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CURCIO, Fernanda
RIBEIRO, Vítor Eduardo
Santos;
Alessandri
Faceira, LOBELIA da Silva
CONFLUÊNCIAS
Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito
ISSN 1678-7145 || EISSN 2318-4558
RESUMO
Este trabalho tem o objetivo de problematizar o fenômeno da inserção da mulher no tráfico de
drogas pela perspectiva do gênero, por meio das contribuições da memória social, uma vez que esta
é um campo interdisciplinar que possibilita as investigações e a construção de um conhecimento
sobre as relações de poder, a influência da transmissão de valores, culturas e modos de ser nas
experiências e comportamentos dos sujeitos sociais. Como metodologia utilizada, apresenta-
se uma análise discursiva de entrevistas qualitativas com cinco mulheres que foram presas por
tráfico de drogas e eram atendidas como egressas do sistema penitenciário, pelo Patronato
Magarinos Torres-Anexo Campos. Compreende-se que é a partir destes relatos que é possível
que se reconstrua uma visão mais concreta da dinâmica da prática do tráfico de drogas por parte
dessas mulheres e, como as mesmas se representam à sociedade e ao crime ora estudado.
Palavras-chave: Mulher. Tráfico de Drogas. Memória.
ABSTRACT
This work aims to discuss the woman’s insertion phenomenon in drug trafficking by gender
perspective, through the contributions of social memory, since this is an interdisciplinary
field that enables investigations and the construction of knowledge about the power
relations, the influence of the transmission of values, cultures and ways of being in the
experiences and behavior of social subjects. As the methodology used, presents a discourse
analysis of qualitative interviews with five women who were arrested for drug trafficking
and attended as prisoners of the penitentiary system by the Patronato Magarinos Torres-
Anexo Campos. It is understood that it is from these reports that it is possible to rebuild
a more concrete view of the dynamics of the practice of drug trafficking by these women
and how they represent themselves to society and the crime now studied.
Keyworks:
66 Woman.
CONFLUÊNCIAS Drug
| Revista Trafficking.
Interdisciplinar Memory.
de Sociologia e Direito. Vol. 16,
18, nº 3,
1, 2014.
2016. pp. 60-85
66-91
AS MEMÓRIAS DAS MULHERES TRAFICANTES
res e, como as mesmas se representam à cinco anos vêm reduzindo o ritmo de en-
sociedade e ao crime ora estudado. carceramento, o Brasil assume a segunda
colocação, com 136%, ficando atrás da
AS MULHERES TRAFICANTES Indonésia, com 145%. Caso a situação
A questão carcerária é um dos pro- não se modifique, em 2018, o Brasil ul-
blemas mais complexos que marcam trapassará a Rússia, e será o terceiro país
o cenário brasileiro. De acordo com os com o maior número de pessoas presas.
dados fornecidos pelo Infopen (2014), Nos últimos quinze anos, a popu-
no Brasil o total da população prisional lação prisional totalizou um aumento
referente a junho do ano de 2014 era de expressivo de 161%, valor este dez vezes
607.731 pessoas, em que 579.423 esta- maior que o crescimento do total da po-
vam detidas no sistema penitenciário, pulação nacional, que cresceu em torno
27.950 nas Secretarias de Segurança (car- de 16% no mesmo período.
ceragens de delegacias), e 358 em presí- Contudo, em relação ao aprisiona-
dios federais. Deste total, cerca de 40% mento de mulheres, os dados são ainda
são presos e presas provisórios, tal fato, mais alarmantes. Embora o número de
além de provocar o aumento exorbitante mulheres presas ainda seja bem inferior
da população em situação de privação de ao dos homens, entre os anos de 2000 a
liberdade, eleva ainda mais os custos do 2014 o aumento do número de mulhe-
sistema carcerário, e, também, submete res em situação de privação de liberdade
a um número cada vez maior de pessoas deu um salto e atingiu a marca de 567%,
às consequências do aprisionamento. chegando a 37.380 pessoas, do total de
Diante de uma soma de 300 presos 579.781 presos (INFOPEN, 2014). Du-
por cem mil habitantes, constatou-se o rante este mesmo período, o crescimen-
déficit de vagas de unidades prisionais em to relativo à população carcerária mas-
torno de 231.062. Em números absolutos, culina foi de 220%. O principal fator
o Brasil tem a quarta maior população deste expressivo aumento é a inserção
prisional, atrás apenas dos Estados Uni- destas mulheres no tráfico de drogas.
dos (2.228.424 presos), China (1.657.812 Com o advento do século XX aflora-
presos) e Rússia (673.818). Em termos re- -se o protagonismo das mulheres, dian-
lativos, a população encarcerada brasileira te de importantes conquistas no âmbito
também atinge a quarta posição, em que dos direitos civis, sociais e políticos, al-
os Estados Unidos, a Rússia e a Tailândia terando-se, assim, os lugares e posições
apresentam uma cota prisional maior. sociais que ocupavam. Esta é uma face
Em relação à variação na taxa de apri- da história. A oposta é a conservação e a
sionamento, ao contrário dos Estados reprodução das memórias de desigual-
Unidos, China e Rússia, que nos últimos dades entre homens e mulheres.
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AS MEMÓRIAS DAS MULHERES TRAFICANTES
mas funções “tipicamente femininas”, 2009) indiquem que nos últimos anos as
que aprenderam com suas mães, avós mulheres vêm optando por casar e ter fi-
ou tias ao longo de sua infância até a lhos mais tarde, com o intuito de garan-
vida adulta. Dentre elas, seria o cuida- tirem o seu futuro profissional, compre-
do da casa, dos filhos e do marido. ende-se que este fenômeno pode sofrer
Uma entrevistada, além deste pon- interferência de alguns elementos, como
to, ressalta a cobrança social em rela- escolaridade e classe social. Contudo, os
ção ao comprometimento amoroso da mesmos autores, em pesquisa desenvol-
mulher e a necessidade de estar se rela- vida com homens e mulheres, alertam
cionando amorosamente com alguém, que há diferenças significativas em re-
para que assim, sua vida estivesse com- lação aos motivos socioeconômicos que
pleta, em suas palavras, levam ao casamento. De acordo com o
resultado da pesquisa, as mulheres ain-
A mulher não é vista igual da se sentem mais cobradas a dar mais
o homem... a sociedade cobra satisfação à sociedade no que se refere
da gente posturas diferentes. A ao seu estado civil e relacionamentos.
mulher tem que cuidar dos fi- Tal fato pode também estar atrelado a
lhos... ser boa dona de casa, boa uma herança cultural em que o valor da
companheira. Se um homem mulher estava submetido a sua capaci-
não casa ninguém se preocupa, dade ou incapacidade para o casamento.
mas se a mulher for ficando ve- A mesma egressa ainda relata sobre
lha e não tem marido as pesso- a diferença de funções e trabalhos de-
as ficam falando e perguntan- sempenhados por homens e mulheres, e
do... (ENTREVISTADA 4). que no seu entendimento, é algo que não
é natural, mas sim uma cobrança social
É interessante destacar neste discur- que acaba por influenciar na dimensão
so que a entrevistada aponta para a di- laboral. A entrevistada 4 afirma: “Tem
ferença de papeis impostos socialmente trabalhos, por exemplo, que as mulhe-
a homens e mulheres. Nesse sentido, res não podem fazer, porque os outros
funções como cuidado dos filhos, ma- acham que é pra homem. [...] a sociedade
nutenção do lar e do relacionamento vê diferenças sim”. Em algumas declara-
afetivo são, no entendimento da mes- ções feitas em momentos posteriores há
ma, relegadas às mulheres. Outro ponto discretas, mas relevantes, críticas à socie-
que merece destaque é a maior depen- dade e suas imposições aos indivíduos:
dência de uma relação afetiva por parte
das mesmas. Mesmo que alguns estu- A gente pode querer ser
dos (ZORDAN, FALCKE & WAGNER, igual, fazer as mesmas coisas,
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mas sempre vai ter alguém pra para dominar um território, para
dizer que não pode, a socieda- dominar um espaço. Pode até ser
de sempre vai te impor limites para sustentar a casa, mas acho
(ENTREVISTADA 5). que o poder e domínio está ali
também (ENTREVISTADA 2).
Verifica-se que essas imposições e Em alguns casos sim, às
influências na constituição de papeis vezes por precisar muito de di-
que cabem a homens e mulheres, além nheiro, e dinheiro rápido... mas
de uma interferência mais ampla, como em outros casos não. Mas a
a sociedade e instituições de uma forma mulher levar o homem pra esse
geral, atuam e se tornam mais incisivas, mundo eu acho mais difícil, o
ou talvez mais claras, no ambiente fami- homem é mais egoísta, ele pen-
liar, como sinalizado anteriormente. sa mais nele, não vai dar um
No segundo núcleo de análise, em mole desse por causa de mulher,
relação ao cometimento do tráfico de ele arruma outra rapidinho
drogas, as entrevistadas foram indaga- (ENTREVISTADA 5).
das se os motivos que levam os homens
a traficarem são, ou não, os mesmos que Nota-se que na primeira declaração
os das mulheres. Manifestam-se aqui, a entrevistada apresenta um discurso
duas categorias. Todas acreditam que similar a ideia apresentada pela entre-
homens e mulheres traficam sim por vistada 4 anteriormente. Aquela aponta
motivos diferentes, mas, duas apontam como um dos motivos do envolvimento
que, em alguns casos, os motivos são de mulheres com o tráfico de drogas a
similares. Abaixo estão representadas manutenção do relacionamento afetivo.
essas duas perspectivas: Verificam-se também nestes dis-
cursos os estereótipos relacionados ao
[...] muitas mulheres tra- masculino, em que o ato de traficar por
ficam por homem, por amor... parte dos homens, para as entrevistadas,
com medo de ficarem sozi- é resultante deste posicionamento frio,
nhas, de perderem quem elas objetivo, provedor, calculista, racional e
amam. O homem não, às vezes dominador atribuído aos homens.
é por dinheiro, ou para os ou- É importante considerar que o meio
tros respeitarem ele, para mos- social também cobra aos homens posi-
trar que domina tudo ali [...] cionamentos definidos, ações, papeis e
(ENTREVISTADA 3). reações. Kaufman (1987), nesse sentido,
Não são os mesmos motivos esclarece que mesmo reconhecendo a do-
não. O homem entra no tráfico minação dos homens, estes são memori-
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CURCIO, Fernanda Santos; Faceira, LOBELIA da Silva
zados e embrutecidos pela mesma estru- mesmo tempo em que esta atividade é
tura que os privilegia e os atribui poder. fundamentalmente salteadora, ela pro-
Se num primeiro momento as en- move algum tipo de inserção no meio
trevistadas ressaltam as desigualdades social ao garantir dinheiro, capacidade
de gênero presentes na sociedade, ago- de consumo, poder e reconhecimento,
ra, contraditoriamente, elas não perce- que, de certa forma, aliviam a margina-
bem que seus discursos reproduzem os lidade no qual os sujeitos se encontram.
estereótipos impostos. Essas exposições Ao serem indagadas sobre os
são resultado dos preconceitos, experi- motivos que as levaram a praticar a ven-
ências, representações e memórias que da de drogas, surgem três categorias. A
elas trazem ao longo da vida. primeira é composta por três mulheres
Por fim, o último relato ainda des- que relacionam a prática deste ato ilícito
taca a interferência de questões econô- a um envolvimento amoroso. Elas não
micas, ao apontar como um dos moti- descartam outros determinantes, como
vos de envolvimento com o tráfico de dificuldades financeiras, poder ou para
drogas de mulheres e homens a ques- manter o uso de drogas, mas, a relação
tão econômica. O comércio de drogas, do companheiro e a sua entrada no trá-
como se verifica, possui como elemen- fico é preponderante, como se observa
tos de permanência e de formação à nas declarações a seguir
vida paralela ao mercado formal de
trabalho. Tal ocupação também obede- [...] acabei descobrindo que
ce à lógica do sistema capitalista, sur- ele traficava, fiquei com muito
gindo como uma reação à margina- medo, tanto por mim, quanto
lidade econômica e social. O tráfico por ele... de acontecer alguma
se manifesta como uma possibilidade coisa com ele. Aí, ele um dia
ilegal aos muitos trabalhadores que aca- precisou ir buscar a droga na co-
bam por não conseguir, ou, por não vis- munidade para deixar com uma
lumbrar, outra alternativa no mercado outra pessoa, e eu, com medo de
formal ou informal de trabalho. deixar ele sozinho, acabei indo
Parte-se do entendimento de que com ele. [...] eu realmente ama-
homens e mulheres ao traficarem dro- va ele [...]. Nós fomos de moto,
gas vivenciam a realidade à margem aí no meio do caminho a polícia
dos mecanismos sociais dominantes, parou a gente e achou a droga
uma vez que desempenham uma (ENTREVISTADA 4).
ação ilegal, carregada de uma memó- O meu companheiro era
ria negativa e impudica. Porém, este envolvido com o tráfico de dro-
fato traz em si um paradoxo, pois ao gas e um dia ele precisava levar
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AS MEMÓRIAS DAS MULHERES TRAFICANTES
meiro momento, como uma estratégiavol.58 no.4 São Paulo Oct./Dec. 2006.
de resistência à condição de submis-
Disponível em: <http://cienciaecultura.
são e docilidade impostas às mulheres
bvs.br/s cielo.php?pid=S0009-
nas suas relações para com o mundo e
67252006000400020&script=sci_
nas suas relações de afeto, essa prática
arttext >. Acesso em: 10 out. 2015.
não rompe com as oposições e opres- ALMEIDA, Rosemary. Mulheres
sões a que são submetidas. O que se
que Matam. Rio de Janeiro: Relume
manifesta é um outro tipo de circuito de
Dumará, 2001.
correlações de forças que reiteram umaBEALL, Anne. STERNBERG, Ro-
memória de dominação e desigualdade
bert. The Social Construction of Love.
que vem marcando as relações de ho-
Journal of Social and Personal Rela-
mens e mulheres ao longo da história.
tionships, n. 12, p. 417-438, 1995.
Porém, diante dessas memórias pa- BARCINSKI, Mariana. Protagonis-
radoxais, manifestam-se contradições,
mo e vitimização na trajetória de mulhe-
enfrentamentos e disputas que abrem
res envolvidos na rede do tráfico de dro-
a possibilidade de resistências legítimas
gas no Rio de Janeiro. Ciência & Saúde
e efetivas que suscitam o novo. Surge,
Coletiva, v.14, n.2, p.577-586, 2009.
neste momento, a imprescindibilidade __________. Centralidade de gêne-
de se remeter ao campo da memória,ro no processo de construção da identi-
pois esta, sofrendo um eterno processo
dade de mulheres envolvidas na rede de
de construção e transformação, tem no
tráfico de drogas. Ciência e Saúde Co-
durante seus conflitos, disputas e emba-
letiva, v.14, n.5, p.: 1843 - 1853, 2009b.
tes. É também neste campo que se ma- BEAUCHESE, Line. Legalizar as
nifesta o ato criativo. Em tal contexto é
drogas: para melhor prevenir os abusos.
possível vislumbrar formas e processos
Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2015.
de liberdade, pois, se num primeiro BECKER, Howard. Outsiders: stu-
momento a memória se afirma como dies in the sociology of deviance. New
um instrumento de poder, ulteriormen-
York: The Free Press, 1997.
te, mostra-se também como uma arma BOURDIEU, Pierre. A dominação
que dá forma ao novo e que auxilia o
masculina. Tradução Maria Helena
sujeito no uso de seu talento mais inve-
Kühner. 2ª ed. Rio de Janeiro: Ber-
jável: o ato criativo de modificar-se.
trand Brasil, 2002.
BRASIL. Ministério da Justiça. In-
REFERÊNCIAS fopen, 2015. Disponível em: <http://www.
ABRAMO, Laís. Desigualdades infopen.gov.br/>. Acesso em 25 nov 2015.
de gênero e raça no mercado de BUTLER, Judith. Problemas de
trabalho brasileiro. Cienc. Cult. Gênero. Rio de Janeiro: Civilização
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AS MEMÓRIAS DAS MULHERES TRAFICANTES