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10/08/2020 O que é o contemporâneo?

– Giorgio Agamben – Territórios de Filosofia

Territórios de Filosofia

O que é o contemporâneo? – Giorgio Agamben

14 de julho de 201426 de julho de 2014 • Aurora Baêta


O que é o contemporâneo?

Giorgio Agamben.*

A pergunta que eu gostaria de inscrever no início deste seminário é: “De quem e de que somos
contemporâneos? E, sobretudo, o que significa ser contemporâneos?”. (…) De Nie sche, vem-nos
uma indicação inicial, provisória, para orientar nossa busca por uma resposta. (…) Em 1874, Friedrich
Nie sche, um jovem filólogo que havia trabalhado até então em textos gregos e, dois anos antes,
havia alcançado uma celebridade imprevista com “A origem da tragédia”, publica as “Considerações
Intempestivas”, com as quais quer acertar contas com o seu tempo, tomar posição com relação ao
presente. “Intempestiva é essa consideração”, lê-se no começo da segunda Consideração, “porque
tenta entender como um mal, um inconveniente e um defeito algo do qual a época justamente se
sente orgulhosa, ou seja, sua cultura histórica, porque penso que todos somos devorados pela febre
da história e deveríamos, pelo menos, nos dar conta disso”.

Nie sche situa, portanto, sua pretensão de “atualidade”, sua “contemporaneidade” com relação ao
presente, em uma desconexão e em uma defasagem. Pertence realmente ao seu tempo, é
verdadeiramente contemporâneo aquele que não coincide perfeitamente com aquele, nem se adequa
a suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual. Mas, justamente por isso, a partir desse
afastamento e desse anacronismo, é mais capaz do que os outros de perceber e de apreender o seu
tempo.

Essa não-coincidência não significa, naturalmente, que seja contemporâneo quem vive em outra era,
um nostálgico que se sente mais cômodo na Atenas de Péricles, ou na Parisde Robespierre e do
Marquês de Sade do que na cidade e no tempo em que lhe coube viver. Um homem inteligente pode
odiar o seu tempo, mas sabe que irrevogavelmente lhe pertence, sabe que não pode fugir de seu
tempo.

A contemporaneidade é, pois, uma relação singular com o próprio tempo, que adere a este e, ao
mesmo tempo, toma distância dele. Mais exatamente, é “essa relação com o tempo que adere a este,
por meio de uma defasagem e de um anacronismo”. Os que coincidem de um modo excessivamente
absoluto com a época, que concordam perfeitamente com ela, não são contemporâneos, porque,
justamente por essa razão, não conseguem vê-la, não podem manter seu olhar fixo nela.

Em 1923, Osip Mandelstam escreveu a poesia “O século” (a palavra russa veksignifica também
“época”). Ela contém não uma reflexão sobre o século, mas sim sobre a relação entre o poeta e seu
tempo, isto é, sobre a contemporaneidade. Não o “século”, senão, segundo o primeiro verso, “meu
século” (vek moi):

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10/08/2020 O que é o contemporâneo? – Giorgio Agamben – Territórios de Filosofia

Meu século, minha besta, há alguém que possa Esquadrinhar em teus olhos E soldar com seu sangue
As vértebras de dois séculos?

O poeta, que devia pagar sua contemporaneidade com a vida, é quem deve manter o olhar fixo nos
olhos de seu século-besta, soldar com seu sangue a coluna quebrada do tempo. O poeta – o
contemporâneo – deve manter o olhar fixo em seu tempo. Mas que vê quem vê seu tempo, o sorriso
demente de seu século? Gostaria aqui de lhes propor uma segunda definição da contemporaneidade:
contemporâneo é aquele que mantém o olhar fixo em seu tempo, para perceber não as suas luzes, mas
sim as suas sombras. Todos os tempos são, para quem experimenta sua contemporaneidade, escuros.
Contemporâneo é quem sabe ver essa sombra, quem está em condições de escrever umedecendo a
pena nas trevas do presente. Mas o que significa “ver a escuridão”, “perceber a sombra”?

Uma primeira resposta nos é sugerida pela neurofisiologia da visão. O que acontece quando nos
encontramos em um ambiente sem luz, ou quando fechamos os olhos? O que é a sombra que vemos
nesse momento? Os neurofisiologistas dizem-nos que a ausência de luz desinibe uma série de células
periféricas da retina, chamadas, precisamente, deoff-cells, que entram em atividade e produzem essa
espécie particular de visão que chamamos de sombra. A sombra não é, portanto, um conceito
privativo, a simples ausência de luz, algo como uma não visão, mas sim o resultado da atividade das
off-cells, um produto da nossa retina. Isso significa (…) que perceber essa sombra não é uma forma de
inércia ou de passividade, mas sim de algo que implica uma atividade e uma habilidade particulares,
que, no nosso caso, equivalem a neutralizar as luzes que provêm da época para descobrir sua
escuridão, sua sombra especial que não é, de todos os modos, separável dessas luzes.

Pode se chamar de contemporâneo só aquele que não se deixa cegar pelas luzes do século e que é
capaz de distinguir nelas a parte da sombra, sua íntima escuridão. Com isso, porém, não
respondemos a nossa pergunta. Por que o fato de poder perceber as trevas que provêm da época
deveria nos interessar? Por acaso, a sombra não é uma experiência anônima e, por definição,
impenetrável, algo que não está dirigido a nós e não pode, portanto, nos incumbir? Pelo contrário,
contemporâneo é aquele que percebe a sombra de seu tempo como algo que lhe incumbe e que não
cessa de interpelá-lo, algo que, mais do que qualquer luz, se refere direta e singularmente a ele. Quem
recebe em pleno rosto o feixe de trevas que provém de seu tempo.

No firmamento que olhamos de noite, as estrelas resplandecem rodeadas por uma espessa penumbra.
Tendo-se em conta que há no universo um número infinito de galáxias e de corpos luminosos, a
sombra que vemos no céu é algo que, segundo os cientistas, requer uma explicação. Gostaria de falar
agora da explicação que a astrofísica contemporânea dá para essa sombra. No universo em expansão,
as galáxias mais remotas de afastam de nós a uma velocidade tão grande que sua luz não pode
chegar a nós. O que percebemos como a sombra do céu é essa luz que viaja extremamente veloz até
nós e, no entanto, não pode nos alcançar, porque as galáxias das quais ela provém se afastam a uma
velocidade superior à velocidade da luz. Perceber essa luz que tenta nos alcançar, e não pode, na
escuridão do presente: isso significa ser contemporâneo. Daí vem que ser contemporâneos é, antes de
tudo, uma questão de coragem: porque significa ser capazes não apenas de manter o olhar fixo na
sombra da época, mas também perceber nessa sombra uma luz que, dirigida até nós, se afasta
infinitamente de nós. Isto é: chegar pontualmente a um encontro ao qual só é possível faltar.

Por isso, o presente que a contemporaneidade percebe tem as vértebras quebradas. Nosso tempo, o
presente, não é só o mais distante: não pode nos alcançar de maneira nenhuma. Ele tem a coluna
quebrada, e nos encontramos exatamente no ponto da fratura. Por isso, somos, apesar de tudo, seus
contemporâneos. O encontro que está em questão na contemporaneidade não ocorre simplesmente
no tempo cronológico: é, no tempo cronológico, algo que urge em seu interior e o transforma. Essa
urgência é o intempestivo, o anacronismo que nos permite apreender o nosso tempo na forma de um

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10/08/2020 O que é o contemporâneo? – Giorgio Agamben – Territórios de Filosofia

“muito cedo” que é, também, um “muito tarde”, de um “já” que é também um “ainda não”. E
reconhecer, nas trevas do presente, a luz que, mesmo sem nunca poder nos alcançar, está
permanentemente em viagem até nós.

Um bom exemplo dessa experiência especial do tempo que chamamos de contemporaneidade é a


moda. O que define a moda é que ela introduz uma descontinuidade no tempo, que o divide segundo
sua atualidade ou falta de atualidade, seu estar e seu não estar mais na moda (na moda, e não
simplesmente de moda, que alude só às coisas). Apesar de ser sutil, essa divisão é clara: os que
devem percebê-la infalivelmente a percebem e, dessa forma, certificam seu estar na moda. Mas se
tratar-*mos de objetivá-la e fixá-la no tempo cronológico, ela se revela inapreensível. Sobretudo o
“agora” da moda, o instante em que começa a ser, não é identificável por nenhum cronômetro. Esse
“agora” é o momento em que o estilista concebe o traço, o matiz que definirá a nova forma das peças?
Ou no qual ele a confia ao desenhista e depois à costureira que confecciona o protótipo? Ou, melhor,
o momento do desfile, onde a peça é levada pelas únicas pessoas que estão sempre e somente na
moda, as manequins, que, no entanto, justamente por isso, nunca o estão realmente? Porque, em
última instância, o estar na moda da “forma” ou da “maneira” dependerá do fato de que as pessoas
de carne e osso, diferentes das manequins – vítimas sacrificiais de um deus sem rosto – a reconheçam
como tal e a convertam em sua vestimenta.

O tempo da moda está, portanto, constitutivamente adiantado a si mesmo e, por isso, também
sempre atrasado; sempre tem a forma de um limiar inapreensível entre um “ainda não” e um “já
não”. É provável que, como sugerem os teólogos, isso dependa do fato de que a moda, pelo menos
em nossa cultura, é uma signatura teológica do vestido que deriva da circunstância de que a primeira
peça de vestuário foi confeccionada por Adão eEva depois do pecado original, na forma de um pano
entrelaçado com folhas de figueira. (As peças que vestimos derivam não desse pano vegetal, mas das
“tunicae pelliceae”, dos vestidos feitos com peles de animais que Deus, segundo Gênesis 3, 21, faz com
que nossos progenitores vistam, como símbolo tangível do pecado e da morte, no momento em que
os expulsa do paraíso). Em todo caso, além da razão, o “agora”, o “kairos” da moda é inapreensível: a
frase “estou na moda neste instante” é contraditória, porque, no segundo em que o sujeito a
pronuncia, ele já está fora de moda.

Por isso, o estar na moda, como a contemporaneidade, comporta certa “soltura”, certa defasagem, em
que sua atualidade inclui dentro de si uma pequena parte de sua parte de fora, um sabor de démodé.
Nesse sentido, dizia-se de uma senhora elegante na Paris do século XIX: “Elle est contemporaine de tout
le monde”. Mas a temporalidade da moda tem outro caráter, que a assemelha à contemporaneidade.
No próprio gesto em que seu presente divide o tempo segundo um “já não” e um “ainda não”, ela
cria com esses “outros tempos” – certamente com o passado e talvez também com o futuro – uma
relação particular. Ela pode, vale dizer, “encontrar” e, dessa maneira, reatualizar qualquer momento
do passado (os anos 20, os anos 70, mas também a moda império ou neoclássica). Pode, portanto,
colocar em relação o que dividiu inexoravelmente, voltar a chamar, reevocar e revitalizar o que havia
declarado como morto.

Essa relação especial com o passado tem outro aspecto. A contemporaneidade se inscreve no presente
marcando-o sobretudo como arcaico, e só quem percebe no mais moderno e recente os indícios e as
signaturas do arcaico pode ser seu contemporâneo. Arcaico significa: próximo do “arché”, ou seja, da
origem. Mas a origem não está situada só em um passado cronológico: é contemporâneo ao devir
histórico e não cessa de funcionar nele, como o embrião continua atuando nos tecidos do organismo
maduro, e o bebê, na vida psíquica do adulto. A distância e, ao mesmo tempo, a proximidade que
definem a contemporaneidade têm seu fundamento nessa proximidade com a origem, que em
nenhum ponto bate com tanta força como no presente. (…)

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Os historiadores da literatura e da arte sabem que, entre o arcaico e o moderno, há um encontro


secreto, e não tanto por causa do fato de que as formas mais arcaicas parecem exercer no presente um
fascínio particular, mas sim porque a chave do moderno está oculta no imemorial e no pré-histórico.
Assim, o mundo antigo, em seu final, se volta, para se reencontar, para as origens: a vanguarda, que
se extraviou no tempo, segue o primitivo e o arcaico. Nesse sentido, justamente, pode-se dizer que a
via de acesso ao presente tem necessariamente a forma de uma arqueologia. Que não retrocede,
porém, a um passado remoto, mas sim ao que, no presente, não podemos viver de nenhuma forma e,
ao permanecer no vivido, é incessantemente reabsorvido para a origem, sem nunca poder alcançá-lo.
Porque o presente não é outra coisa que a parte de não-vivido em cada vivido, e o que impede o
acesso ao presente é justamente a massa do que, por alguma razão (seu caráter traumático, sua
proximidade excessiva) não conseguimos viver nele (…).

Os que tentaram pensar a contemporaneidade puderam fazê-lo só às custas de dividi-la em mais


tempos, em introduzir no tempo uma des-homogeneidade essencial. Quem pode dizer “meu tempo”
divide o tempo, inscreve nele uma divisão e uma descontinudiade: e, no entanto, justamente por
meio dessa divisão, essa interpolação do presente na homogeneidade inerte do tempo linear, o
contemporâneo instala uma relação especial entre os tempos.

Mesmo que, como vimos, o contemporâneo é que abriu as vértebras de seu tempo (ou percebeu a
falha ou o ponto de ruptura), ele faz dessa fratura o lugar de encontro entre os tempos e as gerações.
Nada mais exemplar, nesse sentido, do que o gesto de Paulo de Tarso
(h p://unisinos.br/ihuonline/index.php?option=com_editorias&Itemid=19&id_edicao=314), no
ponto em que experimenta e anuncia aos seus irmãos essa contemporaneidade por excelência que é o
tempo messiânico, o ser contemporâneo do messias, que ele chama de “tempo de agora” (“ho nyn
kairos”). Não só esse tempo é cronologicamente indeterminado (…), mas também tem a capacidade
singular de relacionar consigo mesmo cada instante do passado, de fazer de cada momento ou
episódio do relato bíblico uma profecia ou uma prefiguração (“typos”, figura, é o termo preferido de
Paulo) do presente (assim Adão, por meio de quem a humanidade recebeu a morte e o pecado, é o
“tipo” ou figura do messias, que traz aos homens a redenção e a vida).

Isso significa que o contemporâneo não é só quem, percebendo a sombra do presente, apreende sua
luz invendável. É também quem, dividindo e interpolando o tempo, está em condições de
transformá-lo e colocá-lo em relação com os outros tempos, ler nele a história de maneira inédita,
“encontrar-se” com ela segundo uma necessidade que não provém absolutamente de seu arbítrio,
mas de uma exigência à qual ele não pode deixar de responder. É como se essa luz invisível que é a
escuridão do presente projetasse sua sombra sobre o passado, e este, tocado por seu feixe de sombra,
adquirisse a capacidade de responder às trevas do agora.

Michel Foucault, devia ter algo semelhante em mente quando escrevia que suas indagações
históricas sobre o passado são só a sombra projetada por sua interrogação teórica do presente. E
Walter Benjamin, quando escrevia que o signo histórico contido nas imagens do passado mostra que
estas alcançarão a legibilidade só em um determinado momento de sua história. De nossa capacidade
de dar ouvidos a essa exigência e a essa sombra, de ser contemporâneos não só do nosso século e do
“agora”, mas também de suas figuras no texto e dos documentos do passado, dependerão o êxito ou
o fracasso de nosso seminário.

*Texto publicado em: AGABEM, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó:
Argos, 2009.

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