Você está na página 1de 26

Artigo

CURCIO, Fernanda
RIBEIRO, Vítor Eduardo
Santos;
Alessandri
Faceira, LOBELIA da Silva
CONFLUÊNCIAS
Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito
ISSN 1678-7145 || EISSN 2318-4558

AS MEMÓRIAS DAS MULHERES


TRAFICANTES: entre a submissão
e a resistência?
Fernanda S. Curcio e Lobelia da S. Faceira
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.
E-mail: nanda_fsc@hotmail.com
E-mail: lobelia.faceira@unirio.br

RESUMO
Este trabalho tem o objetivo de problematizar o fenômeno da inserção da mulher no tráfico de
drogas pela perspectiva do gênero, por meio das contribuições da memória social, uma vez que esta
é um campo interdisciplinar que possibilita as investigações e a construção de um conhecimento
sobre as relações de poder, a influência da transmissão de valores, culturas e modos de ser nas
experiências e comportamentos dos sujeitos sociais. Como metodologia utilizada, apresenta-
se uma análise discursiva de entrevistas qualitativas com cinco mulheres que foram presas por
tráfico de drogas e eram atendidas como egressas do sistema penitenciário, pelo Patronato
Magarinos Torres-Anexo Campos. Compreende-se que é a partir destes relatos que é possível
que se reconstrua uma visão mais concreta da dinâmica da prática do tráfico de drogas por parte
dessas mulheres e, como as mesmas se representam à sociedade e ao crime ora estudado.
Palavras-chave: Mulher. Tráfico de Drogas. Memória.
ABSTRACT
This work aims to discuss the woman’s insertion phenomenon in drug trafficking by gender
perspective, through the contributions of social memory, since this is an interdisciplinary
field that enables investigations and the construction of knowledge about the power
relations, the influence of the transmission of values, cultures and ways of being in the
experiences and behavior of social subjects. As the methodology used, presents a discourse
analysis of qualitative interviews with five women who were arrested for drug trafficking
and attended as prisoners of the penitentiary system by the Patronato Magarinos Torres-
Anexo Campos. It is understood that it is from these reports that it is possible to rebuild
a more concrete view of the dynamics of the practice of drug trafficking by these women
and how they represent themselves to society and the crime now studied.
Keyworks:
66 Woman.
CONFLUÊNCIAS Drug
| Revista Trafficking.
Interdisciplinar Memory.
de Sociologia e Direito. Vol. 16,
18, nº 3,
1, 2014.
2016. pp. 60-85
66-91
AS MEMÓRIAS DAS MULHERES TRAFICANTES

INTRODUÇÃO raneidade. Esta atividade ilegal assume a


Atualmente no Brasil cresce inten- posição de segunda atividade mais lucra-
sivamente o número de mulheres en- tiva do mundo, ficando atrás apenas para
carceradas. De acordo com o Sistema o comércio ilegal de armas.
de informações Penitenciárias (IN- Nota-se que a intervenção do Es-
FOPEN) do Departamento Penitenciá- tado possui o objetivo de disciplinar
rio Nacional (DEPEN), entre os anos de os espaços públicos e privados. A droga
2000 e 2014 a proporção da população se apresenta como algo que causa a des-
carcerária feminina cresceu mais que o truição e desagregação, havendo assim,
dobro da masculina. Neste período o como esclarece Feffermann (2006), uma
aumento da população feminina foi de premência geopolítica para hostilizá-la
567%, enquanto a média do crescimen- militarmente e, claro, permanecendo
to masculino foi de 220%, apresentan- o controle sobre os países latino-ame-
do, desse modo, uma curva ascendente ricanos e africanos. Assim, de acordo
do aprisionamento em massa de mu- com Rodrigues (2004), as políticas an-
lheres em âmbito nacional. tidrogas se manifestam como estratégia
A razão deste crescimento está rela- do governo, servindo para identificar,
cionada ao maior envolvimento com o perseguir e prender os anormais, pes-
tráfico de drogas. Este crime, segundo o soas que fujam das ordens social e moral
DEPEN, nas últimas décadas, foi a ativi- estabelecidas. As leis, enquanto regras
dade ilícita que mais fez ingressar mulhe- jurídicas social e historicamente cons-
res no sistema prisional brasileiro.Entre- truídas, abrangem os costumes e nor-
tanto, ao se debruçar sobre este cenário mas formal e expressamente produzi-
é possível que se perceba que a inserção das pelo Estado, que visam, de certa
das mulheres nesta atividade ilícita vai forma, alcançar o “bem” da sociedade.
além de uma infração penal, consistindo, Campos (2015) expõe que a Lei
muitas das vezes, em uma oportunidade 11.343/2006, Nova Lei de Drogas brasilei-
de trabalhar, para auxiliar o companheiro ra, faz emergir um novo dispositivo: mé-
ou, até mesmo, em busca de poder. dico-criminal de drogas. Tal dispositivo,
O debate crítico acerca do tráfico de enquanto uma tecnologia política com-
entorpecentes e o envolvimento com esta plexa, produz uma nova maneira de go-
atividade ilícita é esvaziado de seu ver- vernar os usuários e traficantes. Esta traz
dadeiro sentido pela mídia, mas também como um dos seus principais enunciados
por alguns debates teóricos. O tráfico de a problematização da saúde, provocando,
drogas, enquanto um comércio global, assim, outra distribuição dos discursos,
apresenta interferência nos aspectos po- prazeres, verdades e poderes. A Nova Lei
lítico, econômico e social da contempo- de Drogas traz um componente médico-
CONFLUÊNCIAS | Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito. Vol. 18, nº 1, 2016. pp. 66-91 67
CURCIO, Fernanda Santos; Faceira, LOBELIA da Silva

-preventivo, para os usuários de drogas, preende que a guerra às drogas fracassou


sendo estes vistos como doentes; e um nos objetivos de promoção da saúde e,
componente punitivo e criminalizador além disso, promove a expansão do co-
para aqueles que comercializam as drogas mércio ilícito de drogas. Ao mesmo tem-
– os inimigos da sociedade. po, contraditoriamente, é muito eficiente
Para o autor a administração estatal como estratégia da geopolítica interna-
da droga no Brasil se mostra “como um cional e no reforço do controle social e da
copo meio vazio de médico e cheio de estigmatização de determinados grupos.
prisão” (CAMPOS, 2015, p. 10). Em ou- Nesse sentido, partindo das contri-
tras palavras, a justiça criminal rejeita a buições de Becker (1997), é entendido
parte médica do dispositivo e fomenta a que os desvios e estigmas são sempre
pena de prisão. Ao mesmo tempo que o constituídos em processos políticos, em
país caminha no sentido do aumento dos que determinados grupos conseguem
direitos e garantias fundamentais, priori- impor suas perspectivas como mais
za, dentro do sistema de justiça criminal, legítimas que outras. O desvio, para o
a pena privativa de liberdade. Campos autor, não é imanente às ações e aos su-
(2015) ainda esclarece que após a apro- jeitos que os praticam. Na verdade, ele é
vação da referida lei, a cada ano aumen- construído durante os processos de jul-
tam gradativamente as chances do usuá- gamento que compõem disputas diante
rio ser incriminado por tráfico de drogas. de objetivos de grupos específicos.
Ademais, é interessante destacar Na trama das relações sociais con-
que a guerra às drogas se faz muito mais temporaneamente estruturadas, o estig-
intensa ao pequeno distribuidor, sendo ma do tráfico de drogas enquanto desvio
este o mais fraco de toda a rede que não se reduz ao traficante, uma vez que
compõem este “comércio”. O sistema os consumidores de drogas são também
de confronto desenvolvido pelas auto- “marcados” como responsáveis pelo co-
ridades não atingem os grandes nego- mércio ilícito. Como esclarece Goffman
ciantes de drogas ou os sistemas finan- (1988) o estigma é um atributo que tor-
ceiros que faz o trabalho de lavar o na o sujeito diferente aos demais, des-
dinheiro adquirido de forma ilegal, valorizando-o, ou colocando-o numa
sendo estes últimos os atores que mais posição inferior e/ou em desvantagem.
lucram com o tráfico de drogas. O que se verifica é que os discursos que
O controle do sistema penal sobre a se constroem sobre os “criminosos do trá-
política de antidrogas favorece uma fico” tornam-se genéricos, estereotipados e
ação militarizada na segurança pública a-históricos, encobrindo as relações políti-
e drástico aumento de pessoas em situa- cas, sociais e econômicas que fazem parte
ção de cárcere. Beauchesne (2015) com- deste fenômeno. Nota-se, também, que
68 CONFLUÊNCIAS | Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito. Vol. 18, nº 1, 2016. pp. 66-91
AS MEMÓRIAS DAS MULHERES TRAFICANTES

existe pouca visibilidade e estudos direcio- ficados construídos socialmente refe-


nados aos crimes praticados por mulheres. rentes a estas diferenças.
Ao se propor construir este tra- Por sua vez, Saffioti (2004) traz uma
balho por uma perspectiva de gênero intensa crítica referente aos usos da ca-
tomou-se o cuidado de não reduzir essas tegoria gênero. A autora não renega a
personagens a um arquétipo fixo e ge- importância desta, porém, contesta a sua
nérico. Esta categoria auxiliará em dois utilização exclusiva e afirma a impres-
sentidos, primeiramente para descons- cindibilidade da utilização do conceito
truir a determinação da mulher no de patriarcado. Para Saffioti (2004) o
espaço de subalternidade e vítima, ao patriarcado é um fato específico das
cometer crimes. Além disso, ao se uti- relações de gênero, sendo estas rela-
lizar as contribuições das discussões de ções hierárquicas e desiguais. Este fato,
gênero é possível que se compreenda que tem como base a ideologia e a
que a instituição de como “ser homem” violência, concebe a exploração e do-
ou “ser mulher” reforçam os estereótipos minação exercida pelos homens sobre
dos gêneros, e, mais que isso, enquanto as mulheres. O sistema patriarcal, para a
poder, não age simplesmente dominan- autora, atravessa o Estado e a sociedade.
do e oprimindo as subjetividades, mas Diante das reflexões sumariamente
atua imediatamente na sua constituição. elencadas, a seguir serão explicitadas as
Scott (1995) compreende o gênero discussões trazidas por diferentes autores
como as relações constituídas a partir que tratam da questão da mulher no trá-
da forma como a sociedade percebe as fico de drogas. Posteriormente, de modo
diferenças biológicas entre os sexos. Tal a traçar um conhecimento objetivo e sem
percepção é baseada em mecanismos quaisquer generalizações, será apresenta-
classificatórios que por sua vez agluti- da uma análise discursiva das entrevistas
nam um conjunto de dicotomias: ma- realizadas com cinco mulheres, que fo-
cho/fêmea; masculino/feminino; forte/ ram presas por tráfico de drogas e, que
fraco; razão/emoção; dominante/domi- eram atendidas como egressas do sistema
nado; entre outros. O campo positivo e penitenciário, pelo Patronato Magarinos
superior cabe ao masculino, e o negativo Torres-Anexo Campos – Órgão do Po-
e inferior ao feminino. der Executivo do Estado do Rio de Janei-
As oposições e hierarquias, contudo, ro pertencente a Subsecretaria Adjunta
como produtos históricos, são arbitrá- de Tratamento Penitenciário. Compre-
rias. Scott (1995), nesse sentido esclare- ende-se que é a partir destes relatos que
ce que o fundamento da desigualdade é possível que se reconstrua uma visão
entre o homem e a mulher não está na mais concreta da dinâmica da prática do
diferença biológica, mas sim nos signi- tráfico de drogas por parte dessas mulhe-
CONFLUÊNCIAS | Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito. Vol. 18, nº 1, 2016. pp. 66-91 69
CURCIO, Fernanda Santos; Faceira, LOBELIA da Silva

res e, como as mesmas se representam à cinco anos vêm reduzindo o ritmo de en-
sociedade e ao crime ora estudado. carceramento, o Brasil assume a segunda
colocação, com 136%, ficando atrás da
AS MULHERES TRAFICANTES Indonésia, com 145%. Caso a situação
A questão carcerária é um dos pro- não se modifique, em 2018, o Brasil ul-
blemas mais complexos que marcam trapassará a Rússia, e será o terceiro país
o cenário brasileiro. De acordo com os com o maior número de pessoas presas.
dados fornecidos pelo Infopen (2014), Nos últimos quinze anos, a popu-
no Brasil o total da população prisional lação prisional totalizou um aumento
referente a junho do ano de 2014 era de expressivo de 161%, valor este dez vezes
607.731 pessoas, em que 579.423 esta- maior que o crescimento do total da po-
vam detidas no sistema penitenciário, pulação nacional, que cresceu em torno
27.950 nas Secretarias de Segurança (car- de 16% no mesmo período.
ceragens de delegacias), e 358 em presí- Contudo, em relação ao aprisiona-
dios federais. Deste total, cerca de 40% mento de mulheres, os dados são ainda
são presos e presas provisórios, tal fato, mais alarmantes. Embora o número de
além de provocar o aumento exorbitante mulheres presas ainda seja bem inferior
da população em situação de privação de ao dos homens, entre os anos de 2000 a
liberdade, eleva ainda mais os custos do 2014 o aumento do número de mulhe-
sistema carcerário, e, também, submete res em situação de privação de liberdade
a um número cada vez maior de pessoas deu um salto e atingiu a marca de 567%,
às consequências do aprisionamento. chegando a 37.380 pessoas, do total de
Diante de uma soma de 300 presos 579.781 presos (INFOPEN, 2014). Du-
por cem mil habitantes, constatou-se o rante este mesmo período, o crescimen-
déficit de vagas de unidades prisionais em to relativo à população carcerária mas-
torno de 231.062. Em números absolutos, culina foi de 220%. O principal fator
o Brasil tem a quarta maior população deste expressivo aumento é a inserção
prisional, atrás apenas dos Estados Uni- destas mulheres no tráfico de drogas.
dos (2.228.424 presos), China (1.657.812 Com o advento do século XX aflora-
presos) e Rússia (673.818). Em termos re- -se o protagonismo das mulheres, dian-
lativos, a população encarcerada brasileira te de importantes conquistas no âmbito
também atinge a quarta posição, em que dos direitos civis, sociais e políticos, al-
os Estados Unidos, a Rússia e a Tailândia terando-se, assim, os lugares e posições
apresentam uma cota prisional maior. sociais que ocupavam. Esta é uma face
Em relação à variação na taxa de apri- da história. A oposta é a conservação e a
sionamento, ao contrário dos Estados reprodução das memórias de desigual-
Unidos, China e Rússia, que nos últimos dades entre homens e mulheres.
70 CONFLUÊNCIAS | Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito. Vol. 18, nº 1, 2016. pp. 66-91
AS MEMÓRIAS DAS MULHERES TRAFICANTES

O mercado de trabalho, nesse sentido, deria, em parte, pelas disparidades de


apresenta-se como um lócus de análise rendimentos entre os sexos e as iden-
das alterações e reproduções dessas desi- tificações raciais” (CASTRO, 1990, p.
gualdades. Diversas defluências ocorre- 93). Não se está sugerindo aqui que os
ram no mundo do trabalho com a crise homens possuem condições ideais, ou
econômica e política que vem marcando ainda aceitáveis de trabalho. Porém, é
a sociedade brasileira desde a década de de comum entendimento que o apro-
1980. É marca deste cenário o aumento fundamento da vulnerabilidade social
do desemprego, terceirização, trabalhos dos trabalhadores se intensifica ainda
precários, pobreza, entre outros. mais sobre as mulheres.
Ressalta-se, no entanto, que as Abramo (2006) aponta, a partir dos
consequências destas inflexões so- dados disponibilizados pela Pesquisa
bre as mulheres são mais intensas. A Nacional de Amostras por Domicílio
inserção das mesmas no mundo do (PNAD) entre os anos de 1992 a 2003, a
trabalho vem acompanhada, conco- diferença de rendimentos entre brancos
mitantemente, de alto grau de discri- e negros com os mesmos níveis de esco-
minação, não só no âmbito das ocupa- laridade. Os negros, de acordo com es-
ções, como também na desigualdade tes dados, recebem 30% a menos que os
salarial entre homens e mulheres. brancos. Estes números são ainda mais
De acordo com Melo (2005) há uma alarmantes quando se compara mulhe-
dessemelhança de rendimento entre res negras com os homens brancos, em
homens e mulheres, em que estas apre- que ambos possuem 11 anos e mais de
sentam uma grande desvantagem em estudo. De acordo com a autora, elas
relação aos primeiros, dentre elas: ren- recebem apenas 46% dos rendimentos
dimentos inferiores; o desempenho de dos homens brancos por hora de traba-
ocupações mais desvalorizadas, tanto lho. Em 2012, em se tratando do rendi-
econômica quanto socialmente; taxas mento médio entre homens e mulheres,
superiores de desemprego; menor for- esta recebe o equivalente a 72,9% refe-
malização de trabalho; direitos previ- rente aos rendimentos dos homens.
denciários reduzidos; maior exigência Tais números se contrapõem ao
de escolaridade; dificuldades de ascen- discurso de que as diferenças de rendi-
são a cargos de chefia, entre outros. mentos entre brancos e negros, e entre
Além disso, deve-se considerar que homens e mulheres, são justificados pelo
“o quadro relativo às mulheres aponta nível de escolaridade. Na verdade, este
para mais desigualdades no entrelaça- não é suficiente para explicar a desigual-
mento entre classe, gênero e raça. [...] dade em relação aos rendimentos, haven-
A distribuição ocupacional respon- do outros fatores que também compõem
CONFLUÊNCIAS | Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito. Vol. 18, nº 1, 2016. pp. 66-91 71
CURCIO, Fernanda Santos; Faceira, LOBELIA da Silva

este fenômeno, como os mecanismos de O aumento dos lares chefiados por


segregação ocupacional, baseados na cor mulheres vem crescendo, concomitan-
e no gênero, mas também, em elementos temente com a averiguação de que eles
diretos e indiretos de discriminação. estavam entre os mais pobres. Existe
Estes fatores, além de deterem influ- uma relação direta entre a ampliação no
ência sobre os rendimentos, interferem número de domicílios que tem a mulher
na qualidade de emprego. Abramo (2006) como pessoa de referência com o fenô-
afirma que o Brasil apresenta um grande meno da feminização da pobreza. Este
número de trabalhadores em ocupações pode ser entendido como uma “mu-
precárias, informais e de baixa qualidade. dança nos níveis de pobreza com uma
Tais trabalhos são desempenhados, em tendência desfavorável às mulheres ou
sua grande maioria, por mulheres negras. aos domicílios chefiados por mulheres”
Outro fenômeno que merece aten- (MEDEIROS; COSTA, 2008, s.p.).
ção é o aumento da mulher enquanto a Assim, uma saída para essas difi-
principal responsável pela renda do do- culdades pode ser o tráfico de drogas,
micílio. De acordo com o Instituto Bra- como expõe Moki (2006). O autor re-
sileiro de Geografia e Estatística (IBGE), laciona a inserção da mulher nesta ati-
no ano 2000, por exemplo, as mulheres vidade ilícita com o desemprego femi-
sustentavam 24,9% dos 44,8 milhões de nino, baixos salários e o aumento das
domicílios. Em 2010, essa porcentagem mulheres responsáveis pelo sustento
atingiu a marca de 38,7% dos 57,3 mi- da família. Compreende-se então, que
lhões de domicílios. Este fato, normal- a inserção das mulheres nesta ativida-
mente visto como algo positivo, exclui de vai além do cometimento do crime,
fatores e elementos que o compõem. baseando-se, em muitos casos, em uma
No Brasil, a partir dos anos de 1970, oportunidade de trabalhar para manter
vem crescendo o número de mulheres o sustento do lar. O comércio de drogas,
responsáveis pela renda familiar. Na como se verifica, possui como “caracte-
década de 1990 este fato se intensificou, rísticas de permanência e de constitui-
principalmente, diante do processo ção à vida paralela ao mercado formal
de reestruturação das atividades eco- de trabalho” (MOURA, 2005, p.[52]).
nômicas e a precarização do trabalho. Diante disso,
Muitas donas de casa, antes restritas ao
espaço privado, começam a se inserir [...] apesar de o tráfico ser
no mercado de trabalho de maneira a uma atividade extremamente
enfrentar a diminuição dos rendimen- marginalizada e estigmatizada
tos da família, o desemprego recorren- (e até mesmo ilícita), é a partir
te e o impacto do empobrecimento. dela que esses sujeitos tentam
72 CONFLUÊNCIAS | Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito. Vol. 18, nº 1, 2016. pp. 66-91
AS MEMÓRIAS DAS MULHERES TRAFICANTES

fazer parte de uma estrutura Não se pode desconsiderar também


societária, ou seja, a busca de o fato das mulheres presas acusadas
inserção e expressão no mo- pelo envolvimento com tráfico se am-
delo social vigente (que é o do plia devido às mesmas desempenharem
consumo) contribui para essa funções subalternas na escala hierár-
inserção laboral marginal. No quica da organização criminosa. Isso é
entanto, essa inserção parece apontado por Soares e Ilgenfritz (2002).
acontecer em nível do consumo As autoras esclarecem que as mulheres
por um lado, mas permanece são presas mais facilmente, em ordem
limitada a algumas esferas de decrescente de frequência e importân-
suas vidas. [...] tal ocupação cia, pois realizam atividades como “bu-
possibilita (devido ao valor ga- cha” (a pessoa que é presa por estar no
nho) o acesso ao consumo, para mesmo local que está sendo realizada
além de um reconhecimento outras prisões), “mula” / “avião” (que
social, o que não seria possível transporta a droga de um lugar para ou-
adquirir através do mercado tro), vapor (que comercializa pequenas
formal, diante da restrição de quantidades no varejo), “cúmplice” ou
oportunidades que este oferece “assistente/ fogueteira”.
(OLIVEIRA, 2009, p. 47). O universo do tráfico de drogas é
extremamente machista e costuma ob-
De acordo com Moura (2005), a jetificar mulheres e relegá-las a posições
“entrada” de mulheres no tráfico de mais dispensáveis. Então, as relações
drogas não é somente uma transgressão discriminatórias de gênero que estão
penal, mas, além disso, constitui uma presentes na sociedade, ganham vida
oportunidade de trabalho, que possa também no ramo ilegal. Normalmen-
vir a superar a difícil situação financei- te, elas reproduzem tarefas associadas
ra que atinge não somente a si própria, ao gênero feminino (limpar, embalar
mas também sua família. drogas, efetuar pequenas vendas), e,
Porém, essa explicação não basta das poucas que ascendem de posição
para esclarecer a entrada de mulheres na hierarquia do tráfico, são devido à
no “mundo do tráfico”, como esclarece ajuda e apoio aos chefes desta atividade
Guedes (2006). Este autor não descarta ilícita e das ações de extrema submis-
os fatores indicados acima, mas acres- são às ordens dos mesmos. Salienta-se
centa que a utilização do poder, o di- que “esta é uma referência à clássica
nheiro fácil, a autoridade e não submis- divisão sexual do trabalho, que destina
são às regras sociais podem motivar as às mulheres o trabalho doméstico, nor-
mulheres a se inserirem nesta atividade. malmente não remunerado, formando
CONFLUÊNCIAS | Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito. Vol. 18, nº 1, 2016. pp. 66-91 73
CURCIO, Fernanda Santos; Faceira, LOBELIA da Silva

os chamados ‘guetos femininos’, que se bém, como uma memória de resistência,


reproduz na esfera do tráfico de drogas” que se utiliza deste crime na tentativa de
(CORTINA, 2015, p. 767). romper com a posição de subalternidade?
Pimentel (2008), por sua vez, ob-
serva que muitas mulheres traficantes MEMÓRIAS DE SUBMISSÃO E DE
agem em nome do afeto. A autora afere RESISTÊNCIA?
que a “sujeição do feminino ao masculi- Em dados gerais disponibilizados
no, a mulher traficante passa a conceber pelo DEPEN, referentes a junho de
a sua própria identidade a partir do ou- 2014, nas prisões brasileiras 50% das
tro com o qual se relaciona afetivamen- mulheres privadas da liberdade pos-
te, de modo que até mesmo práticas ilí- suíam entre 18 e 29 anos, 68% eram
citas passam a povoar o seu cotidiano” negras, 58% possuíam o ensino fun-
(PIMENTEL, 2008, p. 4). damental incompleto, e, 68% estavam
Desta forma, dando prosseguimento presas devido a acusação de tráfico de
as análises e discussões, o momento sub- entorpecente. Este fato, em especial,
sequente pretenderá responder a seguin- apresenta sobressaltos quando se com-
te questão: o tráfico de drogas assume a para a proporção do aprisionamento
uma dupla estratégia, de manter uma me- masculino por tipo de crime, como se
mória de submissão da mulher; mas tam- verifica no gráfico abaixo:

Gráfico 1: Distribuição por gênero dos crimes tentados/consumados entre


os registros das pessoas privadas de liberdade. Brasil. Junho de 2014

Fonte: Infopen, jun/2014. Departamento Penitenciário Nacional/Ministério da Justiça.


74 CONFLUÊNCIAS | Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito. Vol. 18, nº 1, 2016. pp. 66-91
AS MEMÓRIAS DAS MULHERES TRAFICANTES

Diante da necessidade de se de- de das abstrações de pensamento. Isto


bruçar com mais severidade sobre o não significa uma recusa da forma pela
objeto deste estudo, realizou-se uma qual o elemento se manifesta, mas sim,
pesquisa de caráter qualitativo com compreendê-lo como uma dimensão
cinco egressas atendidas pelo Pa- superficial que compõe a complexidade
tronato Magarinos Torres- Anexo social, desvelando as tensões imanen-
Campos, após as autorizações da Se- tes do subjetivo e o social. O campo da
cretaria de Estado de Administração memória social ajuda neste movimento,
Penitenciária, da Vara de Execuções uma vez que possibilita compreender o
Penais do Estado do Rio de Janeiro e processo dinâmico da vida social, atra-
pelo Comitê de Ética da Universidade vessada por atores e memórias em dis-
Federal do Estado do Rio de Janeiro. puta que atuam na construção de subje-
A escolha das entrevistadas obede- tividades e estratégias de resistência.
ceu à ordem de comparecimento das O sujeito neste trabalho, por con-
usuárias, presas por tráfico de drogas, sequência, foi analisado na perspecti-
no Patronato Magarinos Torres-Ane- va de processualidade e em constante
xo Campos, durante o mês de maio conflito, performativamente produzido
de 2015. As participantes da pesquisa, e criativo, sendo a “subjetividade es-
num primeiro momento, foram adver- sencialmente fabricada e modelada no
tidas sobre o direito de optar em par- registro social” (GUATTARI; ROLNIK,
ticipar ou não do estudo, além disso, 2010, p. 40). Nesse sentido, o movimen-
foram informadas sobre os objetivos to metodológico se organizará na apre-
da pesquisa, os procedimentos que se- sentação das categorias resultantes das
riam utilizados e da confidencialidade análises das entrevistas realizadas, a ob-
das informações e de sua identificação. servação das contradições e perspecti-
Para tanto, de forma a preservar a iden- vas presentes nestes discursos, e as suas
tidade das entrevistadas utilizou-se a articulações com o objeto teórico.
identificação numérica, de acordo com A primeira pergunta direcionada as
a ordem de realização das entrevistas. entrevistadas era se, no entendimento
O que se propõe, neste momento, é delas, existia um papel pré-estipula-
o confronto entre os princípios teóricos do às mulheres. Quatro entrevistadas
e as significações que estas mulheres apresentam em seus discursos uma
atribuem ao fenômeno ora estudado. compreensão crítica em relação a esta
Sabe-se que os fenômenos sociais questão, as mesmas afirmavam que
não podem ser estudados e analisados homens e mulheres não possuíam os
descolados de mediações históricas con- mesmos papeis e isso era imposto pela
cretas, logo, a sua interpretação depen- sociedade. Algumas apontaram algu-
CONFLUÊNCIAS | Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito. Vol. 18, nº 1, 2016. pp. 66-91 75
CURCIO, Fernanda Santos; Faceira, LOBELIA da Silva

mas funções “tipicamente femininas”, 2009) indiquem que nos últimos anos as
que aprenderam com suas mães, avós mulheres vêm optando por casar e ter fi-
ou tias ao longo de sua infância até a lhos mais tarde, com o intuito de garan-
vida adulta. Dentre elas, seria o cuida- tirem o seu futuro profissional, compre-
do da casa, dos filhos e do marido. ende-se que este fenômeno pode sofrer
Uma entrevistada, além deste pon- interferência de alguns elementos, como
to, ressalta a cobrança social em rela- escolaridade e classe social. Contudo, os
ção ao comprometimento amoroso da mesmos autores, em pesquisa desenvol-
mulher e a necessidade de estar se rela- vida com homens e mulheres, alertam
cionando amorosamente com alguém, que há diferenças significativas em re-
para que assim, sua vida estivesse com- lação aos motivos socioeconômicos que
pleta, em suas palavras, levam ao casamento. De acordo com o
resultado da pesquisa, as mulheres ain-
A mulher não é vista igual da se sentem mais cobradas a dar mais
o homem... a sociedade cobra satisfação à sociedade no que se refere
da gente posturas diferentes. A ao seu estado civil e relacionamentos.
mulher tem que cuidar dos fi- Tal fato pode também estar atrelado a
lhos... ser boa dona de casa, boa uma herança cultural em que o valor da
companheira. Se um homem mulher estava submetido a sua capaci-
não casa ninguém se preocupa, dade ou incapacidade para o casamento.
mas se a mulher for ficando ve- A mesma egressa ainda relata sobre
lha e não tem marido as pesso- a diferença de funções e trabalhos de-
as ficam falando e perguntan- sempenhados por homens e mulheres, e
do... (ENTREVISTADA 4). que no seu entendimento, é algo que não
é natural, mas sim uma cobrança social
É interessante destacar neste discur- que acaba por influenciar na dimensão
so que a entrevistada aponta para a di- laboral. A entrevistada 4 afirma: “Tem
ferença de papeis impostos socialmente trabalhos, por exemplo, que as mulhe-
a homens e mulheres. Nesse sentido, res não podem fazer, porque os outros
funções como cuidado dos filhos, ma- acham que é pra homem. [...] a sociedade
nutenção do lar e do relacionamento vê diferenças sim”. Em algumas declara-
afetivo são, no entendimento da mes- ções feitas em momentos posteriores há
ma, relegadas às mulheres. Outro ponto discretas, mas relevantes, críticas à socie-
que merece destaque é a maior depen- dade e suas imposições aos indivíduos:
dência de uma relação afetiva por parte
das mesmas. Mesmo que alguns estu- A gente pode querer ser
dos (ZORDAN, FALCKE & WAGNER, igual, fazer as mesmas coisas,
76 CONFLUÊNCIAS | Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito. Vol. 18, nº 1, 2016. pp. 66-91
AS MEMÓRIAS DAS MULHERES TRAFICANTES

mas sempre vai ter alguém pra para dominar um território, para
dizer que não pode, a socieda- dominar um espaço. Pode até ser
de sempre vai te impor limites para sustentar a casa, mas acho
(ENTREVISTADA 5). que o poder e domínio está ali
também (ENTREVISTADA 2).
Verifica-se que essas imposições e Em alguns casos sim, às
influências na constituição de papeis vezes por precisar muito de di-
que cabem a homens e mulheres, além nheiro, e dinheiro rápido... mas
de uma interferência mais ampla, como em outros casos não. Mas a
a sociedade e instituições de uma forma mulher levar o homem pra esse
geral, atuam e se tornam mais incisivas, mundo eu acho mais difícil, o
ou talvez mais claras, no ambiente fami- homem é mais egoísta, ele pen-
liar, como sinalizado anteriormente. sa mais nele, não vai dar um
No segundo núcleo de análise, em mole desse por causa de mulher,
relação ao cometimento do tráfico de ele arruma outra rapidinho
drogas, as entrevistadas foram indaga- (ENTREVISTADA 5).
das se os motivos que levam os homens
a traficarem são, ou não, os mesmos que Nota-se que na primeira declaração
os das mulheres. Manifestam-se aqui, a entrevistada apresenta um discurso
duas categorias. Todas acreditam que similar a ideia apresentada pela entre-
homens e mulheres traficam sim por vistada 4 anteriormente. Aquela aponta
motivos diferentes, mas, duas apontam como um dos motivos do envolvimento
que, em alguns casos, os motivos são de mulheres com o tráfico de drogas a
similares. Abaixo estão representadas manutenção do relacionamento afetivo.
essas duas perspectivas: Verificam-se também nestes dis-
cursos os estereótipos relacionados ao
[...] muitas mulheres tra- masculino, em que o ato de traficar por
ficam por homem, por amor... parte dos homens, para as entrevistadas,
com medo de ficarem sozi- é resultante deste posicionamento frio,
nhas, de perderem quem elas objetivo, provedor, calculista, racional e
amam. O homem não, às vezes dominador atribuído aos homens.
é por dinheiro, ou para os ou- É importante considerar que o meio
tros respeitarem ele, para mos- social também cobra aos homens posi-
trar que domina tudo ali [...] cionamentos definidos, ações, papeis e
(ENTREVISTADA 3). reações. Kaufman (1987), nesse sentido,
Não são os mesmos motivos esclarece que mesmo reconhecendo a do-
não. O homem entra no tráfico minação dos homens, estes são memori-
CONFLUÊNCIAS | Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito. Vol. 18, nº 1, 2016. pp. 66-91 77
CURCIO, Fernanda Santos; Faceira, LOBELIA da Silva

zados e embrutecidos pela mesma estru- mesmo tempo em que esta atividade é
tura que os privilegia e os atribui poder. fundamentalmente salteadora, ela pro-
Se num primeiro momento as en- move algum tipo de inserção no meio
trevistadas ressaltam as desigualdades social ao garantir dinheiro, capacidade
de gênero presentes na sociedade, ago- de consumo, poder e reconhecimento,
ra, contraditoriamente, elas não perce- que, de certa forma, aliviam a margina-
bem que seus discursos reproduzem os lidade no qual os sujeitos se encontram.
estereótipos impostos. Essas exposições Ao serem indagadas sobre os
são resultado dos preconceitos, experi- motivos que as levaram a praticar a ven-
ências, representações e memórias que da de drogas, surgem três categorias. A
elas trazem ao longo da vida. primeira é composta por três mulheres
Por fim, o último relato ainda des- que relacionam a prática deste ato ilícito
taca a interferência de questões econô- a um envolvimento amoroso. Elas não
micas, ao apontar como um dos moti- descartam outros determinantes, como
vos de envolvimento com o tráfico de dificuldades financeiras, poder ou para
drogas de mulheres e homens a ques- manter o uso de drogas, mas, a relação
tão econômica. O comércio de drogas, do companheiro e a sua entrada no trá-
como se verifica, possui como elemen- fico é preponderante, como se observa
tos de permanência e de formação à nas declarações a seguir
vida paralela ao mercado formal de
trabalho. Tal ocupação também obede- [...] acabei descobrindo que
ce à lógica do sistema capitalista, sur- ele traficava, fiquei com muito
gindo como uma reação à margina- medo, tanto por mim, quanto
lidade econômica e social. O tráfico por ele... de acontecer alguma
se manifesta como uma possibilidade coisa com ele. Aí, ele um dia
ilegal aos muitos trabalhadores que aca- precisou ir buscar a droga na co-
bam por não conseguir, ou, por não vis- munidade para deixar com uma
lumbrar, outra alternativa no mercado outra pessoa, e eu, com medo de
formal ou informal de trabalho. deixar ele sozinho, acabei indo
Parte-se do entendimento de que com ele. [...] eu realmente ama-
homens e mulheres ao traficarem dro- va ele [...]. Nós fomos de moto,
gas vivenciam a realidade à margem aí no meio do caminho a polícia
dos mecanismos sociais dominantes, parou a gente e achou a droga
uma vez que desempenham uma (ENTREVISTADA 4).
ação ilegal, carregada de uma memó- O meu companheiro era
ria negativa e impudica. Porém, este envolvido com o tráfico de dro-
fato traz em si um paradoxo, pois ao gas e um dia ele precisava levar
78 CONFLUÊNCIAS | Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito. Vol. 18, nº 1, 2016. pp. 66-91
AS MEMÓRIAS DAS MULHERES TRAFICANTES

drogas para um determinado Novaes (2010), por exemplo, reduz este


lugar, só que ele não podia, fato ao afirmar que os autores, ao acredi-
porque a polícia já estava vi- tarem que o envolvimento das mulheres
giando ele. Então ele pediu que no tráfico de drogas pode estar marcado
eu fizesse isso. Eu fiquei com pela presença masculina, trazem uma vi-
medo, mas acabei fazendo. Eu são lombrosiana do século XIX, em que
amava muito ele. Ele era muito as mulheres tornam-se “criminosas por
importante pra mim. Ele ficava paixão” (NOVAES, 2010, p. 13).
falando que se eu gostasse dele Esta crítica limitada desconsidera
de verdade eu faria isso por ele tal determinante que compõe o fenô-
(ENTREVISTADA 3). meno ora estudado. Muitos autores têm
se dedicado a discutir este tema, perce-
Na primeira declaração a referi- bendo que o discurso amoroso pode e
da entrevistada fala sobre o medo de funciona como dispositivo de poder.
deixar o companheiro sozinho no Luhmann (1991) caracterizou o amor
momento de transporte da droga. A como um fenômeno histórico, que só
mesma ressalta em seu relato o envol- se realiza diante da incorporação de um
vimento e o forte sentimento que vi- código social partilhado pelo sujeito em
venciava naquele momento. Ela não interação com o outro. Para tanto, na
esclarece nesse momento se tentou visão do autor, o amor deve ser anali-
ou não convencê-lo a não transportar sado com base nas especificidades tanto
o produto ilícito. A segunda entrevis- culturais, quanto ideológicas.
tada, por sua vez, não acompanhou o O amor, na qualidade de um meio
companheiro, mas sim assumiu a ação de comunicação, não pode ser com-
pelo mesmo. Ela afirma que sentiu preendido como um sentimento em si
medo de cometer tal ato, contudo, se mesmo. Beall e Sternberg (1995) perce-
sentiu pressionada pelo companhei- bem que o amor não se manifesta como
ro. Nota-se, neste segundo relato, que uma experiência universal, ou como
o mesmo utilizou de uma chantagem, uma realidade objetiva, homogênea e
em que o transporte da droga serviria irreversível, mas que sofre interferências
como uma “prova de amor”. culturais e temporais. Os significados do
Nos dois discursos fica claro o com- amor, então, derivam dos determinantes
prometimento destas mulheres em re- históricos, temporais e culturais, subja-
lação aos seus companheiros. Algumas centes à sua compreensão.
obras que tratam da criminalidade femi- Hatfield (1988) esclarece que ho-
nina, mais especificamente referente ao mens e mulheres, enquanto seres so-
tráfico de entorpecentes, negam este fato. ciais, internalizam códigos e discursos
CONFLUÊNCIAS | Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito. Vol. 18, nº 1, 2016. pp. 66-91 79
CURCIO, Fernanda Santos; Faceira, LOBELIA da Silva

a respeito do amor, e isso, acaba por a igualdade entre homens e mulheres


influenciar as vivências das relações de nas relações e no comprometimen-
afeto. Este processo de institucionali- to emocional e afetivo. Tal transição,
zação, a partir da memória, subordina para o autor, apresenta uma estreita re-
a forma como se entende as próprias lação com as mudanças que ocorreram
experiências amorosas. Estas se funda- no estatuto social das mulheres.
mentam na matriz cultural de um dado Contudo, como aferem Langford
lugar e momento histórico, com uma (1997) e Neves (2007), este fato, ao con-
função social reguladora. trário do que muitos autores apontam,
As memórias do amor, de como ele não fizeram com que as relações amo-
é vivido e como deve ser experimentado rosas se tornassem mais democráticas,
nas relações afetivas, não só podem con- uma vez que não eliminou-se a respon-
trolar o curso dessas relações, mas tam- sabilização das mulheres na preserva-
bém, manter e reproduzir as assimetrias ção dos laços familiares e afetivos.
entre os sexos, transversais à vida social. Bourdieu (2002, p. 128) fundamen-
Neves (2007) salienta que continuamen- tando a sua teoria sobre a dominação
te o amor é classificado como feminino, masculina questiona se “seria o amor
sendo percebido e tratado como senti- uma exceção, a única, mas de primeira
mento e preocupação das mulheres. grandeza, à lei da dominação masculi-
Aquilo que é lembrado ou esquecido na, uma suspensão da violência simbó-
ao longo da história não é eterno e na- lica, ou a forma suprema, porque a mais
tural, mas sim uma práxis de eterniza- sutil e a mais invisível, desta violência”.
ção que se dá por meio das instituições. É óbvio que isto na atualidade vem
Os homens e as mulheres, pertencentes sendo obscurecido diante de fenôme-
aos grupos sociais, conscientemente ou nos referentes às representações das
não, reafirmam os valores apreendidos mulheres e suas novas posições sociais,
e os retransa às gerações futuras. políticas e econômicas: grande inser-
Guiddens (2001) esclarece que en- ção no mercado de trabalho, autono-
tre os século XIX e XX ocorre a tran- mia financeira, aumento de sua parti-
sição do modelo de amor romântico cipação como responsável pela renda
– essencialmente feminilizado e fun- familiar, entre outros exemplos. Po-
damentado num ideal de completude rém, as práticas de sujeição ao homem
da relação amorosa, que se manifesta existem, sendo formadas a partir de
deste o final do século XVIII – para o valores ideológicos que advêm de uma
amor confluente. Este não se norteia cultura fortemente masculinizada, que
por identificações projetivas ou em constituem os papeis da mulher e do
ideias de completude, mas pressupõe homem em suas relações para com o
80 CONFLUÊNCIAS | Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito. Vol. 18, nº 1, 2016. pp. 66-91
AS MEMÓRIAS DAS MULHERES TRAFICANTES

mundo e em suas relações de afeto. Ainda salienta que: “o tráfico é um


Contudo, é interessante destacar que trabalho, como posso dizer...? Acho que
este trabalho parte do entendimento engraçado, porque ele não te exige tan-
que não é preexistente nesta relação tas coisas, como cursos, educação... ele
o dominante e/ou o dominado, algoz tá ali” (ENTREVISTADA 1). O primei-
e/ou a vítima, na verdade eles se cons- ro relato traz informações importantes.
troem mutuamente diante das relações A entrevistada esclarece que antes de
de poder que vão se construindo ao começar a traficar ela não possuía um
longo da vida. Além disso, compreen- emprego fixo e com adequado rendi-
de-se aqui a dominação dentro de uma mento. Além disso, ela começou a fa-
perspectiva focaultiana, em que aquela zer uso de drogas, ficando dependente
não é estática e absoluta, muito menos das mesmas. Dando continuidade ao
é um fenômeno unilateral ou bilateral. seu discurso, ela afirma que o tráfico
A vida social comporta “momentos de de drogas é um trabalho, e que este não
dominação”, e o poder não é uma coisa exige escolaridade e qualificação pro-
que pertence a uns e não aos outros, na fissional. A “entrada” no tráfico de
verdade ele funciona como uma rede drogas vai além de uma transgressão
transversal a toda sociedade, promo- penal, constituindo uma oportunida-
vendo a possibilidade de resistência. de de trabalho, que possa vir a superar
Dando prosseguimento a análise a difícil situação financeira. Este comér-
das entrevistas, a segunda categoria que cio ilícito desloca-se junto à abertura
surge diante da pergunta referente ao dos mercados e se constitui como um
motivo de envolvimento com o tráfico negócio qualquer, que oferece chan-
é composta por uma entrevistada que ces a estes trabalhadores que o mer-
afirma que praticou o crime devido às cado de trabalho formal não propicia.
condições de pobreza que ela e sua fa- Como toda atividade capitalista,
mília viviam e para custear o vício das é necessário que se garanta a sua es-
drogas. Ela esclarece: trutura e organização, e que os traba-
lhadores se comprometam a garantir
[...] eu não conseguia em- o acesso dos consumidores. Embora
prego decente, só bicos [...]. Aí sendo uma atividade ilegal, o comércio
comecei a usar drogas. A ques- das drogas possui obrigações, normas
tão do emprego então ficava e pactos a serem cumpridos. Trabalha-
cada vez mais difícil. O tráfico dores e trabalhadoras do tráfico sabem
foi então a oportunidade de a que estão submetidos, pois o mesmo
sustentar a casa e o meu vício meio que os mantêm vivos, é aquele
(ENTREVISTADA 1). que pode custar suas vidas.
CONFLUÊNCIAS | Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito. Vol. 18, nº 1, 2016. pp. 66-91 81
CURCIO, Fernanda Santos; Faceira, LOBELIA da Silva

A terceira e última categoria, tam- coisas dentro de casa, querer


bém composta por uma mulher, perce- ter aquilo que os outros têm e
be no comércio ilícito de entorpecentes você não pode comprar porque
uma possibilidade de aquisição de po- é pobre. Mas o tráfico também
der, vaidade e respeito, como se percebe é vaidade. Quando você é tra-
na declaração a seguir: ficante você se torna poderosa,
começa a ter muita moral, você
Eu namorava um homem se torna a poderosa chefuda
que era traficante, acabei tendo (ENTREVISTADA 5).
uma filha com ele. Mas eu não
me envolvia nesse lance (tráfi- No primeiro relato, a entrevistada
co de drogas). Nós rompemos. declara que passou a conhecer a orga-
Eram muitos os motivos... ele nização e funcionamento do comércio
era o tipo de pessoa que ado- ilícito das drogas a partir do namorado.
rava ficar contando vantagem, A sua relação com o mesmo era contur-
que era o fodão, era mulherengo bada e, por certos motivos – que não fo-
[...] Não aguentei mais isso. Aí, ram muito esclarecidos – foi levada ao
como já conhecia mais ou menos término. A entrevistada afirma que aca-
o trabalho que ele fazia e as pes- bou se acostumando com as facilidades
soas, acabei entrando no tráfico de consumo e opulência que usufruía
para disputar com ele, e como eu quando se relacionava com namorado.
me acostumei, me viciei com a Mas, além disso, a vontade de se mostrar
ostentação, né, quando a gente superior e de disputar com o mesmo fo-
tava junto, acabei traficando. Eu ram, talvez, os fatores preponderantes
não passava dificuldade dentro da sua inserção no tráfico de drogas.
de casa, o meu pai sempre me Num segundo momento a entrevis-
ajudou muito. Comecei a dispu- tada aponta para a facilidade de ganhar
tar com ele, disputar os clientes. dinheiro dentro do comércio de dro-
Queria mostrar que eu era me- gas. Como se sabe, assumindo a ilega-
lhor que ele, e que não precisava lidade e a clandestinidade, o tráfico de
dele para ter dinheiro, que eu drogas é a fonte de altos lucros. Além
não precisava dele pra nada [...] disso, fazer parte desta rede promove o
(ENTREVISTADA 5). consumo, traz uma sensação de valori-
[...] Tráfico é dinheiro fácil, zação e de reconhecimento social, que
é uma oportunidade que surge outrora não era visto como possível.
pra você ganhar um dinheiro, Barcinski (2009) esclarece que di-
dinheiro pra você colocar as versos fatores favorecem na inserção das
82 CONFLUÊNCIAS | Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito. Vol. 18, nº 1, 2016. pp. 66-91
AS MEMÓRIAS DAS MULHERES TRAFICANTES

mulheres no tráfico, destacando alguns É importante que se considere as


como: as precárias oportunidades de tra- memórias que ajudam a construir os
balho formal, a alternativa de pertencer papeis impostos que cabem a homens
a uma forte rede de sociabilidade e o an- e mulheres, cristalizando as ações, per-
seio de conquistar poder e status, numa cepções e discursos que perpetuam es-
cultura fortemente masculinizada. Ne- tigmatizações e estereótipos.
gar esses fatos, para a autora, só faz natu- É possível que se afirme que o trá-
ralizar e afirmar a ideia estereotipada de fico de drogas surge para essas mulhe-
que as mulheres são frágeis e sensíveis. res como uma estratégia de resistência,
movimento este trabalhado por Fou-
Envolvidas em uma ativida- cault? Como confrontar a(s) verda-
de masculina, em que o poder de(s) sem suspeitar que a(s) mesma(s)
reconhecidamente pertence aos é (são) incessantemente manifestações
homens, podemos supor que o de um poder que sujeita? As respostas
poder experimentado por es- de tais indagações não são simples e,
sas poucas mulheres traficantes nem tão certo, imediatas.
adquira ainda mais relevância. O poder, diante das relações de for-
Em outras palavras, ser mulher ças, que fundamentam e reproduzem
envolvida no tráfico distancia ações e afetos, não é algo subjugado a
as participantes de outras mu- determinados grupos e não a outros.
lheres ao seu redor, fazendo Na verdade, como já aferido anterior-
com que elas experimentem o mente, os poderes encontram-se em
poder outrora somente experi- toda parte, e não tão somente no Es-
mentados por homens (BAR- tado e nas suas instituições, mas acima
CINSKI, 2009b, p. 1847). de tudo, na própria dimensão subjeti-
va e na produção de memória, atuando
Acreditar na incapacidade das mu- na produção de indivíduos sujeitados
lheres em cometer crimes é ratificar e às tecnologias de saber-poder que atra-
naturalizar o estereótipo de fragilida- vessam o corpo social.
de e docilidade que entoam a figura Foucault (1995) compreende que o
feminina. O aumento da participação poder e o saber são estruturas intrica-
de mulheres em atos criminosos é um das, em que as práticas de poder não
fato, e tal fenômeno indica a heteroge- são apenas coercitivas e repressoras,
neidade dessas criativas inserções e de mas, sobretudo, produtivas e diversas
modos de subjetivação que, inventam, que exercem “práticas e técnicas que
resistivamente, um “caleidoscópio de foram inventadas, aperfeiçoadas e se
contradições” (FRIEDMAN, 1998). desenvolvem sem cessar. Existe uma
CONFLUÊNCIAS | Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito. Vol. 18, nº 1, 2016. pp. 66-91 83
CURCIO, Fernanda Santos; Faceira, LOBELIA da Silva

verdadeira tecnologia do poder, ou mas quando resistimos criamos possi-


melhor, de poderes, que têm cada um bilidades de existência a partir de com-
sua própria história” (Foucault, 1999, posições de forças inéditas. Resistir é,
p. 241). Diante disso, cada contexto so- neste aspecto, sinônimo de criar”. Este
cial, espacial e temporal apresenta um movimento encontra-se em constante
regime de verdades que atuam e que movimento, atualizando-se de acordo
se utilizam de diferentes mecanismos com as novas formas de poder que se
para a sua produção e reprodução. Tais manifestam na vida social.
verdades/memórias, para Foucault Os modos de subjetivação que se
(1999) nunca estarão descoladas do constituem pela trama de poder que
sistema de poder, e, mais que isso, não lhe é imposta e condicionada, apresen-
há a verdade sem o poder. ta também, uma abertura, ou melhor,
Porém, além de perceber o exercício uma superfície com possíveis escolhas
de poder como um processo múltiplo, e caminhos. Nessa perspectiva, as cons-
é importante que não se conceba a do- tituições subjetivas, submetidas histori-
minação como um fenômeno imóvel e camente, abrem espaço para a invenção
absoluto. No pensamento foucaultiano, de novas práticas, práticas de si, que dá
diferente do entendimento clássico, o corpo a subjetividade como memória.
que ocorre na verdade são momentos Este processo pode ser entendido
de dominação, com mutabilidade e ins- como dobras, ou seja, um exercício de
tabilidade nas disposições e organiza- construção do subjetivo vista como um
ções do exercício do poder. “dentro” em enfrentamento com os estí-
A sujeição diante dos estímulos do mulos do poder do “fora” (MACIEL JU-
poder, como já se sabe, se redobra, como NIOR, 2014). A partir das contribuições
uma resposta as suas incitações. O do- de Deleuze (2005), compreende-se que
brar age numa “linha de força”, que age tal movimento se dá em quatro etapas:
na invenção de diferentes e novos mo-
dos de existência, que “não cessam de se A primeira, diz respeito a
recriar”, resiste “ao poder bem como se parte material de nós mesmos,
furtar ao saber, mesmo se o saber tenta que irá ser rodeada, apanha-
penetrá-lo e o poder apropriar-se deles” da na dobra: entre os Gregos,
(DELEUZE, 1991, p. 116). era o corpo e seus prazeres, os
O resistir, neste entendimento, “aphrodisia”, mas, entre os cris-
como esclarece Maciel Junior (2014, tãos será a carne e os seus dese-
p. 2), é o contrário de reagir, uma vez jos, o desejo, uma modalidade
que “quando reagimos damos a res- substancial inteiramente di-
posta àquilo que o poder quer de nós; versa. A segunda, é a dobra do
84 CONFLUÊNCIAS | Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito. Vol. 18, nº 1, 2016. pp. 66-91
AS MEMÓRIAS DAS MULHERES TRAFICANTES

relacionamento de forças pro- jugação a que são impostas, tanto em


priamente dita; pois que é sem- suas relações para com o mundo, mas
pre segundo uma regra singular também em suas relações de afeto.
que o relacionamento de forças A oposição do sujeito ao poder não
é submetido para se tornar re- é uma dinâmica simples. Nem toda luta
lacionamento a si... A terceira ou conflito é, efetivamente, luta de re-
é a dobra do saber, ou a dobra sistência ao poder. Vê-se a última dobra
da verdade na medida em que
constitui um relacionamento [...] como teleologia ética
com o nosso ser, e do nosso ser cumprida. A interioridade de
com a verdade, que servirá de expectativa que faz durar o su-
condição formal a todo e qual- jeito é a própria memória do
quer saber, a todo e qualquer fora. O dentro do fora que se
conhecimento. A quarta, é a cumpre definitivamente na rup-
dobra do próprio Fora, a derra- tura continuada. Nesse nível, a
deira: é ela que constitui aquilo perseverança no ser irá se sus-
a que Blanchot chamava uma tentar em um conjunto de cren-
“interioridade de expectativa”; ças no futuro fundamentadas
pois é dela que o sujeito espera, na memória do fora. O que me
de diferentes modos, a imortali- é permitido esperar do fora? Se é
dade, ou então a eternidade, ou preciso chegar a essa derradeira
a salvação, ou a liberdade, ou a dobra é porque ela nos fornece
morte, o desprendimento (DE- a razão das demais: pois resistir
LEUZE, 2005, p. 140). e problematizar, mal ou bem,
todos nós fazemos nos impasses
O sujeito, enquanto um aglomera- cotidianos, mas perseverar em
do de hábitos e lembranças que acabam uma ruptura implica ir além do
por interferirem no seu modo de viver, presente estabelecido, mantendo
irá se constituir diante das diversas do- com o futuro uma relação durá-
bragens. A quarta, e última dobra, é um vel que pressupõe uma memória
movimento que ajudará a compreender de longa duração. Se a produção
e responder a questão elucidada ante- dessa memória coincide com a
riormente em relação à natureza do ato teleologia do sujeito moral e se
de traficar por parte dessas mulheres, se essa teleologia nunca é definiti-
seria ou não um ato de resistência, no va, pensar – como inflexão de si
sentido de perceberem neste ato ilícito por si – é sempre se questionar,
uma oportunidade de contrastar a sub- é devir, visando constituir uma
CONFLUÊNCIAS | Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito. Vol. 18, nº 1, 2016. pp. 66-91 85
CURCIO, Fernanda Santos; Faceira, LOBELIA da Silva

verdadeira substância ética dedicada ao amor romântico e


(MACIEL JUNIOR, 2014, p. ao lar, se mostraram, escondida
6-7). ou abertamente, como delitu-
osas, capaz de cometer crimes.
Diante disso, podem-se aferir duas Muitas mulheres, o tempo todo
afirmativas. A primeira é a de que di- controladas até por elas mesmas,
versos movimentos supostamente con- se rebelam contra um status fe-
testadores são, na verdade, lutas que minino que lhes fora imposto no
intentam pela legitimação ou inclusão decorrer dos séculos, bem como
de suas ações e ideias ao arranjo social. contra maus-tratos, contra a
Estas disputas, longe de romperem com submissão e também contra a
as estruturas de poder, as reproduzem, subestimação de sua capacidade
contribuindo para a expansão de suas de delinquir. Ousaram transgre-
tecnologias de individuação. dir para viver o próprio dese-
A exemplo disso, em pesquisa de- jo, sua verdade, a própria vida
senvolvida com mulheres traficantes, (ALMEIDA, 2001, p. 100).
Barcinski (2009b) pôde perceber que
quando determinadas entrevistadas re- Contudo, este fato, longe de resistir
lacionavam o envolvimento com o crime a organização social, esta extremamen-
a partir da busca de poder, percebiam o te machista e sexista, contribui para a
tráfico como uma “atividade masculina”, normatização do poder. É aqui que se
e mais que isso, ao experimentarem o pode apresentar a segunda afirmativa
poder, elas se distanciavam, sobretudo, sobre a última etapa da dobra: toda
das outras mulheres. Isso significa que, luta acaba por ser incorporada pelo
mesmo exercendo poder e autoridade enredo do poder. Foucault, ao mostrar
sobre os homens, ao assumir determi- que este não apenas seleciona recor-
nada posição na hierarquia do comércio dações mas, também, produz a pró-
ilícito das drogas, em alguns relatos, era pria lembrança, aponta que lembrar e
em relação às outras mulheres que as esquecer não são só selecionados pelo
traficantes se sentiam superiores. Nes- poder, mas são por ele constituídos.
ta situação, havia o reconhecimento por Nessa lógica, como esclarece Gondar
parte dos homens e temor e respeito em (2003), para Foucault construção de
relação às mulheres. Assim, subjetividade é uma construção de
memória, logo, é um espaço de poder.
As mulheres que por muito Mas, como compreende a autora, os
tempo foram representadas e processos de subjetivação não se redu-
representantes da figura pacata, zem ao assujeitamento ou a simples rea-
86 CONFLUÊNCIAS | Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito. Vol. 18, nº 1, 2016. pp. 66-91
AS MEMÓRIAS DAS MULHERES TRAFICANTES

ção de oposição. Por meio de novos mo-


lheres presas por envolvimento com o
dos de subjetividade, e não mais de exis-
tráfico de drogas é um fenômeno mul-
tências individualistas e empobrecidas
tifacetado, que antes de tudo, merece
forjadas pelas tecnologias do poder, se
uma discussão e inter-relação entre o
manifesta um trabalho contínuo de re-crescimento deste crime entre o univer-
sistências que contestam os sistemas he-
so feminino e a questão de gênero.
gemônicos de poder. A memória, aqui, Ao se propor analisar este universo,
deixa de ser entendida como um espaçonão se pode explicá-lo apenas pela in-
sem demonstrativos de ação, “que ape-fluência de seus maridos e companhei-
nas recebe inscrições codificadas para
ros, apesar de tal circunstância de fato
torna-se uma superfície vibrátil, reagin-
existir. Verifica-se diante dos resultados
do à inscrição dos movimentos” (GON- alcançados pela pesquisa que as dificul-
DAR, 2003, p. 35). É claro, que a formas
dades financeiras e de inserção no mer-
e movimentos de resistência nunca se-cado formal de trabalho podem fomen-
rão os mesmos, variando de acordo comtar a inserção das mulheres (entrevis-
os códigos de assujeitamento. tadas na pesquisa) no comércio ilícito
Então, compreendendo que “alguns das drogas. Há situações, também, que
crimes cometidos por mulheres escla- o dinheiro, o poder e o respeito que ex-
recem melhor as ambiguidades de uma perimentavam no tráfico foram os prin-
sociedade e seus conflitos” (CAMPOS; cipais motivadores para suas escolhas.
TRINDADE; COELHO; 2008, p. 4) e Mas, ao mesmo tempo em que es-
que o tráfico, num primeiro momento, sas personagens percebem no comér-
funciona para algumas mulheres como cio ilícito das drogas uma oportunida-
uma possibilidade de romperem com de para obter o reconhecimento social,
as contradições e jogos de poder a que
descobre-se que as relações violentas,
estão submetidas, posteriormente, eledesiguais e discriminatórias de gênero
surge como um campo de reprodução culminam, também, neste espaço, uma
da dominação e subjugação. Esta dinâ-vez que as atividades por elas desenvol-
mica, longe de promover a liberdade, vidas são inferiores e secundárias na
proposta por Foucault nos ensejos de hierarquia do tráfico.
resistências, poderá trazer duras con- Por outro lado, o ato de traficar,
sequências para a vida dessas mulheres.
oferecendo determinado tipo de po-
der a essas mulheres e em específicas
CONSIDERAÇÕES FINAIS situações, age também na cristaliza-
Depreende-se, ao longo do que foi ção de papeis e identidades, coibindo
apresentado anteriormente, que o au- composições criativas e resistências
mento expressivo do número de mu- efetivas. Mesmo que pareça, num pri-
CONFLUÊNCIAS | Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito. Vol. 18, nº 1, 2016. pp. 66-91 87
CURCIO, Fernanda Santos; Faceira, LOBELIA da Silva

meiro momento, como uma estratégiavol.58 no.4 São Paulo Oct./Dec. 2006.
de resistência à condição de submis-
Disponível em: <http://cienciaecultura.
são e docilidade impostas às mulheres
bvs.br/s cielo.php?pid=S0009-
nas suas relações para com o mundo e
67252006000400020&script=sci_
nas suas relações de afeto, essa prática
arttext >. Acesso em: 10 out. 2015.
não rompe com as oposições e opres- ALMEIDA, Rosemary. Mulheres
sões a que são submetidas. O que se
que Matam. Rio de Janeiro: Relume
manifesta é um outro tipo de circuito de
Dumará, 2001.
correlações de forças que reiteram umaBEALL, Anne. STERNBERG, Ro-
memória de dominação e desigualdade
bert. The Social Construction of Love.
que vem marcando as relações de ho-
Journal of Social and Personal Rela-
mens e mulheres ao longo da história.
tionships, n. 12, p. 417-438, 1995.
Porém, diante dessas memórias pa- BARCINSKI, Mariana. Protagonis-
radoxais, manifestam-se contradições,
mo e vitimização na trajetória de mulhe-
enfrentamentos e disputas que abrem
res envolvidos na rede do tráfico de dro-
a possibilidade de resistências legítimas
gas no Rio de Janeiro. Ciência & Saúde
e efetivas que suscitam o novo. Surge,
Coletiva, v.14, n.2, p.577-586, 2009.
neste momento, a imprescindibilidade __________. Centralidade de gêne-
de se remeter ao campo da memória,ro no processo de construção da identi-
pois esta, sofrendo um eterno processo
dade de mulheres envolvidas na rede de
de construção e transformação, tem no
tráfico de drogas. Ciência e Saúde Co-
durante seus conflitos, disputas e emba-
letiva, v.14, n.5, p.: 1843 - 1853, 2009b.
tes. É também neste campo que se ma- BEAUCHESE, Line. Legalizar as
nifesta o ato criativo. Em tal contexto é
drogas: para melhor prevenir os abusos.
possível vislumbrar formas e processos
Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2015.
de liberdade, pois, se num primeiro BECKER, Howard. Outsiders: stu-
momento a memória se afirma como dies in the sociology of deviance. New
um instrumento de poder, ulteriormen-
York: The Free Press, 1997.
te, mostra-se também como uma arma BOURDIEU, Pierre. A dominação
que dá forma ao novo e que auxilia o
masculina. Tradução Maria Helena
sujeito no uso de seu talento mais inve-
Kühner. 2ª ed. Rio de Janeiro: Ber-
jável: o ato criativo de modificar-se.
trand Brasil, 2002.
BRASIL. Ministério da Justiça. In-
REFERÊNCIAS fopen, 2015. Disponível em: <http://www.
ABRAMO, Laís. Desigualdades infopen.gov.br/>. Acesso em 25 nov 2015.
de gênero e raça no mercado de BUTLER, Judith. Problemas de
trabalho brasileiro. Cienc. Cult. Gênero. Rio de Janeiro: Civilização
88 CONFLUÊNCIAS | Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito. Vol. 18, nº 1, 2016. pp. 66-91
AS MEMÓRIAS DAS MULHERES TRAFICANTES

Brasileira, 2003. Vozes, 2006.


CAMPOS, Marcelo da Silveira. Pela FOUCAULT, Michel. O sujeito e o
metade: as principais implicações da poder. In.: DREYFUS, H.; RABINOW,
nova lei de drogas no sistema de jus- P. (Orgs.), Michel Foucault: uma traje-
tiça criminal em São Paulo. São Paulo, tória filosófica: Para além do estrutura-
2015. Tese (Doutorado em Sociolo- lismo e da hermenêutica Rio de Janeiro:
gia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Forense Universitária, p.231-249, 1995.
Ciências Humanas – Universidade de _____________. Estética, ética e
São Paulo. São Paulo, 2015. hermenêutica. Tradução A. Gabilondo.
DELEUZE, Guilles. Conversações. Buenos Aires, Argentina: Paidós, 1999.
Rio de Janeiro, Ed 34, 1991. (Obras Essenciales, vol. 3).
_________. Foucault. Tradução de FRIEDMAN, Susan. Beyond Gender.
Claudia Sant’Anna Martins. Revisão da In Mappings: Feminism and the Cultural
tradução de Renato Ribeiro. São Paulo: Geographies of Encounter. Princeton:
Brasiliense, 2005. Princeton University Press, 1998.
CAMPOS, Arruda; TRINDADE GIDDENS, Anthony. Transforma-
Liana.; COELHO, Lúcia Maria. Mulhe- ções da intimidade: sexualidade, amor
res criminosas na abordagem interdis- e erotismo nas sociedades modernas.
ciplinar. Pesquisa em Debate, São Pau- Oeiras: Celta Editora, 2001.
lo, v. 5, no 2, Jul./Dez., p. 1-23, 2008. GOFFMAN, Erving. Estigmas, no-
CASTRO, Mary. Mulheres Chefes de tas sobre a manipulação da identidade
Família, Esposas e Filhas pobres nos mer- deteriorada. Rio de
cados de trabalho metropolitanos (regi- Janeiro: Guanabara Koogan. 4. ed.
ões metropolitanas de São Paulo e Salva- 1988.
dor, 1980). v. 2 Caxambu: ABEP, 1990. GONDAR, Josaida. Memória, po-
CORTINA, Mônica. Mulheres der e resistência. In.: GONDAR, J;
e tráfico de drogas: aprisionamento BARRENECHEA, M. (orgs.). Memó-
e criminologia Feminista. Estudos ria e espaço: trilhas do contemporâneo.
Feministas, Florianópolis, v.23, n.3, Rio de Janeiro: 7 Letras, 2003.
p.406, set.-dez./2015. Disponível GUATTARI, Félix. ROLNIK, Suely.
em: <http://www.scielo.br/scielo. Micropolítica: cartografias do desejo.
php?script=sci_arttext&pid=S0104- Petrópolis: Vozes, 2010.
026X2015000300761&lng=en&nrm=i GUEDES, Marcela. Intervenções
so>. Acesso em: 13 out. 2015. psicossociais no sistema carcerário fe-
FEFFERMANN, Marisa. Vidas ar- minino. Psicologia ciência e profissão,
riscadas: o cotidiano dos jovens tra- 26(4), 558-569, 2006. Disponível em:
balhadores do tráfico. Petrópolis, RJ: <http://www.scielo.br/pdf/pcp/v26n4/
CONFLUÊNCIAS | Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito. Vol. 18, nº 1, 2016. pp. 66-91 89
CURCIO, Fernanda Santos; Faceira, LOBELIA da Silva

v26n4a04.pdf>. Acesso em: 19 de fev. MOKI, Michelle. Representações


de 2013. sociais do trabalho carcerário feminino.
HATFIELD, Elaine. “Passionate and São Cardos, 2006. Dissertação (Disserta-
Companionate Love”. In: STERNBERG, ção em Ciências Sociais) – Pós-Gradua-
Robert, and BARNES, Michael (Eds.). ção em Ciências Sociais – Universidade
The Psychology of Love. New Haven: Federal de São Carlos, São Paulo, 2006.
Yale University, 1988. p.191-217. MOURA, Maria Jurema. Porta fe-
IBGE. Censo Demográfico 2010. chada, vida dilacerada - mulher, tráfico
Disponível em: <http://www.censo2010. de drogas e prisão: estudo realizado no
ibge.gov.br>. Acesso em: 9 set. 2015. presídio feminino do Ceará. Fortaleza,
KAUFMAN Michael. The cons- 2005. Dissertação (Mestrado em Políti-
truction of masculinity and the triad cas Públicas) Universidade Estadual do
of men’s violence, In.: KAUFMAN, Mi- Ceará. Fortaleza, 2005.
chael (ed.) Beyond patriarchy: essays by NEVES, Ana Sofia. As mulheres e os
men on pleasure, power, and change. discursos genderizados sobre o amor:
Oxford University Press, Toronto-Nova a caminho do “amor confluente” ou o
York, p.1-29, 1987. retorno ao mito do “amor romântico”?
LANGFORD, Wendy. You Make Estudos Feministas, Florianópolis, v.15,
Me Sick: Women, Health and Romantic n.3, 336, set./dez., p. 609-627 2007.
Love. Journal of Contemporary Health, NOVAES, Elizabete. Uma reflexão
n. 5, p. 52-55, 1997. teórico-sociológica acerca da inserção
LUHMAN, Niklas. O amor como da mulher na criminalidade. Revista So-
paixão. Para a codificação da intimida- ciologia Jurídica, nº 10, 2010. Disponí-
de. Lisboa: Difel, 1991. vel em: <http://www.sociologiajuridica.
MACIEL JUNIOR, Auterives. Resis- net.br/numero-10/228-novaes-elizabe-
tência e prática de si em Foucault. Tri- te-david-uma-reflexao-teorico-sociolo-
vium: estudos interdisciplinares. Ano gica-acerca-da-insercao-da-mulher-
VI – Edição I –1º semestre de 2014. -na-criminalidade?format=pdf>.
MEDEIROS, Marcelo. COSTA, Joa- Acesso em 7 fev. 2015.
na. Is There a Feminization of Pover ty OLIVEIRA, Juliana. Novas frontei-
in Latin America? World Development, ras do trabalho: vivências ‘à margem’
v.36, n.1, p.115–127. 2008. dos trabalhadores do tráfico de drogas.
MELO, Hildete. Gênero e pobreza Dissertação apresentada ao Curso de
no Brasil. Relatório Final do Projeto Mestrado em Psicologia do Centro de
Governabilidad Democrática de Gêne- Ciências Humanas, Departamento de
ro em América Latina y El Caribe. Bra- Psicologia da Universidade Federal do
sília, DF: CEPAL SPM, 2005. Ceará como requisito parcial à obtenção
90 CONFLUÊNCIAS | Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito. Vol. 18, nº 1, 2016. pp. 66-91
AS MEMÓRIAS DAS MULHERES TRAFICANTES

do título de Mestre em Psicologia. 2009. em Memória Social pela Universidade


PIMENTEL, Elaine. Amor bandido: Federal do Estado do Rio de Janeiro.
as teias afetivas que envolvem a mulher Bolsista CAPES.
no tráfico de drogas. VI Congresso Por-
tuguês de Sociologia. Mundos Sociais: Lobelia da Silva Faceira
Saberes e Práticas. Anais... Universida- Graduação em Serviço Social pela
de de Lisboa, 25 a 28 de junho de 2008. Universidade Castelo Branco (1995),
Disponível em: <http://www.aps.pt/ vi- mestrado em Serviço Social pela Pon-
congresso/pdfs/708.pdf>. Acesso em: tifícia Universidade Católica do Rio de
14 maio 2013. Janeiro (2001) e doutorado em Educa-
SAFFIOTI, Heleieth. Gênero, pa- ção pela Pontifícia Universidade Ca-
triarcado e violência. São Paulo: Funda- tólica do Rio de Janeiro (2009). Atual-
ção Perseu Abramo, 2004. mente é professora adjunta da Escola
SCOTT, Joan. Gênero: uma catego- de Serviço Social e do Programa de
ria útil de análise histórica. Educação e Pós Graduação em Memória Social
Realidade. Porto Alegre, v. 20, n. 2, jul./ da Universidade Federal do Estado do
dez. 1995. Rio de Janeiro (UNIRIO).
SOARES, Barbara. ILGENFRITZ,
Iara. Prisioneiras: vida e violência
atrás das grades. Rio de Janeiro: Gara-
mond, 2002.
RODRIGUES, Thiago. Política e
drogas nas Américas. São Paulo: EDUC:
FAPESP, 2004.
ZORDAN, Eliana; FALCKE, Deni-
se; WAGNER, Adriana. Casar ou não
casar? Motivos e expectativas com re-
lação ao casamento. Psicologia em Re-
vista, Belo Horizonte, v. 15, n. 2, p. 56-
76, ago. 2009.

Fernanda Santos Curcio


Graduação em Serviço Social pela
Universidade Federal Fluminense
(2013). Mestrado em Memória Social,
pela Universidade Federal do Estado
do Rio de Janeiro (2016). Doutoranda
CONFLUÊNCIAS | Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito. Vol. 18, nº 1, 2016. pp. 66-91 91

Você também pode gostar