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02/02/2020 Folha de S.

Paulo - O eleitoral e o político - 29/8/1994

São Paulo, segunda-feira, 29 de agosto de 1994

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O eleitoral e o político
FLORESTAN FERNANDES

O direito político fundamental em uma sociedade democrática


moderna é a soberania popular. Os meios pelos quais esse direito se
exerce são o sufrágio universal e o voto direto e secreto. Nossa
Constituição estipula: "com valor igual para todos" e "nos termos da
lei". Todavia, o valor do voto depende de outras premissas históricas
e da cultura cívica, realidades que exorbitam a esfera constitucional.
E o voto direto e secreto continua sujeito a pressões externas à
liberdade do eleitor.
Há um hiato na Constituição. Ela não esclarece as conexões entre o
sufrágio universal, o voto direto e secreto e os partidos políticos. O
significado e as atribuições que eles devem assumir são omitidos. A
"lei civil" adquire uma elasticidade indeterminada e transcendente.
O que importa, no momento, diz respeito ao processo eleitoral. Ele se
descola, na prática, do contexto constitucional e das determinações
legais. A pobreza das premissas históricas, tão acentuada, e a
inexistência de cultura cívica, em formação incipiente, atropelam os
princípios referentes à soberania popular, ao sufrágio universal e ao
voto direto e secreto.
Esse não é um fenômeno peculiar ao Brasil. É espantoso o que ocorre,
por exemplo, nos Estados Unidos, graças à evasão eleitoral. Em nosso
país, só o Poder Judiciário tenta introduzir algumas regulamentações
que visam a normalidade puramente formal do processo eleitoral. O
Poder Legislativo e, de maneira tão engenhosa quanto for possível, o
Poder Executivo resguardam seus interesses e objetivos que
convenham ao governo e aos que mandam. A correção judiciária ou
emerge tardiamente ou perde eficácia, por causa de vários tipos de
obstáculos.
A consequência direta das anomalias desse complexo institucional
como um todo corporifica-se na deterioração do processo eleitoral.
Ele se "politiza" de modo negativo. Acaba infestado, conforme a frase
objetiva e cínica de Getúlio Vargas: "A lei, ora a lei..."
Essa situação produz efeitos que solapam a democracia. Embora
esteja aqui seu ponto de partida, a soberania popular, o sufrágio
universal e o voto direto e secreto não ultrapassam a farsa, quando e
enquanto o político interfere sobre o eleitoral com impacto negativo
incontrolável.
As eleições submetem-se a uma técnica social, que exige um mínimo
de racionalização na cabeça, nas escolhas e nos comportamentos do
eleitor. Em suma, atêm-se à manipulação dos partidos políticos. O
elemento político é inevitavelmente deformado, como sabemos por
experiência crônica.
O cruzamento do processo eleitoral e do processo político, precisa
submeter-se a uma interação transparente entre meios e fins. Ao
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nascer deturpada, a votação serve à fisiologia, ao clientelismo e à


exacerbação de interferências plutocráticas. Quaisquer que sejam as
aparências de legitimidade e de modernidade da técnica social, a
"democracia" concretiza-se segundo algum dos modelos de
oligarquia.

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