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COMPLEXIDADE NARRATIVA NA TELEVISÃO

AMERICANA CONTEMPORÂNEA

Texto original de Jason Mittel.


Resenha por Gabriel Passarelli.

Jason Mittel, em seu texto “Complexidade narrativa na televisão americana


contemporânea”, versa sobre os diversos aspectos em que séries a partir da década
de 1990 têm incorporado estruturas narrativas tipicamente episódicas e seriadas em
diferentes proporções e propostas estéticas de forma a alcançar o que ele descreve
como “complexidade narrativa”, configurando uma nova era da TV. O autor é estadu-
nidense, professor de Estudos Americanos e Filme e Cultura de Mídia, no Middlebury
College, em Vermont. Ele teoriza sobre a inserção da TV na cultura e suas conven-
ções formais, tendo publicado três livros sobre o assunto e diversos outros artigos. O
texto em questão está traduzido do inglês, e originalmente faz parte de uma publica-
ção no volume 58 de “Velvet Light Trap”, de 2006.
Antes de começar a análise do texto, é preciso esclarecer os conceitos de série
episódicas e seriadas. O autor, no decorrer do artigo, deixa bem clara a diferença,
embora não os apresente explicitamente ao leitor. As séries episódicas são as que
possuem fios narrativos e arcos dramáticos curtos, que se encerram no episódio, que,
por sua vez, possui início e fim muito bem definidos. Possuem um modelo narrativo
procedural, no qual a mesma fórmula é repetida em cada episódio. Já as seriadas são
as que mais se aproximam do modo novelístico de contar histórias, com arcos alon-
gados e contínuos, que seguem de um episódio para o outro.
Inicialmente, Mittell distingue a televisão convencional do modelo de storytelling
proposto para a complexidade narrativa. Ele coloca essa nova forma de fazer TV como
uma alternativa à convencional, abarcando um tipo de público diferenciado. Por mais
que essas séries não se tornem grandes sucessos de audiência, o objetivo é fidelizar
o espectador de maneira que uma base de fãs se crie. É a partir da relação entre os
interesses da mídia, das necessidades dos espectadores contemporâneos, do con-
ceito de fã e das novas formas de participação e engajamento que ele justifica o sur-
gimento das narrativas complexas.

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Jason aponta que há uma “mudança de perspectiva em relação à necessidade
e legitimidade do meio e o apelo que ele exerce para quem cria” (p.33), deixando clara
a diferença entre o meio cinematográfico, centrado na figura do diretor, e o televisivo,
que dá mais liberdade criativa aos roteiristas e realizadores. Isso é o que, para ele,
permite que a construção dos personagens seja tão aprofundada, e ainda comenta
que a complexidade é melhor valorizada pelo mercado na televisão que no cinema.
Quanto à lógica da indústria televisiva, perante a escamoteação do público de-
vido ao crescente número de canais e programas, os canais reconheceram a viabili-
dade do programa de público limitado, mas dedicado. Esse modelo de complexidade
também serve para alcançar o nível máximo de “reassistência”, através da venda de
DVDs e da base de fãs. Muitos apelavam a um espectador com maior grau de instru-
ção como ferramenta de marketing, ganhando prêmios e prestígio por serem mais
sofisticados que a TV convencional.
Mittell também analisa historicamente a influência das transformações e inova-
ções tecnológicas na espectatorialidade e como isso permitiu a emergência do modelo
de complexidade narrativa. Nos primeiros 30 anos da TV, os programas eram exibidos
fora de ordem, favorecendo as narrativas procedurais, cujos episódios podem ser des-
tacados e reordenados sem afetar a trama principal e não impossibilitar o entendi-
mento por parte do espectador.
A partir dos anos 80, porém, o espectador começou a exercer mais controle
sobre sua programação, através da transmissão a cabo e do videocassete. Agora, os
espectadores poderiam rever episódios ou parte deles para absorver mais detalhes
narrativos e analisar momentos complexos. Com a chegada do DVD, o tamanho da
mídia e a qualidade visual encorajaram os espectadores a assistirem repetidas vezes
o que antes era uma atividade “essencialmente efêmera” (p.35).
O texto é de 2006, antecedendo o fenômeno atual de streaming. Então, o que
Mittell comenta sobre a influência da internet na forma de consumir televisão se res-
tringe à cultura de fã através do que ele chama de “inteligência coletiva”. Os especta-
dores são convidados a um engajamento muito mais ativo e profundo a partir da busca
de informações e interpretações e das discussões online sobre as narrativas comple-
xas. A internet também permite que o universo das séries se amplie para além da TV,
como videogames, blogs, sites de roleplaying e fóruns de fã, de forma que as séries
se tornem verdadeiramente interativas e cuja participação do público exerça força so-
bre a trama.
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Mittell reconhece que esses fatores industriais, tecnológicos e culturais não po-
dem, sozinhos, serem creditados como a razão do surgimento da narrativa complexa
na televisão. Entretanto, em conjunto, eles criam um contexto propício, garantindo que
realizadores, canais de TV e espectadores estivessem prontos para conceber e rece-
ber esse tipo de conteúdo.
Depois dessa introdução do contexto de surgimento desse modelo de storytel-
ling, o autor começa a definir o que ele chama de complexidade narrativa. Segundo
Mittell, “é uma redefinição de formas episódicas sob a influência da narração em série
[...], um equilíbrio volátil” (p.36). Ou seja, é a incorporação das características das
séries episódicas e seriadas numa narrativa formalmente mista, não convencional,
que lida com múltiplos fios narrativos e arcos de conflitos que podem se encerrar no
episódio ou se estender para um número indeterminado de capítulos, inclusive per-
passando temporadas inteiras.
O autor também diferencia a novela das séries narrativamente complexas. Para
ele, as novelas se enfocam nos conflitos entre os personagens e seus relacionamen-
tos, daí construindo a trama. Nas séries com complexidade narrativa, por outro lado,
o desenvolvimento da trama é o ponto principal, sendo, a partir disso, criados os rela-
cionamentos e dramas eventuais dos personagens. A tentativa da negação do estilo
melodramático da moral e do excesso também é uma característica que separa esses
dois modelos de storytelling.
Em seguida, Mittell analisa mais a fundo as séries “Seinfield”, “Arrested Deve-
lopment” e “Buffy”, que utiliza de exemplo para explicitar a multiplicidade de técnicas
narrativas e a liberdade criativa fornecida pelo modelo complexo. Também cita “The
Simpsons” e “Alias” com frequência.
A partir dessa análise, Jason introduz o conceito da estética operacional e com-
para a complexidade narrativa a efeitos especiais do cinema. A mesma distância que
os efeitos visuais mirabolantes provocam nos espectadores dos filmes, certas ferra-
mentas narrativas são tão impressionantes que, por um momento, fazem o público
prestar atenção na maneira que aqueles eventos foram costurados, de uma forma
metarreflexiva. Nesses momentos em que a estética operacional assume, a fruição
deixa de se focar ao que vai acontecer e passa a dar mais valor ao que motivou aquilo.
Dessa forma, os espectadores assumem o papel de narratologistas amadores, con-
jecturando sobre as diversas ferramentas e técnicas que foram usadas para criar as
“pirotecnias narrativas” (p.42).
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Uma característica importante das narrativas complexas é a falta de desejo da
compreensão total e imediata do espectador. Em vários momentos, recursos conven-
cionais são usados de forma não convencional, como analepses e retomadas típicas
do cinema de arte. Porém, a recompensa do espectador vem no momento da com-
preensão, de forma catártica e coerente. Esse modelo narrativo flerta com a confusão
temporária, permitindo ao espectador pôr à prova sua “habilidade de compreensão
através do acompanhamento de longo prazo” (p.48), similarmente à maneira como os
videogames e filmes de quebra-cabeça exigem e desejam um engajamento ativo na
história.
A partir disso, o texto conclui de maneira espetacular uma tese sobre o novo
modelo de fazer televisão, de entreter e que, hoje, tornou-se uma experiência quase
viciante de engajamento narrativo. Ele aborda o tema por diferentes frontes, sempre
se aprofundando de forma clara e sucinta em seus argumentos e conceitos. Avaliando
com olhos do futuro, o artigo se mantém atual e serve para explicar os fenômenos de
streaming e o grande sucesso das séries, que extrapolaram a TV e hoje influenciam
a maneira de narrar de formatos muito mais antigos, como as novelas e o cinema.

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