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CADERNO DE LEITURAS N.

105 / NOTAS SOBRE OS DOENTES DE VELOCIDADE / VIVIAN ABENSHUSHAN 1

Caderno de Leituras n.105


texto

Vivian Abenshushan
tradução

Gabriel Bueno da Costa

Notas
sobre os
doentes de
velocidade
CADERNO DE LEITURAS N.105 / NOTAS SOBRE OS DOENTES DE VELOCIDADE / VIVIAN ABENSHUSHAN 2

NOTA DA EDITORA

“Notas sobre os doentes de velocidade” é parte


do livro Escritos para desocupados (2013),
da escritora mexicana e editora da Tumbona
Ediciones Vivian Abenshushan (Cidade do
México, 1972). O livro está disponível no site
escritosdesocupados.com, e nele lemos:
“Creative Commons – Os conteúdos deste livro
podem ser reproduzidos e compartilhados por
qualquer meio, contanto que não se faça isso
para fins comerciais, que se respeite sua autoria
e esta nota seja mantida”. Noutras páginas do
mesmo site, a autora compila indicações de li­­
vros, filmes, músicas e outras produções que dia­
logam com seu livro. Este é o segundo texto de
Vivian Abenshushan que publicamos na coleção
Caderno de Leituras – ver n.104, Genealogia do
ocioso –, ambos indicados pelo tradutor Gabriel
Bueno, a quem gostaríamos de agradecer.
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E quem poderá nos dizer se um belo


dia não começaremos a nos cansar
até da própria velocidade?

Valery Larbaud
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Penso em uma história política da velocidade. À margem tenho que dizer: eu também co-
Começaria com os revolucionários franceses nheço o êxtase da velocidade. Uma noi-
disparando em direção a todos os relógios das te, para viajar no contrafluxo da rodovia
praças públicas. Cidade do México-Cuernavaca, saí da ci-
dade na véspera do ano-novo. O restante
O que é um relógio? Uma forma de parcelar a do mundo, por sua vez, parecia retornar
existência em fragmentos definidos e ativida­ dela. Do outro lado, o tráfego se movia
des regulamentadas. Um adorno com funções como um molusco. Do meu, a rodovia es-
policiais. tava deserta. Foi então que sentei o pé
no acelerador, atenta à aparição de algum
Relógios de sol ao redor dos quais se deslo­ carro. Viajava sozinha. Quando vou com
cam as sombras, inúteis em um dia nublado. meu marido e meu filho, não passo dos 110
Relógios em que escorriam gotas de água km/h, por precaução. Me tornei uma mo-
ou a areia deslizava. Artefatos aproximados torista lenta e as viagens longas, na estra-
e inexatos, anteriores ao relógio mecânico, da, quando vou ao volante, costumam ser
alheios à produtividade. Os revolucionários eternas. Temo a velocidade porque conhe-
franceses disparavam contra outro tipo de ço minhas debilidades. Sou uma mulher
relógios, os mesmos que presidiram a vida ansiosa e presa fácil dos vícios. Após dez
regrada dos monastérios desde o século XI e, anos sem fumar, meus pulmões ainda não
mais tarde, as torres das prefeituras de toda a se recuperaram de minhas noites de vicia-
Europa. Esses relógios de precisão se difundi­ da em tabaco. E voltar a escrever depois
ram durante o Renascimento nas cortes reais, disso foi tão difícil e doloroso que procurei
onde se investiam fortunas para aperfeiçoá­ não associar meu “trabalho intelectual” a
-los. Aparatos cada vez mais sofisticados, nos nenhuma outra substância tóxica. Tenho
quais finalmente habitariam os ponteiros de medo da dor da perda, do insuportável dia
minuto e segundo, ditando cada movimento seguinte. Naquela noite, porém, as condi-
dos homens, símbolos de poderio e controle ções haviam abolido para mim o limite de
social, os tiranos do cotidiano. velocidade. A rodovia estava submersa na
escuridão e sobre ela, atravessando-a, as
O agricultor trabalhava em conformidade com linhas fluorescentes do asfalto adquiriam
os processos cíclicos da natureza; o artesão o uma densidade cósmica. Lembro que es-
fazia segundo o tempo necessário para aper­ cutava a música eletrônica do Air a todo
feiçoar seus objetos. O operário, por outro volume: sons interestelares e atmosferas
lado, trabalhava seguindo as necessidades da subaquáticas estendidos durante longos
indústria, fundada no princípio de “mais pro­ minutos. Trip-hop. Descia à toda velocida-
dução em menos tempo” (as origens da nossa de por um túnel de curvas perigosas cui-
pressa). À medida que as pessoas se muda­ dadosamente sinalizadas. Aquilo parecia
ram do campo para a cidade e começaram a o pavilhão do ouvido do mundo. No meu
trabalhar nos mercados e nas fábricas, nos corpo (a boca do estômago, os músculos),
primórdios do capitalismo, seus dias foram palpitava uma emoção ambígua: metade
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se rebaixando a segmentos cada vez mais medo, metade excitação. Por acaso eu es-
finamente divididos. O tempo para trabalhar tava às portas de uma percepção distinta?
e o tempo para comer, o tempo para abrir as No umbral da transgressão? A luz intensa
portas e o tempo para fechá-las, a hora das sobre o fundo negro, a desaparição da
assembleias e as reuniões nas tavernas, a hora paisagem, uma sensibilidade acústica in-
de dormir e a de voltar a começar. tensificada, a proximidade do perigo: tudo
aquilo propiciava uma sensação de falta
“O relógio converte o tempo de um processo de gravidade. A velocidade é isso: perder
da natureza em uma mercadoria que se pode peso. De repente, eu era um peixe no aquá-
medir, comprar e vender, como telas ou sabões” rio, um astronauta flutuando entre nuvens
(George Woodcock). de gás e matéria escura. Atravessava uma
experiência estética que pouco ou nada se
Quem são os únicos que não têm pressa? Os afastava dos estados alterados de cons-
vagabundos, os farristas, os desocupados ciência. Eu sentia a embriaguez do líqui-
e as crianças, que são as imperadoras do do, a vertigem daquela noite estrelada que
tempo verdadeiramente livre, esse que ainda apenas me mostrava o movimento, a fuga,
não entrou na sala escura dos interrogató­ a ultrapassagem. E eu não tinha tomado
rios. Todas elas se encontram em posse de nada; todo o efeito dependia da velocida-
seu tempo e enquanto brincam ou caminham de. Em algum momento, tive o desejo de
a esmo não há um ponteiro que lhes recorde ir ainda mais rápido, sentir talvez a proxi-
a hora. Entre esses se encontram também os midade da morte. Como tinha acontecido
preguiçosos, os que abandonam as tarefas, os comigo tantas outras vezes com o cigarro,
que desertam. A preguiça é isso, “uma estra­ me encontrava às portas de um prazer su-
tégia subjetiva para desrespeitar as coerções blime (sombrio e belo e inevitavelmente
do relógio” (Barthes). O preguiçoso é, segundo doloroso) de que emergia um tipo de pres-
a etimologia latina, um homem lento. Alguém sentimento metafísico que alguns piegas
que desafia de maneira indireta o dogma uni­ ainda chamam eternidade.
ficador da prontidão, um rebelde passivo: faz
as coisas, é verdade, mas mal e com demora. Em 1977, Bill Gates foi detido em Albu­
querque por dirigir em excesso de veloci-
Trocar a frase: “Trabalhar contrarrelógio” por dade. Uma famosa foto o mostra posando
“trabalhar contra o relógio”.1 para a ficha policial com um sorriso ado-
lescente e cândido. Acontecia-lhe com
1  [Nota do tradutor] No original: “Cambiar la frase: frequência, reincidia sem remorsos. Dois
‘Trabajar contra reloj’ por ‘trabajar contra el reloj’.” anos antes havia fundado a Microsoft, uma
A autora se opõe, portanto, à corrida contra o tempo companhia de software em que trabalha-
- “contrarrelógio”, expressão de alguns esportes, como va e programava todos os dias até o ama-
o ciclismo, em que vence aquele que obtiver o menor
tempo no cronômetro - e defende uma espécie de
nhecer (inclusive nos fins de semana). Sua
libertação da tirania do tempo totalmente dividido e única distração: os automóveis. Porsche
regrado, “útil”, simbolizado pelo relógio. 930, Porsche 959, Mercedes, Jaguar XJ6,
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Como assinalou Lewis Mumford, o relógio é a Carrera Cabriolet 964, Ferrari 348. Trocava
máquina-chave da era das máquinas, por sua de marca com os tremores de um viciado.
influência tanto na tecnologia como nos costu­ Amava a velocidade quase tanto quanto a
mes humanos. Em seu coração mecânico batia programação. Mas não se tratava, no fun-
já o motor do progresso obsessivo com a velo­ do, de uma mesma vocação? Chegar mais
cidade, cujo primeiro clímax é o automóvel. longe, cada vez mais rápido. O espírito do
turbocapitalismo encarnado em uma única
“Um dos maiores prazeres da vida é viajar em pessoa. Não é por acaso que um de seus
uma carroça que corre a toda brida”, disse o livros sobre a importância da internet no
Doutor Johnson no século XVIII. mercado se titule: Negócios à velocidade
do pensamento.1
Um século mais tarde, em 1849, o escritor inglês
Thomas de Quincey aderiu à celebração da velo­ A velocidade destrói. Não é por isso que no
cidade, mas, ao olhar o mundo pela primeira vez fundo nos parece sedutora? Penso em to-
a partir do banco de uma carruagem-correio, das essas pessoas que assinam suas apó-
intuiu (“em um relâmpago de terrível intuição lices de seguro contra acidentes como se
simultânea”) que se tratava de um prazer abo­ fossem as atas de sua sentença de morte.
minável, em cujo fundo se assomava a possi­ E depois de olhar os esqueletos de carros
bilidade de que a viagem acabasse mal, entre batidos pendurados pelos guindastes, não
veículos batidos, rodas e pernas retorcidas, deveríamos pensar, como fez J. G. Ballard,
em meio a uma incompreensível confusão. No que, se na verdade temêssemos o acidente,
fundo da velocidade espreitava a morte súbita. a maioria de nós seria incapaz de comprar
um carro, quanto mais dirigi-lo? Mas na
The English Mail-Coach2 é um dos primeiros verdade acontece o contrário. Passamos
relatos sobre a perda de controle de nossas boa parte de nossa vida no carro, embora
próteses técnicas. Em meio à vertigem do novo lhe dirijamos diariamente nossas queixas.
veículo, entre saltos e sacudidas, De Quincey O século XX, diz Ballard, alcança quase
entendeu que na aceleração existe algo irre­ sua mais pura expressão na rodovia. Até
sistível e proibido, uma sedução trágica de a chegada da internet, o carro foi a prisão
consequências incalculáveis, e descreveu pela perfeita, nosso pequeno universo de me-
primeira vez o caráter paradoxal da velocidade: tal e plástico, o lugar em que podíamos
por um lado, fonte de fascinação e símbolo gozar uma sensação de liberdade, ligeire-
de liberdade, movimento e ausência de gra­ za, porvir, enquanto víamos passar a vida
vidade (o corpo liberado, por fim, de seu pró­ pelas janelas. O que substituirá o volante?
prio peso); mas também: agente da catástrofe O deslocamento por controle remoto, ou
seja, o confinamento nas vias de informa-
ção, em que a velocidade encontrou seu
2  [N.t.] Ensaio em três partes de Thomas de Quincey (1785-
1859), que evoca em seu título o sistema de entregas de
cartas por carruagens-correio usado na Grã-Bretanha, na 1  [N.t.] No Brasil, A empresa na velocidade do
Irlanda e na Austrália, entre o século XVIII e meados do XIX. pensamento.
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(uma louva-a-deus que termina por devorar mais além; a velocidade da luz, a veloci-
seu amante). dade das ondas eletromagnéticas.

Como faria com o tema do assassinato, a beleza Leio Crash, o romance em que Ballard
do incêndio e os efeitos do láudano, a primeira leva sua meditação sobre as chaves de
coisa que De Quincey percebeu ante a chegada uma nova sexualidade associada ao au-
da carruagem-correio foi o acontecimento esté­ tomóvel até suas últimas consequências.
tico, aqueles “grandiosos efeitos visuais con­ Perturbador e reiterativo, cheio de vísce-
seguidos entre a luz da carruagem e a escuri­ ras e choques grotescos, em Crash os per-
dão dos caminhos solitários”, aquela “glória do sonagens não apenas não temem o aciden-
movimento” associada à sucessão trepidante te, mas na verdade o desejam e buscam
das imagens noturnas. De Quincey amava a obsessivamente. O erotismo perverso das
amplitude de perspectivas que adquiria a rea­ batidas de carro, os radiadores afunda-
lidade vista a partir do teto do veículo e também dos entre as pernas como fetiche sexual.
a rapidez com que se transmitiam as vitórias Esse reino em que imperavam a violência
de Waterloo. Mas nada superava o prazer de e o coito foi a metáfora premonitória com
observar esses últimos veículos deslizando que Ballard anunciava a colonização do
como rajadas pela janela. O movimento de corpo pela técnica. Como sua adaptação
quem permanece imóvel, isso deve tê-lo entu­ ao cinema por David Cronenberg, o roman-
siasmado enormemente: a forma como a quie­ ce provocou discussões ríspidas sobre os
tude no interior do veículo era envolta por um limites da censura. Devia ou não ser pu-
cenário frenético, exatamente como acontecia blicado? Antes já havia ocorrido o mesmo
com o comedor de ópio em seus devaneios. Eis com uma série de serigrafias de automó-
aí como a velocidade (inclusive aquela de onze veis batidos realizada por Andy Warhol nos
milhas por minuto 3 que hoje nos parece ridí­ anos sessenta, com imagens extraídas da
cula) já era uma percepção alterada do mundo, imprensa sensacionalista. Nenhuma gale-
alucinação instantânea (e sem síndrome de ria queria mostrá-las. Porque a socieda-
abstinência) que havia chegado para ampliar de não suporta a exibição de sua própria
as dimensões da ilusão. obscenidade. E teme a morte (embora sua
proximidade lhe pareça excitante). No fim
Antes que o cinema o fizesse, De Quincey inven­ das contas, não vivemos colados ao espe-
tou o artifício da câmera lenta. No fim das táculo do atroz transmitido a cada noite
contas, The English Mail-Coach não é nada no noticiário?
além do relato obsessivo de um acidente con­
gelado no tempo: o momento em que um veí­ Li que a cada quatro vezes que alguém
culo, no qual viaja o próprio De Quincey, está a escreve uma palavra em uma busca de
internet, em uma delas a palavra está
relacionada a sexo ou pornografia. Não
3  [N.t.] Aparentemente a autora desejava dizer onze milhas
por hora, equivalente a pouco mais de 17 quilômetros por é o seu caso, lógico. Mas a metáfora do
hora. corpo-máquina se tornou, admitamos ou
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ponto de provocar a morte de um jovem casal não, nossa maneira de estar no mundo,
que caminha distraidamente em uma caleche. livres das amarras do espaço e do tempo,
O fato inevitável da catástrofe teve um efeito tão abduzidos pela velocidade das comunica-
brutal na imaginação sempre excitável de De ções instantâneas. Pode haver algo mais
Quincey – uma imaginação que, além de ser a viciante que a satisfação imediata? Isso é
maior de suas faculdades, havia se robustecido a internet: a droga definitiva. “Um lugar no
de maneira dramática graças a seu vício por ópio qual podemos nos abandonar aos prazeres
– que deixou como sequela pesadelos durante corporais liberando-nos de nossos corpos
vários meses, como se algo no fundo de seu cére­ reais” (Slavoj Zizek). Os personagens de
bro necessitasse de repetições contínuas (e em Ballard acreditavam ainda no prazer dos
ralenti4) daquele momento impenetrável. ferimentos. Tenho muitos amigos que per-
deram o juízo alimentando todo tipo de ob-
Embora elogiasse a velocidade, De Quincey sessões através da rede, maquinando re-
foi sobretudo um habitante da lentidão, o lações fantasmais que os mantêm atados
meio natural do viciado em ópio e do escritor à tela como o junkie à seringa. Mas seus
absorto, alheio aos ditames do relógio. Homem corpos permanecem incólumes, distantes
de outro tempo, De Quincey viveu a mutação da ameaça da aids ou da decepção sexual.
radical dos ritmos humanos introduzida pela A falta de gravidade (ou desmantelamento
máquina, mas nunca se adaptou à pressa das do corpo) fabrica suas intoxicações. Quem
grandes cidades industriais; o ópio e a escrita não demonstrará sua impaciência diante
foram os bastiões em que se entrincheirou de qualquer processo real de sedução
sozinho. Sua narração em câmera lenta, atra­ frente à certeza de que o mecanismo li-
vessada pelo ritmo vegetal do ópio, já é uma geiro do ciberespaço funciona de imediato,
crítica ao excesso de velocidade. em qualquer parte?

O século XIX foi simultaneamente o século da Descrevi no outro extremo deste ensaio o
Revolução Industrial e a era dos grandes come­ lado sombrio da velocidade, que tem se-
dores de ópio. De que outro modo era possível duzido e conquistado o mundo. Mencionei
suportar uma vida dedicada a apertar parafu­ o ministério público, onde se acumulam
sos no mesmo lugar, doze horas por dia? Tanto mortes por excesso de velocidade. Mas
trabalho sem valor, tanta pressa, semearam deste lado não julgo. Me pergunto se eu,
vários inválidos nas casas de ópio e nas taber­ em lugar de condenar a velocidade, conse-
nas. A chegada da máquina cumpria os ideais guisse afastá-la e olhá-la de frente, se pu-
da industrialização, mas logo isso saiu do con­ desse indagar minha própria relação com
finamento das fábricas para encadear os ritmos ela (suas seduções, minhas resistências),
da vida urbana. De um momento para outro, a se conseguisse isso, conseguiria torná-
celeridade das cidades sepultava os costumes -la uma substância complexa, despojá-la
de sua barbárie: compreendê-la. Porque
4  [N.t.] Ralenti: em francês no original, em ritmo lento, o único crime do ensaísta é o de ser su-
vagarosamente. perficial, passar pelas coisas demasiado
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que haviam prevalecido durante séculos, asso­ rápido. A ensaísta é uma mulher lenta?
ciados aos ritmos agrícolas, às festas religiosas, Eu sou, embora tenha um iMac de quatro
aos períodos de trabalho e ócio da oficina fami­ memórias que é um azougue. Sou uma ha-
liar. A experiência era vertiginosa, excitante, e bitante do tempo lento. Demasiado lento.
ao mesmo tempo produzia uma alteração pro­ Uma mulher não pontual. E estas são mi-
funda, uma ansiedade incurável. nhas confissões.

Tédio, desassossego, spleen: os primeiros mal­ Tenho dez anos e no rádio do carro se
-estares da velocidade. escuta, minuto a minuto, a “hora do
Observatório, a mesma de Haste, Haste, a
“O ópio domesticado adoçará a dor das cidades”, hora do México”.2 Faz frio, saímos corren-
esse era o remédio que pediria Jean Cocteau do. Minha irmã e eu comemos um pedaço
para curar os doentes de velocidade, uma de pão tostado com geleia no banco de
desintoxicação da realidade pela via de uma trás do Volkswagen. Minha mamãe dirige;
intoxicação contrária: permanecer imóvel na meu papai fica em casa dormindo (sofre
cama, entregar-se à vida mental, renunciar aos de insônia ou lê até as cinco da manhã).
horários de uma existência atrofiada e regida Lembro da cena como uma imagem recor-
pela produção. rente, quase como uma definição precoce
de meus ritmos adultos: embora vivês-
De Quincey entendeu que a velocidade era semos a seis quadras da escola, sempre
uma forma de ver que excedia o olhar humano. chegávamos tarde. Ou em cima da hora.
Chegava-se a ela sempre tarde demais, como Usávamos a proximidade como desculpa
se a realidade sobre rodas fosse inalcançável e para acordarmos tarde e sem pressa, para
nunca fosse possível lançar sobre ela a sonda atrasar nossa entrada no mundo uns mi-
do pensamento. Não havia meio de harmonizar nutos a mais, que sempre me pareceram
a rapidez do acidente e a assimilação da expe­ muito breves. Como faziam as crianças
riência, a leitura dos acontecimentos. Quando que viviam do outro lado da cidade para
ele advertiu a dificuldade de ver as coisas chegar na hora? Talvez não resistissem. Ou
através das barreiras da velocidade, decidiu resistiam menos. Pobres criaturas domes-
retornar ao observatório (extraordinariamente ticadas. Nós, por outro lado, como nosso
mais atento e pausado) da escrita, a única força pai, adorávamos a cama. Adoramos ainda,
capaz de manipular o instante e estudá-lo de o encantamento da posição horizontal, a
perto, como um pássaro dissecado em pleno sabedoria da quietude. Uma tendência me-
voo. Escrevendo: assim se alivia a alma do cho­ lancólica? Apenas em parte. Sintomas de
que da velocidade. Em sua narração, a catás­ um corpo enfermiço e sem vigor? Quase
trofe progride com um ritmo lentíssimo, oposto
ao de sua violência súbita, como se De Quincey 2  [N.t.] A frase entre aspas era repetida várias vezes
quisesse penetrar nos personagens da caleche ao dia na rádio XEQK-AM, que desde os anos 1940
intercala a hora exata com propagandas e já faz
até fazê-los se desprender de sua agonia. parte do imaginário da Cidade do México. Haste é
“Entre eles e a eternidade, para todo cálculo uma marca de relógio.
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humano, não há nada além de um minuto e nunca. É simplesmente que ali dentro o
meio”. Conheço poucas frases mais belas e mundo não nos exigia. Em posição fetal
arrepiantes sobre a natureza do acidente que ou esparramadas, quase obscenas, ali éra-
esse minuto e meio amplificado na narração de mos completamente nós mesmas; a fronha
De Quincey antes que a morte aparecesse, de do travesseiro era a bandeira com a qual
repente, incontestável. Trata-se de uma frase exigíamos nossa solidão. Porque não há
que antecipa aquela outra, escrita na virada espaço mais amplo nem lugar em que um
do século, em pleno império da velocidade, por indivíduo seja mais livre do que sua pró-
Cocteau, outro adorador do ópio e suas proprie­ pria cama. A partir dali pode observar seus
dades para estender o tempo: “Um acidente de domínios mentais. A cama é sediciosa, so-
automóvel, uma catástrofe ferroviária, são as bretudo quando se faz bom uso dela. Não
obras de arte do inesperado. Se pudéssemos me espanta que a realidade conspire com
ver em ralenti como velocidade e imobilidade tanta veemência contra ela. Mas todos os
torcem o ferro com dedos de estilista!”. acusadores da cama fazem sermões em
vão: se entra e se sai da cama, mas a ela
A capacidade de deter a ação indefinidamente se retorna sempre. Acredito que minhas
não continua a ser uma das qualidades da arte? melhores ideias (talvez, diria, as únicas)
Não se trata apenas de estilizar a atrocidade do foram concebidas ali, na cama, e quando
acidente, mas sim de se embrenhar nele para terminei a universidade fiz todo o possível
tratar de entendê-lo. para não voltar a ter horários coercitivos
Ao ler a velocidade, atuamos como taxidermis­ que me tirassem dos lençóis violentamen-
tas do segundo. Resistimos a desaparecer. te. Mas o mundo não se importa com sua
cama, padece “o mal do ímpeto” e a en-
Paul Morand disse que a velocidade – a droga fermidade do progresso, como os Zurov,
do século XX – não era apenas um estimulante, os personagens hiperativos do romance
mas também um depressor, um explosivo cujo de Iván Goncharov. Ou como minha mãe,
manuseio era perigoso, capaz de fazer saltar que é uma mulher extraordinariamente
não apenas nós mesmos mas o universo inteiro. ativa, valente, madrugadora, amante das
“O único vício novo”, sentenciou em seu ensaio caminhadas e do ar livre: o exato oposto
“Sobre a velocidade”. Uma substância tóxica, (e complemento) de meu pai. Nada a de-
assassina e vibrante que conectava todas as tém, em seus setenta e três anos conserva
cidades. Cosmopolita e esnobe, adorador dos uma energia vital arrasadora. Fica inquie-
deslocamentos e das viagens motorizadas, ta se continua na cama e ainda hoje se
Morand se entretinha dando corda todos os desespera um pouco porque suas filhas
dias em todos os relógios do mundo. Como ficam nela mais tempo do que o devido.
primeiro habitante da aldeia global, a melhor Que teria sido de nós sem seu contrapeso?
parte de sua obra se encontra em seus livros Jamais teríamos vencido aquele momento
de viagem. Mas, entre todas as suas explo­ de indecisão ou pânico que provoca nos
rações (Nova York e a Cidade do México indivíduos sensatos sair da cama para se
incluídas), a mais lúcida (e perigosa) foi a que internar na selva da vida. Com o tempo,
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empreendeu rumo ao cerne mesmo da veloci­ minha personalidade se tornou um campo


dade, uma droga que cortejou durante os anos de batalha em que se enfrentam diaria-
trinta, até que começou a amá-la um pouco mente os Zurov e os Oblomov, ou seja, os
menos para tentar entendê-la melhor. “A fer­ dois extremos que Goncharov descreveu
rovia se tornou uma nova bebida alcoólica e o em relação ao temperamento: a excessiva
turismo, mais que um tônico, é um narcótico. atividade e a preguiça metódica, o frenesi
As pessoas pedem a gritos que lhes ajudem a patológico e a indiferença em relação à
esquecer”, escreveu em Le voyage, uma inda­ agitação mundana. A mania e a depressão.
gação fragmentária sobre a figura do viajante
moderno. Sua filosofia de estrada. Devo dizer agora: minha mamãe também
não é pontual. E não a critico por isso.
É provável que condenar a velocidade não ajude Pelo contrário, acho que chegar tarde (e
ninguém a domesticar sua ferocidade implí­ às vezes nem mesmo chegar) tem sido a
cita, mas desmantelá-la através dos recursos forma pela qual ela tem se defendido de
da escrita talvez sirva para que não sejamos sua propensão a se encher de tarefas e
atropelados por ela como cachorros. Congelar a compromissos, seu excessivo gosto pelo
imagem. Recortar um fragmento de movimento trabalho. Porque no fundo toda falta de
(agora estático) antes de ligar a máquina de pontualidade é um mecanismo de defesa,
vertigem outra vez. Tirar uma fotografia ins­ uma resposta crítica frente às coerções
tantânea do fim do mundo. Talvez esse álbum permanentes do relógio. O atrasado é
meditado de nossa condição efêmera possa nos um deserto do deadline, a linha em que
devolver às rodovias da velocidade com “uma morrem diariamente os soldados do sis-
desorientação mais lúcida” (Maria Negroni). tema. Se ela chega tarde é porque busca
se reencontrar com o tempo humano, con-
Um romance emblemático de J. G. Ballard fez tra-atacar a urgência com procrastinação.
do ferro-velho um museu do tempo suspenso: O atrasado diz: os ritmos das transações
Crash, ou a colisão como afrodisíaco. Ali os pro­ não são mais importantes que os tempos
tagonistas, fascinados por uma nova idolatria, da minha respiração. Quer estar sozinho.
se dedicam a olhar obsessivamente vídeos de Concentrar-se mais quarenta minutos em
acidentes automobilísticos em câmera lenta, si mesmo. É um egoísta? Na verdade, um
com a mesma excitação do espectador trêmulo indivíduo autônomo que tem escapado,
diante de um strip-tease. No centro: o automó­ por omissão, da vigilância do ponteiro de
vel, o deus em ascensão da cultura urbana. segundo. Um rebelde passivo. Não olha a
hora porque não lhe parece necessário. De
Quando o mundo começa a ver o acidente como algum modo, entende que o relógio tam-
obra de arte e a velocidade como fonte de pra­ bém é um símbolo. É a família, a indústria,
zer, os comedores de ópio mudam de substân­ a sociedade, o dever. Obediência e disci-
cia. Já não resistem à velocidade; procuram plina estabelecem o ritmo, desde os mon-
alcançá-la, soletrar seu ditado, e o século XX ges medievais, da ordem no relógio. E o
desloca o império da morfina pelo da cocaína. atrasado é visto então como um pária, até
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Trata-se de algo para além do substituto ante a mesmo um traidor. É castigado, demitido,
banalidade da existência (já Sherlock Holmes perde a palavra. Ninguém tem permissão
preferia os efeitos da coca “à estupidez do coti­ para permanecer absorto.
diano”); a cocaína procura um extraordinário
estímulo mental, vigor e uma capacidade de Mas a falta de pontualidade não é outra
trabalho redobrada. Não é estranho que ela se forma de pressa?
tornasse a imperatriz imediata de uma socie­
dade que glorifica o coeficiente intelectual, a Uma voz no rádio diz que são sete e qua-
produtividade e se subleva diante da inação. renta e cinco. O alarme tocará às oito.
Nessa manhã, que são todas as manhãs
– Posso lhe perguntar se neste momento está do mundo, vejo em mim a atrasada que
envolvido em alguma investigação? eu já sou. De repente sinto ansiedade nas
pernas, essa crispação de nervos, carac-
– Nenhuma. Por isso é que uso cocaína. Não terística dos animais urbanos ameaçados
posso viver sem fazer o cérebro trabalhar. Há pela pressa. No carro, nós três ficamos em
alguma outra coisa pela qual valha a pena silêncio, como se manter a boca fechada
viver, Watson? nos ajudasse a chegar na hora. Fora: o ruí-
do das buzinas; dentro, o vapor nas jane-
O filósofo e urbanista Paul Virilio escreveu que las e as sequências publicitárias da “Hora
o processo de aceleração do mundo é irrever­ Exata” que permanecem quase intactas na
sível, mas não por isso devemos desistir de memória. Chocolates Turim, sabor do início
interrogá-lo. O próprio Virilio propôs a criação ao fim. A publicidade é assim, indelével.
de uma nova ciência, a dromologia, dedicada Sobretudo se escutada obsessivamente
ao estudo e à análise da velocidade, ou seja, à no caminho da escola: Sabão do Tio Nacho,
compreensão do transe descomunal em que desinfetante da pele e do couro cabeludo.
estamos metidos desde que Doutor Johnson Mestre mecânico, Marcos Carrasco, garante
começou a correr sobre sua carroça rumo ao rigoroso controle de qualidade em retífica
nada. A tarefa parece não apenas fundamen­ de motores. Atenção Reis Magos! Bicicletas,
tal, mas urgentíssima, como tudo nessa época motocicletas, brinquedos, patinetes. Casas
ultrarrápida, ou um dia qualquer a realidade Radioamérica, Argentina número 44. Para
se extinguirá diante dos nossos narizes por móveis nem pensar, só Baltasar, a esquina
excesso de velocidade, como já ocorre com boa que domina: Aldama e Mina, Buenavista.
parte da nossa existência que consiste em ir De Sonora a Yucatán se usam sombreros
de um lado para outro sem parar, ou seja, sem Tardán. Por seu magnífico sabor e deliciosa
tempo para viver. suavidade, a cerveja é Corona. XEQK propor-
ciona a hora do Observatório, a mesma de
“É preciso ter tempo se desejamos nos entre­ Haste, um novo conceito de tempo:
ter com relógios”, escreveu Ernst Jünger em
seu livro consagrado à ampulheta, o único Sete da manhã e cinquenta e seis minutos.
tipo de relógio que tolerava em seu escritório, Sete e cinquenta e seis.
CADERNO DE LEITURAS N.105 / NOTAS SOBRE OS DOENTES DE VELOCIDADE / VIVIAN ABENSHUSHAN 13

justamente porque não tinha nada a ver com Que experiência inesquecível – quer di-
o incômodo tic-tac de um mundo demasiado zer, traumática – a de escutar em tempo
agitado e demandante. O tempo da ampulheta real a precipitação dos minutos em di-
é, para Jünger, a representação de nosso tempo reção ao nada. Em geral, a passagem do
mais íntimo, um tempo que está “vivo não ape­ tempo é uma experiência discrepante;
nas em nossos dias da infância, de férias ou de repente olhamos o relógio e já somos
no jardim, mas sim vivo nas profundidades de trinta anos mais velhos. Mas com os lo-
nosso ser, lá no fundo dele”. É o tempo que o cutores da XEQK, que corriam boquia-
homem passa em seu ócio ou entregue às tare­ bertos como os cavalos do hipódromo,
fas do espírito, como ocorre naquela gravura de não havia meio de escapar. Neste fim de
Dürer, São Jerônimo no estúdio, que mostra o semana no Hipódromo, Jessie e Colorido,
santo absorto em seus pensamentos enquanto não perca outros nove páreos espetacula-
às suas costas o vigia, sem interrompê-lo, uma res. Por que escutávamos a XEQK a todo
ampulheta. É preciso tempo para pensar, diz volume? Fazíamos para nos angustiar ou
Jünger, e seu livro não é nada além de uma dila­ para nos distrair da angústia? De qualquer
tada reflexão, não isenta de melancolia, sobre modo, esse era o novo conceito de tempo
a perda da faculdade de pensar, uma perda ao qual eu entrava toda manhã pela ja-
associada à constante ligeireza da civilização nela dos meus dez anos: a sincronização
mecanizada. “Quem vive completamente imerso universal dos tempos do sistema. Uma
neste orgulhoso nosso mundo de titãs, em seus década depois, essa dimensão temporal,
prazeres, seus ritmos, seus perigos, poderá che­ definida pela urgência e pelo cronômetro,
gar a fazer grandes coisas nele, mas o que não se transformaria na forma organizadora
poderá fazer é criticá-lo”. de toda a vida cotidiana, as atividades
financeiras, o trabalho, as comunicações,
Em dois séculos, a velocidade se transformou os afetos. O planeta do Tempo Real. Desde
no grande absoluto ao redor do qual se orga­ que Frederick Winslow Taylor introduziu
niza todo o sistema, desde as teorias científicas no século XIX a administração científica
até a vida cotidiana, o trabalho, a educação, a do tempo na fábrica (relógios que mediam
comida, os sentimentos. O ritmo da cidade glo­ todas as operações dos operários) até a
bal, com seu horário 24/7 (a toda hora, todos perspectiva hegemônica do tempo real (a
os dias), nunca se interrompe. Durante a noite, rápida transmissão e processamento de
enquanto a América dorme, as redes cibernéti­ dados orientados para fazer transações
cas continuam a ditar sua mensagem a partir do conforme se produzem), nossos ritmos se
outro lado do mundo e, ao despertar, a secretá­ colaram à ética da manufatura industrial
ria do departamento de faturas encontrará sua cujo lema é: máxima velocidade, máxima
caixa de entrada com toneladas de e-mails por eficiência, máximo lucro. De acordo com
responder, ou seja, de trabalho acumulado. Não Nicholas Carr, em seu livro [A geração
é estranho que hoje o tempo tenha se encolhido superficial:] O que a internet está fazen-
pavorosamente, e a humanidade inteira sinta do com os nossos cérebros?, a ética tay-
que o dia não é suficiente, que seu ritmo, um lorista encontrou sua maior expressão no
CADERNO DE LEITURAS N.105 / NOTAS SOBRE OS DOENTES DE VELOCIDADE / VIVIAN ABENSHUSHAN 14

ritmo demasiado humano, já não corresponde ciberespaço: uma máquina desenhada


às exigências de uma realidade dominada pelo para a coleção, transmissão e manipulação
ímpeto da máquina digital e ordenada sob a eficiente e automatizada de informação.
cadência insensata da stock exchange.5 Como Taylor, as legiões de programado-
res do mundo se concentram em desenhar
“Não tenho tempo para nada!”, eis aí o grito um método que aumente o rendimento das
geral de um planeta doente de velocidade. comunicações, ou seja, que acelere o mo-
vimento do “trabalho do reconhecimento”.
“Buscávamos a arte elementar de curar o homem Essa é a hora Haste Haste de nossa mente.
do frenesi dos tempos”, era isso o que queriam Trata-se da colonização de nosso cérebro
Jean Arp e os artistas do dadaísmo na arran­ pela máquina ou o contrário: determina-
cada do século XX, um século que empregaria mos que a máquina avance à velocidade
como nenhum outro a força da velocidade não de nosso cérebro?
apenas para democratizar o conforto, mas tam­
bém para arrebatá-lo do mundo rapidamente, Há meses que ligo meu computador com
graças à capacidade destrutiva da Grande certo tremorzinho nos dedos, um desejo
Guerra, aquela violência multiplicada por rada­ imperioso apenas comparável ao que sen-
res, baionetas e aviões, um arsenal ultraveloz tia na minha época de fumante. A cada
que exilava o homem da vida, como fez com Arp, duas horas (às vezes, menos) reviso ob-
que em muito pouco tempo fugiu para Zurique, sessivamente meus e-mails e as respos-
uma cidade pequena e lenta e alheia à guerra, tas e interações geradas com meus tuítes.
onde armaria um grande escândalo e uma revo­ Abominava o Facebook (essa encarnação
lução estética (uma forma, dizia, “de restaurar do tédio e do desperdício do tempo mais
o equilíbrio entre o céu e o inferno”), junto com íntimo), mas de repente senti que me tor-
seus amigos de protesto que dissolveram as nava antiquada e antissocial e agora me
fronteiras entre as linguagens para dar um dina­ vejo alimentando meu status duas ou três
mismo, até então desconhecido, à literatura e à vezes ao dia. E mantenho dois blogs (o ter-
arte, um dinamismo violento e explosivo como ceiro, dedicado à deriva, morreu de inani-
o dos “pistões ansiosos e o carvão que queima”. ção). Apesar de meu ceticismo, eu corro,
como o resto da humanidade, rumo ao
Agora, como há cem anos, a dinâmica da acele­ futuro. Não me justifico, mas é claro que
ração continua a exilar o homem de si mesmo, e me submergi no fluido da informação por
até da própria velocidade: como não imaginar a razões políticas, uma tarde em Paris, de-
decepção que Marinetti sofreria naqueles dias, pois de uma ação urbana que realizei jun-
surgido de seu fulgurante automóvel rumo ao to com um grupo de mexicanos radicados
tráfego que paralisa as cidades? A velocidade na França. Tratava-se de um protesto no
que os futuristas celebravam nos parece menos Trocadero contra a estúpida guerra contra
o narco empreendida pelo governo mexi-
5  [N.t.] Stock exchange: em inglês no original, bolsa de cano, que já havia então custado mais de
valores. 30 mil mortes, um estado injustificável de
CADERNO DE LEITURAS N.105 / NOTAS SOBRE OS DOENTES DE VELOCIDADE / VIVIAN ABENSHUSHAN 15

atrativa que então, talvez porque deixou de ser terror e violência que se aferrava em conti-
um meio a nosso serviço para nos transformar nuar com uma estratégia totalmente falida.
em seus servos. Mas não era essa a política Os que participavam na ação se comunica-
da velocidade que Marinetti celebrava? Um vam invariavelmente por Twitter, Facebook
fascismo da imediatez. Acabamos por ser isso: e, por vezes, pelo celular. Eu estava des-
os funcionários esgotados de uma velocidade conectada. Era a véspera dos indignados
autoritária e onipresente. “O que há em mim na Espanha e em Wall Street, e na Europa
é sobretudo cansaço/ um supremíssimo can­ a Primavera Árabe era uma referência que
saço íssimo, íssimo, íssimo, cansaço”, escreveu despertava o entusiasmo dentro e fora do
Álvaro de Campos, encarnação do homem com ciberespaço. Foi então quando minha pos-
olheiras, espoliado pela velocidade. “Eu, cheio tura conservadora frente às redes sociais
de todos os cansaços... o cansaço antecipado sofreu um deslocamento que começou
e infinito/ o cansaço de mundos para apanhar como uma atitude política (um entusiasmo
um eléctrico”.6 inconformado propagado de tuíte em tuíte),
mas que em pouco tempo se tornou pura
Como valor supremo da economia turbo (com e simplesmente um novo vício.
rodovias, superportos, túneis, macroaeroportos
e trens de alta velocidade viajando em todas as Como escrevo e trabalho em meu escritório,
direções a 300 km/h), a pressa abstrata e louca passo uma boa parte do dia diante da tela.
perdeu sua dimensão humana, e o homem está Ali, imóvel, sinto diariamente a vertigem da
fora de ritmo. As avenidas vão se povoando de comunicação instantânea, a conexão de
sombras nervosas, uma massa de semblantes centenas de milhares de circuitos neuro-
aturdidos que perderam seu rumo e já não que­ nais cruzando-se sem se tocar nos fluxos
rem prosseguir. A era da revolução do microchip da rede. Breves estalos, disseminação das
se tornou também a era dos homens exaustos. frases, pensamento não linear, contatos
efêmeros com as palavras de outros. E um
Me inteirei recentemente de que ao vocabulá­ princípio de sedução implícito. Em geral, a
rio de nossos mal-estares se somou um novo perspectiva me parece extraordinariamen-
termo: time-sickness, a percepção obsessiva te estimulante. Quem sabe porque toda
de que o tempo se esvai, as horas extras já esta sociabilidade repentina contrasta
não bastam e é necessário pedalar cada vez com meu habitual hermetismo. Estarei me
mais rápido para seguir (não se sabe para onde, tornando outra pessoa? As redes sociais
não se sabe por quê). Um novo mal para este têm o efeito do álcool nas festas agitadas:
milênio repleto de novos males, que poderia se precisamos de uma máscara para atuar
chamar também “Síndrome do Coelho Branco” como nós mesmos. E também: nos ador-
namos para sermos vistos, como animais
no cio. Arrumamos nosso perfil, postamos
6  [N.t.] Os versos de Álvaro de Campos citados neste
parágrafo são de três poemas: “O que há”, “Eu, eu mesmo” e
fotos retocadas, procuramos frases excep-
“Adiamento”. Eléctrico é o veículo que no Brasil conhecemos cionais. E no caminho se produzem altas
como bonde. doses de dopamina, endorfinas e prazer,
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ou “Síndrome de Benjamin” (em homenagem recompensas altíssimas; porque a espécie


a Benjamin Franklin, esse homem infatigável sempre tem premiado isso: a sedução.
que, além de ter sido um dos pais dos Estados Conectar-se à rede é ligar o artefato dos
Unidos, inventou o para-raios, negociou trata­ emparelhamentos ilusórios. E sem conse-
dos com as confederações indígenas, formou quências reais. A internet é melhor que a
uma milícia para construir fortes fronteiriços, pílula! Mas quão vulnerável é ainda o ci-
fundou a primeira companhia de seguros, o pri­ berviciado ao despertar de seus excessos,
meiro corpo de bombeiros e o primeiro jornal instalado nas novas patologias do eu digi-
independente e desenhou a primeira carica­ talizado, onde rumina sem auxílio. Que res-
tura política de seu país, e depois de tudo isso sacas insuportáveis, um não vá mais que
ainda teve tempo, talvez porque dormia menos ele se repete no dia seguinte ao embota-
de seis horas diárias e vivia sob um cronograma mento, as dores nas costas, as cãibras no
estritamente regulado, de configurar a ética do cotovelo. Já me senti assim algumas vezes.
trabalho que dominaria o mundo pelos séculos Mas há feridas mais profundas que essas,
seguintes, em livros como The Way to Wealth, um confinamento definitivo, um esqueci-
no qual apontou: “Mas quanto tempo desper­ mento de si. No capitalismo dos fluxos, o
diçamos em dormir!”). Não é estranho que nos direito de desejar é também o direito de
Estados Unidos, a pátria da velocidade, o mal­ ficar insatisfeito.
-estar do cronômetro tenha se tornado pande­
mia, segundo as estatísticas proporcionadas O que eu descrevo não é uma sintomato-
pelo doutor Larry Dossey, que cunhou o termo logia incomum, mas o gesto cotidiano de
time-sickness em 1982, após ter padecido ele centenas de milhares de pessoas ao redor
mesmo os efeitos do nosso orgulhoso mundo de do mundo: desenvolvi uma síndrome ob-
titãs. Agora a pandemia se estende não apenas sessivo-compulsiva, parecida à dos con-
pelo Ocidente, mas também em países orientais sumidores incontinentes ou dos viciados
que haviam vivido historicamente sob a sábia no jogo, enfermidades do capital e seu ma-
filosofia do repouso, como a China. Porque quinário de seduções intermitentes. Em
o que está ocorrendo agora, aqui e em toda minha tela multitasking reverberam neste
parte, é o ultracapitalismo e não há fábrica ou momento dois tuítes que tomo empresta-
oficina em Taipei ou Bangalore que não tenha dos, como ressonâncias de uma mesma
sido contagiada por fim pela angústia do tic­ impaciência (e essa homogeneidade é sus-
-tac. Faxes, celulares, alarmes digitais, bippers, peita): “Se descompôs meu fiel notebook
ringers, timers, esta é a irrefreável produção e voltei a trabalhar no Dell do escritório.
de artefatos que não deixam de nos convidar É lento, lento, lento. Grrrr”, “adolescente
a orar: “Ah, meu Deus, vou me atrasar!”, essa na fila da loja de conveniência: Me dei-
nova Liturgia das Horas. xa passar antes? Eu preciso pôr crédito
urgente para responder uma mensagem”.
Existe uma angústia da velocidade que con­ Eu também me inquieto se estou longe do
siste na renúncia radical à vida, no esqueci­ computador e logo que chego ao meu apar-
mento do ser. Se sob a estrutura da jornada de tamento me dirijo ao monitor, para minha
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trabalho o tempo já não nos pertence, mas nós dose do dia. Se o buscador não aparece de
que pertencemos a ele, tanto pior se essa jor­ imediato, me desespero; minha urgência
nada se prolonga indefinidamente e nos segue não tolera as falhas da banda larga. Sei
a toda parte com trabalho que se leva para casa, que estou em zona de risco. Não é nova
balanços que se resolvem durante a viagem de para mim. Conheço-a desde que tinha
avião, telefonemas que não param na hora da quinze anos e fumei meu primeiro cigarro.
comida. A angústia da velocidade é sacrifício do Uma noite, dez anos depois, traguei três
tempo próprio (o tempo do sonho e da conversa, maços seguidos. Escrevo aqui para me
do amor e do corpo, da contemplação e de tudo curar? Nos intercâmbios ultrarrápidos
que serve ao prazer das pessoas livres), por do Twitter, não há tempo para a análise.
tempo ganho (o tempo dos negócios). Poupar A escrita em tempo real não tem peso,
tempo é ganhar tempo, e se o tempo é ouro, carece de profundidade. (Não poderia ser
aquele que o poupa e o ganha se enriquece. de outra forma. Sem a dispersão nem o
E dado que nossa época obedece como nunca a surfing, sem esse movimento veloz sobre
exortação de fazer dinheiro, considera-se legí­ a superfície, o que sobraria da internet?
timo e até admirável desaparecer a conversa Nada. Se tornaria chata, como tem sido
fiada após a refeição e tornar o restaurante uma habitualmente nossa cultura. Se perderia
extensão do escritório. Render ao máximo, isso seu caráter vaporoso, ligeiro, sensual, de-
é a velocidade. Deixar a sesta. Quem entre os senvolto. Teríamos profundidade, mas sem
novos ascetas entregues à sagrada causa labo­ a excitação das ideias simultâneas.) Se eu
ral se oporia hoje a uma nova reforma: a aboli­ busco minha desintoxicação no ensaio é
ção do domingo? porque sua escrita me exige um retarda-
mento, uma demora. Nele, todo tempo real
É a hora das grandes impaciências, dos desa­ é descompassado pela dúvida. Me afasta
justes prematuros. E um belo dia, toca à porta da impaciência e de qualquer contingên-
o burnout: o cansaço de todos os cansaços, cia efêmera. Me devolve a meu lugar. Um
até o último cansaço, depois do qual apenas ensaísta no Twitter pagaria o que fosse
resta um grande vazio. Nenhum afã já, as mãos por ter calado. Conheço um, meu amigo,
já não pegam nada. Toca o telefone, ninguém que apaga sistematicamente seus tuítes.
responde. O burnout é a prostração de um sis­ Será porque também suspeita que a velo-
tema nervoso exausto, uma ressaca por over­ cidade se tornou nosso melhor álibi para
dose de eficiência. Síndrome do Esgotamento não pensar?
Profissional. Seus efeitos estão para além da
fadiga física, as dores de cabeça, as úlceras, “O mediano é rápido. O gênio é lento”,
as insônias, as irritabilidades. O burnout é escreve Baricco em Os bárbaros. Ensaio
o prelúdio da morte do espírito, o alto preço sobre a mutação. Esse livro me interes-
pago pelos soldados do dever, fustigados por sa, embora suas estratégias retóricas
um relógio tirânico (cada vez mais horas, cada tenham me aborrecido um pouco, por-
vez mais rápido, “quase não é o suficiente”). que escrevo marcada pelas duas ten-
O corpo cansado é um corpo que se rebela, um sões que se descrevem ali: o caráter
CADERNO DE LEITURAS N.105 / NOTAS SOBRE OS DOENTES DE VELOCIDADE / VIVIAN ABENSHUSHAN 18

corpo que se colocou em greve e defende seu contemplativo, melancólico, solitário e


direito a repousar. Através do esgotamento, o lento de um mundo em vias de desapa-
tempo biológico tenta lhe impor um compasso recer, e a chegada de um temperamento
distinto ao homem do tempo frenético; lhe diz: cheio de novos valores entre os quais se
“Pare...”. Mas o burnout é um alarme tocado fora encontram a rapidez, a espetaculosida-
de hora, quando o corredor já perdeu impulso e de, a dispersão eletrônica, a dissolução
se transformou em um estranho para ele mesmo. de certas verdades e hierarquias, “uma
O que acontece parece na verdade um freio revolução tecnológica que rompe de re-
inútil, um freio após a catástrofe. Ansiolíticos pente com os privilégios da casta que
para retardar um corpo inerte. E então os ostentava a primazia da arte”. Sei que
médicos aconselham uma “cura de repouso” poderia me tornar junkie da internet, ins-
que devolva o paciente à vida: conversar com talada no fluxo acelerado das partículas,
os amigos, ir ao cinema, beber uma taça de na morte dos afetos reais e do contato
vinho de vez em quando, brincar com os filhos, físico, o estado grogue de uma insensi-
ensaiar uma nova ginástica amorosa, desligar bilidade generalizada, se não fosse por-
o celular. Como deixaram de ser homens, os que acredito que uma vida sem reflexão
soldados da eficiência precisam de outros para (e acrescento: sem corpo) não vale a
lhes recordar quem são. pena ser vivida. Agora mesmo, busco no
Google a frase de Sócrates e a encontro
Sêneca advertiu algo semelhante sobre o a toda velocidade. Não tive que levantar
homem ocupado, um personagem anômalo de meu assento nem buscar penosamen-
na cultura latina: “Pensar que tem gente que te nos Diálogos de Platão, perder tempo.
precisa confiar em outro para saber se está Já se assoma a bárbara que existe em
sentada! Um homem assim não é um ocioso, é mim, porque vivo simultaneamente em
preciso dar-lhe outro nome: é um doente, mais dois ritmos contraditórios, a lentidão e
ainda, é um morto. É ocioso aquele que tem a a velocidade, o humanismo e a técnica, e
sensação de seu próprio ócio. E morto-vivo o assim viajo a cada dia, longe do conforto
que precisa de um indício para se dar conta dos de uma e outra, sempre com um pé fora
hábitos do próprio corpo. Como este pode não do veículo, como os usuários dos micro-
ser dono de tempo algum?” -ônibus na Cidade do México, prontos
para descer em pleno movimento.
De Quincey intuiu que a velocidade se trans­
formaria na rainha indiscutível da morte súbita, Na velocidade existe um paradoxo inilu-
cuja variante laboral poderia ser hoje o karoshi: dível em que se combinam o prazer e a
trombose, hemorragias cerebrais, infartos do catástrofe. Do outro lado desta página
miocárdio, o colapso repentino do corpo pro­ falo da catástrofe; aqui tratei de descre-
vocado pelo excesso de trabalho, um ir para ver o prazer.
além das próprias faculdades, meter o pé no
acelerador até o fim para fazer explodir os pis­ “A bela marcha da pressa, lentamente”,
tões do coração. Em 1969, no Japão, o monstro escreveu Cocteau em Ópio. Diário de uma
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asiático do controle de qualidade, um empre­ desintoxicação. Todo estado alterado de


gado de vinte e nove anos que trabalhava horas consciência começa assim, com uma per-
extras em uma companhia jornalística faleceu cepção paradoxal do tempo. Alguém terá
por causa de um infarto. Tratava-se do primeiro que escrever algum dia sobre a química
caso conhecido de karoshi, depois do qual eles da velocidade como já se fez sobre a na-
não pararam de ocorrer a toda hora (as estatís­ tureza de outras drogas. Que substâncias
ticas do ministério japonês do trabalho repor­ empurram a corrente sanguínea para o
tam 10 mil mortes por ano). acelerador, que taquicardias nascem no
contato com o volante. Um cientista mexi-
Leio, em uma página da internet dedicada à cano, Luis Eugenio Todd, encontrou o lugar
defesa das vítimas de karoshi, a história do em que habita a guloseima: o sistema lím-
senhor Yagi, um homem que trabalhava qua­ bico, a região cerebral que está associada
torze horas diárias e gastava três horas e meia às satisfações. Trata-se de nossa pequena
no trem para ir e voltar do escritório. Morreu selva de animais no cio. Ali, todo ato de
aos quarenta e três anos; em seu diário pessoal sobrevivência é recompensado com prazer:
escreveu: “Ao menos os escravos tinham tempo o desejo sexual, a sede, a fome, o medo.
para comer com suas famílias”. Se a área cortical do cérebro, o lugar em
que estão os pensamentos, a razão e o
Um mundo que vive apenas para trabalhar e tra­ conhecimento, é, à exceção do sistema
balha até morrer é um mundo de pessoas que límbico, o que nos distingue dos animais,
têm dificuldade de digestão e que se prepara então todo este sentimento de que se
para se transformar em um mundo de semide­ acabou, essa sensação de estar vivendo
mentes. Com todo esse rigor de marchas força­ uma nova invasão bárbara, a destruição
das só se conseguiu que a vida já não mereça da “alma da civilização” por uma série de
ser vivida. No Japão, o número de mortes cau­ valores supérfluos, não é nada além de
sadas pelo excesso de trabalho se soma ao uma batalha no interior de nossos cére-
número de suicídios originados pela falta dele. bros. O império da velocidade é o advento
Durante seu percurso anual pelos bosques de de nosso lado mais selvagem. Fomentar
Aokigahara, no fim do ano passado, a polícia o desejo, a insaciabilidade, o prazer, não
japonesa encontrou setenta e três cadáveres, são essas as funções do império da pu-
a maioria de jovens que tiraram a própria vida blicidade? Milhares de milhões de dólares
porque não encontravam trabalho ou tinham investidos a cada ano para dar de comer a
sido demitidos. As pressões que o sistema nosso animal, reprimido por vários séculos
financeiro atual exerce têm levado as corpo­ de racionalismo. De repente a denomina-
rações (empresas sem consciência ética cujos ção de “capitalismo selvagem” adquire
interesses estão acima dos indivíduos) a fazer para mim um novo sentido.
cortes constantes de pessoal e a sobrecarre­
gar de tarefas o senhor Yagi, para ajustar-se Em Doenças do século XXI, Todd traça uma
aos custos internacionais. Desse modo, os que topografia cerebral, com incêndios e sa-
trabalham o fazem sob condições de pressão turnálias, para nos explicar que o sistema
CADERNO DE LEITURAS N.105 / NOTAS SOBRE OS DOENTES DE VELOCIDADE / VIVIAN ABENSHUSHAN 20

inaceitáveis que suportam – dispostos inclu­ límbico é o mesmo que se altera quando
sive a desmaiar – apenas por medo de perder se consome maconha, cocaína, café, ál-
o pagamento quinzenal, e os desempregados cool, nicotina. Então, todo o lado esquerdo
preferem o suicídio a uma vida vergonhosa (sob deste ensaio não seria nada além de uma
a moral japonesa de que não há pior desonra forma de me proteger dessa margem selva-
que a impossibilidade de servir à sociedade). gem que o capitalismo alimenta como uma
besta desesperada? Um ensaio cortical?
Penso nesse bosque de cadáveres aos pés do Um ensaio que acredita na lentidão, na dú-
majestoso monte Fuji e me lembro daquela vida, no pensamento. Um ensaio civilizado,
frase de Morand: “A velocidade é uma rota um gênero humanista. Mas deste lado pra-
semeada de mortos, uma sede perpétua que tico um ensaio límbico: subjetivo, zigueza-
nada sacia, um suplício omitido por Dante”. gueante, atento às vísceras, pós-humano.
Talvez Aokigahara seja como uma fotografia E nele gostaria de reivindicar certa ideia
funesta, o emblema de um porvir em que as afli­ de prazer que o cérebro experimenta ao
ções associadas à nossa obsessão pela veloci­ se internar nos rizomas da internet, mas
dade se tornarão habituais, ou mesmo crônicas. não esse entretenimento que se esque-
ce do corpo e de si, não um hedonismo
Não seria oportuno que alguém se desse ao atiçado pelo consumismo. Mas um prazer
trabalho de inventar uma nova máquina, a que se interroga e que faz da velocidade
Máquina da Lentidão, um artefato impossível, das redes e suas possibilidades, mas tam-
capaz de desacelerar o tempo e de reconquistar bém da deriva urbana, dos banquetes e da
as horas de ócio, as caminhadas morosas e sem conversação, um espaço para fomentar a
rumo fixo, as leituras demoradas em posição insolência e planejar a diatribe.
horizontal? Seria uma máquina de dimensões
humanas que nos livraria do jugo das máqui­ As rodovias do excesso nos conduzirão,
nas e nos devolveria a possibilidade de medi­ como escreveu William Blake, ao palácio
tar um pouco sobre nós mesmos. Teria que ser da sabedoria?
um artefato lento, até mesmo vagaroso, pare­
cido a uma bicicleta ou a um pesado moinho, A velocidade é muitas vezes uma forma
em que a velocidade seria finalmente domes­ de violência, inclusive nas situações
ticada. Ao fazê-la girar, a cidade adotaria um mais anódinas. Me lembro da tarde em
novo ritmo, sem se deixar atropelar nunca mais que preparei pela primeira vez um mate,
pela pressa ou pela fadiga. Sob seu influxo libe­ uma substância inócua se pensamos no
rador, a xícara de chá duraria meia hora e as café ou na cocaína. Por ignorância eu
pessoas aprenderiam a saborear o vinho em bebi muito rápido, ignorando o ritual mo-
goles lentos, interrompidos por frases enge­ roso de sua preparação e sua companhia.
nhosas na conversa. Os restaurantes de fast­ Muito rápido, a mateína, um alcaloide
-food permaneceriam vazios, e as pessoas se que tem a particularidade de acelerar
recostariam e se deixariam cair em redes muito os processos mentais e incrementar os
fundas. Os amigos aprenderiam a arte de passar estados de alerta, me subiu à cabeça.
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toda uma tarde no café e às segundas cele­ O mundo me parecia desesperadamente


brariam a Corrida do Ciclista Mais Lento, uma lento. Os garçons, obtusos; as pessoas,
prova cuja única finalidade, como no aforismo imbecis. Me transformei em um ser
de Wittgenstein (“na corrida da filosofia, vence despótico e impaciente. Usei a palavra
aquele que consegue correr mais devagar”), “cretino” pela primeira vez. Meu marido
seria chegar em último. Atentos às minúcias percebeu meu nervosismo e para brincar
do caminho nas quais jamais haviam reparado, comigo começou a atuar e a responder
os ciclistas filosóficos se empenhariam em com uma lentidão desesperada e exas-
uma proeza extravagante: coroar-se no pódio perante. Se mostrava distraído, ficava em
da imobilidade. Ninguém iria querer se cansar, silêncios prolongados. Se ausentava. Ele
nem ultrapassar seus rivais; para esses atletas atuava sob meus ritmos habituais (essa
da lentidão, a verdadeira vitória consistiria em lentidão minha que às vezes o tira do sé-
não cruzar a linha de chegada. rio), quando não estou sob os efeitos do
estresse ou da pressa. Ele era eu e tinha
Talvez essa grande máquina, que imagino agora vontade de matá-lo.
com forma de ampulheta, de onde os acele­
rados sairiam andando devagar, existe desde Talvez o ensaio faça isso: contrastar as ve-
que De Quincey colocou uma pausa na fata­ locidades. Se detém de repente para que
lidade, antes de fazer uma virada equivocada possamos perceber nosso excesso de ve-
sobre a estrada. Essa máquina de desacele­ locidade. Olha os detalhes amplificados do
ração é a escrita, capaz de retardar o curso acidente em câmera lenta. Interroga, inclu-
do tempo. Penso no dia de Leopold Bloom, o sive se não há tempo para fazê-lo. Prefere
dia mais longo da literatura, em que um par de entender a não entender. Desmantela.
horas ou quinze minutos podem se amplificar E nisso é contrário à lisura das rodovias da
durante duzentas páginas. Ou nas digressões informação; se move entre as coisas como
de Tristram Shandy que fazem recuar a trama um molusco, inclusive quando voa. Por isso,
cada vez que avança. Shandy foge dos relógios não suporta os adeptos impacientes e tor-
porque não quer morrer. E encontra na digres­ pes. Os frívolos. Se afasta deles, condena-
são (um recurso que multiplica o tempo no inte­ -os à incompreensão e ao acidente.
rior da obra) a melhor arma para se esconder
da horrível velocidade. Em “A mão lenta”, Roland Barthes diz que
toda a evolução da escrita (digamos, do
“Lentidão, sinal de ócio”, escreveu Valery Lar­ ato gráfico da escrita, desde a escrita
baud, em um ensaio contra a velocidade que demótica até a taquigrafia) se deveu a
dedicou a seu amigo Paul Morand, para insis­ uma necessidade de escrever mais rápi-
tir na defesa de uma existência mais pau­ do. Por quê? Porque esse era o ritmo que
sada, como a que levava seu heterônimo, A. O. impunha o comércio. As sociedades que
Barnabooth, poeta sem pátria, ocioso e multimi­ escreviam mais rápido, ganhavam tempo,
lionário, que reunia como ninguém o privilégio ou seja, dinheiro. Para escrever a uma
de ter um tempo próprio. No ensaio, Larbaud velocidade maior, os sumérios passaram
CADERNO DE LEITURAS N.105 / NOTAS SOBRE OS DOENTES DE VELOCIDADE / VIVIAN ABENSHUSHAN 22

fala de certo personagem anômalo que desco­ do pictograma à escritura cuneiforme.


briu em uma cidade estrangeira. Todas as noi­ Levantar a caneta faz a escrita perder tem-
tes, até as onze e meia, ele via de sua janela po? Não a levantemos mais: eis aí a origem
passar um carro silencioso, elegante e novo, da letra manuscrita. Nas cursivas é pos-
que percorria a avenida tão suave e lentamente sível ver como correm as grafias. Também
que parecia prestes a se descompor. Quem era é certo que existe uma rivalidade entre a
aquele homem que podia bancar o luxo de tanta velocidade gráfica e a velocidade mental.
lentidão? Tratava-se do rei, de quem mais, o Disse que sou lenta e, apesar disso, não
aristocrata desertor do ritmo geral. “A veloci­ escrevo mais a mão: gosto da experiência
dade – escreveu Larbaud – invadiu a tal ponto de ver como se produz o texto na tela à ve-
nossas horas de ócio, desse pouco ócio de que locidade do meu pensamento. Sonho com
dispomos, que a lentidão tende a se tornar, a a possibilidade de uma escrita estenográ-
cada dia, uma mercadoria rara e preciosa”. fica que passe diretamente da minha voz
à tela, ou melhor, da minha mente ao livro.
Agora que termino estas notas, que se asse­
melham cada vez mais a um informe clínico, A velocidade do computador é fascinante
quero pensar que a literatura pode ser esse porque parece emular nossa velocidade
veículo silencioso e lento que percorre as ave­ mental. Discorrer é como correr, dizia
nidas da noite na contracorrente, um veículo Galileu para defender um método fundado
excêntrico e indolente no qual as pessoas na economia dos argumentos e na agilida-
se deslocam na direção contrária aos fluxos de da reflexão. Sendo, como foi, um visio-
financeiros. Talvez a literatura não nos cure da nário, Galileu empalideceria diante de nos-
velocidade (nada mais desalentador, pensava sa perspectiva do pensamento transmitido
Walser, que os livros saudáveis), mas escrever em tempo real. Nunca antes o escritor ha-
e ler talvez possam nos aproximar do conheci­ via tido uma resposta tão imediata de seus
mento de sua tragédia inerente ou ajudar-nos leitores como agora no Twitter. Twitter é
a decifrar em que estamos nos transformando a velocidade (e a democratização) máxima
e qual é a direção imprevisível para a qual nos em escrita. Justamente em meio aos fune-
arrasta o nanossegundo. rais da escrita! É provável que tenhamos
encontrado um novo placebo, mais eficaz
Coda (lentíssima). Diógenes, o cínico, cele­ que as bolsas do Estado; minuto a minuto,
brava a nobre arte de deixar as coisas por fazer. até o poeta mais abatido pode sentir que
Ninguém merece ser mais admirado, dizia, que alguém o lê e está vivo. Não me estranha,
aquele que ia se lançar ao mar e não zarpava, portanto, que tantos intelectuais se sintam
o que se dispunha a casar e não casava, os seduzidos pelos 140 caracteres; eis aí uma
que estavam preparados para aconselhar os nova sensualidade da cabeça.
poderosos e não se aproximavam deles. Faz
tempo que busco o rastro desses homens de Escrever com lentidão é ir contra um maior
passo lento e indeciso, esses fugitivos da ação. rendimento da escrita? Ou é simplesmente
Gosto de imaginá-los detidos subitamente em uma forma de preguiça? Talvez escrever
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meio à sufocante atividade da cidade, como com lentidão ensaios digressivos que
se fossem os atores de um filme incompleto, postergam em cada página sua conclusão
um filme no qual deram uma pausa para sem­ seja uma forma deliberada de fracasso,
pre. Faz tempo também que queria escrever uma ética antagonista da ética taylorista
um conto sobre eles. Seria o relato de um aplicada ao texto. Escrevi este ensaio três
grupo anônimo de garçonetes, caixas, vende­ vezes. Na primeira, ele corria rumo ao final,
dores de seguros, editores de jornal, que, um sem se desviar; na segunda, se acidentou
belo dia, ao sair à rua para comprar cigarros e se quebrou em fragmentos dissemina-
para logo voltar à labuta, simplesmente não dos e desconexos; na terceira, que é esta,
regressam e ficam parados, imóveis, em meio se escreve às margens, questionando
ao frenesi caótico do mundo. Uma conjura de seus próprios fundamentos. Reescrevo
seres parados nas esquinas, contemplando o o mesmo ensaio como se não quisesse
céu enquanto a agitação das avenidas e dos terminá-lo. Uma estratégia para retardar
automóveis lhes passa ao largo. Algum dia a chegada, um desmantelamento do êxito
escreverei esse conto, mas não tenho pressa: no interior da escrita. Isso é a digressão,
faz tempo que joguei meu relógio no lixo. outra forma de não ser pontual, e por isso
escrevo ensaios. Durante muito tempo tive
a sensação de que chegava tarde a tudo.
Na universidade, por exemplo, era a última
a entregar e às vezes levei meus trabalhos
para a casa dos professores, porque o pra-
zo havia terminado. Me aceitavam porque
lhes entregava “bons textos”. Era lenta,
me esmerava em demasia. Agora mesmo,
meus editores esperam este livro, que se
tarda em concluir. De onde vem minha len-
tidão? Exijo meus quarenta minutos extras
comigo mesma, sobretudo na hora mais
importante do dia: quando me sento em
uma cadeira e me coloco a pensar.
Caderno de Leituras n.105
Notas sobre os doentes de velocidade
Vivian Abenshushan

Coordenação editorial Maria Carolina Fenati


Coordenação de arte Luísa Rabello
Tradução Gabriel Bueno da Costa
Revisão da tradução Clarissa Xavier
Revisão Flávia Durãis
Projeto gráfico Rita Davis

Composto em GT America

Edições Chão da Feira


Belo Horizonte, maio de 2020

Esta e outras publicações da editora estão


disponíveis em www.chaodafeira.com

Este projeto foi realizado com recursos da Lei Municipal de Incentivo


à Cultura de Belo Horizonte. Patrocínio UniBH. Projeto 0699/2017.

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