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A escrita fílmica da história

e a monumentalização do passado:
uma análise comparada de Amistad e D anton 1

Marcos Napolitano12

O cinema de ficção tem sido uma das principais linguagens artísticas de represen­
tação do passado. Através dos chamados “filmes históricos”, episódios e personagens
reais da história são encenados em roteiros ficcionais, muitas vezes verossímeis ao
pretender ser a reconstituição mais fiel possível do passado. Partimos da premissa
que, independentemente do grau de fidelidade aos eventos passados, o filme histórico
é sempre representação, carregada não apenas das motivações ideológicas dos seus re­
alizadores, mas também de outras representações e imaginários que vão além das in­
tenções de autoria, traduzindo valores e problemas coetâneos à sua produção. Como
parte das estratégias de representação que dão sentido político aos filmes históricos,
a questão da monumentalização de eventos e personagens (ou da sua desconstrução
enquanto “monumentos”) tem um papel central na escrita fílmica da história. A mo­
numentalização, por sua vez, encontra no cinema - linguagem espetacular por exce­
lência- um grande potencial de realização. A partir dessas premissas, vamos apontar
para a análise de dois “filmes históricos” portadores de significados opostos entre si,
ao menos como estratégias de monumentalização do passado: Amistad (1997), de
Steven Spielberg, e Danton (1983), de Andrew Wajda.
Amistad retrata um incidente real com um navio negreiro, ocorrido entre 1839
e 1841. Após um motim de escravos, a embarcação vai parar na costa estaduni­
dense. Enquanto o destino dos escravos é discutido, o filme insere elementos clás­
sicos da narrativa do gênero melodrama e reitera, paulatinamente, o mito oficial
da “democracia norte-americana”, como um destino manifesto que não conhece
limites de raça, credo ou cor. Por outro lado, Danton parte de um acontecimen­
to já monumentalizado pela historiografia - o momento jacobino da Revolução
Francesa - para subverter os papéis e confundir os discursos, problematizando

1Este artigo é uma versão ampliada da Comunicação apresentada no GT Dimensões Políticas do Audiovisual,
no XXIII Simpósio Nacional de História, ANPUH, Londrina, 18 a 22 de julho de 2005.
2 Professor do Departamento de História da USP e autor do livro Como usar o cinema em sala de aula. São
Paulo, Contexto, 2003.
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a própria tradição revolucionária ocidental. Portanto, Spielberg, através do cine­


ma, monumentaliza e universaliza um episódio localizado e obscuro da história
estadunidense. Wajda, ao contrário, desconstrói monumentos e personagens da
Revolução Francesa, a “mãe de todas as revoluções”. Independentemente de de­
monstrar qual filme é mais “fiel” aos fatos, vamos procurar demonstrar as dife­
rentes estratégias fílmicas na abordagem da história, bem como o tipo de proble-
matização historiográfica que ambos os filmes podem suscitar ao historiador.

Jacques Le Goff lembra que os materiais da memória coletiva apresentam-se


sob duas formas principais: os documentos, escolhas do historiador, e os monu­
mentos, herança do passado consagrado socialmente. O monumento carrega em
si uma intenção de legar aos pósteros um determinado conjunto de sentidos para
personagens, eventos ou processos históricos. O documento, tradicionalmente,
foi concebido como um testemunho objetivo e não intencional do passado, eixo
da atividade dos historiadores profissionais. Essa separação rígida, conforme Le
Goff, foi problematizada ao longo do século XX, e novas estratégias de crítica
documental passaram a apontar o quanto um documento pode ser também um
monumento, à medida que é utilizado pelo poder.3 Assim, o historiador francês
conclui que “documento é monumento. Resulta do esforço das sociedades histó­
ricas de impor ao futuro - voluntária ou involuntariamente - determinadas ima­
gens de si próprias. No limite não existe um documento-verdade. Todo documen­
to é mentira”.4 Depreende-se da formulação de Le Goff que, se todo documento
pode ser monumentalizado pela história a serviço de um determinado poder, o
monumento pode sofrer o processo inverso, pois, ao ser desconstruído, revela as
várias camadas documentais e as várias historicidades que o constituíram, des­
mascarando seu pretenso discurso monolítico sobre o passado nele representado.
Portanto, ao contrário de uma separação rígida e estatutária entre documento e
monumento, trata-se de operações culturais e intelectuais que, a um só tempo,
monumentalizam ou desmontam as representações cristalizadas do passado. O
cinema é um dos campos mais propícios para essa operação de memória, pois
um dos seus aspectos mais importantes é o caráter espetacular do filme, uma
das variáveis que explica a imensa popularidade do cinema no século XX. Arte
e técnica se encontram no cinema de maneira estrutural, abrindo um campo de
possibilidades sem limite a operações de monumentalização do passado, acessí­

3 Le Goff, Jacques. História e Memória. Campinas, Editora UNICAMP, 1990, p. 545.


4 Idem, ibidem, p. 548.
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vel a grandes platéias e, por isso mesmo, objeto de interesses econômicos e po­
líticos diversos. Para o historiador voltado para o estudo do cinema, é sempre
preciso lembrar que todo filme pode ser tomado como documento histórico de
uma época, a época que o produziu. Todo filme é representação, não importa
se documentário ou ficção. A partir dessa regra geral, surge uma problemática
específica que é a definição de filme histórico.
Pierre Sorlin, ao definir o “filme histórico” deu uma importante contribuição
ao definir um gênero cinematográfico que, dentro do campo ficcional, encena o
passado com os olhos voltados para o presente. O filme histórico é um “espião da
cultura histórica de um país, de seu patrimônio histórico” Trata-se de um ou­
tro olhar sobre o cinema, como fonte e veículo de disseminação de uma cultura
histórica, com todas as implicações ideológicas e culturais que isso representa.
Na definição do filme histórico Pierre Sorlin estrutura uma forma de pensar a
relação cinema-história em três proposições básicas:5
1) Relação presente/passado. O filme histórico ancora-se no presente (produ-
ção/distribuição/exibição) e no passado (datas/eventos/personagens que marcam
o tema dos filmes).
2) Filmes históricos são formas peculiares do “saber histórico de base”. Os fil­
mes não criam esse saber, mas o reproduzem e o reforçam. O filme histórico está
inserido numa cadeia de produção social de significados que envolvem historia­
dores, críticos, cineastas e público.
3) O analista deve problematizar a “narração fílmica da história”, exploran­
do a tensão entre ficção e história, ou seja, entre documentos não-ficcionais e
imaginação/encenação ficcional. Nesse sentido a narrativa fílmica e a narrativa
historiográfica estruturam-se como formas de narração literária, sendo que esta
última busca um efeito de realidade na sua narração, além de ancorar-se em evi­
dências documentais.
O filme histórico é um dos gêneros mais bem-sucedidos do cinema comercial.
Paradoxalmente, mesmo com o questionamento da “verdade histórica”, na prática
historiográfica atual, muitos historiadores cobram ou avaliam um filme histórico
a partir da noção de “fidelidade” ao passado ou do grau de informação ilustrativa
sobre um determinado processo histórico.6 Obviamente, essa questão não é irrele­
vante e é lícito que os historiadores se posicionem nesses termos. Eventuais anacro-
nismos, omissões e informações errôneas veiculadas pelos filmes históricos devem

5 Ramos, Alcides. O canibalismo dos fracos. Cinema e História do Brasil. Bauru, EDUSC, 2002, p. 33-34.
6 Esta parece ser a abordagem predominante em livros com o Ferreira, Jorge. A História vai ao cinema. Rio de
Janeiro, Record, 2000 e Daves, Natalie. The slaves on screen. Film and Historical Vision. Cambridge, Harvard
Univ. Press, 2000.
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ser apontados. Entretanto, a análise de um filme histórico não deve se limitar a esse
tipo de comentário, nem ao cotejo com o que “realmente se passou”.
Em contraposição a essas armadilhas de abordagem, que avaliam a qualidade
do filme histórico em relação à sua fidelidade ao passado, Jean-Lorús Leutrat
propõe o exame de

como o sentido é produzido (...) para que possamos recuperar o significado de uma obra
cinematográfica, as questões que presidem o seu exame devem emergir de sua própria análise.
A indicação do que é relevante para a resposta de nossas questões em relação ao chamado
contexto somente pode ser alcançada depois de feito o caminho acima citado, o que significa
aceitar todo e qualquer detalhe (do filme) (...) trata-se de desvendar os projetos ideológicos
com os quais a obra dialoga e necessariamente trava contato, sem perder de vista a sua
singularidade dentro do seu contexto.7

Portanto, existe um outro aspecto dos filmes históricos cujo potencial de aná­
lise reside, justamente, no exame das manipulações, anacronismos e representa­
ções nem sempre muito fiéis que ele faz do passado. Acreditamos que esta é uma
das vias privilegiadas pelas quais pode ocorrer a operação de monumentalizaçâo
ou, seu contrário, a desconstrução dos monumentos historiográficos através da
“escrita fílmica da história”. Além disso, como já destacou Eduardo Morettin, as
estratégias de monumentalizaçâo, bem como seus limites, estão em constante
diálogo com as possibilidades técnicas da indústria historiográfica e com os ma­
teriais de memória social, adensando através do “específico fílmico” (as técnicas
e linguagens que estruturam o filme) o debate social em torno da memória his­
tórica.8
Tomemos como exercício de análise dois filmes históricos de grande sucesso,
que provocaram debates entre cineastas, políticos, ativistas e historiadores. Duas
obras cinematográficas que, tradicionalmente, foram vistas de maneira oposta,
a cinematografia européia - no caso franco-polonesa - , marcada pela tradição
do “cinema autoral”, e a cinematografia estadunidense, produto do maior e mais
influente complexo de cinema industrial do mundo. A princípio, essas cinemato­
grafias não sofreriam os limites técnicos e expressivos à operação de monumen­
talizaçâo da história através do cinema, já destacada por Eduardo Morettin.9

7 Apud Eduardo Morettin, cap. 2 deste livro, p. 39.


a Morettin, Eduardo. Os limites de um projeto de monumentalizaçâo cinematográfica. Uma análise do filme
"Descobrimento do BrasiF (1937). São Paulo, Tese de Doutorado, ECA/USP, 2001.
9 Idem, ibidem.
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O filme Amistad de Steven Spielberg, finalizado em 1997, é mais uma camada na


monumentalização da “ democracia norte-americana”. A construção dessa nova
camada não foi simples, mas teve que encarar o outro lado dessa democracia que
foi o racismo institucionalizado, vigente até meados dos anos 1960. Já no final
dos anos 1990, os EUA experimentavam um triunfo histórico sem precedentes,
consolidado com o fim da Guerra Fria e da União Soviética. Naquele contexto, o
“politicamente correto” e o “multiculturalismo” eram amplas categorias aceitas,
pelo espectro das forças políticas e ideológicas dominantes, seja de matiz conser­
vador, liberal ou radical. Na década de 1990 havia condições políticas para que
os EUA exercitassem o papel de democracia-mãe do mundo e polícia mundial,
e mesmo os escândalos sexuais que envolviam a figura do presidente Bill Clin­
ton não pareciam suficientes para gerar uma crise política interna ou externa de
maior gravidade, perdendo-se nas páginas dos pasquins sensacionalistas.
O cinema estadunidense, por sua vez, também colhia os frutos dessa hegemo­
nia, impondo-se como a grande matriz audiovisual do imaginário ocidental.
Essa hegemonia não era nova e pode ser identificada já na década de 1930. Mas,
ao longo dos últimos vinte anos do século XX, o cinema norte-americano passou
a reinar absoluto, com a crise das cinematografias européias e latino-americanas,
que, em meados do século, chegaram a esboçar uma contra-hegemonia cinema­
tográfica, se não em termos mercadológicos, ao menos em termos estético-ide-
ológicos.
O diretor e produtor Steven Spielberg, cuja trajetória artística identifica-se com
o processo de renascimento do cinema de espetáculo holywoodiano, que anda­
va em crise entre os anos 1960 e 1970, sempre foi um cineasta identificado com
os mitos historiográficos oficiais norte-americanos: mesmo quando ele encena
situações históricas de outros países, como o Holocausto judeu nos campos de
extermínio nazistas, os elementos ideológicos que prevalecem são veiculados por
personagens protagonistas que exemplificam o homem liberal norte-americano,
dotado de senso de dever profissional, ética de responsabilidade e consciência re­
ligiosa que o empurra para o bem> leia-se, para a busca de liberdade individual e
coletiva. Esses aspectos convivem com uma certa perversidade melodramática,
que Spielberg leva ao limite do naturalismo, mas que quase sempre se resolve na
pieguice, abrandando as tensões que se colocam ao longo do filme. Spielberg, mes­
mo quando ousa encenar o trauma - aquilo que não deve ser mostrado ou narra­
do - como o Holocausto, termina quase sempre resolvendo as tensões do espec­
tador, evitando que os conflitos gerados na audiência se transformem em choque
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e reflexão. Esse jogo entre tensão e repouso, no qual as narrativas de Spielberg se


movimentam com muita fluência, é uma das características de estilo.
Amistad reitera essas marcas particulares da cinematografia de Spielberg e
hollywoodiana em geral. Baseado num episódio real, um tanto obscuro, que so­
mente ganhou algum destaque nos manuais historiográficos a partir dos anos
1970, o filme encena a bizarra situação de um grupo de africanos da etnia Men­
de, que se tornou o centro de uma disputa judicial levada à Suprema Corte. Esse
caso, involuntariamente, transformou-se num caso de disputa comercial e políti­
ca de nível internacional. O navio negreiro Amistad, depois de um motim no qual
os negros africanos tomaram seu comando, vagou por dois meses pelo Atlântico,
tentando rumar para a África, aportando finalmente na costa de New Haven,
estado nortista dos EUA, em agosto de 1838. A “carga” humana foi recolhida e
imediatamente armou-se um cenário para a disputa judicial e política entre as
várias partes que a reclamava: os abolicionistas assessorados pelos advogados Ro­
ger Baldwin e pelo ex-presidente dos EUA John Quincy Adams, os comerciantes
negreiros sobreviventes do motim do Amistad (os cubanos Pedro e Ruiz), a Rai­
nha da Espanha e o governo dos EUA, sintetizado na figura de M artin Van Buren
que, apoiado pelos escravagistas do sul, queria ver a carga devolvida aos seus
donos, o mais rapidamente possível. Essa incrível saga chegou ao conhecimento
da atriz, coreógrafa e produtora negra Debbie Allen que procurou Spielberg após
assistir a Lista de Schindler (1993). Estava montada a cadeia histórica que iria dar
sentido ideológico renovado à narrativa fílmica do Amistad: o encontro da tradi­
ção de luta pelos direitos civis, devidamente institucionalizados, com o trauma
do Holocausto, nesse caso, o Holocausto africano.
Para adensar o monumento da democracia americana em tempos de multi-
culturalismo, Amistad recorre à invenção de personagens ficcionais que sinte­
tizam atores coletivos da história recente dos EUA: o abolicionista negro Teo-
dore Joadson (Morgan Freeman), que não existiu na realidade, representando
o movimento abolicionista e de promoção racial do século XIX e a ascensão de
uma classe média negra, no final do século XX. Outro personagem, este real, o já
maduro Roger Baldwin por ocasião do julgamento, foi transformado num jovem
advogado que soma o idealismo da juventude dos anos 1960 com o pragmatismo
do self-made man norte-americano, interpretado pelo jovem ator Matthew McCo-
naughey. Some-se a estes, o líder africano Cinque (Djimon Honsou), protagonista
do filme. A estes, juntam-se personagens reais, porém deslocados de suas efetivas
inserções históricas: enquanto o passado de John Quincy Adams (Anthony Ho­
pkins), aliado dos escravagistas quando presidente, é omitido, a Marinha inglesa
é representada como polícia humanitária do mundo, o que é exemplificado numa
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das seqüências finais do filme, a destruição da fortaleza de Lomboko, na costa afri­


cana. Os vilões, por sua vez, são aqueles identificados com a defesa da escravidão:
os comerciantes negreiros cubanos e portugueses - misto de ganância, corrupção,
falsa moral e ignorância e os escravagistas do Sul que, conforme o filme, são um
corpo estranho da democracia norte-americana. No seu discurso final na Suprema
Corte, por si um monumento à democracia, John Quincy Adams, deixa bem claro
que se a luta do Norte liberal e democrático com o sul aristocrático e escravagista
viesse a ocorrer, que ela fosse “a última batalha da Revolução americana”. Há uma
elisão significativa no filme: o pouquíssimo destaque dado à ação da American An-
tislavery Society, sobretudo Lewis e Arthur Tappan, missionários e comerciantes
que deram grande suporte jurídico e social aos africanos, por ocasião do julgamen­
to. Além de inegáveis valores humanistas e moralistas dos seus membros, a estraté­
gia da AAS era utilizar os africanos convertidos para cristianizar a África.
Neste texto, não vamos retomar a comparação valorativa entre história e filme,
já devidamente explorada em vários textos.101A questão central, é apontar para o
sentido de monumentalização que algumas cenas adquirem, fazendo com que o
filme Amistad, a título de dar voz aos oprimidos pela escravidão, consiga, ao mes­
mo tempo, edificar mais um canto no monumento da democracia norte-ameri­
cana que, como nenhuma outra, parece conseguir ocultar suas contradições e
expulsá-las da maior parte dos filmes de sucesso.11
No motim destaca-se a figura do protagonista Cinque, como líder natural dos
africanos. Qualquer traço de luta coletiva e impessoal se agrega às qualidades e
características dramáticas do personagem, individualizando a ação e a consciência.
Cinque, logo na seqüência de abertura do filme, é mostrado como um herói, dis­
posto à qualquer ação para garantir sua liberdade. Acorrentado e em meio à uma
tempestade tropical, Cinque consegue retirar um prego do chão, com o qual abre a
fechadura de suas correntes. O enquadramento inicial em extreme close-up (olhos,
boca, dedos retirando o prego) vai dando lugar à figura monumental de Cinque,
que entre trovões e relâmpagos, ergue-se por completo, iniciando o motim que
tomará o navio Amistad, na esperança de retorno para a África. Chegando na costa
norte dos EUA, a carga humana é apreendida, dando início à disputa judicial.
A luta de Cinque pela liberdade o faz, apesar das diferenças culturais e étnicas,
um membro virtual da comunidade democrática norte-americana, conforme a

10 Destacamos o artigo de DAVIS, Natalie Z. “Witnesses o f trauma”. Slaves on screen. Film and historical
vision. Cambridge, Harvard Univ. Press, 2000, pp. 69-120.
11 Excetuando-se, talvez, alguns filmes produzidos sob o impacto da derrota no Vietnã, tais com o Taxi Driver,
O Pequeno Grande Homem, entre outros. No geral, entretanto, predomina a expiação das culpas coletivas
sob a forma de dramas individuais e catárticos, de eficaz impacto emocional, mas de pouca profundidade
política.
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representação fílmica. Os abolicionistas o defendem, os cristãos rezam por eles,


o advogado branco e liberal defende sua liberdade, como um cidadão igual aos
outros. Portanto, as diferenças raciais, religiosas e de classe, são aparadas no ideal
liberal-democrático. Mesmo sendo “outros” em relação àquela sociedade, ela os
acolhe ao seu modo, e torna-se o palco neutro e justo de uma disputa mundial.
Como corolário da democracia, o filme destaca a isenção da Justiça norte-ame­
ricana, mais justa do que outras justiças, resistindo mesmo às pressões políticas
que partem da Presidência da República.
Cinque e os africanos são mostrados em sua humanidade universal, sujeitos de
um sofrimento indescritível que não lhes destitui a crença na justiça. Essa justiça
se materializa no sistema judiciário norte-americano, que surge como aquele que
encarna valores universais que vão sendo compreendidos mesmo pelos estran­
geiros africanos. Paralelamente, estes vão tomando contato com os valores reli­
giosos da sociedade norte-americana, exemplificado na seqüência dos africanos
folheando a Bíblia e, através das ilustrações da vida de Jesus Cristo, identificam-
se com o sofrimento do Messias, como se fosse o deles próprio. Os valores são
plasmados numa idéia universal de democracia e de religião.
Os escravagistas do Sul seriam alienados desse sistema, pois como aristocratas
são corpos estranhos dessa comunidade. A fala do senador sulista no jantar ofe­
recido pelo presidente Van Buren, ameaçando com a secessão dos Estados escra­
vagistas, caso os africanos do Amistad fossem libertados, confirma a vilanização
dos que defendiam a escravidão negra, o que, convenhamos, não é muito difícil
de representar, dada a imoralidade da escravidão em todos os seus matizes. Mas
nessa representação, reside uma armadilha que o filme coloca ao espectador, pois
a historiografia mostra o papel dos políticos sulistas que, contraditoriamente, ser­
viram como quadros da democracia nascente e até aceitavam a convivência com
Astados sem escravidão, desde que não se discutisse a autonomia regional dos Es­
tados escravagistas e o comércio negreiro entre eles.12 Esse equilíbrio precário não
era tensionado apenas por um conflito de valores morais e políticos, mas também
quanto às diferenças em relação à gestão econômica entre o Norte industrializado
e protecionista e o Sul agrário e livre-cambista. O abolicionismo era uma das vari­
áveis desse conflito. Com a Secessão iniciada pela Carolina do Sul, no final de 1860,
a questão da unidade nacional ameaçada, mais do que a questão da Escravidão, é
que levou à Guerra Civil. A grande democracia estadunidense somente estendería
seus direitos aos negros norte-americanos a partir de meados dos anos 1960. Essas

12 O Acordo de Mississipi em 1820 proibia a escravidão acima do paralelo 36’. Em 1850 foi firmado o
Compromisso Clay> que concedia autonomia para cada Estado da federação decidir o tipo de mão-de-obra
utilizada dentro de suas fronteiras.
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sutilezas desaparecem do monumento fílmico. Em outras palavras, a questão Nor-


te-Sul não era apenas uma questão de democracia versus escravidão,13
A longa seqüência da “travessia do Atlântico”, da Costa africana para Cuba a
bordo do tumbeiro português Tecora, é o momento mais dramático e impactan-
te do filme. Nessa seqüência toda a técnica acumulada do naturalismo hollywoo-
diano, do qual Spielberg é um dos mestres, se impõe como espetáculo fílmico.
Dar a ver o trauma invisível e indizível poderia ser um lema de Spielberg, já tes­
tado com sucesso em Lista de Schindler,14 O sofrimento dos africanos escraviza­
dos, seviciados e humilhados surge como metáfora do confronto da humanidade
contra a desumanidade dos negreiros. Obviamente, diante dessa tragédia, ainda
pouco assumida pela consciência ocidental, não estamos propondo nenhum re-
lativismo que reavalie o sentido criminoso que cercou a escravidão e o tráfico,
ainda que plenamente inserido numa racionalidade econômica do capitalismo
nascente. A questão é que esse crime coletivo estava ancorado em interesses e
processos que iam muito além da luta do bem - a humanidade escravizada - con­
tra o mal - os escravagistas e traficantes vilões e depravados. Estes, no limite,
garantiam a opulência de um capitalismo e de uma burguesia liberais, alimen­
tados por economias coloniais ou semicoloniais, independentemente de valores
abolicionistas. Se a força das imagens da travessia mostradas por Spielberg - cujo
ponto máximo é a seqüência ultra-realista do arremesso da carga viva ao mar
- emocionam, fazendo com que o mais racista dos espectadores se identifique
com o drama dos africanos, uma pergunta fica abafada: como isso foi possível,
num mundo civilizado que se orgulhava de cada vez mais cantar a liberdade na­
tural dos homens. Ao mesmo tempo, a complexa cadeia de responsabilidade, dos
próprios africanos, entre a captura nas aldeias e a venda aos traficantes europeus,
é suprimida do filme. No máximo, é mostrada rapidamente, por ocasião do rapto
de Cinque em sua aldeia natal. Dentro do discurso multiculturalista veiculado
pelo filme ainda prevalece uma certa homogeneização da “Mãe África”, como
se a escravidão fosse um mal exógeno ao continente. Por exemplo, o filme tenta
explicar, numa das cenas do julgamento, que o sentido da palavra “escravo” em
dialeto mende não continha a carga de humilhação e violência que o mundo oci­
dental e moderno lhe imprimiu.
A travessia atlântica é mostrada como o Holocausto dos negros, o absurdo tor-
nando-se real, uma súbita ausência de Deus, fazendo predominar o mal absoluto.
Como luta política e ética, uma visão eficaz, sem dúvida, com a qual este autor

13 Neste sentido, Jefferson em Paris (James Ivory, EUA, 1995), m esm o dentro dos parâmetros do cinema de
entretenimento, consegue problematizar a relação entre democracia e escravidão nos EUA recém-criado.
14 Davis, Natalie, op. cit., pp. 84-85.
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compartilha seus valores básicos. Como proposta fílmica para a reflexão histórica,
entretanto, fica muito problemática, pois as condições sociais, ideológicas e his­
tóricas que possibilitaram que os atores do “mal absoluto” tivessem tanto papel
na história, ficam sem equacionamento, diluindo e isolando a cadeia de culpas e
responsabilidades. Em outras palavras, dito de maneira provocativa e anacrônica,
nazistas e traficantes de escravos não estavam sozinhos na perpetração do mal. O
Holocausto tinha muitos cúmplices que os filmes hollywoodianos fazem desapare­
cer, em nome da eficácia do melodrama. A estratégia de monumentalização fílmica
da história, justamente por ser bem-sucedida, consegue ocultar sob uma narrativa
épica, as contradições históricas da democracia liberal nascente. Obviamente, não
se trata de cobrar veracidade histórica do filme, mas de entender quais as opera­
ções que permitem a eficaz monumentalização da democracia norte-americana e
a ocultação das suas contradições, ao mesmo tempo que atualizam o sentido dessa
democracia em tempos de multiculturalismo e atitudes “politicamente corretas”.
Se a travessia é mostrada como o inferno e a África, o paraíso perdido, o pur­
gatório dos africanos era a “América”, terra onde sua vocação natural para a li­
berdade ganha tradução universal através do drama dos tribunais. Entre as várias
seqüências de tribunais que pontuam o filme, o julgamento final na Suprema
Corte norte-americana é o mais destacado no adensamento do monumento. John
Quincy Adams (Anthony Hopkins) discursa, sofregamente, como um ancião que
tudo sabe e viu. Olha para o passado, recuperando o sentido ideológico da nação
norte-americana, vocacionada para a liberdade e velada pelos pais-fundado-
res, imortalizados nos bustos que decoram o salão da Suprema Corte. Adams
olha para o presente, vendo nos africanos escravizados a suprema contradição
da democracia moderna que deve ser universal para sobreviver. Olha para o
futuro, prevendo uma luta entre o bem o mal, entre democratas e liberticidas,
como se esta fosse a única real contradição do mundo moderno, sintetizado na
história dos EUA. E conclui, profético: “se a guerra civil vier, que seja a última
batalha da Revolução americana”.
No final do filme, libertados por um sistema universal e justo, Cinque e seus
companheiros de infortúnio voltam à África. Diz a legenda que Cinque não mais
encontra sua aldeia, devastada por guerras tribais. Em contraste, Spielberg mos­
tra a M arinha Inglesa, numa clara homenagem à vocação intervencionista para
fins “humanitários” que foi herdada pelos EUA, destruindo a fortaleza de Lom -

bokúy como um simples ato humanitário e não parte dos interesses estratégicos da
Grã-Bretanha no século XIX. Uma interpretação possível, muito condizente com
a leitura contemporânea que a mídia, mesmo de recorte relativamente progres­
sista, faz do “continente negro”: a África destruída pelos africanos, em contraste
História e cinema 75

com a África libertada e protegida pelos Europeus. Numa cena tanto eficaz quan­
to distorcida, desaparece toda a responsabilidade do imperialismo pela degrada­
ção sociopolítica e econômica do Continente.

Danton foi apoiado financeiramente pelo Ministério da Cultura do então re-


cém-eleito governo socialista de François Mitterrand, como parte dos festejos
do bicentenário da revolução francesa que se aproximava. O escolhido foi An-
drzej Wajda, consagrado cineasta dissidente, crítico do stalinismo, símbolo das
lutas pela democratização do socialismo cujo maior exemplo era o sindicato So­
lidariedade, reprimido pela ditadura militar-comunista do general Jaruzelski. O
projeto de filmar Danton começara antes do golpe liderado pelo general, e a sua
finalização sob os auspícios da França poderia ser uma boa oportunidade para o
PS no poder, mostrar ao mundo uma faceta democrática do socialismo, herdeiro
dos ideais da grande revolução de 1789.
Portanto, o filme foi encomendado como mais um monumento à revolução
consagrada pela historiografia republicana e, principalmente pela historiogra­
fia de esquerda, como fundadora do mundo ocidental moderno, seja pela ópti­
ca socialista ou liberal. Esperava-se (crítica, governo e audiência franceses) de
Andrzej Wajda um filme que reafirmasse a “verdadeira tradição revolucionária
francesa”, libertária, democrática e socialista e reiterasse os mitos historiográ-
ficos devidamente estabelecidos pela historiografia de esquerda desde a Tercei­
ra República, de Albert Mathiez a Albert Soboul. Robespierre e os jacobinos,
duros porém idealistas; o Terror como mal necessário para consolidar uma
revolução ameaçada; Danton como um liberal corrupto e decadente, cuja sede
de poder e falta de ideologia poderia colocar em risco as precárias conquistas
revolucionárias. Portanto - gostaríamos de enfatizar este ponto - parecia haver
uma expectativa entre os franceses, seu governo, historiografia e, quem sabe,
parte da sua indústria cinematográfica envolvida no filme, que Danton se tor­
nasse um monumento cinematográfico. Nesse sentido, o produto não confir­
mou a expectativa inicial em torno do projeto, tal como era visto pela opinião
pública e pelos produtores franceses.
Wajda inverteu os mitos historiográficos, mesmo correndo o grande risco de
fazer um filme aberto a uma leitura conservadora, que tende a simplificar os
processos revolucionários ao longo da história, suas causas, personagens e reali­
zações. No filme, surge um Robespierre (Wojciech Pszoniak) “frio e neurótico”,
massacrado por uma lógica política além da sua vontade e poder de manipula­
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ção.15 O “terror” é mostrado como um processo autofágico, motor de uma má­


quina revolucionária que, em que pese a lógica de salvação pública das conquistas
revolucionárias, conduz a revolução ao seu contrário - a reação de um poder
autofágico, encastelado no aparelho de Estado. Danton (Gérard Depardieu) é
um personagem fílmico complexo, anti-herói corrupto e decadente que, ao seu
modo, revela as contradições de uma revolução que devora não apenas seus ini­
migos, mas também seus filhos. Além disso, Wajda fez desaparecer, como ator
político, a multidão revolucionária, os sans-cullotes, personagens fundamentais
na legitimação ideológica do processo operada pela historiografia.16No seu filme,
a revolução é um conjunto de embates palacianos, cuja decisão é imposta ao cole­
tivo, seja na Convenção, seja na praça pública, espaços públicos que se mantêm a
reboque das forças palacianas, claustrofóbicas e autofágicas. A valorização desses
espaços faz o filme se aproximar da tradição do teatro shakespeariano, ao sus­
tentar a abordagem da política como tragédia sem vencedores. Esse foi o teor da
crítica do historiador, e deputado socialista, Louis Mermaz que ficou impressio­
nado com a intensidade dramática do filme, mas achou-o mais próximo de um
“estudo psicológico de dois personagens e, nesse sentido muito shakespeariano”,
do que uma encenação histórica da revolução francesa.17Para o historiador, “a ló­
gica da revolução está apresentada de maneira fraca e não há [no filme] traços das
forças sociais que dirigiam os dois filhos da revolução, Danton e Robespierre”.18
Mesmo François Furet, historiador crítico da tradição socialista, apontou que
Danton era um filme “sem sociedade e sem povo”, mesmo reconhecendo que ele
recriava, com “clareza inacreditável, o sentimento dominante vivido por todos os
grandes atores da revolução: o de que a história está se desdobrando sobre eles,
mais do que através deles”.19
Em meio a todo esse debate, o influente jornal Le Monde decretou: “A revolução
dele (Wajda) não é a nossa”. Ao invés de ver consagrada a estratégia de universalizar
a sua história nacional, muito bem-sucedida na historiografia de ofício diga-se, a opi­
nião pública francesa teve que assistir um estrangeiro, asilado no país, problematizar
seus mais sagrados mitos cívicos e nacionais. E pior, não se poderia dizer que o cine­
asta era uma voz desautorizada da direita ou um cineasta comercial qualquer, mas
um cineasta dissidente de um país governado por uma ditadura militar stalinista.

15 Seqüência-exemplo: a reunião do Comitê de Salvação Pública, que decreta a prisão de Danton.


16 Darnton, Robert. “Danton: o processo da revolução”, in Carnes, Mark (org.). O passado imperfeito. A
história no cinema. Rio de Janeiro, Record, 1997, p. 104-109.
17 La Croix, 7/1/1983, citado em <www.wajda.pl>
15 Idem, ibidem.
19 Furet, F. “Le nouvel observateur”, Paris, Janeiro/1983, citado em <www.wajda.pl>
História e cinema 77

O principal material inspirador do filme foi a peça O caso Danton, escrita pela
dramaturga polonesa Stanislawa Przybyszewska em 1929.20 Num certo sentido,
Stanislawa revia a caracterização de Danton como “herói romântico e nihilista”
que se consagrou na clássica peça de Georg Buchner, A morte de Danton (1835).
Na longa peça, prevista para durar cerca de cinco horas, o personagem de Dan­
ton é mostrado como hedonista e corrupto, antítese do princípio de “terror e
virtude”, tão caro a Robespierre. A autora procurava, por contraste, enfatizar a
pureza revolucionária desse personagem. Wajda, na sua adaptação cinematográ­
fica, retirou os trechos mais apoteóticos a Robespierre e selecionou as cenas mais
contrastantes, concentrando o foco em Danton. Conseguiu manter os registros
básicos dos personagens - o liberal hedonista e corrupto versus o revolucionário
puritano e inflexível - mas deu-lhes um sentido político completamente diferen­
te e muito ambíguo. Aliás, sentido que é adensado pelas historicidades comple­
tamente diferentes que envolvem a peça e o filme. A primeira escrita sob o calor
dos processos revolucionários carregados de esperança e utopia que varriam a
Europa do pós-Primeira Guerra. O segundo, produzido sob o balanço amargo
do “socialismo real” do Leste europeu, aprofundado ao longo dos anos 1970 pelas
próprias correntes da esquerda anti-stalinista.
A desmonumentalização de Danton não foi apenas uma operação que envolveu
a inversão de mitos historiográficos sobre personagens históricos e fílmicos. Ela
se inscreve na narrativa fílmica como um todo.
O filme começa com três seqüências intercaladas: 1) a chegada de George Dan­
ton a Paris, jacobino “indulgente” e crítico do Terror; 2) o pequeno irmão de Elé­
onore, senhoria de Robespierre, obrigado a decorar os artigos da Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão, enquanto é banhado pela irmã. A cada erro,
ele dá a mão à palmatória, resignado e amedrontado; 3) Maximilien de Robes­
pierre, sonolento e abatido, acordando para mais um dia de atividades políticas.
Essas três seqüências formam uma espécie de abertura, com todos os elementos
dramáticos básicos já anunciados.
Pela janela da carruagem, molhada pela chuva, Danton vê a sombra refletida da
guilhotina, mostrada solenemente como uma espécie de monumento revolucio­
nário do período. Mais adiante, em outra seqüência, Danton pára em meio a uma
multidão cansada das filas e representada no filme na sua insatisfação em relação
ao governo jacobino, que num instante volta-se para o personagem como uma
espécie de salvador da pátria. O populismo sanguíneo de Danton contrasta com

20 A dramaturga polonesa produziu uma trilogia sobre a revolução francesa, da qual O caso Danton faz
parte, completada pelas peças 93 (1928) e a inacabada Thermidor (1925), que encena as últimas horas de
Robespierre e Saint Just.
78 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba

o isolamento agônico de Robespierre. Se na seqüência de abertura, Danton vê a


guilhotina pela janela, agora é Robespierre que olha pela janela do seu quarto, in­
seguro, Danton sendo aclamado pela multidão. Duas visitas pautam a falha trá­
gica e os dilemas que perseguirão Robespierre até o fim do filme: Heron, membro
da polícia política (numa clara alusão ao sistema policialesco do socialismo sta-
linista), entrega alguns exemplares do Le Vieux Cordelier (O Velho Franciscano),
jornal editado por Camille Desmoulins, aliado de Danton, com palavras críticas
aos Comitês. Robespierre ordena o empastelamento do jornal (o que não ocorreu
na realidade). Ato contínuo, Saint-Just, o “anjo da morte” da revolução, um dos
membros mais radicais do Comitê de Salvação Pública, entra no quarto de Ro­
bespierre e anuncia: “Danton prepara um golpe” e pede que Robespierre ordene
sua degola. Robespierre reluta em m andar para a prisão os seus ex-aliados.
A narrativa estrutura-se em seis grandes blocos, sendo que o primeiro, acima
descrito e o último, funcionam, respectivamente, como uma espécie de abertura
e coda. As outras partes são marcadas pelas seguintes situações: 2) O teatro da
política em dois cenários: o Comitê de Salvação Pública (órgão executivo, a prin­
cípio composto por membros indicados pela Convenção) e a Convenção (os 740
deputados que, a rigor, compunham o órgão máximo da República); 3) Esforço
solitário e vão de Robespierre para salvar Danton e Desmoulins da prisão e gui­
lhotina, resistindo à pressão contrária do Comitê; 4) A ordem de prisão de Dan­
ton e dos indulgentes, seguida da batalha política para que a Convenção aceite a
acusação; 5) O julgamento dos indulgentes, ao lado de criminosos comuns, no
Tribunal Revolucionário, comandado pelo juiz Fouquier-Tinvelle e as manobras
do Comitê para direcionar o veredicto. Essa grande seqüência poderia ser divi­
dida em duas, à medida que o cerco vai se fechando sobre os réus, cujo desfecho
é a sua execução na guilhotina; 6) A última seqüência funciona como uma coda:
Saint-Just triunfante, anuncia a morte de Danton a Robespierre que, deprimido
e hesitante, questiona se a revolução também não teria morrido. A criança que é
mostrada no começo do filme, decorando a Declaração dos Direitos do Homem,
sob palmatórias, entra no quarto e recita artigo por artigo para um Robespierre
moribundo. O plano/contraplano reforça o contraste entre a criança, esperança
revolucionária, ainda que sua fala fosse produto de uma pedagogia do terror, e o
líder vencido pelos dilemas, fantasma de si mesmo.
Foge aos limites deste pequeno texto, uma análise detalhada de cada bloco nar­
rativo, mas alguns apontamentos podem exemplificar a estratégia de desmonu-
mentalização da história operada por Wajda. Escolheremos, como exemplo, uma
seqüência do bloco quatro, quando Robespierre discursa na Convenção, para re­
verter o desagravo pela prisão de Danton e dos indulgentes.
História e cinema 79

A plenária está convulsionada. A maioria dos deputados está indignada com


as notícias da prisão de Danton, Desmoulins, Philippeaux e outros. Legendre,
aliado de Danton ocupa a tribuna, depois de outro aliado, Bourdon, recusar-
se a fazê-lo. Legendre discursa veementemente a favor de Danton. A partir de
uma tomada em ângulo inferior, vemos atrás do parlamentar, ao fundo da cena,
uma sombra desfocada da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.
Em seguida, em meio a um grande tumulto, Robespierre toma a tribuna, sob
o clamor de “abaixo o ditador”, e discursa em favor do Tribunal e da Justiça
Revolucionária. Apela para a coerência e isonomia das leis, votadas pela própria
convenção. Aos poucos a multidão adversa se convence pela retórica inflamada e
monumental de Robespierre. Mas o diretor nos oferece um outro registro visual,
nada monumentalizante: a câmera desliza pelos bastidores da tribuna, detendo-se
momentaneamente nas pernas de Robespierre que, a cada palavra mais exaltada,
ergue-se na ponta dos pés, como se quisesse ficar maior do que efetivamente era.
Robespierre termina seu discurso dizendo: “o mundo nos olha... somos a vigilân­
cia pública da Revolução”. A plenária, antes adversa, aplaude o orador que é subs­
tituído na tribuna por Bourdon, que num misto de oportunismo e medo, acusa
Danton, até então seu aliado, de traição. Ao final do seu discurso, sob o olhar
condenatório da esposa de Camille Desmoulins, entoa o canto da Marselhesa.
Retira-se, consciente da sua traição, para fora do plenário, quando é interceptado
por Lucille Desmoulins que lhe esbofeteia, ao som do canto triunfante da Marse­
lhesa, que se ouve de longe. Bourdon resigna-se.
Essa complexa seqüência concentra muitas das estratégias críticas do filme
Danton. Em primeiro lugar, enfatiza o caráter fluido das opiniões, sujeitas a uma
boa retórica e ao oportunismo, algo mais próximo da baixa política institucio­
nalizada do que dos grandes processos revolucionários. No enquadramento dos
planos, joga com um contraste de composição - como no caso do quadro com a
Declaração desfocado ao fundo - e dinâmica - como no caso dos pés diminutos
e delicados de Robespierre negando, ironicamente, o gigantismo do seu discurso.
Finalmente, deslocando-se do espaço principal da seqüência (o salão da Con­
venção) a narrativa nos mostra uma cena na qual a traição (Lucille esbofeteando
Bourdon) é que ocupa o campo visual principal, contrastando com a massa so­
nora monumental (a Marselhesa cantada pelos deputados). Numa só seqüência,
três monumentos são problematizados: a Convenção, o herói revolucionário e o
hino sagrado da revolução.
O filme é encenado em recintos fechados da política: a sala obscura dos Comitês;
o salão teatral da Convenção e seus bastidores; a Academia de Belas Artes; o Tribu­
nal Revolucionário; os aposentos privados dos conchavos. Nas poucas seqüências
80 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba

externas, as ruas de Paris que, segundo os manuais nos ensinam, eram os palcos
privilegiados da grande revolução, são esvaziadas do seu sentido político. As ruas
são apenas o palco do povo infeliz das filas do pão ou do povo exultante dos espetá­
culos da guilhotina. A política, na visão de Wajda, se faz em outros ambientes. Lem­
bremos que, em duas seqüências, o povo é expulso dos espaços do poder, primeiro
da sala do Comitê, depois do Tribunal Revolucionário, onde a sentença de morte de
Danton e seus correligionários é proferida para um salão praticamente vazio.
A textura e a cor são desbotadas. A trilha sonora, composta por Jean Prodro-
mides, é marcada por uma polifonia dissonante que sugere um coro de vozes
fantasmagóricas, arrastando correntes pelos corredores da história, procurando
transmitir “a sensação das coisas se estilhaçando” (nas palavras de Wajda) ao
redor dos personagens. O andamento é lento, enfatizando a teatralidade e os dis­
cursos dos personagens ao invés das peripécias de ação e enredo, embora tenha
uma densidade cênica (além de dramática) impressionante. O filme é obscuro,
labiríntico, despojado, no qual predomina um confronto entre os corpos dos
personagens e os ambientes, cuja dramaticidade é potencializada pelo fato de
as locações serem muito próximas do palco real dos acontecimentos. A grande
dimensão dos espaços interiores não é enfatizada enquanto colosso espetacular
erigido à posteridade, mas na forma de ambientes enclausurados, opressivos e
sombrios que se adequam a conchavos, palavras furtivas, gestos ocultos que se
contrapõem à grandiloqüência dos discursos públicos. Nesse sentido, os recintos
monumentais são opressivos, diminuem os personagens ao invés de torná-los
grandiosos. Portanto, nas várias dimensões que compõem os códigos audiovi­
suais da narrativa fílmica, Danton aponta para um despojamento que contrasta
com a tendência de exuberância do filme espetacular.
A visão teatral e shakespeariana, apontada corretamente por Mermaz não ficava
reduzida a um jogo psicológico de dois personagens, ao contrário, era a premissa
crítica aos processos revolucionários cada vez mais limitados a Comitês dirigentes
e aparelhos de Estado. Insistiremos neste ponto: o filme Danton não é um drama
de natureza psicologizante, mas uma tragédia de natureza política. Ao focar a re­
lação tensa entre Danton e Robespierre, Wajda quer colocar em cheque a tradição
jacobino-leninista-stalinista que comandou as revoluções socialistas do século XX.
Ainda que possa ser criticado por seu olhar descrente e reducionista sobre um im­
portante processo social e histórico, o filme de Wajda não pode ser acusado de
operar numa tradição contra-revolucionária, na medida em que há, no interior da
narrativa, um elogio subjacente à natureza libertária da revolução e das motivações
políticas que movem os personagens. O intenso diálogo final entre Saint Just e Ro­
bespierre, herói acamado e doentio, revela essa ambigüidade:
História e cinema 81

Robespierre: Tenho a impressão que tudo que eu creio desmoronou-se de uma vez... a
revolução está saindo errada (...) então a democracia é uma ilusão...Estou louco?
Saint-Just: Não. Está desesperado... Então meta uma bala na cabeça.
Robespierre: Boa idéia. Poder dormir como um animal...

Ao cobrir o rosto e aplacar a consciência nas profundezas do sono da história, Ro­


bespierre é despertado pela criança, irmão de sua senhoria, recitando a “Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão”, obra máxima da tradição revolucionária, de­
corada sob palmadas na mão aplicadas por sua irmã mais velha, como já aludimos.
O final, portanto, é um anticlímax revolucionário, um desmonumento. Danton,
a quem aprendemos a admirar pela capacidade de oratória, perde a cabeça na
guilhotina. Antes disso, simbolicamente, vai perdendo a voz em meio a discursos
vãos para um povo impotente e para juizes surdos aos seus argumentos. Robes­
pierre, a quem aprendemos a admirar como herói positivo nos manuais de histó­
ria, e que no filme é apresentado na seqüência final como uma caveira viva, um
poço de dúvidas (daí seu lado tragicamente humano), cobrindo o rosto com um
pano enquanto a criança, como um autômato, recita o catecismo revolucionário.
O problema é que esse catecismo revolucionário é, nada mais nada menos, que
a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, monumento fundamental
do mundo ocidental, reclamado por conservadores e progressistas de esquerda.
Trata-se portanto, não de um conflito psicológico típico do cinema melodramá­
tico, mas de um conflito de raízes políticas. Os personagens não são julgados,
nem vilanizados. Nesse sentido, o foco narrativo parece oscilar entre a figura dos
dois grandes personagens, Danton e Robespierre. Ambos são mostrados em suas
contradições e não como um jogo de protagonista versus antagonista.
Além do conflito Danton-Robespierre, há um outro par contrastante de per­
sonagens, que não tem sido enfatizado nas análises desse filme, mas que é um
complemento fundamental para o conflito dos personagens principais: Saint-
Just (Boguslaw Linda) e Camille Desmoulins (Patrice Chereaux). O primeiro
representa a cegueira ideológica, que quer fazer a revolução caminhar “para
frente”, produzindo depurações constantes e liberticidas. O segundo funciona
como dilema típico dos intelectuais revolucionários (lembremos, é um jornalista
e editor, “retórico brilhante”), tragados pelo processo que ajudaram a radicali­
zar. O primeiro é forte em suas convicções, é um personagem que não hesita e
não sofre dilemas. O segundo é fraco, hesitante, cujo brilho se apaga ao longo do
julgamento político. Mais do que perfis psicológicos, representam tipologias de
agentes políticos mais ou menos identificáveis em quase todos os processos revo­
lucionários que se encerram na política de bastidores e de comitês centrais.
82 Capelato, Morettin, Napolitano e Saliba

Danton seria um filme contra-revolucionário? Ou, na tradição de grandes cineas­


tas politizados, Wajda busca ser uma consciência crítica do processo revolucionário,
sem negar as suas promessas libertárias iniciais? Eis a questão que fica no ar, à medi­
da que o monumento revolucionário vai sendo demolido. Poderiamos apontar uma
série de problemas de ordem estritamente historiográfica: as imprecisões históricas
do filme, a parcialidade do foco narrativo sobre alguns personagens e situações, a
omissão do contexto revolucionário mais amplo, que poderia explicar o jogo políti­
co principal do período jacobino.21 Na nossa perspectiva, entretanto, anacronismos
e omissões revelam mais sobre as estratégias da escrita fílmica da história do que
eventuais tentativas de fidelidade ao que “realmente se passou”.
Danton faz parte de uma tradição de cinema político que vai além da propagan­
da ou da apoteose ideológica de personagens e eventos monumentalizados pelas
historiografias oficiais, de esquerda ou de direita.22A tonalidade ideológica desse
tipo de cinema pode ser mais ou menos crítica aos processos revolucionários, e
não se esgota em críticas de natureza moral e individualista, típicas do melodra­
ma hollywoodiano, procurando dar conta das ambigüidades e contradições dos
processos revolucionários e dos atores que os encarnam. Colocaríamos Wajda e
o filme Danton ao lado de cineastas e filmes que, explicitamente, procuraram ser
uma espécie de consciência crítica das revoluções, mesmo sem assumir qualquer
dissidência com seus valores e forças dirigentes23 (o que, obviamente, não é o caso
de Wajda, dissidente assumido).

21 Esta pode ser uma diferença importante entre Andrzej Wajda e Gillo Pontecorvo: este último procura
encenar o contexto histórico em toda sua complexidade, como fica claro em Batalha de Argel. A violência
revolucionária seria produto desse contexto maior, e não dos jogos fechados da política, como enfatizado
por Wajda neste e em outros filmes (Cinzas e Diamantes, O Homem de Ferroyentre outros).
22 Esse conceito de cinema político - propagandístico e apoteótico - foi estudado por Furhammar & Isaksson.
Cinema & Política. 2 ed. São Paulo, Paz e Terra, 2001. Reconhecemos que é muito difícil tipificar o “filme
político”, na medida em que quase toda produção cinematográfica é portadora de valores ideológicos, ainda que
latentes ou sem importância para narrativa principal. Nesse sentido, todo filme seria um “filme político”. Aqui,
utilizamos a expressão para delimitar filmes nos quais o tema da política é o eixo do roteiro e da narrativa.
23 Os casos mais notórios dessa tradição cinematográfica, na minha opinião, seriam os diretores Tomás
Gutierrez Aléa e Gillo Pontecorvo. O primeiro realizou clássicos com o Memórias do Subdesenvolvimento e
Ültima Ceia que, operando pelo deslocamento de discursos e mobilidade de focos narrativos, consegue ser
crítico à revolução cubana, sem nunca ter rompido com ela. Quanto a Gillo Pontecorvo, mesmo fazendo o
elogio da revolução com o processo histórico inevitável, utilizou-se de uma interessante e peculiar estratégia
narrativa - a relação dialética entre repressor e reprimido, entre revolucionário e contra-revolucionário
- para refletir sobre a violência inerente às revoluções, evitando julgamentos morais dos atores, mas
explicitando o sistema de dominação - principalmente o sistema colonial - responsável pela violência
generalizada dos processos revolucionários. Sobre Aléa, ver: Villaça, Mariana. “O ICAIC e a política cultural
em Cuba”. XVII Encontro Regional de História, Associação Nacional de História. Campinas, 6 a 10 de
setembro de 2004, digit.
História e cinema 83

A brevidade deste texto não permite maiores aprofundamentos teóricos ou de


análise fílmica. Procuramos destacar uma operação central em filmes históricos
que é o da monumentalização ou da demolição de monumentos (desmonumen-
talização). Nesse processo, ocorre um diálogo específico entre obras cinemato­
gráficas, tradições historiográficas e memória social. Não se trata, portanto, de
decidir se a história é ciência ou ficção literária (ou cinematográfica). Não se trata
de avaliar o filme histórico pelo seu grau de fidelidade aos eventos representa­
dos. Não se trata de proferir juízos de valores, opondo filmes “manipuladores”,
a filmes “críticos”, diretores alienados e diretores críticos. Até porque, no caso
em questão, o fascínio e a sofisticação narrativa de Danton reside no fato de o
monumento esperado pelos produtores e pela opinião pública francesa não ter se
confirmado, expondo ainda mais a tensão entre projeto inicial e produto final.
Analisar a relação entre cinema e história é tentar entender o sentido que esses
monumentos e ruínas adquirem nas telas, como parte da batalha pela represen­
tação do passado. Trata-se de refletir acerca da capacidade de reflexão histórica
proposta pelo cinema, a partir de sua linguagem própria, sem cobrar dos filmes
uma encenação fidedigna dos eventos ocorridos. É como material fragmentado,
parcial e muitas vezes anacrônico em relação aos eventos representados, que o
filme pode se revelar como documento histórico da época e da sociedade que o
produziu.

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