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Didática e Prática de Ensino na relação com a Escola

ESTÁGIOS EM ARTES VISUAIS: ARTE, DOCÊNCIA E PRÁTICAS DE


CRIAÇÃO

Carmen Lúcia Capra (UERGS/UFRGS)


Luciana Gruppelli Loponte (UFRGS)
Resumo
O texto traz considerações sobre a prática pedagógica no estágio curricular de
estudantes de Licenciatura em Artes Visuais de duas instituições de ensino superior do
Rio Grande do Sul. Parte de inquietações produzidas no processo de orientação e
supervisão dos estágios e da apresentação dos estagiários no “Artestágios” – Fórum de
Projetos em Ensino de Artes Visuais, evento local que visa expor o desenvolvimento de
projetos pedagógicos no estágio docente de Artes Visuais na escola básica. Inicialmente
situa a importância do estágio na formação docente para a seguir desenvolver o tema em
duas partes, conforme cada instituição. Na primeira parte, dialoga-se com a dimensão
estética da educação e com as possíveis conexões entre arte e vida no estágio e na
formação de professores de artes visuais. Considera-se a abertura do conceito de arte, de
uma prática individual para uma prática coletiva (LADDAGA, 2012), que pode embasar
uma tomada de atitude frente aos distanciamentos existentes, por vezes reafirmados,
entre arte, docência e educação. No segundo caso, parte-se do estágio curricular como
campo de exercício de uma docência artista para seguir por dois casos exemplares: o
primeiro, de uma aproximação entre arte e comunidade que visou estabelecer relações
entre arte, política e vida, e o segundo tratando da dedicação criadora empenhada nos
imbricamentos entre o artista e o professor no estágio. Assim, os estágios se mostram
como campos propícios para a fusão entre atitude criadora, prática artística e prática
pedagógica que, se acontecer de forma constante durante toda formação inicial docente,
poderá desencadear impactos significativos para uma docência que se quer artista.
PALAVRAS-CHAVE: formação inicial docente; artes visuais; criação.

Abertura

Iniciamos com o exercício de pensar a imagem 1 de uma parede de um museu


antigo, da qual não se vê nem o começo nem o fim. Muito alta, divide-se em quatro
partes horizontais sendo que na parte superior há um friso clássico, de entalhe em alto-
relevo, representando os movimentos conturbados da jornada de um grupo. Abaixo
disso, duas grandes partes vazias têm o reboco quase totalmente caído, deixando
aparente a construção de tijolos e blocos de pedra. Na quarta parte da parede, a mais
inferior da imagem, há um estreito degrau marcando o início de uma parte nova, branca
e lisa. No degrau, segurando-se com as mãos, estão suspensos dois homens e três

1
A imagem de referência é um frame do filme Dialogue 09, uma ópera coreográfica da companhia alemã
Sasha Waltz and Gests. Realizou-se no Neue Museum em Berlim, prédio construído entre 1841 e 1859,
bombardeado na Segunda Guerra e recuperado em 1997. O gênero de ópera coreográfica foi desenvolvido
por Sasha Waltz e integra de um modo singular a arquitetura, a música e a dança-teatro. Ver mais em:
<http://www.sashawaltz.de/>.

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mulheres, nesta ordem, lado a lado em uma distância quase regular entre eles. Vestem
roupas simples, lisas e soltas, quatro pretas e uma branca, e estão absolutamente sem
chão.
Apesar da breve descrição, importa pensar no que essa situação pode produzir
sobre diálogos e contrastes entre corpos e arquitetura, clássico e contemporâneo, antigo
e atual, solidez e instabilidade, lentidão e rapidez, antigo e novo, instituição e corpo
vivo. E que, por analogia, remetem aos contrastes que encontramos entre artista e
professor, arte e vida, arte e escola, arte e docência, teoria e prática docente.
O que será apresentado a seguir são considerações sobre a prática pedagógica no
estágio curricular de estudantes de Licenciatura em Artes Visuais de duas instituições de
ensino superior do Rio Grande do Sul. Uma na capital do estado (UFRGS) e outra em
uma cidade do interior (UERGS). Uma instituição tradicional e consolidada e outra
instituição que ainda procura se afirmar no cenário acadêmico do estado. Ambas
públicas. As inquietações geradas pela realização e orientação de estágios e a
necessidade de dar visibilidade ao que se produzia nesse momento tão importante de um
curso de Licenciatura acabaram gerando um evento que se realiza há três anos, sendo
que nos últimos dois anos, envolvendo as duas instituições2. Trata-se do “Artestágios –
Fórum de Projetos em Ensino de Artes Visuais” que tem como principal objetivo expor
o desenvolvimento de projetos pedagógicos no estágio docente de Artes Visuais na
escola básica, em turmas do Ensino Fundamental e Médio. A cada ano vemos alunos da
licenciatura apresentando publicamente seus projetos de estágio, muitas vezes
orgulhosos de suas conquistas e criações com os alunos. Na tarefa de “artestagiar”,
emergem os docentes e artistas que estes estudantes estão sendo, o que nos dá o mote
para pensar na relação entre arte, criação e docência a partir dos estágios (ZORDAN,
LOPONTE, 2012).
Os estágios docentes são momentos importantes da vida acadêmica dos
estudantes de licenciatura por vários motivos. Obrigatórios por lei, visam “ao
aprendizado de competências próprias da atividade profissional e à contextualização
curricular, objetivando o desenvolvimento do educando para a vida cidadã e para o
trabalho.” (BRASIL, 2008). Orientados e supervisionados, supõem “uma relação
pedagógica entre alguém que já é um profissional reconhecido em um ambiente
institucional de trabalho [o professor universitário] e um aluno estagiário.” (BRASIL,

2
O evento teve três edições, de 2011 a 2013.

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2002). Planejados, devem promover “a possibilidade de os estagiários desenvolverem


postura e habilidades de pesquisador a partir das situações de estágio, elaborando
projetos que lhes permitam ao mesmo tempo compreender e problematizar as situações
que observam.” (PIMENTA; LIMA, 2006).
O estágio solicita aos alunos-professores que articulem, agilmente,
conhecimentos sobre arte e ensino de arte e com a mesma agilidade integrem sua prática
docente à turma e ao ambiente escolar. Um artestágio, entretanto, além do aspecto
técnico do ensino de artes visuais, abre aspectos outros que aprofundam as relações
entre arte e docência. Para isso, nas partes que seguem são trazidas algumas
contribuições teóricas e os contextos de estágio em artes visuais das duas instituições.

Diálogo 1: conexões entre arte e vida no estágio

Os estágios da licenciatura em artes visuais da UERGS 3 realizam-se em escolas


públicas municipais e estaduais da cidade sede, Montenegro, e da região metropolitana
da capital do estado. Das observações que os estagiários trazem sobre as escolas em
2013, sabe-se que o ensino de artes visuais constitui-se de um conjunto de propostas
que, apesar de abordarem algo sobre arte, estão muito longe de serem significativas para
alguém. Algumas escolas destinam uma sala específica para Arte 4, mas não vale a pena
usá-la porque o tempo da aula é curto, a sala é longe, não há funcionários para sua
limpeza ou tornaram-se depósitos. A preocupação em conservar a estrutura da escola
faz com que carteiras limpas e paredes bem pintadas pareçam estar sem uso. Nunca há
materiais artísticos nas escolas, em uma delas existe a “folha da escola”, sulfite branco
A4 vendido por R$ 0,20 cada. Em outra, atividades com pintura são proibidas pois
houve “experiências ruins” no passado. Conforme a turma, as professoras não
recomendam saídas a campo – como a volta no quarteirão ou a ida à praça da cidade –,
pois não sabem o que os alunos podem fazer ao estarem na rua.
Turmas desmotivadas para o estudo, incertezas sobre o que e como ensinar
frente ao apelo brutal das tecnologias de comunicação, conservação de espaços e
tempos que não mais atendem às necessidades do presente, entre outros fatores, são
motivos que contribuem à fragilidade do ensino de arte atual e também da escola. São

3
Na UERGS, os alunos realizam três estágios. O primeiro deles, no quinto semestre, é interdisciplinar em
que atuam juntos alunos das licenciaturas de artes visuais, dança, música e teatro em espaços não formais
de educação. Os demais estágios, no sexto e sétimo semestres acadêmicos, atendem à educação básica.
4
Diferenciaremos pela escrita a disciplina escolar, Arte, da área em geral, arte.

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em espaços assim que os estagiários atuam, uma cena escolar carente de movimento,
levando-nos a buscar na ideia de criação o impulso para um deslocamento vital que, por
meio de artestágios, ou de estágios contaminados de arte, seja possível contribuir
àqueles contextos.
A base dos “grandes relatos emancipatórios” demonstra que a educação ainda é
fortemente calcada nas ideias de unidade, tradição e racionalidade (HERMANN, 2005).
Mesmo que alguns ares de renovação possam sugerir um ar de mudança na aparência
da escola, a fragmentação do conhecimento em disciplinas, assim como a administração
rígida do tempo e dos espaços, calcadas na lógica do controle, continuam sendo o seu
princípio. É comum, por isso, atribuir-se o sentido da educação ao desenvolvimento das
habilidades cognitivas e racionais dos alunos: educar seria torná-los aptos a cumprirem,
pelo conhecimento da tradição racional, as determinações existentes a priori.
Esse sentido para a educação aparta do aprendizado os vínculos com o mundo
da experiência, o mundo sensível. Para Hermann (2005), é na dimensão estética (e não
na dimensão racional) da educação o lugar de onde podem emergir a pluralidade e o
não convencionado para substituir a padronização e a repetição dos clichês
pedagógicos, pensamentos e práticas já sem sentido até para os professores, mas que a
escola mantém ali, aninhados. Uma finalidade da estética para a educação permitiria,
pela abertura resultante da instalação da arte no viver, a geração de comportamentos
mais adequados ao mundo em uma escola menos preservada e mais viva. Sendo a
realidade construída, arte e realidade ligam-se em parentesco através da ideia de
criação: o inconstante e estimulante mundo da arte é um ponto de partida consistente
para que se atue com criação na própria vida e na criação de vida na escola.
O que se entende por estética diferencia-se da disciplina que determinou o belo
na arte e também se distingue da modernidade estética iniciada no século XVIII, esta
organizada em torno dos objetos artísticos paradigmáticos do quadro pintado nas artes
visuais e do livro na literatura (LADDAGA, 2012). As aberturas implementadas pelo
campo artístico, especialmente na arte produzida a partir da década de 1970, ampliaram
a dimensão estética da arte para fora da obra de arte. Na concepção de Gablik (2005), a
arte não pode estar materializada num objeto pois “centra-se na criatividade social”.
Contradizendo o mito do gênio isolado, separado dos outros e do mundo, ou de uma arte
pela arte, a autora considera o trabalho dos artistas contemporâneos como o resultado de
uma estrutura dialógica, de um processo colaborativo e interdependente e não apenas
produto de um indivíduo único como na arte moderna.

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Quando a arte trata de si mesma, quando adota uma ideologia de neutralidade


moral e política, ela coloca o artista na condição de uma existência marginal à
sociedade, propagando a versão mercadológica do mito romântico de um artista que
produz “objetos prestigiosos que existem no ambiente de museus e galerias,
desconectados dos fatos da vida.” (GABLIK, 1998). Olhar a arte em termos de
propósito social em vez de estilo visual é uma postura que coloca arte e estética na vida
e não em uma experiência de afastamento individual do mundo.
Kirshenblatt-Gimblett sugere uma abertura radical na ideia de arte perguntando
se estaríamos preparados para romper as prisões existentes no sistema legitimador da
arte para reconhecer toda a arte feita por fora do mundo artístico. “Estamos prontos para
ver a plateia ou o público, ou a comunidade, como artistas exercendo o seu próprio
direito?” (2001, p. 632), interroga. Seu pensamento é o de que a arte nunca se afastou da
vida cotidiana porque acredita que jamais a tenha abandonado. Em seus estudos a
professora e artista usa a performance como “uma ideia organizadora para pensar sobre
praticamente qualquer coisa. Isto quer dizer que posso pensar sobre museus, vida
cotidiana, ruas, cidades, arquitetura, espaço, feiras mundiais, comida... A performance
como uma ideia organizadora é um conceito muito, muito poderoso."
(KIRSHENBLATT-GIMBLETT, 2001).
Há artistas que, muitas vezes agrupados em comunidades, vem realizando
trabalhos artísticos que rompem com a lógica da contemplação, do recolhimento
individual e da intersubjetividade no contato com a obra de arte, instaurando relações de
improvisação e de conversação com o cotidiano e com o entorno. Esta modificação na
produção artística, que para Laddaga (2012) é profunda, sinaliza o esgotamento do
paradigma moderno. Sua pesquisa analisa um número crescente de artistas “menos
preocupados em construir obras do que em participar da formação de novas ecologias
culturais” (2012, p. 11). Há aproximadamente três décadas começaram a surgir projetos
multidisciplinares voltados para a exploração das insuficiências e potencialidades da
vida comum. Colaborativamente unindo artistas e não-artistas, tais grupos lidam com a
associação de diferentes extratos sociais de forma construtivista e coletivizante 5. Suas

5
Um dos casos analisados por Laddaga é o Park Fiction. Na cidade alemã de Hamburgo, em 1994, uma
aliança entre artistas, arquitetos e moradores do bairro St. Pauli opôs-se à prefeitura quanto à venda de
uma área próxima ao porto da cidade que passaria a ser explorada pela iniciativa privada. A “produção
colaborativa de desejos”, tanto definição quanto objetivo do Park Fiction, operou através de estratégias de
ativismo que abarcaram, além de protestos em espaço público, uma atitude de ação ficcional de como se o
parque desejado já existisse. Uma série de eventos públicos no local, incluindo palestras, exposições,
projeções ao ar livre e concertos foram organizados fazendo com que o uso contínuo do “parque” por

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ações de trabalho são francamente experimentais e improváveis do ponto de vista dos


saberes disciplinares conhecidos – entre eles a arte –, produzindo investigações
importantes sobre a atualidade.
Projetos assim pretendem explorar o estado dos saberes e dos desejos das
pessoas “como se certos desejos antes não formulados houvessem encontrado uma
linguagem adequada à sua simplicidade ou à sua extravagância.” (LADDAGA, 2012, p.
16). Diferenciam-se de atividades de educação pela arte em primeiro lugar porque estas
tendem a ser individualizantes enquanto aqueles são coletivizantes, e em segundo,
porque não pretendem conduzir uma coletividade à expressão, a própria coletividade
não existe em si. Assim, comunidades experimentais geram modos ficcionais de vida
social que têm como ponto de partida ações voluntárias, reorganizadas de maneiras que
não são previsíveis através das quais “se pretende averiguar coisas mais gerais com
respeito às condições da vida social no presente.” (LADDAGA, 2012, p. 18, grifo
nosso).
As profundas conexões em arte e vida desenvolvidas trazem de volta aos
estágios curriculares da INSTITUIÇÃO, primeiras atuações de professores-artistas6 que
desejam ampliar o repertório artístico dos alunos, explorar leituras e características das
linguagens artísticas, relacionar mundos com o mundo da arte, gerar encontros entre arte
e singularidades individuais na promoção de uma autonomia artística de criação7.
Efetivamente fazem arte na escola de forma coerente com o cenário do ensino
contemporâneo, mas por vezes os projetos de ensino reforçam a ideia de uma arte
desvinculada da vida. É como se, mesmo havendo artistas lecionando e desenvolvendo
práticas artísticas na aula de Arte, a arte permanecesse em uma neutralidade distante e
difícil de alcançar. “Relacionar mundos com o mundo da arte” e “gerar encontros entre
arte e singularidades individuais na promoção de uma autonomia artística de criação”,
podem atuar na manutenção de uma arte distinta, individual e afastada do mundo vivido
e, com isso, fazer permanecer a rigidez e a estabilidade controlada de uma educação
sem arte. A concepção de arte presente no processo de criação do estágio e, antes, no

moradores e visitantes criasse uma "realidade social". Mais detalhes em


<https://www.nadir.org/nadir/initiativ/parkfiction/>. Acesso em 12 abr. 2014.
6
Um professor-artista seria, conforme o Plano do Curso da Licenciatura em Artes Visuais em questão,
um profissional que transita entre o fazer artístico e pedagógico a partir de uma formação ao mesmo
tempo específica e integrada com os elementos da pedagogia geral e as diferentes linguagens da arte.
Observa-se que o termo professor-artista tem sido empregado, com diferentes enfoques, em uma
variedade de produções acadêmicas da área da educação, em sua maioria em pedagogia e arte, mas
também em áreas como ciências e engenharia.
7
Conforme relatórios de estágio de 2013.

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processo de formação de professores, pode ser o fundo da tomada de atitude frente aos
imensos contrastes, abismos até, existentes na educação (retomem-se os contrastes da
imagem proposta no início do texto). Uma noção de arte como processo coletivo e
produtor de desejos, questionamentos, invenções, poderia diminuir as fraturas
existentes.

Diálogo 2: estágios em artes visuais como espaços de criação

Na experiência de formação de professores de artes visuais enfrentamos


problemas comuns a várias outras áreas disciplinares, mas existem especificidades do
saber com o qual trabalhamos que podem nos instigar a pensar o quanto seríamos
capazes de contaminar esta formação com a peculiaridade poética e estética que as artes
nos oferecem. Sem idealismos, no entanto, é preciso levar em conta que a “matéria-
bruta” com a qual precisamos trabalhar cada vez mais escapa dos nossos dedos:
estudantes de licenciatura que não sabem se querem ser professores, alunos da educação
básica que não se sentem confortáveis no papel de alunos.
O desafio de instigar processos de formação docente no contexto em que
vivemos é cada vez maior. Se há uma carência enorme de professores de arte com
formação atuando nas escolas, também há muitos professores com formação em um
curso de licenciatura que continuam reproduzindo práticas pedagógicas discutíveis.
Convivemos com estagiários que iniciam seu estágio afirmando enfaticamente que não
querem ser professores, e depois os ouvimos dizendo: “estou adorando ser profe”, “ser
professora é incrível”. Turmas imensas de alunos desanimam os professores iniciantes,
mas há também a beleza das conquistas, de encontrar o rumo do planejamento em uma
turma, de assumir o erro como um passo importante do processo.
Um dos grandes desafios é encontrar novos meios de manter docentes atentos e
alertas para o mundo das artes, capazes de compreender os seus compromissos políticos
no campo da educação. A magia da docência talvez esteja em encontrar um ponto de
contato com esse outro que está como aluno a nossa frente, o fazendo descobrir um
potencial que nem nós e nem eles sabiam que existia. Como professores e formadores,
vamos tateando, escrutinando, provocando esse outro-aluno até descobrirmos algo que
pulsa, algo que vibra e seja capaz de encantar.
Nos últimos anos, boas experiências (em meio a frustrações, replanejamentos e
retomadas) continuam impulsionando nossas tarefas de formação. Nos alimentamos dos

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bons encontros que continuam a fazer acreditar nas poéticas da formação, bem mais do
que nas agruras, nas lamentações, nos ressentimentos em relação ao que nos falta. Faz
parte desse processo a aposta em uma docência artista8 (LOPONTE, 2005, 2013). É a
partir dessa atitude estética em relação à docência que temos encaminhado estágios da
Licenciatura em Artes Visuais da UFRGS. Nesta universidade, os estágios acontecem
sob supervisão de professores da Faculdade de Educação, com formação específica na
área de artes. Os estudantes chegam ao último ano do curso, em geral, pouco motivados
para o exercício da docência, quer seja pelas poucas perspectivas do mercado
profissional, quer seja pelo pouco status que representa ser docente diante das
possibilidades de ser artista (embora esse seja um mercado muito mais difícil).
A realidade encontrada nas escolas públicas da capital do Rio Grande do Sul não
é muito animadora: professores sem formação, e sem disposição para atualização;
professores de outras áreas ocupando um lugar já desvalorizado; infraestrutura precária;
relação desgastada entre professores e alunos; escolas engessadas a modelos
curriculares e de aulas que não servem mais a essa geração de alunos inquieta e
dispersa, apenas para citar alguns dos aspectos que observamos a cada ambiente escolar
novo que conhecemos. Diante desse cenário, o nosso trabalho é, de algum modo,
instaurar desejos de docência na formação inicial, que capturem e engajem jovens
iniciantes para reforçar a frente de batalha pela valorização da arte na educação.
Dentre as experiências que traduzem um pouco a realização do estágio em artes
visuais como um espaço de criação, o que significa também a tensão entre o que se quer
fazer e o que se consegue ou ainda aprender a lidar com as inevitáveis frustrações, e
também com as “epifanias” desse processo, destaca-se aqui a experiência de dois
estagiários: Raquel e Leonardo.
Raquel escolheu fazer seu estágio na própria comunidade de periferia em que
reside e com a qual tem profundo envolvimento. Durante o período de observação,
percebeu o quanto os alunos de ensino fundamental desvalorizavam a si mesmos e ao
local onde moravam, marcado pela violência e tráfico de drogas. Chamavam-se de
“maloqueiros” e “marginais”. A escola, de forma consciente ou não, reforçava muito
desse pensamento, na sua própria organização espacial. Apesar do amplo espaço livre e
verde disponível, os alunos tinham o acesso limitado por grades que os confinavam em

8
“A ideia de uma docência artista persegue um modo de ser docente, de uma ética docente contaminada
com uma atitude estética. [...] Adjetivar a docência de artista e não artística indica mais uma atitude, uma
postura, um modo de existência impregnado pelo pensamento que pode advir da arte [...]” (LOPONTE,
2013, p. 22).

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um pequeno espaço de convivência, por medo do tráfico de drogas nos limites da


escola. Do cenário da escola, faz parte a recorrente falta de professores e alunos de
mochilas nas costas prontos para irem embora, esperando os portões se abrirem em
qualquer horário. Nesse contexto difícil é que as aulas de artes visuais da Raquel
acontecem. Muita dispersão, contrariedade e má vontade mas, em alguns raros
momentos, vemos alunos entregarem-se às atividades. Um dos motes para uma turma
de ensino médio foi o lema da 9ª Bienal do Mercosul: “E se o clima for favorável...9”.
Para os alunos foi lançada a tarefa de pensar em “possibilidades possíveis” e
“possibilidades impossíveis”. Aos poucos, de forma relutante, eles acabam se
envolvendo (em meio ao caos conhecido de quem lida com turmas de jovens). Um
exemplo da professora causa impacto na turma: “E se não existisse o Facebook?”. Após
a surpresa, quase como que duvidando do pensamento sobre algo tão “impossível”, eles
começam a pensar em mil “impossibilidades” até ao ponto de uma aluna dizer: “não
consigo parar de escrever”10.
Em outra turma, uma oitava série, a relação com a comunidade tenta ser
estabelecida. Em meio às tentativas de comunicação da estagiária, alunos dormem,
lidam com seus onipresentes fones de ouvido, brigam entre si, xingam-se, pedem para
sair mais cedo. Após algumas explicações, os alunos recebem pequenos textos que
tratam da formação da comunidade em que vivem. A leitura é difícil, nem todos
conseguem interpretar o que está escrito. A tarefa era fazer uma composição visual a
partir do texto, com imagens e palavras. Nem todos entendem, nem todos fazem. No
entanto, ao retomar o trabalho de todos com a leitura e encadeamento da história, um
surpreendente silêncio se faz na sala de aula tão acostumada a balbúrdia:

A sequência de aulas foi relatar a formação da comunidade. Cada aluno ganhou


um trecho da história do bairro e criou uma composição. Houve dificuldade em
entender o que era composição eu não queria dar um exemplo, pois, já havia
feito isso anteriormente e os resultados eram cópias do exemplo demonstrado.
Passei de mesa em mesa e fomos conversando, o trabalho desenrolou. Para
contar a história, fizemos um círculo, foi um momento marcante. Era difícil ter
silêncio. Quando estávamos no fim da história a turma silenciou. Ao final se
darem conta que os conceitos de maloqueiro, marginal e vileiro, usados no dia-
a-dia, faziam parte de uma história, essa mesma história de pessoas que
habitaram o mesmo bairro que eles habitam agora, pareceu que tudo fazia
sentido. (Texto final para a disciplina Estágio II – Artes Visuais, Raquel, ano?).

9
A 9ª Bienal do Mercosul teve o título de E se o clima for favorável (em português), Si el tempo lo
permite (em espanhol) e Weather Permmiting (em inglês). Fonte: http://9bienalmercosul.art.br/pt/sobre/
10
O relato dessas situações é oriundo das anotações do diário de campo da supervisora de estágio, além
do relatório da própria aluna.

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Uma das obras apresentadas pela estagiária aos alunos foi um fragmento da obra
“Vous ête ici” (Você está aqui) da artista Elida Tessler 11. Diante dos comentários dos
alunos que diziam o quanto a artista “perdeu tempo pra caramba” ao buscar a palavra
“tempo” em todo o livro, vemos materializando-se a nossa frente “a busca pelo tempo
perdido”, esse tempo de infância e juventude que se esvai nos corredores escolares e nas
aulas sem sentido de uma escola que teima em fazer de conta que está tudo bem,
acreditando que são eles, os alunos, aqueles que não se encaixam, e não o inverso
(escola e professores). Ainda assim, em meio a tanta perda de tempo, vemos olhares,
ouvimos falas, percebemos atitudes que reagem positivamente ao trabalho de uma
estagiária que de modo tão esforçado e preocupado (o que é algo surpreendente para
eles, muitas vezes12), quis aproximar arte e a comunidade em que vivem, estabelecendo
relações entre arte, política e vida.
Mais do que os resultados práticos da inserção de uma estudante de artes visuais
em um estágio de curta duração em uma escola pública, nos interessa aqui a postura e
atitude de engajamento da aluna em oferecer aos alunos através das aulas de arte,
ferramentas de interpretação e pensamento sobre o mundo em que vivem. Nesse
processo de criação que foi manejar expectativas da estagiária e dos próprios alunos,
muitas conexões importantes aconteceram e, ainda que os impactos possam ser mínimos
naqueles alunos, são indiscutíveis na formação da futura professora.
O estudante Leonardo, por sua vez, encarnou em sua prática pedagógica, talvez
sem que ele mesmo percebesse em um primeiro momento, a figura do artista-professor.
Com ampla experiência na área artística, se viu desafiado a pensar e repensar
planejamentos, criar estratégias para atrair seus jovens alunos para aula, instigar atos de
criação nas aulas de arte de uma escola pública. Viu-se como um artista-etc que aponta,
segundo Basbaum (2013), para “horizontes de variação” da prática artística, abarcando

11
No site da artista ela define a referida obra de 2010: “Disposta a ler o romance “A la recherche du
temps perdu” de Marcel Proust durante uma estadia por período de um ano em Paris, a artista
confeccionou um carimbo com a inscrição “Vous êtes ici” (Você está aqui), utilizando o mesmo símbolo
do sistema de transporte urbano parisiense RATP, usado nos mapas da cidade. Durante a leitura, foram
carimbadas todas as palavras “temps” presentes no livro. Desta forma, conceitualmente, não há mais
tempo perdido”. Disponível em: http://www.elidatessler.com/pag_nova_obras.htm Acesso em 13 de abril
de 2014.
12
“Sora, você foi a única estagiária que durou na nossa turma!” (trecho do texto final da disciplina
Estágio II-Artes Visuais). O estágio e a discussão sobre a relação entre arte, educação e comunidade foi
objeto de reflexão do Trabalho de Conclusão de Curso da aluna (ORIO, 2013). Na UFRGS, os TCCs dos
alunos da Licenciatura são realizados paralelamente ao estágio, com temática ligada a arte e educação,
preferencialmente sobre as experiências do próprio estágio.

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inclusive a prática docente. Para o artista ou professor-etc encarnado no estagiário, esta


foi uma das tarefas mais complexas que enfrentou: “(...) No entanto, de todas as
atividades que pude experimentar, a sala de aula foi sem dúvida a tarefa mais árdua e
que exigiu uma força quase sobre-humana em se tratando de empenho e dedicação
criadora” (GARBIN, 2013, p. 29).
A prática pedagógica como um ato criador foi vivida de modo intenso pelo
estudante, o que ficou explícito tanto no seu envolvimento, como dos alunos com suas
aulas, lamentando quando o período de estágio se encerrou:

E se para criar um trabalho artístico necessito de estudos, esquemas, esboços, na


sala de aula não foi diferente. Até minhas falas foram ensaiadas. Dezenas de
imagens e livros foram vistos e revisados em busca de farpas e ruídos que
pudessem prejudicar o andamento dos aprendizados que desejara para meus
alunos. Por isso, a sala de aula me exigiu uma espécie de intuição muito
criteriosa que a todo momento indicava destinos incertos. Falo em destino pois
uma aula nunca é uma só, mas uma sequência a ser vivida: o que funcionou
hoje pode não funcionar amanhã, ou precisa de ajustes, ou mudanças de
enunciado, ou novas referências, etc. Por isso uma percepção aguçada sobre
seus rumos em constante mutação é fundamental para enfrentar coisas enormes
e incontroláveis que trabalham ao mesmo tempo contra e a favor do professor.
Precisei ficar atento a todos os detalhes para fazer abrir novos portais
perceptivos, muito além dos cinco sentidos (GARBIN, 2013, p.32).

De modos distintos, os dois estagiários enfrentaram corajosamente os abismos


entre arte e vida, arte e política, arte e docência, afirmando, cada um a seu modo, que
um estágio e, indo além, qualquer prática docente, pode se constituir como uma prática
de criação.

Em tempo: estágios, arte, docência

O desafio da formação docente na atualidade nos instiga a pensar na necessidade


de aumentar a quantidade de professores de Arte presentes nas escolas e que estes se
mantenham lecionando, levando a sério seu trabalho, acreditando na sua importância.
Para isso, a experiência do estágio docente é de importância fundamental, uma vez que
nele podem se dar as bases para uma docência posicionada politicamente e que impacte
o estagiário pela arte do processo humano envolvido.
Artestágios, estes estágios em que a atitude criadora e a prática artística se
fundem às práticas pedagógicas, têm mais chance de acontecer caso haja uma formação
inicial de professores que também seja realizada em um ambiente de engajamento e

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Didática e Prática de Ensino na relação com a Escola

criação que extrapole o campo artístico tradicional. Prezar pelo pensamento artístico
conectado à vida em vez da noção de arte e artista que se afastam dela talvez possam
desencadear impactos significativos para uma docência que se quer artista.

Referências

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