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Pereira, L. C., & Tsallis, A. C. Maternidade versus sacrifício: uma análise do efeito moral e práticas sobre a
maternidade, comumente engendradas nos corpos das mulheres

Maternidade versus sacrifício: uma análise do efeito moral dos discursos e práticas sobre
a maternidade comumente engendrados nos corpos das mulheres

Maternity versus Sacrifice: An Analysis of the Moral Effect of the Discourses and
Practices about Maternity Commonly Engendered in the Women’s Bodies

Maternidad versus sacrificio: un análisis del efecto moral de los discursos y prácticas
sobre la maternidad comúnmente engendrados en los cuerpos de las mujeres

Lívia Cretton Pereira1


Alexandra Cleopatre Tsallis2

Resumo

O presente trabalho parte da análise de uma hashtag disseminado em redes sociais de apoio mútuo entre mães,
denominado #menasmain, para refletir sobre alguns lugares-comuns (porém não únicos) na experiência feminina
materna: culpa, dívida, fracasso, sacrifício, despotencialização. O artigo pretende demonstrar como se
disseminam discursos SOBRE a maternidade e não COM as mulheres-mães, elucidando certo efeito moral dos
discursos e práticas sobre a maternidade comumente engendrado nos corpos das mulheres. Com esta narrativa,
pretendemos forjar novas políticas acerca de nós mesmas na direção do cuidado de si e entender se as mulheres
estão podendo construir, na experiência de se tornarem mães, uma ética que dialogue com o efeito moral dos
discursos e práticas em seus corpos, possibilitando-lhes se subjetivarem diferentemente das formas hegemônicas.

Palavras-chave: Mulher. Feminismo. Biopolítica. Cuidado de si.

Abstract

The present paper is based on the analysis of a hashtag disseminated through social media used for mutual
support by mothers, called #menasmain (something like #badmon), to think about some commonplaces (though
not exclusive) in the feminine mother experience: self-blame, debt, failure, sacrifice, depotentialization. The
article aims to demonstrate how the discourses disseminated are ABOUT maternity and not WITH female –
mothers, elucidating a certain moral effect of the discourses and practices about maternity commonly engendered
in the women’s bodies. Through this narrative, we intend to forge new politics regarding ourselves towards self-
care and understand if women are being able to create, in the experience of becoming a mother, an ethic that
communicates with the moral effect of the discourses and practices in their bodies, allowing them different
subjetifications from the hegemonic forms.

Keywords: Women. Feminism. Biopolitics. Self-Care.

1
Doutoranda em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Mestre em Psicologia
Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Graduada em Psicologia pela Universidade
Federal Fluminense (UFF). E-mail: lcretton@gmail.com
2
Pós-Doutorado nos Programa de Pós-Graduação em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ) e Programa de Pós-Graduação em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutora
em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), em associação com o Centre de
Sociologie de l’Innovation – École de Mines – Paris. Mestra em Psicologia e Práticas Sócio-Culturais pela
Uerj. Graduada em Psicologia pela UFRJ. Professora Adjunta do Departamento de Psicologia Social e
Institucional do Instituto de Psicologia da Uerj. Professora Colaboradora do Programa de Pós-Graduação em
Psicologia Social da Uerj. Coordenadora do Laboratório afeTAR da Uerj.

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Resumen

Este documento se basa en el análisis de un hashtag diseminado en redes sociales de apoyo mutuo entre madres,
llamado #menasmain, para reflexionar sobre algunos lugares comunes (pero no únicos) en la experiencia
femenina materna: culpa, deuda, fracaso, sacrificio, despotencialización. El artículo tiene como objetivo
demostrar cómo se difunden los discursos SOBRE la maternidad y no CON las mujeres-madres, aclarando un
cierto efecto moral de los discursos y prácticas sobre la maternidad comúnmente engendrados en los cuerpos de
las mujeres. Con esta narrativa, pretendemos forjar nuevas políticas sobre nosotras mismas hacia el cuidado de sí
y comprender si las mujeres pueden construir, en la experiencia de convertirse en madres, una ética que dialoga
con el efecto moral de los discursos y prácticas en sus cuerpos, permitiéndoles subjetivarse de manera diferente a
las formas hegemónicas.

Palabras claves: Mujeres. Feminismo. Biopolítica. Cuidado de sí.

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Primeiras inquietações: #menasmain, de nossas próprias e às práticas de dominação


onde vem? de outros e nas partes desiguais de privilégio
e opressão que todas as posições contêm.
Nas categorias filosóficas tradicionais,
Pareço boa mãe, mas dei leite artificial pro talvez a questão seja ética e política mais do
meu filho porque eu queria dormir mais um que epistemológica. (Haraway, 1995, p. 15)
pouco. Me julguem. #menasmain
Fiz yoga na gestação, contratei equipe de Essa narrativa de uma temática
parto domiciliar, doula e acabei numa
inequivocamente (mas não
cesárea. #menasmulher #menasmain
exclusivamente) feminina, que é a
Meus filhos só almoçam vendo iPad. Me maternidade, está, no entanto, preocupada
julguem. #menasmain
em não produzir, mais uma vez na história
Engravidei e ainda amamento minha filha da escrita acadêmica, universalizações que
em livre demanda. No segundinho vai rolar suprimam as experiências de mulheres
chupeta, fato. #menasmain
negras, deficientes, indígenas,
Fazemos cama compartilhada desde que quilombolas, lésbicas, etc., produzindo
meu filho nasceu. Eu durmo enquanto ele
uma crença na hegemonia da mulher
mama, mas hoje estava tão cansada que ele
caiu da cama e eu só vi quando ele já estava branca. Por outro lado, não se trata de
no chão. #menasmain tomar a experiência com a maternidade de
mulheres de classes, raças e capacidades
distintas da das autoras como objeto de
Enunciados como esses são
estudo. Eis o desafio.
frequentemente encontrados nas redes
Nesse sentido, observamos, nas redes
sociais, apesar de estas terem se
sociais, uma vasta produção discursiva
configurado como uma ferramenta
SOBRE a maternidade. Certamente,
fundamental no que diz respeito à tessitura
discursos que não contemplam a realidade
de redes de apoio entre as mães. Neste
de muitas famílias brasileiras. Discursos
artigo – um recorte de uma pesquisa de
que correm o risco de tornar hegemônica
doutorado em andamento – tomaremos as
uma certa maternidade – branca, classe
redes sociais como o campo que suscita as
média, letrada –, segregando as demais
primeiras interrogações que compõem esta
formas de maternar existentes.
escrita, entendendo que o “virtual” forja no
Diante desse modo discursivo
“real” práticas de existência.
propositivo, propomos um outro modo da
Dito isso, é preciso situar a pesquisa
fazer ciência, que acreditamos que possa
e as pesquisadoras, adotando uma política
contemplar experiências mais diversas de
de localização, tal qual Donna Haraway
maternidade. Moraes e Tsallis (2016, p.
(1995, p. 10) nos convida a fazer: “Todo
44), professoras universitárias cariocas,
conhecimento é um nódulo condensado
assim como outros pesquisadores
num campo de poder agonístico.”. A citada
brasileiros, vêm debatendo e articulando a
autora segue com afirmações com as quais
Teoria Ator Rede com o que vão chamar
corroboramos.
de Pesquisar no Feminino, um modo de
As feministas têm que insistir numa
produzir conhecimento a partir das
explicação melhor do mundo; não basta afetações que os encontros promovem.
mostrar a contingência histórica radical e os Nessa mesma direção, forjaram o
modos de construção de tudo. [...]As método denominado PesquisarCOM, a
feministas têm interesse num projeto de partir do qual salientam o compromisso de
ciência sucessora que ofereça uma
explicação mais adequada, mais rica, melhor
fazer pesquisa COM o outro e não SOBRE
do mundo, de modo a viver bem nele, e na o outro: “A escrita na ciência está longe de
relação crítica, reflexiva em relação às ser o simples relato dos resultados de uma

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pesquisa. Ela é antes, uma forma de povoar arquitetadas por mães, e o acompanhamos,
o mundo. Uma forma de fazer mundo” curiosas, buscando entender o significado
(Moraes & Tsallis, 2016, p. 44). É desse deste, seu uso equivocado do português e
modo que nos engajamos na presente sua frequente existência.
escrita, responsabilizando-nos pelo Por que motivos a hashtag
“mundo” que sabemos estar produzindo, #menasmain viralizou? Do que essa
talvez mais plural, múltiplo, contra- hashtag dá notícias? A partir de que
hegemônico. conjunto de crenças a expressão
Dito isso, cabe situar as autoras. “menasmain” se popularizou? Por que é
Somos mulheres, mães, brancas, de classe comum encontrar mães sentindo-se
média. E nesta escrita seguem os primeiros “menos mãe”, “em dívida”, “em falta”? De
questionamentos que emergem, sem onde vem essa associação indissociável
sombra de dúvida, do lugar privilegiado entre culpa e maternidade? Que forças
que sabemos ocupar. estão em jogo na produção desse lugar
O Rio de Janeiro é o berço onde se endividado da mulher-mãe? Quem são
situa esta pesquisa. Rio de Janeiro, “cidade essas mulheres que experimentam culpa,
maravilhosa”, com seus encantos e seus dívida, falta, fracasso em seu cotidiano?
territórios de exclusão, suas políticas de Em continuidade com essas
segregação e seus baixos índices de saúde perguntas, nos debruçamos a investigar o
da mulher e da criança. Foi nesse Rio que motivo pelo qual temos encontrado muitas
pudemos notar importante protagonismo queixas por parte das mães nos grupos de
das redes sociais no que diz respeito à apoios em redes sociais, notando um certo
construção de apoio mútuo entre as mães, efeito, que aqui vamos nomear de
um ato de resistência em meio ao caos, “despotencialização”, no encontro com a
mulheres se apoiando! Ao que tudo indica, maternidade, sem, no entanto, universalizar
o encontro com a maternidade no contexto essa experiência.
da vida urbana (e colonizada, Parece-nos que essa
acrescentaríamos), acentua (ou fabrica?) despotencialização tem relação com
uma experiência de solidão. Há, nos inúmeras forças em jogo: solidão, falta de
centros urbanos, um certo esvaziamento de apoio, falta de rede, centralização dos
modos de vida comunitários, coletivos. cuidados com filhos nas mães, exigência
Não nos responsabilizamos de maneira de retorno breve aos seus postos de
generalizada pelas nossas crianças. trabalho, dificuldade de conciliar o
Caminhamos na direção oposta do que trabalho doméstico com o trabalho
afirma o sábio provérbio africano: “É remunerado e os cuidados com filhos (uma
preciso uma aldeia inteira para educar uma exigência impossível dessas...), escassez de
criança” e, ao contrário, seguimos numa espaços públicos apropriados ou
reprodução incessante da expressão acolhedores para as crianças,
popular “Quem pariu Mateus que o incompatibilidade entre orientações do
embale”. Ministério da Saúde sobre amamentação e
Tomamos, então, o “conceito- períodos de licença maternidade, tempo da
hashtag”3 (se quisermos nos adequar ao licença-paternidade insuficiente, escassez
linguajar das redes sociais) “#menasmain”, de vagas em escolas públicas, etc.
cunhado nas/pelas mesmas redes virtuais Mas não somente. Suspeitamos que
tal efeito de despontencialização está
3 ligado a um efeito moral de discursos e
Hashtags são palavras-chave precedidas do
símbolo # que acabam se transformando num link. práticas sobre a maternidade comumente
Então, ao se clicar na hashtag #menasmain, abrirá engendrado nos corpos das mulheres.
uma nova página com todas as frases onde fora Há uma política de romantização e
usado #menasmain. idealização da maternidade que ganha

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novas roupagens a cada momento tangível com seu trabalho, diminui o


histórico, por meio de uma produção prestígio social das mulheres em geral. No
fim das contas, a dona de casa, de acordo
discursiva que, de uma maneira geral (e com a ideologia burguesa, é simplesmente a
aqui reproduzido de maneira caricatural), serva de seu marido para a vida toda.
sugere modos de criar filhos “felizes e
saudáveis”, notoriamente um enfoque Visando romper com esse destino
dirigido às crianças e não àquilo que seria certo para as mulheres-mães e sair de um
definitivamente possível, ou mesmo viável, lugar despotencializado, as proponentes
para as mães e para as mais diversas deste artigo, também mães, buscam, com a
configurações familiares. presente narrativa, encontrar afetos mais
O site anarquista da Organização alegres com a experiência de maternar –
Resistência Libertária (2016) corrobora sem idealismos – de maneira pontual.
com a nossa argumentação ao afirmar: “A Entretanto, com frequência perpassa-nos a
nível de relações cotidianas e no campo vontade de desistir e abandonar o ato da
simbólico, a romantização da maternidade escrita, uma vez que o sentimento de
é um mecanismo machista e patriarcal de impotência e a crença de que talvez uma
naturalizar e perpetuar a sobrecarga de revista científica não comporte um artigo
trabalho sobre as mães.” cujo principal tema é a maternidade nos
Silvia Federici (2017, p. 30), no livro assombram. Mas algo em nós persiste e
O calibã e a bruxa: mulheres, corpo e não desiste de interrogar: por que a
acumulação primitiva, analisa o papel academia, as universidades, as produções
destinado às mulheres na transição do literárias e científicas não seriam espaços
Feudalismo para o Capitalismo e o para as mães ocuparem? Ora, é disso que
“desenvolvimento contemporâneo de uma se trata! Esta escrita emerge com uma
nova divisão sexual do trabalho que intencionalidade: poder afirmar que lugar
confina as mulheres ao trabalho de mãe é onde ela quiser... Ousada
reprodutivo”. afirmação. Mas talvez esta escrita só possa
A historiadora aponta que a diferença se efetuar tendo ao lado, como parceira, a
fundamental nessa nova divisão sexual do ousadia. Sigamos.
trabalho reside na maneira como o trabalho Destarte, temos entendido, então, que
doméstico passa a ser tratado. ocupar os espaços públicos e institucionais
sendo mãe é também um ato político. É
Na aldeia feudal não existia uma separação preciso que os espaços públicos criem
social entre a produção de bens e a
reprodução da força de trabalho: todo o
condições para acolher as crianças, pois
trabalho contribuía para o sustento familiar. isso é criar condições para que também as
As mulheres trabalhavam nos campos, além suas mães estejam ali e não trancadas em
de criar os filhos, cozinhar, lavar, fiar e casa ou relegadas a frequentar somente
manter a horta; suas atividades domésticas parquinhos, playgrounds, espaços
não eram desvalorizadas e não supunham
relações sociais diferentes das dos homens,
babyfriendly, etc.
tal como ocorreria em breve na economia Seguindo esse raciocínio, Mariana
monetária, quando o trabalho doméstico Bruce, militante do Movimento Mães e
deixou de ser visto como um verdadeiro Crias na Luta,4 enaltece essa argumentação
trabalho. (Federici, 2017, pp. 52-53)
4
Este movimento nasce do protesto
Angela Davis (2016, p. 228), em majoritariamente feminino realizado na
Mulheres, raça e classe, complementa que Cinelândia, Rio de Janeiro, em outubro de 2015,
contra o então presidente da câmara, Eduardo
Nas sociedades capitalistas avançadas, por Cunha, e seu Projeto de Lei n. 5.069/13, que
outro lado, o trabalho doméstico, orientado tornava crime induzir ou auxiliar uma gestante a
pela ideia de servir e realizado pelas donas abortar. Na linha de frente da passeata, mulheres
de casa, que raramente produzem algo carregavam seus bebês em carregadores e

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em seu blog de nome “Meu labirinto furtar a trazer para o debate o tema da
particular: um espaço para eu botar pra maternidade. É indispensável, para a
fora aqueles pensamentos fora do lugar...”: construção de outras políticas públicas, no
que diz respeito aos direitos das mulheres,
Basta de acreditar que o mundo pertence o apoio de argumentação científica.
somente aos adultos, que não há uma Precisamos produzir e multiplicar
responsabilidade coletiva de tornar os
espaços, quaisquer que sejam, mais
narrativas acadêmicas em defesa da
acolhedores para as crianças (inclusive, os mulher. Não se trata de solicitar condições
ambientes de trabalho) ou que para que elas especiais justificadas por uma suposta
frequentem um espaço, tenham que se fragilidade do corpo feminino, trata-se de
“adultizar”, negando sua própria condição de exigir o que nos é de direito. Ousaríamos
existência que envolve explorar o ambiente,
movimentar o corpo, fazer barulho, sentir
dizer que, de maneira geral, as bandeiras
medo e chorar, rir, falar, gritar, mamar, levantadas historicamente pelos
trocar as fraldas. Com isso, perdemos todos feminismos ainda contemplam pouco as
com nossa falta de escuta, de observação, de mulheres que são mães e que será
empatia, de acolhimento. (Bruce, 2016) necessária a criação de novas bandeiras.
Que o presente trabalho sirva de “pontapé”
Não se trata tão somente de exigir para uma reflexão nessa direção.
que os espaços públicos criem as
condições necessárias para receber as mães Breve historicização do papel da mãe
com as suas crianças. O campo em disputa
é bem mais complexo. O que estamos Na direção de desconstruir a
reivindicando, como ativistas do romantização produzida em torno da figura
“feminismo materno”, é que as mulheres da mãe, cabe, aqui, uma breve
não sejam demitidas imediatamente depois historicização. Há uma vasta produção de
do retorno da licença-maternidade, que discursos sobre a maternidade, sobre o
mulheres que tenham filhos sejam corpo da mulher, sobre o feminino, enfim.
admitidas em processos seletivos e Colocar em debate uma discussão acerca
entrevistas tanto de emprego como no da maternidade é se dispor a discutir a
mundo acadêmico, que as mulheres vida, a política, a ciência, a biologia, os
possam amamentar em público sem sofrer nascimentos...
assédios, que as creches públicas sejam Nascimento e maternidade são temas
acessíveis e de qualidade, que as mulheres indissociáveis, posto que é o evento do
tenham direito a pré-natal e a parto nascimento que “concede” à uma mulher o
públicos, dignos e respeitosos, sem sofrer seu papel social de mãe. Michel Foucault
violência obstétrica, equidade nos cuidados cunhou o conceito de biopolítica da
com as crianças, tempos mais longos de espécie humana ao analisar aquilo que ele
licença maternidade e paternidade, chamou de nascimento do racismo de
igualdade salarial para mulheres e homens, Estado, que disserta sobre uma tecnologia
etc. Essa luta é por todas as mulheres, pelo de poder de dupla face: disciplina dos
nosso corpo, pelas nossas vidas, contra a corpos e regulamentação dos processos da
maternidade compulsória e a favor dos vida. Se, num primeiro momento, as
nossos filhos, que queremos vivos! técnicas de poder estavam essencialmente
Acreditamos, assim, que o universo centradas no corpo individual, a partir da
das publicações acadêmicas não poderá se segunda metade do século XVIII, surge
uma nova tecnologia de poder, que não
gritavam palavras de ordem como: “Quem manda
no meu corpo sou eu”, “Deputados, tirem as mãos exclui a primeira, mas a integra, a modifica
dos nossos úteros”, “Regular o meu corpo? Aborte parcialmente, vai se incrustando nela e
essa ideia”, “Mulheres contra Cunha”, “Ser mãe é
uma escolha”, etc.

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[...] se dirige à multiplicidade dos homens, Medicina, como campo de conhecimento,


não na medida em que eles se resumem em formou suas bases nisso que chamam
corpos, mas na medida em que ela forma, ao
contrário, uma massa global, afetada por
hegemonicamente de ciência. Curioso,
processos de conjunto que são próprios da não? E essa ciência não terá se baseado,
vida, que são processos como o nascimento, desde sempre, em “evidências”? Eis aqui
a morte, a produção, a doença, etc. duas interrogações importantes para
(Foucault, 1999, p. 289, grifo nosso) começarmos a pensar sobre os modos de
fazer ciência que estão em jogo.
A partir dessa análise foucaultiana, De todo modo, é preciso reconhecer
entendemos o corpo da mulher como alvo que o campo da MBE, no que diz respeito
de um controle biopolítico da espécie à assistência ao parto e à amamentação,
humana. Mas de que forma esse corpo é vem desenvolvendo pesquisas relevantes e
tomado como alvo? Ora, a eficiência desse consideráveis críticas aos procedimentos
exercício de poder reside em ser difuso, da Medicina convencional realizados “sem
descentralizado e sutil, mas não menos respaldo científico”, isto é, procedimentos
violento. que se instituíram nas práticas cotidianas e
A própria constituição da obstetrícia que desqualificam o corpo da mulher,
como conhecimento prático e disciplinar tomando-o como incapaz e, portanto,
no século XIX inaugura uma dependente de intervenções e tecnologias.
transformação histórica do parto, que antes Sem dúvida, uma prática médico-científica
era um evento social ligado à cotidianidade que se instituiu como campo de saber
das mulheres, que ocorria entre mulheres, numa cultura patriarcal.
passando a ser um evento médico- No atual cenário de lutas pela
hospitalar e inaugurando a entrada de humanização do parto e da amamentação, a
homens na cena do parto. Homens MBE tem fundamental relevância no
legislando sobre o corpo das mulheres, o incentivo ao parto normal, inclusive tendo
corpo feminino como objeto do discurso promovido a criação de novas leis sobre os
médico-científico. Isso cria um direitos reprodutivos da mulher e sobre a
gerenciamento dos corpos femininos sem amamentação. Entretanto, Alzuguir e
precedentes que, inclusive, inventa uma Nucci (2015, p. 223) elucidam uma
certa “natureza feminina” associando-a à controvérsia curiosa desse modelo
vocação maternal da mulher. Passa a ser assistencial:
uma missão exclusiva da mulher, na nova
ordem social, a formação de novos A despeito da nítida vertente de
cidadãos. desmedicalização do corpo feminino como
No Brasil, na década de 1990, diretriz defendida para a consecução de uma
tínhamos um modelo de assistência ao maternidade “mais natural”, “ativa” e
“empoderada”, tal vertente se apoia,
parto extremamente intervencionista. Foi paradoxalmente, na ciência – a partir do
nesse contexto que a Organização Mundial respaldo em “evidências científicas” – como
de Saúde (OMS) propôs a utilização de matriz privilegiada de legitimação das
práticas que posteriormente se tornaram práticas humanizadas de parto e
um campo da Medicina, baseadas em amamentação.
“Evidência Científica”. De acordo com a
própria Medicina Baseada em Evidências Para além de querermos aqui
(MBE), esta tem como função garantir a questionar que se tome a ciência como
“segurança” e “eficácia” de cada matriz privilegiada de legitimação das
procedimento médico. Entretanto, nos práticas de parto e amamentação,
interrogamos por que motivo uma prática queremos pensar com você, leitora/leitor:
médica “inovadora” precisaria acrescentar de que ciência se está falando? Quando
o termo “científico” ao seu nome, já que a uma ciência precisa garantir seu

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“resultado” baseado em evidências, em que Medicina Baseada em Evidências, têm


lógica de produção de conhecimento estará surgido, mais recentemente, muitos
ela se ancorando? Que modelo científico é discursos sobre “como criar filhos
esse que afirma produzir “verdades seguros”, os quais recebem nomes bastante
evidenciadas” que não inclui as diversificados, a despeito de suas propostas
controvérsias da produção de semelhantes: Maternidade Mamífera,
conhecimento, as singularidades e, Maternidade Ativa, Maternidade
principalmente, o que aqui mais nos Consciente (como se houvesse outra não
interessa, os efeitos do que é enunciado consciente), Criação com Apego, etc. Entre
como verdade? essas, destacamos a Criação com Apego, já
Ora, nessa direção, perguntamos o bastante disseminada internacionalmente.
que aqui nos interessa mais: que efeitos os De acordo com o blog “Paizinho
discursos produzidos sobre parto e vírgula”5 (Queiroz, 2013), em 1994 foi
amamentação têm tido sobre as mulheres? criada uma organização sem fins lucrativos
Há riscos de que esse campo de pesquisa chamada Attachment Parenting
acabe contribuindo para o aparecimento de International (API), que oferece “apoio a
afetos vividos ou experienciados pelas pais que buscam criar vínculos seguros
mães, como fracasso e impotência? com seus filhos”. Inspirada no pediatra
Alzuguir e Nucci (2015, p. 219) norte-americano William Sears, a API
afirmam que “o discurso científico é criou “Os Oito Princípios da Criação com
ressignificado nas redes virtuais de mães, Apego” (assim foi traduzido no Brasil o
para legitimar práticas e estilos de vida termo Attachment Parenting).
consoantes com o ideário da humanização Embora os estudiosos da Criação
do parto e da amamentação ancorados na com Apego afirmem que não houve
ideia de uma natureza feminina universal”. intenção de se tornar mais um manual
As autoras dão seguimento a esse sobre como criar filhos, que seus princípios
raciocínio: “Se esta positivação da natureza não são receita de bolo e que cada família
do corpo feminino pode ser reconhecida vai precisar encontrar o que se adéqua
como um esforço em direção à luta pela melhor em sua dinâmica, ou ainda que “a
autonomia reprodutiva das mulheres, por prática da Criação com Apego (do inglês
outro lado, a essencialização de uma noção Attachment Parenting – AP) atende às
de natureza universal pode instaurar necessidades da criança de confiança,
armadilhas.” (Alzuguir & Nucci, 2015, p. empatia e afeição, provendo a base para
236). uma vida repleta de relacionamentos
O que significa, no âmbito da saudáveis” (Queiroz, 2013), o que temos
maternidade, se aliar a discursos e práticas encontrado são mães sentindo-se
universalizantes e hegemônicas? Há o impotentes e fracassadas. Novamente essa
enorme risco de, na tentativa de romper questão retorna: quais têm sido os efeitos
com determinado modelo que desqualifica desses discursos para as mães? Queremos,
o corpo feminino, se produzir discursos com este artigo, poder propor uma
consoantes com esse modelo, porém sob maternidade em que o princípio seja: NÃO
nova roupagem e de o protagonismo da
mulher-mãe ser novamente “jogado para
5
escanteio”, pois ela seguirá norteando suas O blog foi criado por Thiago de Queiroz, ativista
escolhas a partir da validação de da paternidade ativa e da criação com apego. No
universo da maternidade, é um dos blogs mais
especialistas, que detêm o saber, agora lidos e conhecidos nacionalmente. Thiago
mais sofisticado e “baseado em evidências atualmente é certificado como líder pela
científicas”. organização Attachment Parenting International e
Na mesma direção do ativismo em criador do primeiro grupo de apoio oficial no
favor do parto e da amamentação da Brasil, a API Rio.

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TER PRINCÍPIOS! Será por demais Missão terrível, que acaba de definir seu
ousado? papel. Sem dúvida, esses encargos
sucessivos que sobre ela foram lançados
É preciso reconhecer o ativismo da fizeram-se acompanhar de uma promoção da
criação com apego (e seus derivados) na imagem da mãe. Essa promoção, porém,
direção de produzir resistência a dissimulava uma dupla armadilha, que será
determinado modelo de sociabilidade por vezes vivida como uma alienação. [...]
urbano, ocidental, patriarcal, colonizado, Enclausurada em seu papel de mãe, a mulher
não mais poderá evitá-lo sob pena de
centrado no trabalho e na terceirização do condenação moral. (Badinter, 1985, p. 237)
cuidado. Vale frisar que essa sociabilidade
urbana que narramos aqui se encontra Ora, “teorias” que propõem saídas
pautada em alguns elementos, entre eles: o individualizantes focadas nas mulheres-
de que as mães não são incentivadas a parir mães contribuem em que na mudança da
e amamentar; de elas serem convocadas condição feminina na sociedade?
ou, ainda, forjadas a retornarem o quanto A Criação com Apego suscita, ainda,
antes aos seus postos de trabalho, trazendo uma armadilha bastante perigosa ao
como um de seus efeitos a terceirização colocar esse “estilo de criar” numa
com relação aos cuidados dos filhos; do dimensão de escolha da mulher, sem levar
uso de muitos anteparos ao contato mãe- em consideração as condições sociais, os
bebê, como chupetas, mamadeiras, níveis de pobreza e a precarização da saúde
carrinhos, berços, etc. pública; uma produção discursiva dirigida
Questionamo-nos acerca de quais os à mulher que se quer hegemonizar, ao
efeitos desses discursos que criticam um passo que enunciações supostamente
modo de criar filhos carregado de universais são proferidas: a mulher branca
anteparos e terceirizações e propõem uma de classe média.
maternidade mais “natural”. Uma crítica
que pode trazer o seu avesso, a saber, o Maternar como sacrifício
risco iminente de que esse discurso, sob
nova roupagem, aparentemente Enquanto tecemos aqui este debate
progressista, avançado, esteja realocando acerca dos discursos sobre criação de
as mulheres no trabalho doméstico e filhos e seus efeitos de despotencialização
reprodutivo, sob a justificativa da nas mães, uma matéria publicada no G1
existência de uma certa natureza biológica. em 2015 nos chama a atenção: “‘Menas
E com isso atualizando uma maternidade main’ existe? Mães contam como lidam com
despotencializada, que opere na lógica do culpa e palpites”. A reportagem segue explicando
sacrifício. que
Qual será a incidência dessa crítica,
se as “soluções” apontadas sugerem, mais a expressão surgiu em grupos de apoio ao parto
uma vez na história, a mãe como foco normal e à maternidade consciente, em que
principal de resolução? Será que os mulheres que davam leite em pó aos bebês e
diversos blogs cujo principal tema é a deixavam a criança chorar no berço até dormir
bradavam não serem “menos” mães do que as
criação de filhos se dão conta de que sua outras que estavam ali. [...] Para além da
produção discursiva parece estar no mesmo brincadeira, a expressão esconde uma questão
registro de práticas que confinaram ancestral: a culpa materna. (Faraco, 2015)
mulheres à criação de seus filhos, tal qual
Elisabeth Badinter elucida em seu livro Chama atenção o fato de que exista
Um amor conquistado: o mito do amor uma expressão que conecte de forma
materno? A autora afirma que inquestionável culpa e maternidade, como se
houvesse um pertencimento da culpa na mãe.
A mãe será promovida a “grande Acreditamos que será preciso,
responsável” pela felicidade de seu rebento. primeiramente, desnaturalizar isso que está

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maternidade, comumente engendradas nos corpos das mulheres

posto. Que forças estão em jogo na afirmação voluntária ao martírio, obviamente numa
da existência de uma culpa materna? Quais analogia caricatural, os pedidos de
elementos históricos, sociais, culturais, julgamento pelas mães ao usar a hashtag
subjetivos e políticos estão em jogo na #menasmain.
produção e naturalização dessa culpa? Essa tecnologia de si cristã, orientada
É possível observar muito claramente, pela permanente verbalização, é dominante
nas frases que inauguram este texto, um nos dias de hoje. Será possível fundar outra
pedido: “me julguem”. Somado a esse relação do sujeito com a verdade que não
pedido, a afirmação “menasmain”, ambos remeta ao sacrifício? Nesse sentido, certa
trazem consigo um tom de confissão, que direção analítico-crítica parece
nos remete à prática cristã de colocação da indispensável: “Talvez nosso problema
(própria) verdade em discurso, que implica hoje seja o de descobrir que o sujeito não é
para o sujeito um horizonte de abnegação e nada além de correlação histórica das
sacrifício. De acordo com análise do tecnologias de si construídas em nossa
filósofo francês Michel Foucault (2011), o história” (Foucault, 2011, p. 186). Mas
cristão deve testemunhar contra si mesmo, como transformar essas tecnologias?
ou seja, saber sobre si, sobre suas Foucault faz um chamado a que forjemos
tentações, sobre as faltas que pode ter uma nova “política de nós mesmos”.
cometido; e, mais ainda, precisará dizê-lo
aos outros. “O pessoal é político”
É curioso que esse modo de operar
cristão encontre nas mulheres-mães um Com essa intenção, de forjar novas
solo tão fértil para ser colocado em políticas acerca de nós mesmas, na direção
funcionamento. No exato contexto em que do cuidado de si, a presente pesquisa, ainda
se radicaliza a experiência de ser mulher em fase inicial, pretende entender se as
nesse mundo, radicalizam-se os papéis mulheres estão podendo construir, na
destinados ao gênero feminino – que é o experiência de se tornarem mães, uma ética
momento do nascimento de um filho –, o que dialogue com o efeito moral dos
corpo da mulher torna-se uma engrenagem, discursos sobre a maternidade, comumente
por excelência, para pôr em funcionamento engendrado em seus corpos. E avaliar
alguns ideais cristãos, a começar pelo como, a partir desse diálogo, inauguram-
sacrifício. se, efetivamente, outras maneiras de
A obrigação de verdade sobre si está exercer a maternagem.
totalmente ligada a outra prática cristã: a Interessa-nos avaliar quais as
penitência. Por meio dela, sofrem-se implicações de um frágil exercício de si
proibições e restrições. É preciso tornar entre as mães, quando sua ocupação
públicas as faltas, mostrar-se como principal é justamente uma prática de
pecador. De acordo com Foucault (2011), cuidado do outro; entendendo que, por
desde o início do cristianismo, a penitência mais que as mães tenham acesso a um
era um estatuto geral da existência. Por imenso volume de informações sobre
intermédio dela, sofrem-se proibições e “como criar seus filhos”, não será isso que
restrições: “A penitência nos primeiros vai garantir “filhos criados com
séculos cristãos é um modo de vida que segurança”. Como uma mãe precarizada,
deve atuar em todos os momentos como descuidada e miserabilizada poderá
uma obrigação de mostrar-se a si mesmo” produzir um cuidado potente?
(Foucault, 2011, p. 173). Um modelo Michel Foucault, em sua releitura do
importante na penitência era o modelo do período helenístico-romano, toma o tema
martírio: era preciso se expor do cuidado de si como uma ética e uma
voluntariamente a algum tipo de martírio. estética de si. Tomar o cuidado nessa
No caso, estamos chamando de exposição perspectiva é entendê-lo não

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maternidade, comumente engendradas nos corpos das mulheres

[...] como algo a ser recebido de alguém, por A aposta consiste em tomar a
alguma espécie de compaixão, humanismo experiência pessoal e torná-la política, com
ou mesmo especialidade profissional, mas de
um processo para a vida inteira, que forja
vistas a intervir numa realidade que parece
liberdades, conquistando-as dia-a-dia, junto imutável, dura, consolidada. Trata-se, pois,
às forças ativas da vida, que geram a de se arriscar numa escrita que possibilite
possibilidade de criar novos modos de criar condições para desentranhar,
subjetivação. (Cretton, 2014, p. 83) despessoalizar, desprivatizar a experiência
e recolocá-la no plano do impessoal, do
Refazer uma ética do eu seria então coletivo. Forçar uma coletivização da
uma tarefa urgente e politicamente experiência – hoje tão intimista e solitária
indispensável, na medida em que a relação – de tornar-se mãe.
de si para consigo é o ponto de resistência Nesse sentido, enquanto essas
ao poder político. Foucault (2012, p. 265) palavras ganham linhas no papel, estamos
afirma que “Não se deve fazer passar o alertas e atentas, preocupadas em produzir
cuidado dos outros na frente do cuidado de uma narrativa que rompa com os modos de
si; o cuidado de si vem eticamente em escrita imperativos, que dizem às mães o
primeiro lugar”. Além disso, o cuidado de que fazer/como fazer para tornar-se mãe.
si não é uma atividade solitária; ao Em um breve futuro, essa pesquisa de
contrário, implica sociabilidade. doutorado ganhará solo, corpo, campo e se
Será possível que as mães tornará (tomara!) uma escrita interessada
reconstruam uma ética de cuidado de si em recolher relatos e deixar que os
mesmas, apesar da solidão e da falta de discursos elaborados pelas próprias
apoio de toda ordem (inclusive estatal) mulheres-mães ganhem a cena, num
experimentadas?A aposta consiste na exercício de tomar a escrita como
construção/invenção de outras formas de ferramenta. Ferramenta essa que possibilita
subjetivação que não esteja absolutamente às mulheres se subjetivarem
atrelada à impotência, ao fracasso. diferentemente das formas hegemônicas.
Tomar o tema da maternidade, Uma escrita de si que tem como horizonte
partindo de nossa experiência, como uma prática de liberdade, forjada num
material de pesquisa e produção de cuidado diário com as forças ativas da
conhecimento acadêmico é, no terreno da vida.
Psicologia, uma atitude política. Uma
Psicologia que não deseja estar dissociada Nossas referenciais
da política, da polis, da cidade, de onde a
vida acontece, enfim. A leitura de feministas como Donna
Isabelle Stengers e Vinciane Despret Haraway, Isabelle Stengers e Vinciane
(2011, p. 35), no livro As fazedoras de Despret tem fornecido ferramentas
histórias, proclamam: o pessoal é político e importantes para afirmar um modo
encarnado de fazer e narrar uma pesquisa.
a evocação de nossas experiências torna-se
anônima, falando de outra coisa que não nós
Conti e Silveira (2016, p. 55) perguntam:
mesmas [...]. E como se tornaram anônimas “Ora, mas então com que espécie de
essas particularidades, trocadas pelas matéria escreve o pesquisador sua
mulheres no devir feminista, nos encontros pesquisa? Ah sim, ele escreve com a
onde elas faziam existir, cada uma à sua experiência.” Desse modo, indo ao
maneira e cada uma com todas, que isto que
elas tinham vivido no registro pessoal era
(também) político6
deficientes visuais”, coordenada pela professora
6 Márcia Moraes, do departamento de Psicologia da
Tradução feita pelas integrantes da pesquisa
Universidade Federal Fluminense (UFF).
“Perceber sem ver: corpo e subjetividade entre

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maternidade, comumente engendradas nos corpos das mulheres

encontro do pensamento de Arendt e


Moraes (2016, p. 15), É preciso dizer que se vamos marcar um
feminino na ciência e não uma ciência
Entendemos que esta abordagem permite feminina e também para marcar uma posição
sugerir uma maneira nova de pensar a política no meio acadêmico. Este meio
Psicologia. O enfoque mudaria acadêmico que trata sem pestanejar os
completamente se o interesse dos psicólogos homens como rigorosos cientistas e nós,
se dirigisse não tanto ao que o sujeito ou contadoras de histórias, como pesquisadoras
indivíduo é, mas o que ele poderia ser, numa sensíveis. As histórias que escrevemos
situação ela própria plena de possibilidades sustentam um mundo que queremos, com o
de ação. qual nos responsabilizamos. Responsabilizar
não no sentido de uma lista de obrigações,
mas como afirma Haraway (em sua fala no
É notório que, neste artigo, as autoras Simpósio Mil Nomes de Gaia já citado):
estão em relação com o campo que quer “Não é ser responsável, é mais como cultivar
investigar e narrar. Ou melhor, estão a capacidade de reagir” no tempo e no
situadas nele. De acordo com Moraes e espaço. Não queremos apagar nossa
sensibilidade, mas queremos que nossas
Tsallis (2016, p. 43), Donna Haraway narrativas tenham lugar em pé de igualdade
“sinaliza que na ciência todo olhar é na comunidade científica, considerando
situado, tecido a partir de conexões e nossa aposta no fomento de um mundo mais
mediações que fazem certos mundos denso, mais complexo e por que não, mais
visíveis e deixam outros na sombra. Assim, encantado. (Conti e Silveira, 2016, p. 66)
para a autora, só é possível conhecer a
partir de algum lugar”. Propor uma metodologia que implica
Afirmar uma pesquisa a partir do entrar em relação com o que se quer
lugar onde estamos é tomar a produção de pesquisar, assumindo um compromisso ético,
conhecimento e a escrita como atos político e epistemológico é, pois, uma aposta
políticos que envolvem posicionamentos, de vida, sem a qual não seria possível
escolhas. Se aventurar numa escrita em que escrever nesse momento. As pesquisadoras
as pesquisadoras coloquem em análise caminham junto ao tema pesquisado na
também o lugar que ocupam e que buscam direção de se subjetivar de outras formas não
ocupar é, sem dúvida, arriscar-se a hegemônicas no campo da maternidade,
repensar as próprias práticas de pesquisa radicalizando os sentidos de uma pesquisa
que, no presente trabalho, são também de encarnada: “Uma experimentação criadora
vida. no campo da produção de conhecimento,
Faz tempo que buscamos modos de que se faz visível e enunciável como uma
pesquisar sem um método apriorístico, política facultativa de subjetivação (versus
com metas preestabelecidas e determinadas sujeição)” (Rodrigues, 2010, p. 201).
a priori. Interessa-nos um “procedimento”
que se constrói no próprio processo de Referências
pesquisar, um primado do caminhar. Essa
postura procura garantir protagonismo Alzuguir, F. V., & Nucci, M. (2015).
àquilo que se quer pesquisar, evitando pôr Maternidade mamífera? Concepções
em cena o pesquisador onisciente, bem sobre natureza e ciência em uma rede
como o objeto assujeitado. Nessa direção, social de mães. Mediações, 20(1),
há uma certa política de narratividade que 217-238.
nos ampara, uma escrita afetiva e
Arendt, R., & Moraes, M. (2016). O
encarnada.
projeto ético de Donna Haraway:
Conti e Silveira (2016) chamam esse
alguns efeitos para a pesquisa em
modo de pesquisar e escrever de contra-
Psicologia Social. Pesquisas e
hegêmonico de “fazer ciência no
Práticas Psicossociais, 11(1), 11-24.
Feminino” (grifo nosso).

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Pereira, L. C., & Tsallis, A. C. Maternidade versus sacrifício: uma análise do efeito moral e práticas sobre a
maternidade, comumente engendradas nos corpos das mulheres

Recebido em: 18/9/2019


Aceito em: 28/5/2020

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