáveis, e descreveu pela perfeita, nosso pequeno universo de me-
primeira vez o caráter paradoxal da velocidade: tal e plástico, o lugar em que podíamos
por um lado, fonte de fascinação e símbolo gozar uma sensação de liberdade, ligeire-
de liberdade, movimento e ausência de gra za, porvir, enquanto víamos passar a vida
vidade (o corpo liberado, por fim, de seu pró pelas janelas. O que substituirá o volante?
prio peso); mas também: agente da catástrofe O deslocamento por controle remoto, ou
seja, o confinamento nas vias de informa-
ção, em que a velocidade encontrou seu
2 [N.t.] Ensaio em três partes de Thomas de Quincey (1785-
1859), que evoca em seu título o sistema de entregas de
cartas por carruagens-correio usado na Grã-Bretanha, na 1 [N.t.] No Brasil, A empresa na velocidade do
Irlanda e na Austrália, entre o século XVIII e meados do XIX. pensamento.
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(uma louva-a-deus que termina por devorar mais além; a velocidade da luz, a veloci-
seu amante). dade das ondas eletromagnéticas.
Como faria com o tema do assassinato, a beleza Leio Crash, o romance em que Ballard
do incêndio e os efeitos do láudano, a primeira leva sua meditação sobre as chaves de
coisa que De Quincey percebeu ante a chegada uma nova sexualidade associada ao au-
da carruagem-correio foi o acontecimento esté tomóvel até suas últimas consequências.
tico, aqueles “grandiosos efeitos visuais con Perturbador e reiterativo, cheio de vísce-
seguidos entre a luz da carruagem e a escuri ras e choques grotescos, em Crash os per-
dão dos caminhos solitários”, aquela “glória do sonagens não apenas não temem o aciden-
movimento” associada à sucessão trepidante te, mas na verdade o desejam e buscam
das imagens noturnas. De Quincey amava a obsessivamente. O erotismo perverso das
amplitude de perspectivas que adquiria a rea batidas de carro, os radiadores afunda-
lidade vista a partir do teto do veículo e também dos entre as pernas como fetiche sexual.
a rapidez com que se transmitiam as vitórias Esse reino em que imperavam a violência
de Waterloo. Mas nada superava o prazer de e o coito foi a metáfora premonitória com
observar esses últimos veículos deslizando que Ballard anunciava a colonização do
como rajadas pela janela. O movimento de corpo pela técnica. Como sua adaptação
quem permanece imóvel, isso deve tê-lo entu ao cinema por David Cronenberg, o roman-
siasmado enormemente: a forma como a quie ce provocou discussões ríspidas sobre os
tude no interior do veículo era envolta por um limites da censura. Devia ou não ser pu-
cenário frenético, exatamente como acontecia blicado? Antes já havia ocorrido o mesmo
com o comedor de ópio em seus devaneios. Eis com uma série de serigrafias de automó-
aí como a velocidade (inclusive aquela de onze veis batidos realizada por Andy Warhol nos
milhas por minuto 3 que hoje nos parece ridí anos sessenta, com imagens extraídas da
cula) já era uma percepção alterada do mundo, imprensa sensacionalista. Nenhuma gale-
alucinação instantânea (e sem síndrome de ria queria mostrá-las. Porque a socieda-
abstinência) que havia chegado para ampliar de não suporta a exibição de sua própria
as dimensões da ilusão. obscenidade. E teme a morte (embora sua
proximidade lhe pareça excitante). No fim
Antes que o cinema o fizesse, De Quincey inven das contas, não vivemos colados ao espe-
tou o artifício da câmera lenta. No fim das táculo do atroz transmitido a cada noite
contas, The English Mail-Coach não é nada no noticiário?
além do relato obsessivo de um acidente con
gelado no tempo: o momento em que um veí Li que a cada quatro vezes que alguém
culo, no qual viaja o próprio De Quincey, está a escreve uma palavra em uma busca de
internet, em uma delas a palavra está
relacionada a sexo ou pornografia. Não
3 [N.t.] Aparentemente a autora desejava dizer onze milhas
por hora, equivalente a pouco mais de 17 quilômetros por é o seu caso, lógico. Mas a metáfora do
hora. corpo-máquina se tornou, admitamos ou
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ponto de provocar a morte de um jovem casal não, nossa maneira de estar no mundo,
que caminha distraidamente em uma caleche. livres das amarras do espaço e do tempo,
O fato inevitável da catástrofe teve um efeito tão abduzidos pela velocidade das comunica-
brutal na imaginação sempre excitável de De ções instantâneas. Pode haver algo mais
Quincey – uma imaginação que, além de ser a viciante que a satisfação imediata? Isso é
maior de suas faculdades, havia se robustecido a internet: a droga definitiva. “Um lugar no
de maneira dramática graças a seu vício por ópio qual podemos nos abandonar aos prazeres
– que deixou como sequela pesadelos durante corporais liberando-nos de nossos corpos
vários meses, como se algo no fundo de seu cére reais” (Slavoj Zizek). Os personagens de
bro necessitasse de repetições contínuas (e em Ballard acreditavam ainda no prazer dos
ralenti4) daquele momento impenetrável. ferimentos. Tenho muitos amigos que per-
deram o juízo alimentando todo tipo de ob-
Embora elogiasse a velocidade, De Quincey sessões através da rede, maquinando re-
foi sobretudo um habitante da lentidão, o lações fantasmais que os mantêm atados
meio natural do viciado em ópio e do escritor à tela como o junkie à seringa. Mas seus
absorto, alheio aos ditames do relógio. Homem corpos permanecem incólumes, distantes
de outro tempo, De Quincey viveu a mutação da ameaça da aids ou da decepção sexual.
radical dos ritmos humanos introduzida pela A falta de gravidade (ou desmantelamento
máquina, mas nunca se adaptou à pressa das do corpo) fabrica suas intoxicações. Quem
grandes cidades industriais; o ópio e a escrita não demonstrará sua impaciência diante
foram os bastiões em que se entrincheirou de qualquer processo real de sedução
sozinho. Sua narração em câmera lenta, atra frente à certeza de que o mecanismo li-
vessada pelo ritmo vegetal do ópio, já é uma geiro do ciberespaço funciona de imediato,
crítica ao excesso de velocidade. em qualquer parte?
O século XIX foi simultaneamente o século da Descrevi no outro extremo deste ensaio o
Revolução Industrial e a era dos grandes come lado sombrio da velocidade, que tem se-
dores de ópio. De que outro modo era possível duzido e conquistado o mundo. Mencionei
suportar uma vida dedicada a apertar parafu o ministério público, onde se acumulam
sos no mesmo lugar, doze horas por dia? Tanto mortes por excesso de velocidade. Mas
trabalho sem valor, tanta pressa, semearam deste lado não julgo. Me pergunto se eu,
vários inválidos nas casas de ópio e nas taber em lugar de condenar a velocidade, conse-
nas. A chegada da máquina cumpria os ideais guisse afastá-la e olhá-la de frente, se pu-
da industrialização, mas logo isso saiu do con desse indagar minha própria relação com
finamento das fábricas para encadear os ritmos ela (suas seduções, minhas resistências),
da vida urbana. De um momento para outro, a se conseguisse isso, conseguiria torná-
celeridade das cidades sepultava os costumes -la uma substância complexa, despojá-la
de sua barbárie: compreendê-la. Porque
4 [N.t.] Ralenti: em francês no original, em ritmo lento, o único crime do ensaísta é o de ser su-
vagarosamente. perficial, passar pelas coisas demasiado
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que haviam prevalecido durante séculos, asso rápido. A ensaísta é uma mulher lenta?
ciados aos ritmos agrícolas, às festas religiosas, Eu sou, embora tenha um iMac de quatro
aos períodos de trabalho e ócio da oficina fami memórias que é um azougue. Sou uma ha-
liar. A experiência era vertiginosa, excitante, e bitante do tempo lento. Demasiado lento.
ao mesmo tempo produzia uma alteração pro Uma mulher não pontual. E estas são mi-
funda, uma ansiedade incurável. nhas confissões.
Tédio, desassossego, spleen: os primeiros mal Tenho dez anos e no rádio do carro se
-estares da velocidade. escuta, minuto a minuto, a “hora do
Observatório, a mesma de Haste, Haste, a
“O ópio domesticado adoçará a dor das cidades”, hora do México”.2 Faz frio, saímos corren-
esse era o remédio que pediria Jean Cocteau do. Minha irmã e eu comemos um pedaço
para curar os doentes de velocidade, uma de pão tostado com geleia no banco de
desintoxicação da realidade pela via de uma trás do Volkswagen. Minha mamãe dirige;
intoxicação contrária: permanecer imóvel na meu papai fica em casa dormindo (sofre
cama, entregar-se à vida mental, renunciar aos de insônia ou lê até as cinco da manhã).
horários de uma existência atrofiada e regida Lembro da cena como uma imagem recor-
pela produção. rente, quase como uma definição precoce
de meus ritmos adultos: embora vivês-
De Quincey entendeu que a velocidade era semos a seis quadras da escola, sempre
uma forma de ver que excedia o olhar humano. chegávamos tarde. Ou em cima da hora.
Chegava-se a ela sempre tarde demais, como Usávamos a proximidade como desculpa
se a realidade sobre rodas fosse inalcançável e para acordarmos tarde e sem pressa, para
nunca fosse possível lançar sobre ela a sonda atrasar nossa entrada no mundo uns mi-
do pensamento. Não havia meio de harmonizar nutos a mais, que sempre me pareceram
a rapidez do acidente e a assimilação da expe muito breves. Como faziam as crianças
riência, a leitura dos acontecimentos. Quando que viviam do outro lado da cidade para
ele advertiu a dificuldade de ver as coisas chegar na hora? Talvez não resistissem. Ou
através das barreiras da velocidade, decidiu resistiam menos. Pobres criaturas domes-
retornar ao observatório (extraordinariamente ticadas. Nós, por outro lado, como nosso
mais atento e pausado) da escrita, a única força pai, adorávamos a cama. Adoramos ainda,
capaz de manipular o instante e estudá-lo de o encantamento da posição horizontal, a
perto, como um pássaro dissecado em pleno sabedoria da quietude. Uma tendência me-
voo. Escrevendo: assim se alivia a alma do cho lancólica? Apenas em parte. Sintomas de
que da velocidade. Em sua narração, a catás um corpo enfermiço e sem vigor? Quase
trofe progride com um ritmo lentíssimo, oposto
ao de sua violência súbita, como se De Quincey 2 [N.t.] A frase entre aspas era repetida várias vezes
quisesse penetrar nos personagens da caleche ao dia na rádio XEQK-AM, que desde os anos 1940
intercala a hora exata com propagandas e já faz
até fazê-los se desprender de sua agonia. parte do imaginário da Cidade do México. Haste é
“Entre eles e a eternidade, para todo cálculo uma marca de relógio.
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humano, não há nada além de um minuto e nunca. É simplesmente que ali dentro o
meio”. Conheço poucas frases mais belas e mundo não nos exigia. Em posição fetal
arrepiantes sobre a natureza do acidente que ou esparramadas, quase obscenas, ali éra-
esse minuto e meio amplificado na narração de mos completamente nós mesmas; a fronha
De Quincey antes que a morte aparecesse, de do travesseiro era a bandeira com a qual
repente, incontestável. Trata-se de uma frase exigíamos nossa solidão. Porque não há
que antecipa aquela outra, escrita na virada espaço mais amplo nem lugar em que um
do século, em pleno império da velocidade, por indivíduo seja mais livre do que sua pró-
Cocteau, outro adorador do ópio e suas proprie pria cama. A partir dali pode observar seus
dades para estender o tempo: “Um acidente de domínios mentais. A cama é sediciosa, so-
automóvel, uma catástrofe ferroviária, são as bretudo quando se faz bom uso dela. Não
obras de arte do inesperado. Se pudéssemos me espanta que a realidade conspire com
ver em ralenti como velocidade e imobilidade tanta veemência contra ela. Mas todos os
torcem o ferro com dedos de estilista!”. acusadores da cama fazem sermões em
vão: se entra e se sai da cama, mas a ela
A capacidade de deter a ação indefinidamente se retorna sempre. Acredito que minhas
não continua a ser uma das qualidades da arte? melhores ideias (talvez, diria, as únicas)
Não se trata apenas de estilizar a atrocidade do foram concebidas ali, na cama, e quando
acidente, mas sim de se embrenhar nele para terminei a universidade fiz todo o possível
tratar de entendê-lo. para não voltar a ter horários coercitivos
Ao ler a velocidade, atuamos como taxidermis que me tirassem dos lençóis violentamen-
tas do segundo. Resistimos a desaparecer. te. Mas o mundo não se importa com sua
cama, padece “o mal do ímpeto” e a en-
Paul Morand disse que a velocidade – a droga fermidade do progresso, como os Zurov,
do século XX – não era apenas um estimulante, os personagens hiperativos do romance
mas também um depressor, um explosivo cujo de Iván Goncharov. Ou como minha mãe,
manuseio era perigoso, capaz de fazer saltar que é uma mulher extraordinariamente
não apenas nós mesmos mas o universo inteiro. ativa, valente, madrugadora, amante das
“O único vício novo”, sentenciou em seu ensaio caminhadas e do ar livre: o exato oposto
“Sobre a velocidade”. Uma substância tóxica, (e complemento) de meu pai. Nada a de-
assassina e vibrante que conectava todas as tém, em seus setenta e três anos conserva
cidades. Cosmopolita e esnobe, adorador dos uma energia vital arrasadora. Fica inquie-
deslocamentos e das viagens motorizadas, ta se continua na cama e ainda hoje se
Morand se entretinha dando corda todos os desespera um pouco porque suas filhas
dias em todos os relógios do mundo. Como ficam nela mais tempo do que o devido.
primeiro habitante da aldeia global, a melhor Que teria sido de nós sem seu contrapeso?
parte de sua obra se encontra em seus livros Jamais teríamos vencido aquele momento
de viagem. Mas, entre todas as suas explo de indecisão ou pânico que provoca nos
rações (Nova York e a Cidade do México indivíduos sensatos sair da cama para se
incluídas), a mais lúcida (e perigosa) foi a que internar na selva da vida. Com o tempo,
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Trata-se de algo para além do substituto ante a mesmo um traidor. É castigado, demitido,
banalidade da existência (já Sherlock Holmes perde a palavra. Ninguém tem permissão
preferia os efeitos da coca “à estupidez do coti para permanecer absorto.
diano”); a cocaína procura um extraordinário
estímulo mental, vigor e uma capacidade de Mas a falta de pontualidade não é outra
trabalho redobrada. Não é estranho que ela se forma de pressa?
tornasse a imperatriz imediata de uma socie
dade que glorifica o coeficiente intelectual, a Uma voz no rádio diz que são sete e qua-
produtividade e se subleva diante da inação. renta e cinco. O alarme tocará às oito.
Nessa manhã, que são todas as manhãs
– Posso lhe perguntar se neste momento está do mundo, vejo em mim a atrasada que
envolvido em alguma investigação? eu já sou. De repente sinto ansiedade nas
pernas, essa crispação de nervos, carac-
– Nenhuma. Por isso é que uso cocaína. Não terística dos animais urbanos ameaçados
posso viver sem fazer o cérebro trabalhar. Há pela pressa. No carro, nós três ficamos em
alguma outra coisa pela qual valha a pena silêncio, como se manter a boca fechada
viver, Watson? nos ajudasse a chegar na hora. Fora: o ruí-
do das buzinas; dentro, o vapor nas jane-
O filósofo e urbanista Paul Virilio escreveu que las e as sequências publicitárias da “Hora
o processo de aceleração do mundo é irrever Exata” que permanecem quase intactas na
sível, mas não por isso devemos desistir de memória. Chocolates Turim, sabor do início
interrogá-lo. O próprio Virilio propôs a criação ao fim. A publicidade é assim, indelével.
de uma nova ciência, a dromologia, dedicada Sobretudo se escutada obsessivamente
ao estudo e à análise da velocidade, ou seja, à no caminho da escola: Sabão do Tio Nacho,
compreensão do transe descomunal em que desinfetante da pele e do couro cabeludo.
estamos metidos desde que Doutor Johnson Mestre mecânico, Marcos Carrasco, garante
começou a correr sobre sua carroça rumo ao rigoroso controle de qualidade em retífica
nada. A tarefa parece não apenas fundamen de motores. Atenção Reis Magos! Bicicletas,
tal, mas urgentíssima, como tudo nessa época motocicletas, brinquedos, patinetes. Casas
ultrarrápida, ou um dia qualquer a realidade Radioamérica, Argentina número 44. Para
se extinguirá diante dos nossos narizes por móveis nem pensar, só Baltasar, a esquina
excesso de velocidade, como já ocorre com boa que domina: Aldama e Mina, Buenavista.
parte da nossa existência que consiste em ir De Sonora a Yucatán se usam sombreros
de um lado para outro sem parar, ou seja, sem Tardán. Por seu magnífico sabor e deliciosa
tempo para viver. suavidade, a cerveja é Corona. XEQK propor-
ciona a hora do Observatório, a mesma de
“É preciso ter tempo se desejamos nos entre Haste, um novo conceito de tempo:
ter com relógios”, escreveu Ernst Jünger em
seu livro consagrado à ampulheta, o único Sete da manhã e cinquenta e seis minutos.
tipo de relógio que tolerava em seu escritório, Sete e cinquenta e seis.
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justamente porque não tinha nada a ver com Que experiência inesquecível – quer di-
o incômodo tic-tac de um mundo demasiado zer, traumática – a de escutar em tempo
agitado e demandante. O tempo da ampulheta real a precipitação dos minutos em di-
é, para Jünger, a representação de nosso tempo reção ao nada. Em geral, a passagem do
mais íntimo, um tempo que está “vivo não ape tempo é uma experiência discrepante;
nas em nossos dias da infância, de férias ou de repente olhamos o relógio e já somos
no jardim, mas sim vivo nas profundidades de trinta anos mais velhos. Mas com os lo-
nosso ser, lá no fundo dele”. É o tempo que o cutores da XEQK, que corriam boquia-
homem passa em seu ócio ou entregue às tare bertos como os cavalos do hipódromo,
fas do espírito, como ocorre naquela gravura de não havia meio de escapar. Neste fim de
Dürer, São Jerônimo no estúdio, que mostra o semana no Hipódromo, Jessie e Colorido,
santo absorto em seus pensamentos enquanto não perca outros nove páreos espetacula-
às suas costas o vigia, sem interrompê-lo, uma res. Por que escutávamos a XEQK a todo
ampulheta. É preciso tempo para pensar, diz volume? Fazíamos para nos angustiar ou
Jünger, e seu livro não é nada além de uma dila para nos distrair da angústia? De qualquer
tada reflexão, não isenta de melancolia, sobre modo, esse era o novo conceito de tempo
a perda da faculdade de pensar, uma perda ao qual eu entrava toda manhã pela ja-
associada à constante ligeireza da civilização nela dos meus dez anos: a sincronização
mecanizada. “Quem vive completamente imerso universal dos tempos do sistema. Uma
neste orgulhoso nosso mundo de titãs, em seus década depois, essa dimensão temporal,
prazeres, seus ritmos, seus perigos, poderá che definida pela urgência e pelo cronômetro,
gar a fazer grandes coisas nele, mas o que não se transformaria na forma organizadora
poderá fazer é criticá-lo”. de toda a vida cotidiana, as atividades
financeiras, o trabalho, as comunicações,
Em dois séculos, a velocidade se transformou os afetos. O planeta do Tempo Real. Desde
no grande absoluto ao redor do qual se orga que Frederick Winslow Taylor introduziu
niza todo o sistema, desde as teorias científicas no século XIX a administração científica
até a vida cotidiana, o trabalho, a educação, a do tempo na fábrica (relógios que mediam
comida, os sentimentos. O ritmo da cidade glo todas as operações dos operários) até a
bal, com seu horário 24/7 (a toda hora, todos perspectiva hegemônica do tempo real (a
os dias), nunca se interrompe. Durante a noite, rápida transmissão e processamento de
enquanto a América dorme, as redes cibernéti dados orientados para fazer transações
cas continuam a ditar sua mensagem a partir do conforme se produzem), nossos ritmos se
outro lado do mundo e, ao despertar, a secretá colaram à ética da manufatura industrial
ria do departamento de faturas encontrará sua cujo lema é: máxima velocidade, máxima
caixa de entrada com toneladas de e-mails por eficiência, máximo lucro. De acordo com
responder, ou seja, de trabalho acumulado. Não Nicholas Carr, em seu livro [A geração
é estranho que hoje o tempo tenha se encolhido superficial:] O que a internet está fazen-
pavorosamente, e a humanidade inteira sinta do com os nossos cérebros?, a ética tay-
que o dia não é suficiente, que seu ritmo, um lorista encontrou sua maior expressão no
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atrativa que então, talvez porque deixou de ser terror e violência que se aferrava em conti-
um meio a nosso serviço para nos transformar nuar com uma estratégia totalmente falida.
em seus servos. Mas não era essa a política Os que participavam na ação se comunica-
da velocidade que Marinetti celebrava? Um vam invariavelmente por Twitter, Facebook
fascismo da imediatez. Acabamos por ser isso: e, por vezes, pelo celular. Eu estava des-
os funcionários esgotados de uma velocidade conectada. Era a véspera dos indignados
autoritária e onipresente. “O que há em mim na Espanha e em Wall Street, e na Europa
é sobretudo cansaço/ um supremíssimo can a Primavera Árabe era uma referência que
saço íssimo, íssimo, íssimo, cansaço”, escreveu despertava o entusiasmo dentro e fora do
Álvaro de Campos, encarnação do homem com ciberespaço. Foi então quando minha pos-
olheiras, espoliado pela velocidade. “Eu, cheio tura conservadora frente às redes sociais
de todos os cansaços... o cansaço antecipado sofreu um deslocamento que começou
e infinito/ o cansaço de mundos para apanhar como uma atitude política (um entusiasmo
um eléctrico”.6 inconformado propagado de tuíte em tuíte),
mas que em pouco tempo se tornou pura
Como valor supremo da economia turbo (com e simplesmente um novo vício.
rodovias, superportos, túneis, macroaeroportos
e trens de alta velocidade viajando em todas as Como escrevo e trabalho em meu escritório,
direções a 300 km/h), a pressa abstrata e louca passo uma boa parte do dia diante da tela.
perdeu sua dimensão humana, e o homem está Ali, imóvel, sinto diariamente a vertigem da
fora de ritmo. As avenidas vão se povoando de comunicação instantânea, a conexão de
sombras nervosas, uma massa de semblantes centenas de milhares de circuitos neuro-
aturdidos que perderam seu rumo e já não que nais cruzando-se sem se tocar nos fluxos
rem prosseguir. A era da revolução do microchip da rede. Breves estalos, disseminação das
se tornou também a era dos homens exaustos. frases, pensamento não linear, contatos
efêmeros com as palavras de outros. E um
Me inteirei recentemente de que ao vocabulá princípio de sedução implícito. Em geral, a
rio de nossos mal-estares se somou um novo perspectiva me parece extraordinariamen-
termo: time-sickness, a percepção obsessiva te estimulante. Quem sabe porque toda
de que o tempo se esvai, as horas extras já esta sociabilidade repentina contrasta
não bastam e é necessário pedalar cada vez com meu habitual hermetismo. Estarei me
mais rápido para seguir (não se sabe para onde, tornando outra pessoa? As redes sociais
não se sabe por quê). Um novo mal para este têm o efeito do álcool nas festas agitadas:
milênio repleto de novos males, que poderia se precisamos de uma máscara para atuar
chamar também “Síndrome do Coelho Branco” como nós mesmos. E também: nos ador-
namos para sermos vistos, como animais
no cio. Arrumamos nosso perfil, postamos
6 [N.t.] Os versos de Álvaro de Campos citados neste
parágrafo são de três poemas: “O que há”, “Eu, eu mesmo” e
fotos retocadas, procuramos frases excep-
“Adiamento”. Eléctrico é o veículo que no Brasil conhecemos cionais. E no caminho se produzem altas
como bonde. doses de dopamina, endorfinas e prazer,
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trabalho o tempo já não nos pertence, mas nós dose do dia. Se o buscador não aparece de
que pertencemos a ele, tanto pior se essa jor imediato, me desespero; minha urgência
nada se prolonga indefinidamente e nos segue não tolera as falhas da banda larga. Sei
a toda parte com trabalho que se leva para casa, que estou em zona de risco. Não é nova
balanços que se resolvem durante a viagem de para mim. Conheço-a desde que tinha
avião, telefonemas que não param na hora da quinze anos e fumei meu primeiro cigarro.
comida. A angústia da velocidade é sacrifício do Uma noite, dez anos depois, traguei três
tempo próprio (o tempo do sonho e da conversa, maços seguidos. Escrevo aqui para me
do amor e do corpo, da contemplação e de tudo curar? Nos intercâmbios ultrarrápidos
que serve ao prazer das pessoas livres), por do Twitter, não há tempo para a análise.
tempo ganho (o tempo dos negócios). Poupar A escrita em tempo real não tem peso,
tempo é ganhar tempo, e se o tempo é ouro, carece de profundidade. (Não poderia ser
aquele que o poupa e o ganha se enriquece. de outra forma. Sem a dispersão nem o
E dado que nossa época obedece como nunca a surfing, sem esse movimento veloz sobre
exortação de fazer dinheiro, considera-se legí a superfície, o que sobraria da internet?
timo e até admirável desaparecer a conversa Nada. Se tornaria chata, como tem sido
fiada após a refeição e tornar o restaurante uma habitualmente nossa cultura. Se perderia
extensão do escritório. Render ao máximo, isso seu caráter vaporoso, ligeiro, sensual, de-
é a velocidade. Deixar a sesta. Quem entre os senvolto. Teríamos profundidade, mas sem
novos ascetas entregues à sagrada causa labo a excitação das ideias simultâneas.) Se eu
ral se oporia hoje a uma nova reforma: a aboli busco minha desintoxicação no ensaio é
ção do domingo? porque sua escrita me exige um retarda-
mento, uma demora. Nele, todo tempo real
É a hora das grandes impaciências, dos desa é descompassado pela dúvida. Me afasta
justes prematuros. E um belo dia, toca à porta da impaciência e de qualquer contingên-
o burnout: o cansaço de todos os cansaços, cia efêmera. Me devolve a meu lugar. Um
até o último cansaço, depois do qual apenas ensaísta no Twitter pagaria o que fosse
resta um grande vazio. Nenhum afã já, as mãos por ter calado. Conheço um, meu amigo,
já não pegam nada. Toca o telefone, ninguém que apaga sistematicamente seus tuítes.
responde. O burnout é a prostração de um sis Será porque também suspeita que a velo-
tema nervoso exausto, uma ressaca por over cidade se tornou nosso melhor álibi para
dose de eficiência. Síndrome do Esgotamento não pensar?
Profissional. Seus efeitos estão para além da
fadiga física, as dores de cabeça, as úlceras, “O mediano é rápido. O gênio é lento”,
as insônias, as irritabilidades. O burnout é escreve Baricco em Os bárbaros. Ensaio
o prelúdio da morte do espírito, o alto preço sobre a mutação. Esse livro me interes-
pago pelos soldados do dever, fustigados por sa, embora suas estratégias retóricas
um relógio tirânico (cada vez mais horas, cada tenham me aborrecido um pouco, por-
vez mais rápido, “quase não é o suficiente”). que escrevo marcada pelas duas ten-
O corpo cansado é um corpo que se rebela, um sões que se descrevem ali: o caráter
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inaceitáveis que suportam – dispostos inclu límbico é o mesmo que se altera quando
sive a desmaiar – apenas por medo de perder se consome maconha, cocaína, café, ál-
o pagamento quinzenal, e os desempregados cool, nicotina. Então, todo o lado esquerdo
preferem o suicídio a uma vida vergonhosa (sob deste ensaio não seria nada além de uma
a moral japonesa de que não há pior desonra forma de me proteger dessa margem selva-
que a impossibilidade de servir à sociedade). gem que o capitalismo alimenta como uma
besta desesperada? Um ensaio cortical?
Penso nesse bosque de cadáveres aos pés do Um ensaio que acredita na lentidão, na dú-
majestoso monte Fuji e me lembro daquela vida, no pensamento. Um ensaio civilizado,
frase de Morand: “A velocidade é uma rota um gênero humanista. Mas deste lado pra-
semeada de mortos, uma sede perpétua que tico um ensaio límbico: subjetivo, zigueza-
nada sacia, um suplício omitido por Dante”. gueante, atento às vísceras, pós-humano.
Talvez Aokigahara seja como uma fotografia E nele gostaria de reivindicar certa ideia
funesta, o emblema de um porvir em que as afli de prazer que o cérebro experimenta ao
ções associadas à nossa obsessão pela veloci se internar nos rizomas da internet, mas
dade se tornarão habituais, ou mesmo crônicas. não esse entretenimento que se esque-
ce do corpo e de si, não um hedonismo
Não seria oportuno que alguém se desse ao atiçado pelo consumismo. Mas um prazer
trabalho de inventar uma nova máquina, a que se interroga e que faz da velocidade
Máquina da Lentidão, um artefato impossível, das redes e suas possibilidades, mas tam-
capaz de desacelerar o tempo e de reconquistar bém da deriva urbana, dos banquetes e da
as horas de ócio, as caminhadas morosas e sem conversação, um espaço para fomentar a
rumo fixo, as leituras demoradas em posição insolência e planejar a diatribe.
horizontal? Seria uma máquina de dimensões
humanas que nos livraria do jugo das máqui As rodovias do excesso nos conduzirão,
nas e nos devolveria a possibilidade de medi como escreveu William Blake, ao palácio
tar um pouco sobre nós mesmos. Teria que ser da sabedoria?
um artefato lento, até mesmo vagaroso, pare
cido a uma bicicleta ou a um pesado moinho, A velocidade é muitas vezes uma forma
em que a velocidade seria finalmente domes de violência, inclusive nas situações
ticada. Ao fazê-la girar, a cidade adotaria um mais anódinas. Me lembro da tarde em
novo ritmo, sem se deixar atropelar nunca mais que preparei pela primeira vez um mate,
pela pressa ou pela fadiga. Sob seu influxo libe uma substância inócua se pensamos no
rador, a xícara de chá duraria meia hora e as café ou na cocaína. Por ignorância eu
pessoas aprenderiam a saborear o vinho em bebi muito rápido, ignorando o ritual mo-
goles lentos, interrompidos por frases enge roso de sua preparação e sua companhia.
nhosas na conversa. Os restaurantes de fast Muito rápido, a mateína, um alcaloide
-food permaneceriam vazios, e as pessoas se que tem a particularidade de acelerar
recostariam e se deixariam cair em redes muito os processos mentais e incrementar os
fundas. Os amigos aprenderiam a arte de passar estados de alerta, me subiu à cabeça.
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meio à sufocante atividade da cidade, como com lentidão ensaios digressivos que
se fossem os atores de um filme incompleto, postergam em cada página sua conclusão
um filme no qual deram uma pausa para sem seja uma forma deliberada de fracasso,
pre. Faz tempo também que queria escrever uma ética antagonista da ética taylorista
um conto sobre eles. Seria o relato de um aplicada ao texto. Escrevi este ensaio três
grupo anônimo de garçonetes, caixas, vende vezes. Na primeira, ele corria rumo ao final,
dores de seguros, editores de jornal, que, um sem se desviar; na segunda, se acidentou
belo dia, ao sair à rua para comprar cigarros e se quebrou em fragmentos dissemina-
para logo voltar à labuta, simplesmente não dos e desconexos; na terceira, que é esta,
regressam e ficam parados, imóveis, em meio se escreve às margens, questionando
ao frenesi caótico do mundo. Uma conjura de seus próprios fundamentos. Reescrevo
seres parados nas esquinas, contemplando o o mesmo ensaio como se não quisesse
céu enquanto a agitação das avenidas e dos terminá-lo. Uma estratégia para retardar
automóveis lhes passa ao largo. Algum dia a chegada, um desmantelamento do êxito
escreverei esse conto, mas não tenho pressa: no interior da escrita. Isso é a digressão,
faz tempo que joguei meu relógio no lixo. outra forma de não ser pontual, e por isso
escrevo ensaios. Durante muito tempo tive
a sensação de que chegava tarde a tudo.
Na universidade, por exemplo, era a última
a entregar e às vezes levei meus trabalhos
para a casa dos professores, porque o pra-
zo havia terminado. Me aceitavam porque
lhes entregava “bons textos”. Era lenta,
me esmerava em demasia. Agora mesmo,
meus editores esperam este livro, que se
tarda em concluir. De onde vem minha len-
tidão? Exijo meus quarenta minutos extras
comigo mesma, sobretudo na hora mais
importante do dia: quando me sento em
uma cadeira e me coloco a pensar.
Caderno de Leituras n.105
Notas sobre os doentes de velocidade
Vivian Abenshushan
Composto em GT America