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Pereira, L. C., & Tsallis, A. C. Maternidade versus sacrifício: uma análise do efeito moral e práticas sobre a
maternidade, comumente engendradas nos corpos das mulheres
Maternidade versus sacrifício: uma análise do efeito moral dos discursos e práticas sobre
a maternidade comumente engendrados nos corpos das mulheres
Maternity versus Sacrifice: An Analysis of the Moral Effect of the Discourses and
Practices about Maternity Commonly Engendered in the Women’s Bodies
Maternidad versus sacrificio: un análisis del efecto moral de los discursos y prácticas
sobre la maternidad comúnmente engendrados en los cuerpos de las mujeres
Resumo
O presente trabalho parte da análise de uma hashtag disseminado em redes sociais de apoio mútuo entre mães,
denominado #menasmain, para refletir sobre alguns lugares-comuns (porém não únicos) na experiência feminina
materna: culpa, dívida, fracasso, sacrifício, despotencialização. O artigo pretende demonstrar como se
disseminam discursos SOBRE a maternidade e não COM as mulheres-mães, elucidando certo efeito moral dos
discursos e práticas sobre a maternidade comumente engendrado nos corpos das mulheres. Com esta narrativa,
pretendemos forjar novas políticas acerca de nós mesmas na direção do cuidado de si e entender se as mulheres
estão podendo construir, na experiência de se tornarem mães, uma ética que dialogue com o efeito moral dos
discursos e práticas em seus corpos, possibilitando-lhes se subjetivarem diferentemente das formas hegemônicas.
Abstract
The present paper is based on the analysis of a hashtag disseminated through social media used for mutual
support by mothers, called #menasmain (something like #badmon), to think about some commonplaces (though
not exclusive) in the feminine mother experience: self-blame, debt, failure, sacrifice, depotentialization. The
article aims to demonstrate how the discourses disseminated are ABOUT maternity and not WITH female –
mothers, elucidating a certain moral effect of the discourses and practices about maternity commonly engendered
in the women’s bodies. Through this narrative, we intend to forge new politics regarding ourselves towards self-
care and understand if women are being able to create, in the experience of becoming a mother, an ethic that
communicates with the moral effect of the discourses and practices in their bodies, allowing them different
subjetifications from the hegemonic forms.
1
Doutoranda em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Mestre em Psicologia
Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Graduada em Psicologia pela Universidade
Federal Fluminense (UFF). E-mail: lcretton@gmail.com
2
Pós-Doutorado nos Programa de Pós-Graduação em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ) e Programa de Pós-Graduação em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutora
em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), em associação com o Centre de
Sociologie de l’Innovation – École de Mines – Paris. Mestra em Psicologia e Práticas Sócio-Culturais pela
Uerj. Graduada em Psicologia pela UFRJ. Professora Adjunta do Departamento de Psicologia Social e
Institucional do Instituto de Psicologia da Uerj. Professora Colaboradora do Programa de Pós-Graduação em
Psicologia Social da Uerj. Coordenadora do Laboratório afeTAR da Uerj.
Pesquisas e Práticas Psicossociais, 15(3), São João del-Rei, julho-setembro de 2020. e-3651
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Resumen
Este documento se basa en el análisis de un hashtag diseminado en redes sociales de apoyo mutuo entre madres,
llamado #menasmain, para reflexionar sobre algunos lugares comunes (pero no únicos) en la experiencia
femenina materna: culpa, deuda, fracaso, sacrificio, despotencialización. El artículo tiene como objetivo
demostrar cómo se difunden los discursos SOBRE la maternidad y no CON las mujeres-madres, aclarando un
cierto efecto moral de los discursos y prácticas sobre la maternidad comúnmente engendrados en los cuerpos de
las mujeres. Con esta narrativa, pretendemos forjar nuevas políticas sobre nosotras mismas hacia el cuidado de sí
y comprender si las mujeres pueden construir, en la experiencia de convertirse en madres, una ética que dialoga
con el efecto moral de los discursos y prácticas en sus cuerpos, permitiéndoles subjetivarse de manera diferente a
las formas hegemónicas.
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pesquisa. Ela é antes, uma forma de povoar arquitetadas por mães, e o acompanhamos,
o mundo. Uma forma de fazer mundo” curiosas, buscando entender o significado
(Moraes & Tsallis, 2016, p. 44). É desse deste, seu uso equivocado do português e
modo que nos engajamos na presente sua frequente existência.
escrita, responsabilizando-nos pelo Por que motivos a hashtag
“mundo” que sabemos estar produzindo, #menasmain viralizou? Do que essa
talvez mais plural, múltiplo, contra- hashtag dá notícias? A partir de que
hegemônico. conjunto de crenças a expressão
Dito isso, cabe situar as autoras. “menasmain” se popularizou? Por que é
Somos mulheres, mães, brancas, de classe comum encontrar mães sentindo-se
média. E nesta escrita seguem os primeiros “menos mãe”, “em dívida”, “em falta”? De
questionamentos que emergem, sem onde vem essa associação indissociável
sombra de dúvida, do lugar privilegiado entre culpa e maternidade? Que forças
que sabemos ocupar. estão em jogo na produção desse lugar
O Rio de Janeiro é o berço onde se endividado da mulher-mãe? Quem são
situa esta pesquisa. Rio de Janeiro, “cidade essas mulheres que experimentam culpa,
maravilhosa”, com seus encantos e seus dívida, falta, fracasso em seu cotidiano?
territórios de exclusão, suas políticas de Em continuidade com essas
segregação e seus baixos índices de saúde perguntas, nos debruçamos a investigar o
da mulher e da criança. Foi nesse Rio que motivo pelo qual temos encontrado muitas
pudemos notar importante protagonismo queixas por parte das mães nos grupos de
das redes sociais no que diz respeito à apoios em redes sociais, notando um certo
construção de apoio mútuo entre as mães, efeito, que aqui vamos nomear de
um ato de resistência em meio ao caos, “despotencialização”, no encontro com a
mulheres se apoiando! Ao que tudo indica, maternidade, sem, no entanto, universalizar
o encontro com a maternidade no contexto essa experiência.
da vida urbana (e colonizada, Parece-nos que essa
acrescentaríamos), acentua (ou fabrica?) despotencialização tem relação com
uma experiência de solidão. Há, nos inúmeras forças em jogo: solidão, falta de
centros urbanos, um certo esvaziamento de apoio, falta de rede, centralização dos
modos de vida comunitários, coletivos. cuidados com filhos nas mães, exigência
Não nos responsabilizamos de maneira de retorno breve aos seus postos de
generalizada pelas nossas crianças. trabalho, dificuldade de conciliar o
Caminhamos na direção oposta do que trabalho doméstico com o trabalho
afirma o sábio provérbio africano: “É remunerado e os cuidados com filhos (uma
preciso uma aldeia inteira para educar uma exigência impossível dessas...), escassez de
criança” e, ao contrário, seguimos numa espaços públicos apropriados ou
reprodução incessante da expressão acolhedores para as crianças,
popular “Quem pariu Mateus que o incompatibilidade entre orientações do
embale”. Ministério da Saúde sobre amamentação e
Tomamos, então, o “conceito- períodos de licença maternidade, tempo da
hashtag”3 (se quisermos nos adequar ao licença-paternidade insuficiente, escassez
linguajar das redes sociais) “#menasmain”, de vagas em escolas públicas, etc.
cunhado nas/pelas mesmas redes virtuais Mas não somente. Suspeitamos que
tal efeito de despontencialização está
3 ligado a um efeito moral de discursos e
Hashtags são palavras-chave precedidas do
símbolo # que acabam se transformando num link. práticas sobre a maternidade comumente
Então, ao se clicar na hashtag #menasmain, abrirá engendrado nos corpos das mulheres.
uma nova página com todas as frases onde fora Há uma política de romantização e
usado #menasmain. idealização da maternidade que ganha
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em seu blog de nome “Meu labirinto furtar a trazer para o debate o tema da
particular: um espaço para eu botar pra maternidade. É indispensável, para a
fora aqueles pensamentos fora do lugar...”: construção de outras políticas públicas, no
que diz respeito aos direitos das mulheres,
Basta de acreditar que o mundo pertence o apoio de argumentação científica.
somente aos adultos, que não há uma Precisamos produzir e multiplicar
responsabilidade coletiva de tornar os
espaços, quaisquer que sejam, mais
narrativas acadêmicas em defesa da
acolhedores para as crianças (inclusive, os mulher. Não se trata de solicitar condições
ambientes de trabalho) ou que para que elas especiais justificadas por uma suposta
frequentem um espaço, tenham que se fragilidade do corpo feminino, trata-se de
“adultizar”, negando sua própria condição de exigir o que nos é de direito. Ousaríamos
existência que envolve explorar o ambiente,
movimentar o corpo, fazer barulho, sentir
dizer que, de maneira geral, as bandeiras
medo e chorar, rir, falar, gritar, mamar, levantadas historicamente pelos
trocar as fraldas. Com isso, perdemos todos feminismos ainda contemplam pouco as
com nossa falta de escuta, de observação, de mulheres que são mães e que será
empatia, de acolhimento. (Bruce, 2016) necessária a criação de novas bandeiras.
Que o presente trabalho sirva de “pontapé”
Não se trata tão somente de exigir para uma reflexão nessa direção.
que os espaços públicos criem as
condições necessárias para receber as mães Breve historicização do papel da mãe
com as suas crianças. O campo em disputa
é bem mais complexo. O que estamos Na direção de desconstruir a
reivindicando, como ativistas do romantização produzida em torno da figura
“feminismo materno”, é que as mulheres da mãe, cabe, aqui, uma breve
não sejam demitidas imediatamente depois historicização. Há uma vasta produção de
do retorno da licença-maternidade, que discursos sobre a maternidade, sobre o
mulheres que tenham filhos sejam corpo da mulher, sobre o feminino, enfim.
admitidas em processos seletivos e Colocar em debate uma discussão acerca
entrevistas tanto de emprego como no da maternidade é se dispor a discutir a
mundo acadêmico, que as mulheres vida, a política, a ciência, a biologia, os
possam amamentar em público sem sofrer nascimentos...
assédios, que as creches públicas sejam Nascimento e maternidade são temas
acessíveis e de qualidade, que as mulheres indissociáveis, posto que é o evento do
tenham direito a pré-natal e a parto nascimento que “concede” à uma mulher o
públicos, dignos e respeitosos, sem sofrer seu papel social de mãe. Michel Foucault
violência obstétrica, equidade nos cuidados cunhou o conceito de biopolítica da
com as crianças, tempos mais longos de espécie humana ao analisar aquilo que ele
licença maternidade e paternidade, chamou de nascimento do racismo de
igualdade salarial para mulheres e homens, Estado, que disserta sobre uma tecnologia
etc. Essa luta é por todas as mulheres, pelo de poder de dupla face: disciplina dos
nosso corpo, pelas nossas vidas, contra a corpos e regulamentação dos processos da
maternidade compulsória e a favor dos vida. Se, num primeiro momento, as
nossos filhos, que queremos vivos! técnicas de poder estavam essencialmente
Acreditamos, assim, que o universo centradas no corpo individual, a partir da
das publicações acadêmicas não poderá se segunda metade do século XVIII, surge
uma nova tecnologia de poder, que não
gritavam palavras de ordem como: “Quem manda
no meu corpo sou eu”, “Deputados, tirem as mãos exclui a primeira, mas a integra, a modifica
dos nossos úteros”, “Regular o meu corpo? Aborte parcialmente, vai se incrustando nela e
essa ideia”, “Mulheres contra Cunha”, “Ser mãe é
uma escolha”, etc.
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TER PRINCÍPIOS! Será por demais Missão terrível, que acaba de definir seu
ousado? papel. Sem dúvida, esses encargos
sucessivos que sobre ela foram lançados
É preciso reconhecer o ativismo da fizeram-se acompanhar de uma promoção da
criação com apego (e seus derivados) na imagem da mãe. Essa promoção, porém,
direção de produzir resistência a dissimulava uma dupla armadilha, que será
determinado modelo de sociabilidade por vezes vivida como uma alienação. [...]
urbano, ocidental, patriarcal, colonizado, Enclausurada em seu papel de mãe, a mulher
não mais poderá evitá-lo sob pena de
centrado no trabalho e na terceirização do condenação moral. (Badinter, 1985, p. 237)
cuidado. Vale frisar que essa sociabilidade
urbana que narramos aqui se encontra Ora, “teorias” que propõem saídas
pautada em alguns elementos, entre eles: o individualizantes focadas nas mulheres-
de que as mães não são incentivadas a parir mães contribuem em que na mudança da
e amamentar; de elas serem convocadas condição feminina na sociedade?
ou, ainda, forjadas a retornarem o quanto A Criação com Apego suscita, ainda,
antes aos seus postos de trabalho, trazendo uma armadilha bastante perigosa ao
como um de seus efeitos a terceirização colocar esse “estilo de criar” numa
com relação aos cuidados dos filhos; do dimensão de escolha da mulher, sem levar
uso de muitos anteparos ao contato mãe- em consideração as condições sociais, os
bebê, como chupetas, mamadeiras, níveis de pobreza e a precarização da saúde
carrinhos, berços, etc. pública; uma produção discursiva dirigida
Questionamo-nos acerca de quais os à mulher que se quer hegemonizar, ao
efeitos desses discursos que criticam um passo que enunciações supostamente
modo de criar filhos carregado de universais são proferidas: a mulher branca
anteparos e terceirizações e propõem uma de classe média.
maternidade mais “natural”. Uma crítica
que pode trazer o seu avesso, a saber, o Maternar como sacrifício
risco iminente de que esse discurso, sob
nova roupagem, aparentemente Enquanto tecemos aqui este debate
progressista, avançado, esteja realocando acerca dos discursos sobre criação de
as mulheres no trabalho doméstico e filhos e seus efeitos de despotencialização
reprodutivo, sob a justificativa da nas mães, uma matéria publicada no G1
existência de uma certa natureza biológica. em 2015 nos chama a atenção: “‘Menas
E com isso atualizando uma maternidade main’ existe? Mães contam como lidam com
despotencializada, que opere na lógica do culpa e palpites”. A reportagem segue explicando
sacrifício. que
Qual será a incidência dessa crítica,
se as “soluções” apontadas sugerem, mais a expressão surgiu em grupos de apoio ao parto
uma vez na história, a mãe como foco normal e à maternidade consciente, em que
principal de resolução? Será que os mulheres que davam leite em pó aos bebês e
diversos blogs cujo principal tema é a deixavam a criança chorar no berço até dormir
bradavam não serem “menos” mães do que as
criação de filhos se dão conta de que sua outras que estavam ali. [...] Para além da
produção discursiva parece estar no mesmo brincadeira, a expressão esconde uma questão
registro de práticas que confinaram ancestral: a culpa materna. (Faraco, 2015)
mulheres à criação de seus filhos, tal qual
Elisabeth Badinter elucida em seu livro Chama atenção o fato de que exista
Um amor conquistado: o mito do amor uma expressão que conecte de forma
materno? A autora afirma que inquestionável culpa e maternidade, como se
houvesse um pertencimento da culpa na mãe.
A mãe será promovida a “grande Acreditamos que será preciso,
responsável” pela felicidade de seu rebento. primeiramente, desnaturalizar isso que está
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posto. Que forças estão em jogo na afirmação voluntária ao martírio, obviamente numa
da existência de uma culpa materna? Quais analogia caricatural, os pedidos de
elementos históricos, sociais, culturais, julgamento pelas mães ao usar a hashtag
subjetivos e políticos estão em jogo na #menasmain.
produção e naturalização dessa culpa? Essa tecnologia de si cristã, orientada
É possível observar muito claramente, pela permanente verbalização, é dominante
nas frases que inauguram este texto, um nos dias de hoje. Será possível fundar outra
pedido: “me julguem”. Somado a esse relação do sujeito com a verdade que não
pedido, a afirmação “menasmain”, ambos remeta ao sacrifício? Nesse sentido, certa
trazem consigo um tom de confissão, que direção analítico-crítica parece
nos remete à prática cristã de colocação da indispensável: “Talvez nosso problema
(própria) verdade em discurso, que implica hoje seja o de descobrir que o sujeito não é
para o sujeito um horizonte de abnegação e nada além de correlação histórica das
sacrifício. De acordo com análise do tecnologias de si construídas em nossa
filósofo francês Michel Foucault (2011), o história” (Foucault, 2011, p. 186). Mas
cristão deve testemunhar contra si mesmo, como transformar essas tecnologias?
ou seja, saber sobre si, sobre suas Foucault faz um chamado a que forjemos
tentações, sobre as faltas que pode ter uma nova “política de nós mesmos”.
cometido; e, mais ainda, precisará dizê-lo
aos outros. “O pessoal é político”
É curioso que esse modo de operar
cristão encontre nas mulheres-mães um Com essa intenção, de forjar novas
solo tão fértil para ser colocado em políticas acerca de nós mesmas, na direção
funcionamento. No exato contexto em que do cuidado de si, a presente pesquisa, ainda
se radicaliza a experiência de ser mulher em fase inicial, pretende entender se as
nesse mundo, radicalizam-se os papéis mulheres estão podendo construir, na
destinados ao gênero feminino – que é o experiência de se tornarem mães, uma ética
momento do nascimento de um filho –, o que dialogue com o efeito moral dos
corpo da mulher torna-se uma engrenagem, discursos sobre a maternidade, comumente
por excelência, para pôr em funcionamento engendrado em seus corpos. E avaliar
alguns ideais cristãos, a começar pelo como, a partir desse diálogo, inauguram-
sacrifício. se, efetivamente, outras maneiras de
A obrigação de verdade sobre si está exercer a maternagem.
totalmente ligada a outra prática cristã: a Interessa-nos avaliar quais as
penitência. Por meio dela, sofrem-se implicações de um frágil exercício de si
proibições e restrições. É preciso tornar entre as mães, quando sua ocupação
públicas as faltas, mostrar-se como principal é justamente uma prática de
pecador. De acordo com Foucault (2011), cuidado do outro; entendendo que, por
desde o início do cristianismo, a penitência mais que as mães tenham acesso a um
era um estatuto geral da existência. Por imenso volume de informações sobre
intermédio dela, sofrem-se proibições e “como criar seus filhos”, não será isso que
restrições: “A penitência nos primeiros vai garantir “filhos criados com
séculos cristãos é um modo de vida que segurança”. Como uma mãe precarizada,
deve atuar em todos os momentos como descuidada e miserabilizada poderá
uma obrigação de mostrar-se a si mesmo” produzir um cuidado potente?
(Foucault, 2011, p. 173). Um modelo Michel Foucault, em sua releitura do
importante na penitência era o modelo do período helenístico-romano, toma o tema
martírio: era preciso se expor do cuidado de si como uma ética e uma
voluntariamente a algum tipo de martírio. estética de si. Tomar o cuidado nessa
No caso, estamos chamando de exposição perspectiva é entendê-lo não
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Pereira, L. C., & Tsallis, A. C. Maternidade versus sacrifício: uma análise do efeito moral e práticas sobre a
maternidade, comumente engendradas nos corpos das mulheres
[...] como algo a ser recebido de alguém, por A aposta consiste em tomar a
alguma espécie de compaixão, humanismo experiência pessoal e torná-la política, com
ou mesmo especialidade profissional, mas de
um processo para a vida inteira, que forja
vistas a intervir numa realidade que parece
liberdades, conquistando-as dia-a-dia, junto imutável, dura, consolidada. Trata-se, pois,
às forças ativas da vida, que geram a de se arriscar numa escrita que possibilite
possibilidade de criar novos modos de criar condições para desentranhar,
subjetivação. (Cretton, 2014, p. 83) despessoalizar, desprivatizar a experiência
e recolocá-la no plano do impessoal, do
Refazer uma ética do eu seria então coletivo. Forçar uma coletivização da
uma tarefa urgente e politicamente experiência – hoje tão intimista e solitária
indispensável, na medida em que a relação – de tornar-se mãe.
de si para consigo é o ponto de resistência Nesse sentido, enquanto essas
ao poder político. Foucault (2012, p. 265) palavras ganham linhas no papel, estamos
afirma que “Não se deve fazer passar o alertas e atentas, preocupadas em produzir
cuidado dos outros na frente do cuidado de uma narrativa que rompa com os modos de
si; o cuidado de si vem eticamente em escrita imperativos, que dizem às mães o
primeiro lugar”. Além disso, o cuidado de que fazer/como fazer para tornar-se mãe.
si não é uma atividade solitária; ao Em um breve futuro, essa pesquisa de
contrário, implica sociabilidade. doutorado ganhará solo, corpo, campo e se
Será possível que as mães tornará (tomara!) uma escrita interessada
reconstruam uma ética de cuidado de si em recolher relatos e deixar que os
mesmas, apesar da solidão e da falta de discursos elaborados pelas próprias
apoio de toda ordem (inclusive estatal) mulheres-mães ganhem a cena, num
experimentadas?A aposta consiste na exercício de tomar a escrita como
construção/invenção de outras formas de ferramenta. Ferramenta essa que possibilita
subjetivação que não esteja absolutamente às mulheres se subjetivarem
atrelada à impotência, ao fracasso. diferentemente das formas hegemônicas.
Tomar o tema da maternidade, Uma escrita de si que tem como horizonte
partindo de nossa experiência, como uma prática de liberdade, forjada num
material de pesquisa e produção de cuidado diário com as forças ativas da
conhecimento acadêmico é, no terreno da vida.
Psicologia, uma atitude política. Uma
Psicologia que não deseja estar dissociada Nossas referenciais
da política, da polis, da cidade, de onde a
vida acontece, enfim. A leitura de feministas como Donna
Isabelle Stengers e Vinciane Despret Haraway, Isabelle Stengers e Vinciane
(2011, p. 35), no livro As fazedoras de Despret tem fornecido ferramentas
histórias, proclamam: o pessoal é político e importantes para afirmar um modo
encarnado de fazer e narrar uma pesquisa.
a evocação de nossas experiências torna-se
anônima, falando de outra coisa que não nós
Conti e Silveira (2016, p. 55) perguntam:
mesmas [...]. E como se tornaram anônimas “Ora, mas então com que espécie de
essas particularidades, trocadas pelas matéria escreve o pesquisador sua
mulheres no devir feminista, nos encontros pesquisa? Ah sim, ele escreve com a
onde elas faziam existir, cada uma à sua experiência.” Desse modo, indo ao
maneira e cada uma com todas, que isto que
elas tinham vivido no registro pessoal era
(também) político6
deficientes visuais”, coordenada pela professora
6 Márcia Moraes, do departamento de Psicologia da
Tradução feita pelas integrantes da pesquisa
Universidade Federal Fluminense (UFF).
“Perceber sem ver: corpo e subjetividade entre
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