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ESTÉTICA DE SI NO CINEMA DE NAOMI KAWASE

Daiany Ferreira Dantas1

Resumo: O presente trabalho trata das relações entre gênero, produção artística e
autorrepresentação no cinema documental mundial feminino contemporâneo, tomando como estudo
de caso o filme Nascimento e Maternidade, da diretora japonesa Naomi Kawase. Com uma obra de
forte cunho testemunhal, a cineasta chama a atenção pelo fato de que dezesseis de seus mais de
trinta filmes são relatos autobiográficos. No média metragem de 2006, observamos uma série de
escolhas estéticas que demarcam a subjetividade da autora e seu olhar sobre o corpo, a intimidade e
as instâncias da vida das mulheres, ao relatar a doença de sua mãe adotiva e a chegada do primeiro
filho. Por meio da análise conceitual e fílmica, identificamos um panorama sensorial no qual o
aparato tecnológico e a poética visual se entrelaçam na afirmação de uma poética da existência.
Como instrumentos de análise, utilizaremos um marco teórico interdisciplinar, valendo-nos das
intersecções entre a filosofia da arte, a estética e os estudos culturais. Tomando como ponto de
partida a investigação o conceito de estética da existência proposto por Foucault (1985), que afirma
o cuidado de si e o autoconhecimento da própria subjetividade como elementos que poderão
ocasionar intersecções entre a experiência da vida e da arte.
Palavras-chave: Estética de si. Cinema. Naomi Kawase.

José Manuel Lopez (2008), na introdução de Naomi Kawase: El cine en el umbral, livro que
reúne ensaios em torno da profícua obra da diretora citada, justifica o título da obra que organiza
argumentando que há, em todo o mundo, um cinema obscuro, invisível, fora do debate público –
não apenas por ser pouco conhecido, mas por sua estrutura impolida, tosca, editado a tesouradas em
prol de um artifício sensorial. Um cinema ao qual ele atribui a cor de sangue e não cor-de-rosa, que
traz na impureza da imperfeição justamente o seu trunfo, seu quinhão de beleza.
Para este autor, trata-se de uma herança Godardiana – ecos contemporâneos do diretor que
desde os seus primeiros projetos até os dias atuais não cessou em pautar o debate em torno dos
modos outros de se fazer cinema, sobretudo quando o dispositivo se transforma pelas possibilidades
domésticas de produção com o vídeo, possibilitando toda uma produção cinematográfica em torno
da intimidade e das vivências cotidianas – mas nem por isso menos cinema, menos consciente de
sua tessitura e das possibilidades artísticas de recriar a vida em planos, a partir de uma perspectiva
subjetiva.
Assim como observamos em outros campos da arte, percebemos que os documentários
autobiográficos têm fomentado debates – dentro e fora da academia – acerca da produção

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Professora do Departamento de Comunicação da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte e doutoranda em
Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco, Brasil, email: daianyd@gmail.com.

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
cinematográfica atual. Seja pela proliferação de tecnologias que expõem, singularizam e, em muitas
situações, espetacularizam a intimidade, seja por vivemos uma quebra de fronteiras entre os
paradigmas de público e o privado, as narrativas contemporâneas adotam cada vez mais a forma de
testemunho, autobiografia e metaficção, proporcionando leituras impactantes ao conferir à ficção
status de realidade e ao ambientar a realidade ao paradigma ficcional.
Conceitos como autoficção (Bernardet, 1994) e risco do real (Comolli, 2001) vêm de
encontro a essa premente convergência entre arte e experiência. Nas artes plásticas, na literatura, no
cinema ou nos quadrinhos, percebemos a proliferação de representações de universos particulares,
revelados ao mundo pela ótica de realizadores que entregam imagens de sua existência ao público
diversificado da cultura de massas, a partir dos matizes da reelaboração metaficcional.
O impacto do confessional é uma das questões preponderantes no cinema de Naomi
Kawase. Ao filmar a própria vida que transcorre, ela preenche de significados os gestos menores e
triviais do cotidiano – que se tornam perenes ao serem gravados e editados em película, num
processo que é também o percurso de construção e entendimento de si. A cineasta japonesa de 42
anos, que filma desde os 18, dedicou grande parte de sua obra ao registro autobiográfico. Em filmes
como Céu, Vento, Fogo, Água, Terra (2001) ela relata o luto diante da morte do pai, em Viu o céu?
(1995) e Caracol (1994), o diálogo com a tia avó, que a criou e a ensinou a observação da natureza,
em Nascimento e Maternidade (2006), o contraste entre a chegada do primeiro filho e o
envelhecimento da mãe adotiva.
Apropriando-se de tecnologias experimentais, como o Super 8 e o digital, e de uma
decupagem e montagem fragmentadas e enquadramentos bastante sensoriais – os objetos, a
natureza, os gestos, a voz e o silêncio são manejados no sentido de proporcionar um panorama que
denuncia a impressão afetiva da realizadora sobre os planos enquadrados – a obra memorialista de
Kawase é tanto uma estética de si quanto uma (re)significação estética dos elementos técnicos que
compõem a produção de cinema.
Obras como a de Kawase podem ser compreendidas à luz de conceitos como os de “cuidado
de si” e “estética da existência” (Foucault, 1985), desenvolvido no último volume de A História da
Sexualidade e retomado em suas obras de publicação póstuma. A estética da existência seria um
processo de autodescoberta dos valores de si. A partir de suas reflexões sobre a sexualidade,
Foucault pontua que os sujeitos que divergem dos padrões sociais e hierarquias morais muitas vezes
o fazem dentro de um processo de cuidado de si, tendo o autoconhecimento como forma de
aprimorar a si mesmo. Busca na tradição da filosofia da arte grega – uma civilização menos afeita

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aos códigos de moralidade instituídos no presente - a ideia de autoperfeição: uma vivência integrada
com a verdade, desafiando, para isto, modelos vigentes. Ao resistir como sujeito, moldaria uma
escultura de si, capaz de esgarçar a tolhida forma na qual são moldados os desejos e impressões da
realidade. Para Foucault:
As "artes da existência" devem ser entendidas como as práticas racionais e voluntárias pelas
quais os homens não apenas determinam para si mesmos regras de conduta, como também
buscam transformar-se e modificar seu ser singular, e fazer de sua vida uma obra que seja
portadora de certos valores estéticos e que corresponda a certos critérios de estilo
(FOUCAULT, 1983, p. 198-199).

Sua tese de um aprimoramento da existência a partir do cuidado de si pode ser ampliada


para o âmbito do cinema, um espaço de projeção do cotidiano que, ao passo que recorta, também
intensifica a realidade. E encontra ressonância no pensamento de Deleuze (1990) sobre os
paradigmas da recente produção cinematográfica, que destaca a experiência no cinema
contemporâneo com uma “imagem-tempo”, em que os desdobramentos da técnica, como a
montagem, a decupagem e as transições - centrais para o entendimento e apreciação da produção do
cinema clássico, cujas obras eram focadas no desdobramento cronológico e factível das histórias -
dão lugar a uma fragmentação temporal e física dos personagens e das tramas, uma mudança de
percepção na qual o sensível torna-se relevante por captar o interesse do público em função de uma
rede de afetos.
Estes irão repercutir na subjetividade e na memória do público, partilhando questões que
poderiam ser vistas como banais e cotidianas. Assim como a paixão, a dor e a esperança tornam-se
universais nas representações cinematográficas, a autobiografia confere a um acontecimento trivial
de uma vida isolada um caráter coletivo. Poderia se dizer que o testemunho possui um princípio
igualador. Abre-se uma fresta, detecta-se uma aresta, um viés de comunidade, que se move por
meio de afetos despertados por gestos e ritmos fragmentados dos signos sensório-motores do
cinema.
O depoimento autobiográfico partilhado eleva-a a um status maior por meio da arte
cinematográfica, pois o autor torna sua experiência parte do patrimônio coletivo. Eleva sua
intimidade a um território comum e, de certo modo, penetra num regime de imagens, que tendem à
estereotipia e à padronização, com um conteúdo costumeiramente à margem de padrões e
categorias.
Michel Foucault (1985) utiliza dos conceitos de “práticas de si”, “técnicas de si” - a tekhné
sendo entendida como um fazer da própria vida uma obra de arte - e “cuidado de si”, extraídos da
antiguidade grega, para analisar a forma pela qual o sujeito se constitui. Partindo desta perspectiva,

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fazer um cinema autobiográfico, que perpassa a consciência da arte cinematográfica e a busca pela
consciência de si mesmo, podem ser vistas como práticas de si, por intermédio das quais a
subjetivação é evidenciada como forma de constituição do sujeito, dando contornos a uma
existência.
No caso de minorias históricas e culturais, como é o caso das mulheres, pouco
representativas numericamente nos setores de produção cultural – embora figurem largamente como
as musas, divas e vedetes dos grandes realizadores – percebemos que transformar o comum em
geral, por meio da confissão, do testemunho e da autorrepresentação, é um processo estético e
político recorrente, que, de acordo com nossa hipótese, pode vir a visibilizar as suas realidades e
questões de gênero.
O interesse pela obra de Kawase se justifica tanto no plano do político quanto do sensível.
No primeiro caso, cabe destacar que se trata do trabalho da primeira cineasta mulher do Japão a
receber o reconhecimento da crítica internacional, tendo sido premiada com o Grande Prêmio do
festival de Cannes em 2007, pelo filme Floresta dos Lamentos. Com um mercado excludente e uma
organização social do trabalho extremamente machista para as mulheres, a ascensão da diretora
abriu caminho para diversas jovens realizadoras que ora atuam no país.
No que diz respeito à relevância estética de sua produção, recorremos a López (2008), que a
reconhece como uma das mais instigantes diretoras asiáticas contemporâneas, pois os seus filmes
trazem à tona questões centrais para a atual teoria do cinema, tais como o hibridismo entre real e
ficção, o diálogo com as tecnologias digitais e as novas formas de distribuição.

Metodologia

Utilizamos de Análise Fílmica (AF) como metodologia de análise. Para tanto, nos
respaldamos no trabalho de Vanoye e Goliot-Lété (2006), que destacam a importância de uma
metodologia de análise do cinema que considere sua especificidade e não estabeleça parâmetros
entre a narrativa cinematográfica e a narrativa textual, no entanto, que não deixe de segmentar a
obra em seus diversos elementos, que vão da interpretação da imagem, aos cenários, iluminação,
enquadramento, ritmo, modos narrativos e contexto social.

Eles afirmam que a AF é um processo subjetivo, mas que objetiva questões de fundo a partir
das hipóteses do analista e dos conceitos elencados na obra, indo além da mera percepção de um

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espectador, ao buscar os elementos próprios das dimensões estruturais e do cinematográfico,
somando a isto uma leitura interpretativa. Eles postulam que

não se trata aqui de optar por uma das duas interpretações ou de propor outras, mas de
indicar que o filme é estruturado de modo a ser o suporte possível de diversas
interpretações; por um lado, porque sua organização narrativa é lacunar, aberta, enigmática
(...), por outro, porque suas opções formais favorecem a emergência do simbólico
(VANOYE e GOLIOT-LÉTÉ, 1994, p. 90).

Nascimento e maternidade: uma poética afetiva do corpo

O filme intitulado originalmente Tarachime (que tem como significado “mãe”, em japonês
arcaico), à exemplo de obras anteriores da diretora, dedica-se a retratar, de forma reflexiva e
intimista, o universo familiar da diretora, cuja convivência com os pais biológicos foi bastante
estrita e cuja família biológica, então, se resume a uma tia avó de idade já avançada, Uno Kawase.
A pergunta “quem sou eu?”, tendo como parâmetro o outro, o familiar e o próximo para esta
avaliação poderia sintetizar a obra da cineasta, que se repete em busca de suas origens, tenta
reconstituir o passado de sua ascendência biológica, buscando respostas acerca de sua pertença, das
lacunas deixadas pelas perdas e da proximidade com aquilo que reconhece como familiar e parte do
seu cotidiano afetivo.

É, portanto, um filme que alterna lacunas e preenchimentos, perda e encontro, dor e alegria,
sofrimento e ternura, fins e começos. Joga com ritmos de montagem, com enquadramentos
invasivos e diálogos que devassam - seja na voice over ou no som direto – são condicionados às
suas grandes questões existenciais. Há uma poética de si premente, que tem na câmera subjetiva
sobre fragmentos do corpo – sobretudo o feminino, em suas diversas potencialidades de
transformação ao longo de uma vida – o argumento para a montagem fílmica.

Já no primeiro plano temos o close up da vulva da cineasta (Figura 1), ainda encoberta de
sangue, após o parto. A proximidade distorce a forma do órgão, e a mescla rubro-rosada de cores
nos remete a uma imagem difusa - uma tela, vívida, em tons vermelhos? Ou o gineceu de uma flor
rubra? -, após alguns segundos, torna-se nítida a forma demasiado próxima de uma região íntima do
corpo feminino – geralmente vista em tais proporções quando do enquadramento pornográfico, que,
ao contrário do amálgama vermelho exposto pela diretora, tem a intencionalidade de extrair

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justamente o seu caráter de proibido. Aqui, podemos enxergá-la aberta, trivial e permissiva, nos
créditos de abertura do curta, como som de fundo: Música de flauta e uma voz de bebê.

Figura 1

Vulva em primeiro plano nos créditos iniciais.

Em seguida, há o corte para um dos diálogos filmados entre Naomi Kawase e sua tia avó,
Uno. Numa casa de banhos, a diretora se dedica a filmar longamente o corpo envelhecido da tia
avó. Percebemos o entorno nas transições de planos que intercalam os seios (Figura 2), a barriga,
pernas, fragmentos do corpo da idosa imergindo na água, com o rosto fora de quadro. Deste corpo
insistentemente visto pela câmera, em planos fechados e longos, ouvimos a voz cansada da anciã
respondendo às perguntas da diretora acerca de sua infância, seu passado.

Figura 2

Seios no banho

- Vó, eu mamei de você? - Dos meus seios secos, você mamou demais, até se fartar. Os
seios e o ventre da idosa tornam-se objetos amorosos diante da câmera. O corpo envelhecido, seu

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ventre, as mamas que, segundo Uno, ainda produzem leite, nos quais Kawase se alimentou,
aninham uma memória a ser absorvida pela diretora, num aprendizado do corpo, de suas funções e
transformações como signo de um feminino que se concretiza na maternidade – tema do filme –
pelo seu caráter de origem e de continuidade.

A montagem, não cronológica, prioriza sequências de alegria e luto. A seguir, vemos um


flagrante dolorido da intimidade desta família. A câmera inquiridora de Kawase se posiciona
oblíqua, num contra plongée direcionado ao rosto da tia avó, de onde se observa o teto e a parede
azulejada da cozinha, enquanto ela lhe questiona consecutivas vezes porque esta a havia pedido que
deixasse a sua casa quando a diretora tinha catorze anos de idade, o diálogo segue áspero e cada vez
mais aflito, com as acusações de Kawase, só sendo interrompido pelas lágrimas de Uno.

A privacidade da cozinha perscruta os gestos, documento sentidos de dor e perda. Kawase


monta seus filmes de intimidade, no qual a avó é a personagem central, tendo uma estética de si
calcada em raízes de perda, de escuta sensível de relatos acerca do seu passado, como se esta,
vivendo-o, não o tivesse vivido inteiramente, sua vida não é apenas sua, é no olhar do outro que ela
precisa compreender o enredo de pertença que compõem sua própria identidade.

O amargor desse desentendimento é dissipado pelas cenas seguintes. Uma câmera na mão
em travelling percorre os corredores de uma Kawase, e encontra Uno em seu escritório, com o
sorriso que lhe é habitual em quase todos os filmes da diretora nos quais figura como personagem
central. Ela avisa que está escrevendo uma carta, um pedido de desculpas. A esta reconciliação,
seguem-se as cenas do aniversário da avó.

Uma cortina iluminada onde dança a sombra de uma planta pendente é o plano fixo que
serve de fundo aos parabéns pra você - happy bithday to you - cantados pela voz suave da diretora,
seguida de uma cena de festa, ainda que na penumbra: O bolo de aniversário e velas coloridas, o
sopro idoso que apaga as velas e o desejo de ainda viver muitos anos.

É no segundo terço do filme que surge o bebê de Kawase, aninhado nos braços de Uno.
Entre a visita da avó e os planos de irem ao festival do fogo com o pequeno filho, como uma nova
família, surge a tensão da internação da idosa, o ruído hospitalar, o enquadramento dos
equipamentos, no cartão de identificação da avó, que apontam seus 90 anos (Figura 3).

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Figura 3

Uno, 90 anos

O ruído dos equipamentos hospitalares, o olho roxo da anciã. E a constatação perturbadora –


ali há uma vida que se vai. Nos diálogos entre ambas assistimos a idosa consciente de seu destino.
Devo estar sozinha, devo ser forte. Não amo estar viva, mas não me desgosta muito. Sou feliz por
estar aqui com este magnífico bebê. Kawase intercala as cenas de convalescência da tia avó com as
imagens festivas com a chegada do filho: desvelando o rolo de filmes da câmera, mordendo um
morango, iluminado por uma réstia de luz que salta da janela.

Há um sentido de entrelaçamento, recomeço. Uma visita no cemitério, ao jazigo da família


Kawase, torna-se um passeio pelo seu jardim, quando em companhia do bebê em seus primeiros
passos e seus sentidos em estado de descoberta. O curativo da avó doente é analisado pela câmera
subjetiva, que presencia o apalpar doméstico do seio doente, num reconhecimento da fragilidade do
corpo. Depois, vemos um curativo também no seio de Kawase (Figura 4), um nódulo decorrente dos
hormônios da lactação. Novamente o ambiente hospitalar e sua ameaça. Logo dissipada, no entanto,
pois se trata de um procedimento rotineiro. O aprendizado com o corpo, a descoberta de seus
fragmentos, numa proximidade sensorial, na qual a câmera é um instrumento autorreflexivo de
análise e entendimento de si.

Figura 4

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Curativo

O corpo, as paisagens, a vida, exibida numa proximidade quase tátil, tão perto quanto o
toque alcança, tão nítido quanto possa o olho. Observamos Kawase deslizar uma câmera em
travelling que vai do azul e extenso ao seu reflexo, filmando, no vidro da janela: A assinatura de um
testemunho, o depoimento desse olhar, que se entrega ao possível espectador(a) enquanto enreda
uma estética de si, por meio do dispositivo cinematográfico.

A última sequência do filme de 38 minutos é o parto da diretora. Numa sequência em que


abre mão de qualquer som de fundo, vemos o seu corpo expelindo o seu filho, sem dificuldade
aparente - não ouvimos gritos -, a câmera que a enquadra da cintura para baixo. Em seguida,
assistimos a uma sucessão de fotografias fixas, filmadas com a câmera na mão, que a exibem
também filmando o próprio parto (Figura 5) e, em seguida, aninhada à mãe e ao filho – as mãos
destes dois dadas – sobre a cama (Figura 6).

Figura 5

Filmando o parto

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Figura 6

Contrastes

As fotografias em preto e branco apresentadas dentro do filme reafirmam a noção de novelo


trabalhada pela diretora, de um fazer artístico que se tece de forma fragmentada pelos recursos da
narrativa fílmica, em composições nas quais a vida é elemento constitutivo da arte, e esta, artifício
técnico para o autoconhecimento e a memória de si, numa poética fílmica.

Referências
BERNARDET, Jean-Claude. O autor no cinema. São Paulo, Editora Brasiliense e EDUSP, 1994.
COMOLLI, Jean-Louis. Sob o risco do real. In: Catálogo do Forumdoc.bh. 2001. Belo Horizonte,
2001.
DELEUZE, Gilles. A Imagem-Tempo. São Paulo, Brasiliense, 1990.
FOUCAULT, Michel. O uso dos prazeres e as técnicas de si. (1983) In: FOUCAULT, Michel.
Ética, sexualidade, política. Org. e seleção de textos Manoel Barros da Motta; Trad. Elisa Monteiro,
Inês D. Barbosa. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2004. p.192 – 217. (Ditos e Escritos V).
FOUCAULT, M. A. História da Sexualidade III: O Cuidado de Si. 8 ed. São Paulo, Edições Graal,
1985.
LÓPEZ, José Manuel (Org.): Naomi Kawase: El cine en el umbral, Madrid, T&B Editores, 2008.
VANOYE, Francis, GOLIOT-LÉTÉ, Anne. Ensaio sobre a análise fílmica. Campinas, Papirus,
1994.

Aesthetics of self in Naomi Kawase's cinema

Astract: This paper deals with the relationships among gender, artistic production and self-
representation in contemporary documentary cinema, taking as case study the film Tarachime, by
japanese director Naomi Kawase. With a testimonial work, the filmmaker attracts interest because

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most of her films are autobiographical. In this short movie from 2006, we observe a number of
aesthetic choices that demarcate the subjectivity of the director and her gaze on the body, intimacy
and the instances of women's lives, to report the illness of her adoptive mother and the arrival of her
first child. Through conceptual and filmic analysis, our objective is to identify a sensory landscape
in which the technological and visual apparatus dialogue in a poetic affirmation of existence. As
instruments, we use philosophy of art, aesthetics and cultural studies. We consider the Foucault’s
(1985) concept of aesthetics of existence which claims the self care and self-awareness of one's own
subjectivity as elements that may cause intersections between the experience of life and art.
Keywords: Aesthetics of self. Cinema. Naomi Kawase.

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