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As Contradições
estruturais do
capitalismo*
David Harvey
Nova Iorque 2016
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Expediente
A Caderno de Formação nº 51 “As contradições estru-
turais do capitalismo, de David Harvey” é uma publica-
ção do Setor de Formação do MST.
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Julho 2020
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Sumário
Conclusão ....................................................................................................................................42
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As Contradições
estruturais do
capitalismo*
David Harvey
Nova Iorque 2016
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Introdução — as contradições do capital
A bipartição do uno e do conhecimento em suas
partes contraditórias é a essência da dialética. (Lenin,
1915/2018, p.331.)
A identidade dos opostos é o reconhecimento de
tendências contraditórias, mutuamente exclusivas, opos-
tas em todos os fenômenos e os processos da natureza (o
espírito e a sociedade inclusos). (Lenin, 1915/2018, p. 332)
Em toda parte, em todos os processos, em to-
dos os fenômenos há contradição. Harvey aponta que
a “contradição acontece quando duas forças aparente-
mente opostas estão presentes ao mesmo tempo em
determinada situação, entidade, processo ou evento”. E
prossegue: “contradições latentes podem se intensificar
de repente e gerar crises violentas”.
Entre as diversas contradições existentes, Harvey
chama atenção para aquela entre essência e aparência.
Por muitas vezes são as “aparências superficiais que es-
condem realidades subjacentes”. Assim, “a contradição
entre realidade e aparência gerada é, de longe, a contra-
dição mais geral e disseminada que temos de enfrentar
quando tentamos resolver as contradições mais especí-
ficas do capital.”
17 contradições e o fim do capitalismo é um esfor-
ço de elaboração teórica que visa superar o fetiche do
aparente e identificar as contradições na essência dos
fenômenos que atuam como motor econômico do capi-
talismo, a saber, os processos de acumulação de capital.
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Parte I - As contradições fundamentais
As contradições fundamentais do capital não exis-
tem isoladas umas das outras. Elas se interligam de di-
versas maneiras, conformando a arquitetura básica para
a acumulação de capital. As contradições fundamentais
são características constantes do capital em qualquer
época ou lugar.
As contradições fundamentais e suas inter-rela-
ções são:
- A contradição entre valor de uso e valor de troca (1) de-
pende da existência do dinheiro, que se encontra em
relação contraditória com o valor enquanto trabalho
social (2). O valor de troca e sua medida (o dinheiro)
presume certa relação jurídica entre aqueles que estão
envolvidos na troca: daí o fato de os indivíduos terem
direitos de propriedade privada adquiridos e um qua-
dro de leis ou costumes para proteger esses direitos.
Isso fundamenta uma contradição entre a propriedade
privada individualizada e a coletividade do Estado ca-
pitalista (3).
- O Estado tem o monopólio sobre o uso legítimo da vio-
lência, bem como monetária para a formação do poder
da classe capitalista. Mas o capital só pode se repro-
duzir sistematicamente pela mercantilização sobre a
emissão da moeda fiduciária, meio básico de troca. Há
uma ligação profunda entre a perpetuidade da forma
dinheiro e a perpetuidade dos direitos de proprieda-
de privada (as duas coisas implicam-se mutuamente).
Pessoas físicas podem se apropriar, legal e livremente,
dos frutos do trabalho social (bens comuns) pela troca
(4). Isso constitui a base da força de trabalho, a qual
resolve o problema de como criar a desigualdade de
lucros em um sistema de troca mercantil baseado na
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igualdade. Essa solução implica converter o trabalho
social – trabalho que fazemos para os outros – em
trabalho social alienado – trabalho dedicado exclusi-
vamente para a produção e reprodução do capital.
- O resultado é uma contradição fundamental entre capi-
tal e trabalho (5). Postas em movimento, essas contra-
dições definem um processo contínuo de circulação do
capital que assume diferentes formas materiais, o que,
por sua vez, implica uma tensão cada vez maior entre
fixidez e movimento na paisagem do capital (6). Na cir-
culação do capital há necessariamente uma unidade
contraditória entre produção e realização do capital (7).
5. Capital e Trabalho
O fato de alguns seres humanos se apropriarem
da força de trabalho de outros e a explorarem é carac-
terística antiga da organização humana. Mas aquilo que
distingue o modo de produção capitalista é que o traba-
lhador dispõe e vende sua força de trabalho para o capi-
talista em um mercado de trabalho supostamente “livre”.
Pelo uso sistemático e contínuo da força de trabalho para
produzir um mais-valor sobre aquilo que o trabalhador
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precisava para sobreviver com dado padrão de vida, o ca-
pital estabeleceu a base para sua própria reprodução. É
esse valor excedente que está na raiz do lucro.
Num sistema capitalista de funcionamento ade-
quado, todos os capitalistas devem obter lucro. Então
de onde vem o valor extra que garante o lucro, se em
princípio o sistema de mercado depende da igualdade
de trocas? É preciso que haja uma mercadoria capaz de
criar mais valor do que ela mesma tem. Essa mercadoria
é a força de trabalho, e é dela que o capital depende
para se reproduzir.
Pela lógica do capital, trabalho e mão de obra são
organizados exclusivamente em torno da produção de
valores de troca, de mercadorias que geram o retorno
monetário sobre o qual o capital constrói seus poderes
sociais de dominação de classe. Os trabalhadores, em
suma, são colocados numa posição em que não podem
fazer nada, exceto reproduzir pelo trabalho as condições
de sua própria dominação.
Neste sistema, nada impede que os trabalhadores,
individual ou coletivamente, se organizem e lutem por
condições melhores, e nada impede que os capitalistas
se esforcem, também individual ou coletivamente, para
reduzir o valor da força de trabalho. Quanto mais bem-
-sucedida for a luta do capital contra o trabalho, maiores
serão seus lucros. Quanto maior for o êxito dos trabalha-
dores, maiores serão seu padrão de vida e suas opções
no mercado de trabalho. O poder regulador do Estado
com frequência é envolvido nestas disputas.
Para muitos, a contradição entre capital e trabalho
é a primeira contradição do capital. Contudo, tal contra-
dição está entranhada, está ligada e incorporada a ou-
tras contradições do capital. Assim, ainda que a contra-
dição entre capital e trabalho seja inquestionavelmente
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uma contradição fundamental e central do capital, ela
não é – mesmo do ponto de vista apenas do capital –
uma contradição primária à qual, em certo sentido, to-
das as outras são subordinadas. Nas formações sociais
concretas, as manifestações tangíveis desta contradição
passam pelo filtro de outras formas de distinção social,
como raça, etnia, gênero e religião, tornando mais com-
plexa a luta política no capitalismo.
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zação pode ser amenizada de diversas maneiras. Exem-
plos são a expansão da quantidade total da força de
trabalho, o consumo ostensivo da burguesia e mesmo
o recurso ao crédito. Há ainda a possibilidade de que o
capital ceda às demandas dos trabalhadores no ponto
da produção, mas recupere o que perdeu (e muito mais)
pelas extrações de valor no espaço da vida cotidiana (ju-
ros, aluguéis, custos com a reprodução etc.).
A unidade contraditória entre produção e realização,
portanto, aplica-se tanto ao destino dos trabalhadores
quanto ao capital. A conclusão lógica é que existe ne-
cessariamente uma unidade contraditória no conflito e
na luta de classes entre a esfera da vida e a do trabalho.
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Parte II - As contradições mutáveis
O único aspecto constante das contradições mu-
táveis é o fato de serem instáveis e mudarem o tem-
po todo. Elas mudam e assumem novas formas com o
passar do tempo. Desse modo, cada novo padrão, cada
novo conjunto de arranjos, proporciona uma nova estru-
tura para a economia, fazendo desaparecer a estrutura
antiga, mas os componentes básicos que a formam – as
leis básicas – permanecem sempre os mesmos. É preciso,
portanto, compreender a natureza básica da contradição
antes de fornecer uma avaliação geral de sua nova for-
ma ou de se identificar tendências.
As contradições mutáveis evoluem de modo di-
ferente e fornecem grande parte da força dinâmica que
está por trás da evolução histórica e geográfica do ca-
pital. Em alguns casos, seu movimento tende a ser pro-
gressivo, mas nunca sem um contratempo aqui ou um
revés ali. A configuração das contradições mutáveis for-
nece grande parte da energia e da força inovadora da
coevolução de capital e capitalismo, e abre inúmeras
possibilidades para novas iniciativas. Essas são as con-
tradições e os espaços em que se encontra latente a es-
perança de uma sociedade melhor, e é deles que devem
surgir arquiteturas e construções alternativas.
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taxas de lucro, bem como criar novas linhas de produtos,
se possível ainda mais lucrativas.
As mudanças tecnológicas do capitalismo, para
as quais contribui e das quais se alimenta com voraci-
dade, derivam, em suma, da atividade de vários agentes
e instituições. Entre estes, é notório o papel das forças
militares e as atividades de pesquisa e desenvolvimento
realizadas por agentes e instituições do Estado, associa-
dos ou não a entes privados. Assim, o capital sempre se
voltou à inovação tecnológica como forma de aumentar
a sua lucratividade.
Ao longo do desenvolvimento do capitalismo, en-
tretanto, o caráter dos processos de mudança tecnoló-
gica mudou. A cultura capitalista se tornou obcecada
pelo poder da inovação. A partir de meados do século
XIX, ciência e tecnologia se fundiram e se desenvolve-
ram combinadamente. A incorporação do conhecimento
científico a novas tecnologias tornou-se o cerne da ati-
vidade empresarial da inovação tecnológica.
Na história e na lógica do capital, há cinco impera-
tivos tecnológicos dominantes, mas sobrepostos:
1. Organização da cooperação e das divisões de trabalho
a fim de maximizar a eficácia, a lucratividade e a acu-
mulação. Enfatiza-se os softwares e as formas organi-
zacionais assumidas nos últimos tempos pelo capital.
2. Necessidade de se encurtar o tempo de circulação do
capital em todas as suas fases, exigindo-se uma “des-
truição do espaço pelo tempo” baseada em uma varie-
dade impressionante de revoluções tecnológicas.
3. Tecnologias de produção e disseminação do conheci-
mento, para armazenamento e recuperação de dados
e informação, se tornaram indispensáveis para o capi-
tal. Os bancos de dados já são vastos e indispensáveis.
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4. As finanças e o dinheiro são um domínio crucial para
o funcionamento do capital. Nos últimos anos, sua im-
portância ganhou mais relevância. A tendência de cria-
ção de capitais fictícios de livre circulação cresceu de
forma considerável, junto com todos os tipos de prá-
ticas predatórias no sistema de crédito que têm con-
tribuído para a onda de acumulação por espoliação e
especulação com os valores patrimoniais. As tecnolo-
gias do sistema monetário e financeiro mundial são
um campo de atividade capitalista insuperável em ter-
mos de importância e “vitalidade desordenada”.
5. O controle sobre o processo de trabalho e o trabalha-
dor sempre foi crucial para a capacidade do capital de
sustentar a lucratividade e a acumulação de capital.
Assim, o capital inventou, inovou e adotou formas tec-
nológicas cujo principal objetivo é melhorar seu con-
trole sobre o trabalho, ou seja, a inovação tecnológica
voltada para o disciplinamento e o desempoderamen-
to dos trabalhadores.
Temos aqui a contradição central relacionada à
tecnologia: se o trabalho social é a grande fonte de va-
lor e lucro, substituí-lo por máquinas ou trabalho robó-
tico não faz sentido, nem política nem economicamen-
te. Percebemos com clareza qual mecanismo leva essa
contradição a um ponto de crise. Empreendedores ou
empresas individuais consideram que as inovações que
poupam trabalho são decisivas para a lucratividade pe-
rante os concorrentes, mas coletivamente, isso destrói a
possibilidade de lucro.
Ao mesmo tempo, a perspectiva de automação
do trabalho coloca no horizonte a possibilidade de um
desastre. Do ponto de vista do capital, segmentos cada
vez maiores da população mundial serão considerados
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redundantes e descartáveis como trabalhadores produ-
tivos e terão dificuldades para sobreviver, tanto material
quanto psicologicamente. Alienados de qualquer pers-
pectiva de existência significativa no campo do trabalho
necessário, tal como é definido pelo capital, estes tra-
balhadores terão de procurar outros espaços para cons-
truir uma vida significativa. Por outro lado, a produção vai
crescer, mas de onde virá o aumento correspondente de
demanda?
A descartabilidade humana decorrente da contra-
dição entre tecnologia e trabalho, portanto, se coloca
como desafio para a própria perpetuação do capital. O
trabalho social parece se tornar cada vez mais insignifi-
cante para o modo como funciona o motor econômico
do capitalismo. A maioria da população mundial está se
tornando descartável e irrelevante do ponto de vista do
capital, o que ampliará progressivamente a dependência
da circulação de formas fictícias de capital e constru-
ções fetichistas de valor centradas na forma-dinheiro e
no sistema de crédito.
O dinheiro é uma representação do valor do tra-
balho social (entendido como a quantidade de trabalho
que fornecemos para os outros através do sistema de
mercado baseado no valor de troca). Se estamos cami-
nhando na direção de um mundo em que esse tipo de
trabalho social não existe mais, então não há valor para
representar. A representação histórica do valor – a for-
ma-dinheiro – ficará totalmente livre da obrigação de re-
presentar algo que não seja ela mesma. Os economistas
neoclássicos argumentavam (isso quando se davam ao
trabalho de tratar da questão) que a teoria do valor-tra-
balho proposta por Marx é irrelevante, porque o capital
responde apenas aos sinais monetários, não às relações
de valor. Segundo eles, não havia por que se incomo-
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dar com a ideia de valor, ainda que fosse um conceito
plausível (a maioria achava que não). Acredito que es-
tavam errados. Por outro lado, se os desenvolvimentos
esboçados anteriormente ocorrem de fato, então o ar-
gumento neoclássico contra a teoria do valor será cada
vez mais correto, a ponto de os marxistas mais ortodoxos
terem de renunciar à teoria do valor. Isso significa o fim
da única restrição que tem evitado a queda do capital
numa completa ausência de leis. As evidências recen-
tes de uma ausência de leis contagiosa e predatória no
capitalismo é apenas um sinal do enfraquecimento do
papel regulador do trabalho social. Esse enfraquecimen-
to já vem ocorrendo há algum tempo. Houve uma rup-
tura importante quando se abandonou a base metálica
do sistema monetário mundial, no início da década de
1970: desde então, a relação do dinheiro mundial com o
trabalho social se tornou, na melhor das hipóteses, tan-
gencial; como prova disso, temos a longa série de crises
financeiras e comerciais mundiais a partir de meados da
década de 1970.
O pacote atual de tecnologias, impregnadas da
mentalidade e da prática da busca do capital pela domi-
nação de classes, contém potencialidades emancipató-
rias que, de certo modo, têm de ser mobilizadas na luta
anticapitalista.
9. Divisões do trabalho
A divisão do trabalho se refere à capacidade hu-
mana de decompor atividades produtivas e reprodutivas
complexas em tarefas específicas, porém mais simples,
que possam ser cumpridas por diferentes indivíduos, de
maneira temporária ou permanente. O capital se apo-
derou da divisão do trabalho, reconfigurando-a radical-
mente para seus propósitos ao longo de sua história.
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A divisão do trabalho se divide entre divisão técnica e
divisão social do trabalho. A primeira diz respeito a ta-
refas isoladas dentro de uma série complexa de opera-
ções que, a princípio, qualquer pessoa pode executar. Já
a segunda, se refere a tarefas especializadas que apenas
uma pessoa com treinamento ou posição social adequa-
dos pode executar.
Há muitas outras distinções que podemos consi-
derar, como: natureza e cultura; cidade e campo; inte-
lectual e manual; social e específica; qualificado e não
qualificado; produtivo e não produtivo; doméstico e as-
salariado; simbólico e material etc. Se essas distinções
e oposições podem ser fontes de tensão e antagonismo,
é possível que se complexifiquem e sejam elevadas a
contradições que desempenham algum tipo de papel na
formação e na resolução de crises.
Aqui as contradições do capital e do capitalismo
se cruzam. Por exemplo, certas funções específicas são
fortemente e até exclusivamente associados a determi-
nados grupos étnicos, religiosos ou raciais. O gênero é
outro aspecto que claramente se relaciona com a con-
figuração das distinções dentro da divisão do trabalho.
A alocação de diferentes pessoas em diferentes tarefas
está associada às diferenças salariais. O preconceito e
a discriminação baseados em questões étnicas, raciais,
religiosas e de gênero estão profundamente arraigados
no modo como o mercado de trabalho como um todo é
segmentado e fragmentado e em como os pagamentos
são determinados. Cabe notar, entretanto, que do pon-
to de vista do capital, é útil, ou até mesmo crucial, que
haja um mercado de trabalho segmentado, fragmentado
e extremamente competitivo. Isso cria barreiras à organi-
zação coerente e unificada dos trabalhadores.
Da mesma maneira que a evolução tecnológica
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tendeu a uma maior complexidade, por sua própria dinâ-
mica autônoma, as divisões do trabalho se multiplicaram
rapidamente e mudaram qualitativamente. A rápida ex-
tensão e o explosivo aumento de complexidade da divi-
são tanto social como detalhada do trabalho tornaram-
-se a características da economia capitalista moderna.
A complexidade crescente e a grande extensão ge-
ográfica da divisão do trabalho implicam um salto quali-
tativo nos problemas de coordenação. Estamos cada vez
mais sujeitos ao “domínio dos especialistas”. O papel dos
especialistas cresceu exponencialmente nas últimas dé-
cadas, e isso é um problema sério para a transparência
e a legibilidade. Também está claro que a complexidade
crescente na divisão do trabalho abre espaço para novas
vulnerabilidades. Por exemplo, pequenas perturbações
numa cadeia de suprimentos podem ter grandes conse-
quências.
A principal contradição do uso que o capital faz da
divisão do trabalho não é técnica, mas social e política.
E resume-se numa única palavra: alienação. Os ganhos
indubitáveis e assombrosos de produtividade, bens e lu-
cratividade obtidos pelo capital em virtude de sua or-
ganização tanto da divisão detalhada quanto da divisão
social do trabalho se dão à custa do bem-estar mental,
emocional e físico dos trabalhadores que ele emprega.
As transformações causadas no trabalho e na vida social
pela contrarrevolução neoliberal, que começou a ganhar
impulso no mundo capitalista avançado no fim da déca-
da de 1970, tiveram efeitos devastadores sobre amplos
segmentos da população. Eles foram deixados para trás
e convertidos em descartáveis e dispensáveis por uma
combinação de mudanças tecnológicas e deslocalização
produtiva. Perdidos num mundo de desemprego prolon-
gado, deterioração da infraestrutura social e perda das
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solidariedades comunais, alienaram-se profundamen-
te, entregaram-se em grande medida a ressentimentos
passivos, alternados por eventuais protestos violentos e
aparentemente irracionais.
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micas de produção, consumo e realização do capital te-
rão de se ajustar às novas condições demográficas.
O capital, entretanto, ao contrário da demografia, não
pode se estabelecer a uma taxa de crescimento nula. A
razão mais simples é que capital é busca por lucros. Para
todos os capitalistas, realizar lucro positivo é ter mais
valor no fim do dia do que tinha no início. Isso signifi-
ca uma expansão da produção total do trabalho social.
Sem essa expansão, o capital não existe. É por isso que
crescimento zero define uma condição de crise para o
capital.
Como então o capital pode continuar a se acumu-
lar e se expandir perpetuamente a taxas compostas? Há
uma forma do capital que permite a acumulação sem
limites: a forma-dinheiro, que não se prende a nenhu-
ma limitação física. O dinheiro fiduciário emitido pelo
Estado pode ser criado sem limites. No entanto, é quase
certo que a acumulação perpétua de capital a taxas ex-
ponenciais mediante a criação exponencial de dinheiro
acabará em desastre, a não ser que venha acompanhada
de outras adaptações.
A primeira adaptação diz respeito à desvalorização
do valor. O capital não consiste apenas em produção e
circulação de valor. Ele é também destruição e desva-
lorização de capital. Isto se expressa no barateamento
constante das mercadorias, mas também na destruição
de valor que marca as crises. A segunda adaptação se
expressa na abertura de novos espaços para a valori-
zação do capital, permitindo-o entrar em áreas da vida
econômica, social e política que, até então, estavam fe-
chadas. A esse aspecto se relacionam as privatizações.
A terceira adaptação são as transformações radicais na
natureza, na forma, no estilo e no volume do consumo
final. O capital tem sistematicamente encurtado a vida
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útil dos bens de consumo, produzindo mercadorias que
não duram, forçando uma obsolescência programada e
às vezes instantânea, criando rapidamente novas linhas
de produtos. Mais que isso, o capitalismo contemporâ-
neo é marcado por rendas e royalties decorrentes do uso
da informação, do software e das redes que ele constrói.
Cada vez mais capital é investido em busca de renda,
lucros e royalties, e menos na atividade produtiva. Essa
tendência a uma forma rentista de capital é reforçada
pelo imenso poder de extração de renda a partir de direi-
tos de propriedade intelectual sobre material genético,
sementes, atividades que exigem licença etc.
Hoje, quantidades cada vez maiores de capital cir-
culam em forma fictícia, e a criação de dinheiro eletrôni-
co é, em princípio, ilimitada (são apenas números numa
tela). Portanto, não há barreiras para o crescimento ili-
mitado. A economia do espetáculo e da produção de co-
nhecimento como forma de realização do capital reduz
nitidamente a taxa de expansão da demanda por recur-
sos e bens materiais. Mas a infraestrutura física exigida
e a necessidade de gerar mais e mais energia em forma
utilizável inviabilizam a ideia de que a produção pode se
tornar de fato imaterial.
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Conclusão — Perspectiva deum futuro feliz, mas
controverso: A promessa do humanismo
revolucionário
Desde tempos imemoriais há seres humanos que
acreditam que são capazes de construir, individual ou
coletivamente, um mundo melhor do que aquele que
herdaram. A crença de que podemos, pelo pensamento
consciente e pela ação, mudar para melhor o mundo em
que vivemos e também a nós mesmos define certa tra-
dição humanista. O humanismo, tanto religioso quanto
secular, é uma visão de mundo que mede seu êxito em
termos de liberação das potencialidades, capacidades e
poderes humanos. Mas que tipo de humanismo preci-
samos para transformar progressivamente o mundo em
um lugar diferente, povoado por pessoas diferentes, por
uma ação anticapitalista?
Necessitamos urgentemente de um humanismo
revolucionário secular que possa se aliar aos humanis-
mos religiosos (articulados mais claramente nas versões
protestante e católica da Teologia da Libertação, bem
como nos movimentos análogos dentro das culturas re-
ligiosas hindus, islâmicas, judaicas e indígenas) para en-
frentar a alienação em suas muitas formas e mudar radi-
calmente o mundo a partir de suas bases capitalistas. Tal
humanismo é muito diferente do liberal burguês. Recusa
a ideia de que exista uma “essência” humana imutável,
ou dada de antemão, nos obrigando a refletir profunda-
mente sobre como podemos nos tornar um novo tipo de
ser humano. Reconhece claramente que as perspectivas
de um futuro feliz para a maioria são invariavelmente
frustradas pela inevitabilidade de se causar infelicidade
a outros.
O poder e o privilégio oligárquicos da classe ca-
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pitalista estão conduzindo o mundo todo a uma mesma
direção. O poder político, sustentado por uma vigilân-
cia, um policiamento e uma violência militarizada que
só fazem se intensificar, está sendo usado para atacar o
bem-estar de populações consideradas substituíveis e
descartáveis. Testemunhamos diariamente a desumani-
zação sistemática de pessoas descartáveis. Hoje, o po-
der implacável da oligarquia é exercido através de uma
democracia totalitária que se dedica a perturbar, frag-
mentar e suprimir imediatamente qualquer movimento
político coerente contra a riqueza.
É nesse clima político que as revoltas imprevisíveis
e violentas que vêm ocorrendo pontualmente em todo
o mundo se parecem cada vez mais com os tremores
que antecedem um terremoto. Se o capital tem um fim,
este virá certamente daí, e provavelmente suas consequ-
ências imediatas não serão boas para ninguém. A única
esperança é que a humanidade veja o perigo antes que
a podridão avance e os danos humanos e ambientais
sejam grandes demais para se recuperar.
O “humanismo absoluto da história humana”, es-
creveu Gramsci, “não visa a resolução pacífica das con-
tradições existentes na história e na sociedade, mas é
a própria teoria dessas contradições”. A esperança está
latente nelas, disse Bertolt Brecht. Como vimos, há con-
tradições o bastante no campo do capital para semear o
solo da esperança.
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