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A imagem de referência é um frame do filme Dialogue 09, uma ópera coreográfica da companhia alemã
Sasha Waltz and Gests. Realizou-se no Neue Museum em Berlim, prédio construído entre 1841 e 1859,
bombardeado na Segunda Guerra e recuperado em 1997. O gênero de ópera coreográfica foi desenvolvido
por Sasha Waltz e integra de um modo singular a arquitetura, a música e a dança-teatro. Ver mais em:
<http://www.sashawaltz.de/>.
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mulheres, nesta ordem, lado a lado em uma distância quase regular entre eles. Vestem
roupas simples, lisas e soltas, quatro pretas e uma branca, e estão absolutamente sem
chão.
Apesar da breve descrição, importa pensar no que essa situação pode produzir
sobre diálogos e contrastes entre corpos e arquitetura, clássico e contemporâneo, antigo
e atual, solidez e instabilidade, lentidão e rapidez, antigo e novo, instituição e corpo
vivo. E que, por analogia, remetem aos contrastes que encontramos entre artista e
professor, arte e vida, arte e escola, arte e docência, teoria e prática docente.
O que será apresentado a seguir são considerações sobre a prática pedagógica no
estágio curricular de estudantes de Licenciatura em Artes Visuais de duas instituições de
ensino superior do Rio Grande do Sul. Uma na capital do estado (UFRGS) e outra em
uma cidade do interior (UERGS). Uma instituição tradicional e consolidada e outra
instituição que ainda procura se afirmar no cenário acadêmico do estado. Ambas
públicas. As inquietações geradas pela realização e orientação de estágios e a
necessidade de dar visibilidade ao que se produzia nesse momento tão importante de um
curso de Licenciatura acabaram gerando um evento que se realiza há três anos, sendo
que nos últimos dois anos, envolvendo as duas instituições2. Trata-se do “Artestágios –
Fórum de Projetos em Ensino de Artes Visuais” que tem como principal objetivo expor
o desenvolvimento de projetos pedagógicos no estágio docente de Artes Visuais na
escola básica, em turmas do Ensino Fundamental e Médio. A cada ano vemos alunos da
licenciatura apresentando publicamente seus projetos de estágio, muitas vezes
orgulhosos de suas conquistas e criações com os alunos. Na tarefa de “artestagiar”,
emergem os docentes e artistas que estes estudantes estão sendo, o que nos dá o mote
para pensar na relação entre arte, criação e docência a partir dos estágios (ZORDAN,
LOPONTE, 2012).
Os estágios docentes são momentos importantes da vida acadêmica dos
estudantes de licenciatura por vários motivos. Obrigatórios por lei, visam “ao
aprendizado de competências próprias da atividade profissional e à contextualização
curricular, objetivando o desenvolvimento do educando para a vida cidadã e para o
trabalho.” (BRASIL, 2008). Orientados e supervisionados, supõem “uma relação
pedagógica entre alguém que já é um profissional reconhecido em um ambiente
institucional de trabalho [o professor universitário] e um aluno estagiário.” (BRASIL,
2
O evento teve três edições, de 2011 a 2013.
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Na UERGS, os alunos realizam três estágios. O primeiro deles, no quinto semestre, é interdisciplinar em
que atuam juntos alunos das licenciaturas de artes visuais, dança, música e teatro em espaços não formais
de educação. Os demais estágios, no sexto e sétimo semestres acadêmicos, atendem à educação básica.
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Diferenciaremos pela escrita a disciplina escolar, Arte, da área em geral, arte.
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em espaços assim que os estagiários atuam, uma cena escolar carente de movimento,
levando-nos a buscar na ideia de criação o impulso para um deslocamento vital que, por
meio de artestágios, ou de estágios contaminados de arte, seja possível contribuir
àqueles contextos.
A base dos “grandes relatos emancipatórios” demonstra que a educação ainda é
fortemente calcada nas ideias de unidade, tradição e racionalidade (HERMANN, 2005).
Mesmo que alguns ares de renovação possam sugerir um ar de mudança na aparência
da escola, a fragmentação do conhecimento em disciplinas, assim como a administração
rígida do tempo e dos espaços, calcadas na lógica do controle, continuam sendo o seu
princípio. É comum, por isso, atribuir-se o sentido da educação ao desenvolvimento das
habilidades cognitivas e racionais dos alunos: educar seria torná-los aptos a cumprirem,
pelo conhecimento da tradição racional, as determinações existentes a priori.
Esse sentido para a educação aparta do aprendizado os vínculos com o mundo
da experiência, o mundo sensível. Para Hermann (2005), é na dimensão estética (e não
na dimensão racional) da educação o lugar de onde podem emergir a pluralidade e o
não convencionado para substituir a padronização e a repetição dos clichês
pedagógicos, pensamentos e práticas já sem sentido até para os professores, mas que a
escola mantém ali, aninhados. Uma finalidade da estética para a educação permitiria,
pela abertura resultante da instalação da arte no viver, a geração de comportamentos
mais adequados ao mundo em uma escola menos preservada e mais viva. Sendo a
realidade construída, arte e realidade ligam-se em parentesco através da ideia de
criação: o inconstante e estimulante mundo da arte é um ponto de partida consistente
para que se atue com criação na própria vida e na criação de vida na escola.
O que se entende por estética diferencia-se da disciplina que determinou o belo
na arte e também se distingue da modernidade estética iniciada no século XVIII, esta
organizada em torno dos objetos artísticos paradigmáticos do quadro pintado nas artes
visuais e do livro na literatura (LADDAGA, 2012). As aberturas implementadas pelo
campo artístico, especialmente na arte produzida a partir da década de 1970, ampliaram
a dimensão estética da arte para fora da obra de arte. Na concepção de Gablik (2005), a
arte não pode estar materializada num objeto pois “centra-se na criatividade social”.
Contradizendo o mito do gênio isolado, separado dos outros e do mundo, ou de uma arte
pela arte, a autora considera o trabalho dos artistas contemporâneos como o resultado de
uma estrutura dialógica, de um processo colaborativo e interdependente e não apenas
produto de um indivíduo único como na arte moderna.
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Um dos casos analisados por Laddaga é o Park Fiction. Na cidade alemã de Hamburgo, em 1994, uma
aliança entre artistas, arquitetos e moradores do bairro St. Pauli opôs-se à prefeitura quanto à venda de
uma área próxima ao porto da cidade que passaria a ser explorada pela iniciativa privada. A “produção
colaborativa de desejos”, tanto definição quanto objetivo do Park Fiction, operou através de estratégias de
ativismo que abarcaram, além de protestos em espaço público, uma atitude de ação ficcional de como se o
parque desejado já existisse. Uma série de eventos públicos no local, incluindo palestras, exposições,
projeções ao ar livre e concertos foram organizados fazendo com que o uso contínuo do “parque” por
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processo de formação de professores, pode ser o fundo da tomada de atitude frente aos
imensos contrastes, abismos até, existentes na educação (retomem-se os contrastes da
imagem proposta no início do texto). Uma noção de arte como processo coletivo e
produtor de desejos, questionamentos, invenções, poderia diminuir as fraturas
existentes.
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bons encontros que continuam a fazer acreditar nas poéticas da formação, bem mais do
que nas agruras, nas lamentações, nos ressentimentos em relação ao que nos falta. Faz
parte desse processo a aposta em uma docência artista8 (LOPONTE, 2005, 2013). É a
partir dessa atitude estética em relação à docência que temos encaminhado estágios da
Licenciatura em Artes Visuais da UFRGS. Nesta universidade, os estágios acontecem
sob supervisão de professores da Faculdade de Educação, com formação específica na
área de artes. Os estudantes chegam ao último ano do curso, em geral, pouco motivados
para o exercício da docência, quer seja pelas poucas perspectivas do mercado
profissional, quer seja pelo pouco status que representa ser docente diante das
possibilidades de ser artista (embora esse seja um mercado muito mais difícil).
A realidade encontrada nas escolas públicas da capital do Rio Grande do Sul não
é muito animadora: professores sem formação, e sem disposição para atualização;
professores de outras áreas ocupando um lugar já desvalorizado; infraestrutura precária;
relação desgastada entre professores e alunos; escolas engessadas a modelos
curriculares e de aulas que não servem mais a essa geração de alunos inquieta e
dispersa, apenas para citar alguns dos aspectos que observamos a cada ambiente escolar
novo que conhecemos. Diante desse cenário, o nosso trabalho é, de algum modo,
instaurar desejos de docência na formação inicial, que capturem e engajem jovens
iniciantes para reforçar a frente de batalha pela valorização da arte na educação.
Dentre as experiências que traduzem um pouco a realização do estágio em artes
visuais como um espaço de criação, o que significa também a tensão entre o que se quer
fazer e o que se consegue ou ainda aprender a lidar com as inevitáveis frustrações, e
também com as “epifanias” desse processo, destaca-se aqui a experiência de dois
estagiários: Raquel e Leonardo.
Raquel escolheu fazer seu estágio na própria comunidade de periferia em que
reside e com a qual tem profundo envolvimento. Durante o período de observação,
percebeu o quanto os alunos de ensino fundamental desvalorizavam a si mesmos e ao
local onde moravam, marcado pela violência e tráfico de drogas. Chamavam-se de
“maloqueiros” e “marginais”. A escola, de forma consciente ou não, reforçava muito
desse pensamento, na sua própria organização espacial. Apesar do amplo espaço livre e
verde disponível, os alunos tinham o acesso limitado por grades que os confinavam em
8
“A ideia de uma docência artista persegue um modo de ser docente, de uma ética docente contaminada
com uma atitude estética. [...] Adjetivar a docência de artista e não artística indica mais uma atitude, uma
postura, um modo de existência impregnado pelo pensamento que pode advir da arte [...]” (LOPONTE,
2013, p. 22).
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A 9ª Bienal do Mercosul teve o título de E se o clima for favorável (em português), Si el tempo lo
permite (em espanhol) e Weather Permmiting (em inglês). Fonte: http://9bienalmercosul.art.br/pt/sobre/
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O relato dessas situações é oriundo das anotações do diário de campo da supervisora de estágio, além
do relatório da própria aluna.
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Uma das obras apresentadas pela estagiária aos alunos foi um fragmento da obra
“Vous ête ici” (Você está aqui) da artista Elida Tessler 11. Diante dos comentários dos
alunos que diziam o quanto a artista “perdeu tempo pra caramba” ao buscar a palavra
“tempo” em todo o livro, vemos materializando-se a nossa frente “a busca pelo tempo
perdido”, esse tempo de infância e juventude que se esvai nos corredores escolares e nas
aulas sem sentido de uma escola que teima em fazer de conta que está tudo bem,
acreditando que são eles, os alunos, aqueles que não se encaixam, e não o inverso
(escola e professores). Ainda assim, em meio a tanta perda de tempo, vemos olhares,
ouvimos falas, percebemos atitudes que reagem positivamente ao trabalho de uma
estagiária que de modo tão esforçado e preocupado (o que é algo surpreendente para
eles, muitas vezes12), quis aproximar arte e a comunidade em que vivem, estabelecendo
relações entre arte, política e vida.
Mais do que os resultados práticos da inserção de uma estudante de artes visuais
em um estágio de curta duração em uma escola pública, nos interessa aqui a postura e
atitude de engajamento da aluna em oferecer aos alunos através das aulas de arte,
ferramentas de interpretação e pensamento sobre o mundo em que vivem. Nesse
processo de criação que foi manejar expectativas da estagiária e dos próprios alunos,
muitas conexões importantes aconteceram e, ainda que os impactos possam ser mínimos
naqueles alunos, são indiscutíveis na formação da futura professora.
O estudante Leonardo, por sua vez, encarnou em sua prática pedagógica, talvez
sem que ele mesmo percebesse em um primeiro momento, a figura do artista-professor.
Com ampla experiência na área artística, se viu desafiado a pensar e repensar
planejamentos, criar estratégias para atrair seus jovens alunos para aula, instigar atos de
criação nas aulas de arte de uma escola pública. Viu-se como um artista-etc que aponta,
segundo Basbaum (2013), para “horizontes de variação” da prática artística, abarcando
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No site da artista ela define a referida obra de 2010: “Disposta a ler o romance “A la recherche du
temps perdu” de Marcel Proust durante uma estadia por período de um ano em Paris, a artista
confeccionou um carimbo com a inscrição “Vous êtes ici” (Você está aqui), utilizando o mesmo símbolo
do sistema de transporte urbano parisiense RATP, usado nos mapas da cidade. Durante a leitura, foram
carimbadas todas as palavras “temps” presentes no livro. Desta forma, conceitualmente, não há mais
tempo perdido”. Disponível em: http://www.elidatessler.com/pag_nova_obras.htm Acesso em 13 de abril
de 2014.
12
“Sora, você foi a única estagiária que durou na nossa turma!” (trecho do texto final da disciplina
Estágio II-Artes Visuais). O estágio e a discussão sobre a relação entre arte, educação e comunidade foi
objeto de reflexão do Trabalho de Conclusão de Curso da aluna (ORIO, 2013). Na UFRGS, os TCCs dos
alunos da Licenciatura são realizados paralelamente ao estágio, com temática ligada a arte e educação,
preferencialmente sobre as experiências do próprio estágio.
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criação que extrapole o campo artístico tradicional. Prezar pelo pensamento artístico
conectado à vida em vez da noção de arte e artista que se afastam dela talvez possam
desencadear impactos significativos para uma docência que se quer artista.
Referências
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