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Anais do IX Seminário Nacional de História da Matemática 5

estas, são objeto das ciências. Na filosofia platônica, a ciência, por excelência, é a dialética.
Os seus objetos são as Idéias; entidades abstratas e universais, essências existentes em si
mesmas, perfeitas, imutáveis, incorpóreas e transcendentes. Arquétipos para os objetos
sensíveis que, por sua vez, não passam de cópias imperfeitas, transitórias e individuais.
É nesse contexto que a matemática empresta o seu logos à dialética de Platão,
fornecendo-lhe, com seus métodos rigorosos e impessoais, uma via de subida em direção ao
Bem. A dialética representa o ápice da matemática, mas há um longo caminho a ser percorrido
até se chegar ao topo. Nesse esforço de superação, as ciências matemáticas nos auxiliam com
suas descrições de realidades imóveis e universais. Os objetos não-sensíveis que são comuns
da práxis dos matemáticos, bem como a sua acribia, representam não apenas uma ruptura com
este mundo eternamente condenado à fluidez em que vivemos, mas também um meio de
ascender àquilo que, para Platão, há de melhor em nós mesmos.
Portanto, o lugar da matemática na metafísica platônica é justamente entre o sensível e
o inteligível e sua simbiose com a filosofia passa a representar neste caso uma simbiose com a
dialética. Mas a passagem de Aristóteles pela Academia mudaria para sempre a história, pois
este se permitiu discordar de seu mestre quanto às coisas de que trata a matemática,
convertendo a simbiose entre filosofia e matemática em sua mais controversa versão:
matemática e metafísica.
Ao mesmo tempo em que se identificam como ciências teoréticas, elas divergem pelos
seus objetos de estudo. Que os objetos matemáticos existam, disso o Estagirita não dúvida,
mas que eles existam como substância supra-sensível – como queria o seu mestre – ou, como
imanentes às coisas sensíveis – como queriam os pitagóricos – ele considera “impossível”,
“absurdo, “risível”.
Qual deve ser então o estatuto ontológico dos entes matemáticos?
Encontrar uma resposta alternativa é o propósito que o Estagirita destinou
especialmente aos dois últimos livros da sua Metafísica. Enquanto Platão situa o âmbito
ontológico dos entes matemáticos como “intermediários” entre os outros dois, a saber, o das
coisas sensíveis e o mais alto, que compreende as Idéias, Aristóteles não apenas nega o caráter
supra-sensível dos objetos da matemática, mas oferece como resposta o seu próprio
entendimento dos entes matemáticos. Na sua concepção, ao matemático interessa estudar
determinadas propriedades que são “separadas” por hipótese. Esta é a tese fundamental da
filosofia da matemática de Aristóteles.
“Abstrair”, “separar”, “subtrair”, que tipo de atividade mental é essa que permite aos
matemáticos estabelecer suas verdades?
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O verbo grego einai pode ser entendido como “existir” ou “ser”, e o Estagirita
distingue várias formas de compreendê-lo. Para relacionar os seus diversos significados,
Aristóteles utiliza a partícula qua, que pode ser representada pelas palavras “como” ou
“enquanto”, à maneira de um operador lógico. Por exemplo, quando ele nos fala da metafísica
como o estudo do “ser enquanto ser”, do “ser como ser”, enfim, do “ser qua ser”, ele está
querendo dizer que estuda os seres somente na sua condição de seres, separando, subtraindo,
abstraindo as propriedades que são pertinentes num estudo deste tipo. Todos os seres têm
diversos atributos, e por isso podemos estudá-los sob os mais variados aspectos. Mas um
sujeito nunca é exaurido pelos seus predicados, todo e qualquer inventário que se faça de
qualquer objeto sensível que seja, está condenado desde o início a restrições impostas pela
nossa própria efemeridade. Além disso, cada ciência distingue-se das outras por seus métodos
e objetivos, e, portanto, distinguem-se por estudar os seres sob as características que lhe são
pertinentes. Podem-se promover estudos dos seres qua materialidade, dos seres qua
movimento, dos seres qua propriedades térmicas, etc.
No âmbito da matemática, abstrair representa um processo que consiste em extrair
(tirar fora) dos objetos que se pretende estudar as características que definam o objeto
enquanto objeto matemático. Desvencilhando-se de quaisquer propriedades que não dizem
respeito à sua essência como objetos matemáticos. Não havendo, dessa forma, para
Aristóteles, a necessidade de se atribuir os entes matemáticos a uma realidade exterior, como
Platão havia feito.
O tema da divergência entre Platão e Aristóteles foi belamente retratado pelo artista
renascentista italiano Rafael Sanzio (1483-1520) no afresco Escola de Atenas. Ora, se o
historiador da matemática D. H. Fowler (1937-2004) preferiu representar essa obra no início
do seu The Mathematics of Plato’s Academy: a new reconstruction, nós preferimos falar um
pouco dela no final de nosso trabalho.
Na obra de Rafael, produzida entre 1509 e 1511, podemos ver, ao centro, Platão e
Aristóteles, em companhia dos mais célebres filósofos e cientistas de diferentes épocas da
Antiguidade, todos juntos, como se fizessem parte de um mesmo centro de estudos e
pesquisas. Estão entre eles Pitágoras, Euclides, Arquimedes, Sócrates, Averróis, Heráclito,
Parmênides, Zenão de Eléia e Epicuro.
Sob o braço esquerdo de Platão está o seu Timeu, texto em que se encontra a sua
elaborada teorização do mundo e a sua causa criadora, o Demiurgo. Com a sua mão direita,
Platão aponta para cima, com o indicador em riste, numa clara referência à sua busca pela
essência das coisas no mundo superior das Idéias, ao qual a matemática é propedêutica. Para
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Platão, o estado da alma de que essa ciência se ocupa é o pensamento e, a respeito da natureza
de seus objetos, procurou sustentar o seu conhecimento especialmente na razão.
À esquerda de Platão, encontra-se o seu mais famoso discípulo e também o seu mais
ferrenho opositor – Aristóteles de Estagira. Este, segurando a sua Ética com a mão esquerda,
enquanto estende a direita aberta com a palma virada para baixo. Contrapondo-se a seu
mestre, Aristóteles fixou a sua busca pelas essências no mundo terreno, no qual a matemática
não pode existir como imanente aos objetos físicos; nem tampouco, separada em outras
realidades, mas, como qualidades que são por nós abstraídas. No que tange ao estatuto
ontológico dos objetos de que trata a matemática, Aristóteles não desprezou o uso da razão
para se chegar à sua essência, mas discordou de Platão a respeito da natureza sensível neste
processo.
Enquanto Platão fez uma divisão entre dois mundos, o sensível e o inteligível, o
Estagirita, por sua vez, na tentativa de promover uma união onde Platão operou a separação,
fundiu estes mundos e o identificou com este em que vivemos.
No exercício da sua atividade, o matemático pouco (ou nada) se importa com
quaisquer concepções histórico-filosóficas sobre a sua ciência, ou seja, o matemático
profissional não precisa, a priori, se preocupar com reflexões dessa espécie em seu trabalho.
Ele detém-se apenas ao desenvolvimento teórico-formal de sua disciplina. Pode não interessar
a ele se os números ou as figuras da geometria são Idéias, se são substâncias, ou mesmo onde
e como estes objetos existem. “A função de um matemático é fazer algo, provar novos
teoremas, contribuir para a matemática, e não falar sobre o que ele ou outros matemáticos
fizeram” (HARDY, 2000, p. 59).
Contudo, a visão que o matemático tem da sua ciência é apenas um dos diversos
pontos de vista, e como se diz, um ponto de vista nada mais é do que uma vista a partir de um
ponto. Restrito em seu universo, que na maioria dos casos é bem comportado, o matemático
trabalha, acostumado a uma linguagem concisa e precisa, na qual o homem não é a medida de
todas as coisas.
Enquanto o matemático desfruta de uma visão exclusivamente “interna” da sua
prática, o filósofo, que está acostumado a lidar com questões envolvendo a subjetividade em
seu trabalho, impõe sobre a matemática um olhar diferente, uma perspectiva “externa”. Para o
filósofo, cabe a ele tratar dos questionamentos que a atividade matemática levanta, pois tais
questões extrapolam o contexto próprio da matemática e invadem as regiões da
epistemologia, da ontologia e da lógica pura.

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