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Rusu, Meredith
O Quebra-nozes e os quatro reinos: o segredo dos reinos / Meredith Rusu;
tradução Cristina Calderini Tognelli. – São Paulo: Universo dos Livros,
2018.
320 p.
ISBN: 978-85-503-0371-0
Título original: The Nutcracker and the Four Realms – The secret of the
realms
CLARA
CLARA
Pouco depois, Clara e a família trotavam pelas ruas de pedra de Londres numa
carruagem puxada por cavalos. Clara observava os flocos de neve se
avolumarem na beirada da janela da carruagem. Passaram por um grupo de
coralistas natalinos cantarolando para uma mãe e sua filhinha nos degraus da
casa delas. Ninguém mais teria prestado atenção, mas Clara percebeu o carinho
com que a mãe acariciava os cabelos da filha.
Clara suspirou e voltou a atenção de volta para a caixinha adornada que
carregava no colo. Apesar de a carruagem sacolejar, as pregas encapeladas de
seu vestido de festa cor de lavanda mantinham o delicado tesouro no lugar.
Louise escolhera um dos seus vestidos mais belos para emprestar a Clara para a
festa de Drosselmeyer. Também escovara e prendera à perfeição os cabelos dela.
Clara tateou a lateral da cabeça. Os cabelos pareciam diferentes do modo como a
mãe costumava prendê-los – um tantinho puxados demais. E seus pés estavam
desconfortáveis nos sapatos de salto alto que Louise insistira que usasse. Quando
a mãe a ajudava a se vestir para a festa de Drosselmeyer, sempre conseguia, de
alguma maneira, pentear a floresta de cabelos emaranhados da garota com o
mais suave dos toques. E secretamente permitia que Clara calçasse sapatos
confortáveis de festa de modo que seus pés nunca ficavam com bolhas. Clara
perguntava à mãe se estava bela, e a mãe respondia: Claro, minha garotinha
inteligente. Você é bela por dentro e por fora, como somente você consegue ser.
Clara sentia tantas saudades do toque reconfortante das mãos da mãe. Delicado,
mas firme, como o toque de uma inventora deveria ser.
Naquele dia, em vez disso, Clara se tranquilizou com o peso da bolsinha de
ferramentas que carregava consigo em segredo. Puxou uma das pinças e
começou a cutucar a fechadura da caixinha uma vez mais.
– Clara, está levando ferramentas para a festa? – Louise notou de imediato.
– Preciso abrir isto – Clara respondeu, manuseando a ponta da pinça na
diminuta fechadura. Não. Nada ainda. Virou o ovo delicado nas mãos e o ergueu
contra a luz de um dos postes pelos quais passavam para melhor inspecioná-lo.
Foi então que percebeu a letra D manuscrita gravada na base.
– Drosselmeyer! Esta é a assinatura dele! – Clara inspirou fundo. Se o
padrinho criara isto, então certamente teria a chave para destrancá-lo.
– Chegamos! – Louise anunciou de repente.
As três crianças enfiaram as cabeças pelas janelas da carruagem para ver a
magnífica vista da mansão de Drosselmeyer, decorada em toda a sua
grandiosidade para a época do Natal.
As torres pontudas da mansão estavam decoradas com festões viçosos, presos
dos balcões aos contrafortes. Cada uma das janelas estava inundada pelo brilho
que emanavam do interior, e lanternas chinesas vermelhas e douradas
iluminavam o caminho dos portões de ferro forjado gravados com a letra D da
assinatura de Drosselmeyer. Àquela altura a neve cessara, deixando moitas e
arbustos cobertos por uma camada de brilhantes cristais de gelo. Era como o
cenário de um conto de fadas. Clara pensou que não era de se admirar que a mãe
tivesse uma imaginação tão vívida, tendo crescido num lugar como aquele.
Como gostava de fazer todos os anos, a menina levantou o olhar para observar a
quase dúzia de chaminés perfiladas nos telhados. Cada uma delas soltava fumaça
– um sinal de que o coração da casa pulsava, como uma máquina diligente e
confiável.
A carruagem parou diante dos portões. Não havia criados em serviço
aguardando em pé. Em vez disso, os portões começaram a se abrir sozinhos.
– Olhem para o portão! – Fritz exclamou maravilhado. – Como ele sabe que
estamos aqui?
– Pneumática – Clara lhe disse.
– Pneu o quê? – Fritz perguntou.
Clara se inclinou sobre Fritz e apontou para fora da janela.
– Consegue ver aquela máquina ali atrás? Ela está ligada a braços mecânicos,
que controlam as dobradiças dos portões. O peso da carruagem na plataforma
diante do portão ativa o mecanismo.
Os olhos de Fritz se arregalaram de admiração.
– Mágica! – suspirou.
– Francamente, Clara, de onde você tira essas coisas? – Louise perguntou
quando a família desceu da carruagem.
Clara ia responder com insolência que ela aprendera isso em um dos livros de
Drosselmeyer. Mas, felizmente, toda a conversa a respeito de pneumática se
dissipou no momento em que entraram na casa.
A decoração da propriedade de Drosselmeyer só poderia ser descrita de uma
maneira: eclética. Paredes de um vermelho vibrante eram salpicadas com toques
folheados a ouro e tesouros das viagens do padrinho pelo mundo todo: tapeçaria
indiana, cerâmica africana, cortinas chinesas. Dragões de jade serpenteavam ao
longo de prateleiras e pergaminhos antigos permaneciam enrolados em mesas e
cubículos pintados decorativamente. Até mesmo a entrada de sua propriedade
era um verdadeiro museu de arte continental e de excentricidades, que, para o
Natal, fora decorada com as tradicionais guirlandas de azevinho e fitas
vermelhas. Era uma mistura dos tesouros do mundo inteiro com a vistosa
decoração natalina que hipnotizava a todos que testemunhavam aquilo.
Criados recolheram os casacos de Clara e da família e prontamente os
penduraram em ganchos ligados a uma esteira rolante. O mecanismo levou com
rapidez os casacos para outro cômodo mais interno da casa.
– Uau – Fritz suspirou.
Criados com luvas brancas estavam diante das portas do salão principal
anunciando as famílias conforme entravam. Muitos dos convidados já haviam
chegado. O salão estava vivo, com pessoas se misturando e dançando em seus
elegantes trajes de festa, sorvendo goles de vinho do Porto e divertindo-se.
Criados passavam carregando travessas douradas com docinhos e champanhe.
Crianças riram quando um trenó mecânico cheio de presentes apareceu voando
graças a oito renas mecanizadas. No centro do ambiente, havia uma imponente
árvore de Natal enfeitada de vermelho e dourado resplandecentes. Era a única
fonte de luz de todo o salão, mas brilhava mais do que qualquer lustre jamais
conseguiria com suas mil minúsculas lamparinas a gás.
– Incrível – o senhor Stahlbaum murmurou. – Drosselmeyer sempre se supera.
– Consegue vê-lo? – Clara sussurrou para Fritz, perscrutando a multidão.
– Drosselmeyer? – Fritz perguntou. – Não. Espere… Não é aquele?
Ele apontou para um homem alto com uma cabeleira crespa e grisalha que
rapidamente desaparecia em meio à multidão de convidados.
– Tem razão – Clara respondeu.
Dito isso, ela escapou da família, passando de fininho pelos criados e por
grupos apertados de convidados. Ouviu ao longe o nome da família ser
anunciado, inclusive o seu, mas ela não tinha tempo para apresentações. Estava
numa missão. De sua mãe.
Alguns convidados lhe lançaram olhares reprovadores quando ela
acidentalmente pisou em seus pés antes de, finalmente, alcançar o homem
grisalho.
– Padrinho? – chamou, tocando em sua manga.
O homem se virou, e Clara se decepcionou. Era um convidado de rosto rosado
e peruca mal ajustada, que, à luz das velas, assemelhava-se aos cabelos de
Drosselmeyer. Aquele não era seu padrinho.
– Ah, mil perdões – desculpou-se.
O homem a encarou perplexo antes de se afastar.
Clara suspirou. Não era do feitio do padrinho manter-se afastado das
festividades. Sempre era um anfitrião amável, regalando os convidados com
histórias fascinantes das suas viagens ao exterior. Onde ele poderia estar?
Estava prestes a retomar sua busca quando, de repente, alguém falou atrás
dela.
– Concede-me esta dança?
Clara se virou. Era seu pai, com a mão estendida.
– Ah, sou uma péssima dançarina, papai – Clara insistiu. Ela estava falando a
verdade. Clara adorava música, mas parecia estar sempre tropeçando nos
próprios pés durante uma valsa.
– Eu também! – O senhor Stahlbaum sorriu. – Faremos uma dupla perfeita.
Ainda assim, Clara hesitou.
– Por favor? – o senhor Stahlbaum pediu, esperançoso. – Apenas uma dança.
É Natal.
Clara cedeu e assentiu. Segurou a mão de seu pai, que a conduziu à pista de
dança. Mas, no instante em que o quarteto de cordas começou a valsa seguinte,
Clara sentiu o aperto no peito de novo. Aquela melodia era familiar demais,
perturbadora e bela, e muito mais do que conseguiria suportar.
Era a música preferida de sua mãe.
E, de um momento para o outro, Clara não quis mais estar naquela festa.
Todos estavam agindo como se nada tivesse acontecido. Mas algo acontecera.
Sua mãe se fora. Como podiam continuar celebrando sem ela?
Clara se virou e disparou pela escadaria mais próxima.
– Clara, minha querida, espere… – o senhor Stahlbaum suplicou.
Mas Clara não parou. Precisava saber agora, mais do que nunca, o que a mãe
lhe deixara dentro daquela caixinha.
Passou raspando por saias longas de babado e resvalou em ternos de lã, saltou
por cima de pés de crianças e virou na escada de canto para a sacada que
envolvia o salão. Quando chegou ao topo, virou à esquerda, cruzando um
enorme conjunto de portas duplas que a conduziam para longe da festa. Alguns
poucos convidados perambulavam por esse corredor, mas Clara passou
apressada por eles, atravessando outro par de portas, até chegar à biblioteca
escura e fresca.
Suspirou de alívio e se apoiou contra a parede. Inspire, expire, disse a si
mesma. A recente fonte de tristeza provocada ao ouvir a melodia predileta da
mãe foi diminuindo. O peito relaxou. Não havia convidados ali. Estava sozinha.
Uma coruja estava empoleirada no encosto de uma imponente poltrona num
dos cantos da sala. Chirriou para ela, seus olhos amarelos brilhando à luz do luar
vindo de uma janela próxima. Clara olhou para o animal com curiosidade antes
de caminhar até outro par de portas que davam para o que ela considerava o mais
magnífico dos cômodos em toda a mansão de Drosselmeyer: sua oficina.
– Padrinho? – ela o chamou.
A conversa dos convidados da festa ecoava baixa vinda do grande salão,
abafada pelos sons das invenções que emitiam bipes e cliques na oficina.
Engrenagens giravam e pistões bombeavam. Bugigangas e suvenires de todo o
mundo estavam espalhados em pilhas categorizadas. Clara sempre se sentiu
segura ali, cercada por máquinas bem lubrificadas e o movimento incessante dos
mecanismos. Ali tudo fazia sentido.
A coruja chirriou de novo e passou planando por ela. Pousou numa bancada de
trabalho na ponta oposta do cômodo, onde um homem num terno impecável, de
pele escura e cabelos rebeldes grisalhos, estava sentado encurvado. Ele olhou
para a coruja e depois para Clara quando ela se aproximou. Sorriu. Um olho
estava coberto por um tapa-olho, mas o outro era castanho-escuro e gentil.
– Olá, Clara – ele a cumprimentou. – Eu tinha esperanças de que você fosse
aparecer. Não consigo fazer com que esta coisa danada funcione.
Mostrou-lhe no que estivera mexendo: um complexo modelo dourado de um
lago com dois cisnes de cerâmica. Abaixo da superfície, apoiado em quatro
pilares também dourados, havia um complicado conjunto de mecanismos que
nitidamente foram feitos para que os cisnes mecânicos movessem as patas e
batessem as asas. Mas, quando Drosselmeyer girou a chave do modelo, os cisnes
bateram as asas ao contrário.
– Provavelmente só precisa reverter o mecanismo – Clara sugeriu.
Drosselmeyer a fitou de lado.
– É exatamente isso o que estou tentando fazer, minha querida. Mas apesar de
haver duzentas pessoas lá fora, nenhuma delas trouxe uma chave de fenda de
ponta estrela.
Clara vasculhou a bolsinha e tirou a ferramenta necessária.
Drosselmeyer sorriu.
– Eu sabia que podia contar com você. Pegue, tente você. Minhas mãos são
mesmo grandes demais para caberem aí.
Entregou a máquina a Clara. Sem pestanejar, ela começou a refazer o
mecanismo, mudando de lugar rodas dentadas e substituindo engrenagens. Um
momento depois, levantou o olhar.
– Tente agora.
Drosselmeyer girou a chave e, desta vez, as asas dos cisnes bateram na
direção correta.
– Menina brilhante! – Ele bateu palmas. – Você me lembra alguém.
Clara não pôde evitar sorrir. Um professor como Drosselmeyer tinha um jeito
de fazer com que você quisesse deixá-lo orgulhoso.
– Agora, minha jovem – Drosselmeyer prosseguiu –, conte-me por que não
está aproveitando a festa?
– Preciso da sua ajuda, padrinho. Com isto.
Clara mostrou a caixinha em formato de ovo, e Drosselmeyer inspirou fundo.
– Ah, fiz isso para a sua mãe. Quando ela chegou aqui, eu não fazia a mínima
ideia do que fazer com uma menina órfã, um velho como eu; portanto, fiz a
única coisa que eu sabia fazer. Inventei isso para ela.
Drosselmeyer admirou o ovo como se estivesse refletindo a respeito de uma
lembrança antiga. Clara presumiu que ele devia estar pensando em todos aqueles
anos distantes, até o dia em que a mãe dela aparecera na propriedade de
Drosselmeyer. Ouvira a história tantas vezes da sua mãe: muito jovem ainda,
quando os pais dela morreram num incêndio trágico, Marie chegara à soleira de
Drosselmeyer na neve, sem nada a não ser uma sacola, uma boneca e as roupas
que trazia no corpo.
– E agora parece que ela o deu para você – Drosselmeyer ponderou. –
Interessante, não acha?
– Mas sem uma chave – Clara lhe contou.
– Mesmo? – Drosselmeyer espiou a fechadura. – Hum. Uma fechadura de
pinos. Drosselmeyer inteligente. Você não conseguirá abrir isto com uma chave
de fenda de ponta estrela.
– Eu sei – Clara disse. Sua voz vacilou um pouco. – Eu tentei.
Drosselmeyer interpretou a expressão no rosto de Clara. A sua própria se
suavizou.
– Você deve sentir muitas saudades dela – comentou.
Clara não disse nada. Apenas assentiu.
– Às vezes, conversar ajuda, Clara. – Drosselmeyer lhe devolveu o precioso
ovo. – Deixe a tristeza sair do seu coração para que ele possa se curar.
Clara pensou nisso olhando para o lindo, misterioso e derradeiro presente de
Natal da mãe.
BONG!
O relógio de pêndulo no grande salão badalou de repente. Começou a tocar
uma melodia extraordinária, diferente de qualquer outro relógio.
Drosselmeyer se levantou, o momento fora interrompido.
– Está na hora da apresentação dos presentes – ele disse. – Os convidados não
podem esperar. Minha querida, você me daria esta honra? – Ele ofereceu o
braço.
Clara segurou o braço do padrinho e o acompanhou para fora da oficina.
Quando chegaram à alegria da comemoração de Natal, Clara não pôde deixar
de imaginar o que a mãe pensara ao ver aquilo pela primeira vez, sendo uma
criança órfã que, de repente, ficara sozinha no mundo. Sentira alegria? Tristeza?
Curiosidade?
E será que se perguntou, assim como Clara o fazia agora, se o Natal voltaria a
ser tão mágico quanto fora um dia?
CAPÍTULO 3
MARIE
MARIE
CLARA
MARIE
E foi exatamente isso que Marie e Drosselmeyer fizeram. Todos os dias por
quase um mês, entre invenções e lições, eles voltaram para aquela porta no fim
do corredor e entraram no mundo mágico além dos muros da propriedade. A
paisagem parecia se estender infinitamente, com incontáveis quilômetros de
campos e vales e riachos para transpor. Até mesmo o palácio central continha
mais cômodos do que se poderia explorar num único dia. Era como se um novo
reino inteiro se abrisse através da porta de um corredor empoeirado e
abandonado, e era assim que Marie e Drosselmeyer chamavam aquele lugar: o
Reino.
Eles não faziam a mínima ideia de onde o Reino ficava, exatamente. Tendo
viajado o mundo, Drosselmeyer tinha bastante certeza de que aquela terra
misteriosa não existia em mapa algum. Mas descobriram três coisas.
Primeiro, o Reino era inabitado, desprovido de quaisquer animais ou outras
pessoas. Embora alguém evidentemente tivesse construído aquele palácio, quem
ou o que quer que fosse há tempos fora embora. Os cômodos cavernosos
estavam vazios, sem mobília nem decoração. Era como se estivessem esperando
silenciosamente por um novo hóspede – ou um novo proprietário – para enchê-
los de vida e de lembranças.
Segundo, o tempo passava muito mais lentamente no Reino do que no mundo
exterior. Horas passadas nos campos pareceriam meros minutos quando
voltavam à mansão. Marie e Drosselmeyer podiam passar um dia inteiro
explorando e ainda assim retornariam à hora do chá.
E terceiro, coisas que existiam no Reino não podiam ser levadas ao mundo
real. Marie descobrira isso por acaso. Um dia, enquanto ela e Drosselmeyer se
divertiam com um piquenique na grama macia, ela tecera uma coroa de flores
silvestres.
– Ah, Marie, mas que lindo! – Drosselmeyer a elogiara.
– Não se preocupe, tio – Marie rebateu. – Farei uma coroa para o senhor
também.
O homem velho deu uma risada.
– Os melhores inventores jamais perdem o lampejo de uma surpresa divertida.
Lembre-se sempre disso.
Mais tarde, Marie e Drosselmeyer regressaram à mansão, ambos com suas
coroas. Mas no momento em que passaram pela soleira da porta do corredor,
entrando no mundo real, os delicados galhos primaveris desapareceram como pó
à luz do sol.
– Ah! – Marie exclamara. – Para onde foram?
Drosselmeyer deu um tapinha na cabeça.
– Não sei. – Olhou através da porta. – Nunca pensei em trazer nada do Reino
ao mundo real. Curioso.
– Mas as flores não eram reais? – Marie perguntou. – Eram bem reais
enquanto eu trabalhava com elas. Embora… – Fez uma breve pausa. – Lembro-
me de ter pensado que queria flores azuis para a sua coroa, mas só tinha flores
rosa comigo. E, então, de repente, notei algumas azuis bem onde estive sentada o
tempo inteiro. Foi estranho, porque tinha certeza de que antes só havia flores
cor-de-rosa.
– Então, você imaginou flores azuis e, de repente, elas apareceram? –
Drosselmeyer questionou.
Marie deu de ombros.
– Não tenho certeza. Talvez?
O homem velho assentiu lentamente.
– Ainda mais curioso.
– Mas o que isso significa? – Marie insistiu, repentinamente preocupada que,
talvez, aquela descoberta fantástica deles tivesse sido sempre uma mera ilusão.
– Acredito que significa que coisas que não são possíveis aqui são possíveis
no Reino – ele respondeu.
– Então não são reais de verdade? – Marie perguntou, desapontada. Passara a
amar o Reino e os momentos felizes que transcorriam explorando-o com o tio, e
não lhe parecia certo que aquilo tudo fosse falso.
Drosselmeyer virou-se para ela.
– O que a faz dizer isso? Pelo contrário, é extraordinário e muito real a seu
modo, feito da mais pura imaginação.
– Ah. – Com isso Marie se alegrou. – Então, acha que… talvez eu possa criar
mais coisas no Reino? Como as flores?
Drosselmeyer ponderou a respeito da pergunta por um tempo.
– Creio que não vejo mal algum nisso – respondeu por fim. – Afinal, a
imaginação é berço das invenções.
Um sorriso amplo se espalhou pelo rosto de Marie.
– Ah, obrigada, tio! Muito obrigada! Pense em como será divertido fazer
coisas novas no Reino. Ver o que é possível!
O homem gargalhou ao ver Marie tão radiante.
– Creio que é o início de uma grande aventura – disse ele. Então, pousou as
mãos nos ombros dela. – Apenas se lembre do seguinte. Somente você pode dar
vida aos seus sonhos na vida real. E só há uma você no mundo real. Não se perca
a ponto de se esquecer de voltar.
– Não farei isso, tio – Marie disse. – Eu prometo.
CAPÍTULO 7
CLARA
Clara não acreditava no que via. A corda dourada a levara através de uma
passagem até uma floresta de inverno encantada.
Mas onde fica isto?, ela pensou. Estive em toda Londres e nunca vi uma
floresta. E por que há tanta neve mais aqui do que no jardim? Houve outra
tempestade enquanto eu seguia o cordão? Essa neve toda poderia ter se
acumulado tão rápido?
As perguntas percorriam a mente de Clara, parecendo ecoar sem respostas em
contraste com o silêncio pacífico da floresta. A única coisa certa era que o
cordão dourado continuava através das árvores grossas, o que significava que o
presente de Drosselmeyer ainda estava à sua espera em algum lugar.
– Imagino que só haja uma coisa a fazer. – Clara inspirou fundo e seguiu em
frente. Passou pelos galhos espinhosos dos pinheiros, seus passos esmagando a
neve seguindo o fio dourado que a conduzia a uma clareira.
Clara arquejou.
No centro da clareira havia a mais maravilhosa das vistas – uma árvore de
Natal, alta e imponente, reluzindo com pingentes de gelo e frutos vermelhos
reluzentes.
Que lindo! Clara olhou estupefata para os ramos da árvore. É… é como a
árvore que mamãe costumava decorar em nossa sala, só que real. Frutos de
verdade e pingentes de gelo de verdade.
Clara se sentiu incrivelmente emocionada.
Como foi que o padrinho fez isto?, perguntou-se. Deve ter levado séculos para
decorá-la.
Encantada, Clara se aproximou da árvore e tocou num dos frutos.
– Ah! – exclamou.
A fruta voou para longe!
Não era um fruto de verdade. Era um vaga-lume tão colorido quanto um doce,
piscando magicamente contra o céu noturno. O minúsculo inseto pousou no
nariz de Clara, fazendo com que ela ficasse vesga ao fitá-lo. Depois, zuniu de
volta para a árvore.
Encantada, Clara deu um chacoalhão na árvore. Um enxame de vaga-lumes
luminosos encheu o ar, dispersando-se pela floresta em milhares de pontos
luminosos.
– Incrível! – Clara bateu palmas.
Com a dispersão dos vaga-lumes, a árvore ficou sem decoração a não ser por
um objeto dourado que brilhava num galho alto. O enfeite estava ligado ao
cordão da mesma cor de Clara e tinha a extremidade na forma de uma estrela de
seis pontas.
A chave da caixinha de sua mãe.
Clara sentiu o coração saltar.
– Eu já deveria saber.
Estendeu o braço para o alto, ficando nas pontas dos pés para apanhar a chave.
Os dedos estavam prestes a tocá-la quando…
Um rato sujo deslizou pelo galho do nada e apanhou a chave com os dentes! E
fugiu correndo.
– Ei, isso é meu! – Clara gritou.
Mas o rato já havia partido, disparando para a floresta.
– Volte aqui! – Clara berrou com veemência. Segurou a saia do vestido e se
lançou atrás do rato fugitivo o mais rápido que pôde. O pequeno larápio estava
fugindo com o presente – seu presente –, a única coisa que poderia desvendar o
segredo do ovo e revelar a mensagem final de sua mãe. Os pés de Clara estavam
se machucando nos desconfortáveis sapatos de festa que Louise a obrigara a
calçar, mas ela não lhes deu atenção. Tinha que recuperar aquela chave!
Galhos de pinheiros arranhavam seu rosto e raízes retorcidas a faziam tropeçar
enquanto ela corria. Ela sentia vergões se formando nas bochechas, estragando o
pó que Louise a ajudara a aplicar. Tinha certeza de que a irmã ralharia de novo
com ela assim que voltasse para a festa. Pelo amor de Deus, Clara, olhe só o seu
estado! O que andou fazendo? Clara quase conseguia ouvi-la dizendo isso. Mas
seguiu em frente mesmo assim. Não perder o rato de vista era a única coisa que
importava. Felizmente, o pelo marrom se destacava contra a brancura da neve. E
Clara o seguia como a um farol, sem desacelerar para recobrar o fôlego.
O rato correu até o fim da floresta, e quando ele irrompeu das árvores para o
campo aberto, Clara teve certeza que conseguiria persegui-lo. Mas quando
chegou ao limite da fileira de árvores, Clara arquejou e instintivamente parou de
repente.
Havia um cenário nebuloso diante de si. Nas sombras, ela só conseguia
vislumbrar a silhueta de construções decadentes. Paredes caídas e máquinas
quebradas. As ruínas de uma cidade, abandonadas para o musgo e para a
vegetação.
Clara não gostou daquilo. Não lhe parecia certo. Um canto abandonado de
Londres certamente não era um lugar para o qual o padrinho a conduziria. Ela
devia ter se perdido. Afinal, o rato a fizera se desviar do caminho com muita
rapidez. Mas Clara tinha que recuperar a chave. Era o único modo de descobrir a
última mensagem que a mãe lhe deixara.
Nos limites das ruínas havia uma árvore retorcida e feia. A casca pendia torta
e apodrecida ao longo do tronco. Há tempos não devia mais ter folhas nem
ramos. O rato estava num dos galhos nus, observando Clara. Um dos olhos de
bola de gude era fechado por uma cicatriz. A chave dourada pendia em seus
dentes.
– Essa chave me pertence – Clara declarou. Moveu-se na direção do ladrão
peludo. Mas, então, muito de leve, a árvore inteira tremulou. Ela se mexeu. Clara
estacou quando mil olhos se abriram e a encararam. A árvore estava coberta por
ratos.
A menina recuou de repulsa. Ratoeiras mecanizadas podiam ser uma das suas
especialidades, mas ela nunca vira tantos roedores reunidos antes em um só
lugar.
Ainda assim, recusou-se a ir embora. Nada a faria ir embora sem aquela
chave.
Um dos ratos avançou na sua direção, estalando os dentes. Depois outro, e
mais um. Clara se manteve firme… mas um rato saltou e aterrissou no seu
ombro! Ela berrou, afastando-o com um tapa.
– Xô! Vá embora!
Mais ratos pularam. Mais patinhas se agarraram ao seu vestido. Vários ratos
se emaranharam em seus cabelos!
– Saiam de cima de mim! Saiam! – Clara gritou. Ela golpeava e agarrava os
ratos à medida que se acumulavam sobre ela, mas eles continuavam avançando,
forçando-a a se distanciar da floresta, na direção da cidade arruinada. – Por
favor! – implorou. – Eu só quero a minha chave!
Subitamente, o som ribombante de cascos ecoou na escuridão. Um jovem
vestindo uniforme militar surgiu galopando pela neblina, brandindo uma espada,
com a cabeça erguida.
– Em guarda! – ele desafiou os ratos.
O soldado valente golpeou, cortando uma retorcida massa de ratos que atacava
Clara. Os ratos guincharam furiosos, espalhando-se ante a ferroada da arma do
soldado. Muitos se moveram na direção dele de novo, mas o soldado arremeteu
novamente, obrigando os ratos a recuarem na noite.
Clara passou uma mão pelos cabelos, certificando-se de que não restava mais
nenhum roedor ali. Virou-se grata para o soldado.
– Capitão Phillip Hoffman. – O soldado guardou a espada e fez uma
reverência a Clara. – Não sei o que faz aqui, mas suba. Precisamos ir embora.
Esticou a mão para ajudar Clara a montar no cavalo. Ela hesitou.
– Ir embora? – ela repetiu. – Não posso. Aquele rato está com a minha chave.
– Sou um grande admirador de bravura em circunstâncias normais – Phillip
respondeu. – Mas, acredite em mim, este não é o lugar para ficar parada à toa em
um vestido de festa.
– E você me diz isso? – Clara bufou, olhando para o uniforme estranho dele.
Sabia que muitos dos conhecidos do padrinho vinham de diversas partes do
mundo, mas o traje desse soldado não se parecia com nenhum outro uniforme
militar que ela já tivesse visto. Parecia-se quase com o uniforme do soldadinho
quebra-nozes de Fritz! – Eu não li as palavras “festa à fantasia” no convite –
disse.
Phillip franziu o cenho.
– Que convite?
– Para a festa de Natal, é claro – Clara lhe esclareceu. – Não vou embora sem
a minha chave!
Bem nessa hora, Clara e Phillip ouviram os inconfundíveis guinchos agudos
de mil ratos. Eles se viraram. Na neblina, os roedores estavam se reagrupando,
escalando uns por cima dos outros e chicoteando juntos suas caudas numa massa
gigante e ondulante.
– O que eles estão fazendo? – Clara perguntou enojada.
Os ratos continuaram a se agrupar, subindo uns sobre as costas dos outros,
suas garras mergulhando nos pelos um dos outros. O rato com a cicatriz que
roubara a chave de Clara estava bem no meio. A massa inteira oscilou, tomando
a forma de um rato gigante com patas cruéis e dentes rangentes.
– Estão formando o Rei Rato – Phillip avisou. – Temos que sair daqui. Agora!
Mas não havia mais tempo. O Rei Rato deu um passo desajeitado à frente,
chicoteando com sua cauda rastejante formada por mil roedores de olhos negros
e brilhantes. O cavalo de Phillip empinou e disparou aterrorizado. O valente
soldado empunhou a espada, mas era muito tarde. O Rei Rato o golpeou,
arremessando-o de costas sobre um monte de neve, atordoado e desarmado.
O Rei Rato berrou. Pairou acima dele, pronto para atacar.
Clara assistiu, congelada. O que poderia fazer? Tinha que salvá-lo!
Olhou freneticamente ao redor, buscando por alguma coisa – qualquer coisa! –
que pudesse usar como arma. Mas as únicas coisas que eram remotamente
afiadas eram a espada de Phillip, que estava fora de alcance, e seus malditos
sapatos de festa pontudos.
Seus sapatos! Sem refletir sobre isso de fato, Clara arrancou um dos saltos do
pé e o atirou bem no centro do retorcido Rei Rato.
Bem no alvo! O salto afiado atingiu o rato com a cicatriz, lançando-o pelos
ares. Ele guinchou de raiva enquanto desaparecia na neblina. A chave de Clara
saiu voando da boca do roedor e desapareceu em meio às ruínas da cidade.
O enorme Rei Rato cambaleou. Sem seu líder central para controlá-lo, os ratos
perderam o equilíbrio. Esforçaram-se para se reagrupar, mas a distração deu
tempo para que Phillip se recompusesse. Apanhando a espada, ele atacou a
criatura com vontade até que mais e mais ratos fossem separados aos golpes do
amontoado. Desorientados, eles recuaram para a floresta.
Os últimos chiados de ratos desapareceram por entre as árvores e, simples
assim, Clara e Phillip foram deixados sozinhos no silêncio.
Clara recuperou seu sapato. Olhou para ele com novos olhos.
– Servem para alguma coisa, no fim das contas – murmurou.
Phillip bateu no uniforme para tirar o pó, aproveitando-se de um momento
para se recompor. Depois, lançou um meio sorriso irônico para Clara.
– O meu primeiro resgate de uma dama em apuros, curiosamente.
– Eu, uma dama em apuros? – Clara questionou incrédula. – Não fui eu quem
resgatou você?
– Bem, imagino que tenha sido meio a meio. Você é boa empunhando um
sapato.
Foi a vez de Clara sorrir. Gostou da franqueza de Phillip. Ele não era como os
garotos desordeiros que estava acostumada a ver na cidade, com suas bolas de
gude e truques de cartas. E ele, certamente, era o soldado mais jovem com o qual
ela já havia deparado.
– Sou Clara – apresentou-se. – E acho que minha chave foi parar em algum
lugar por ali.
Começou a caminhar mais para o interior da cidade em ruínas. Phillip a
seguiu.
– Não, espere! – exclamou ele. – Este não é um lugar para ficar procurando
por chaves. Eles vão voltar, e não só eles.
– É importante – Clara insistiu, perscrutando as sombras.
– Importante o bastante para arriscar a sua vida? – Phillip perguntou.
Clara o fitou com estranheza.
– Que espécie de soldado permite que alguns ratos o detenham?
– Alguns ratos? – Phillip perguntou chocado. – Ou você é muito corajosa ou
não faz ideia do que…
Ele parou, como se um pensamento terrível tivesse lhe ocorrido.
– Oh, não. Você não é dos Reinos, é?
Clara franziu o cenho.
– Que Reinos?
Num movimento ligeiro, Phillip agarrou Clara e a puxou para trás de uma
grande pedra caída. Cobriu-lhe a boca com a mão. Clara deu um grito abafado de
protesto, mas ele a segurou firme.
– Fique parada, imóvel – Phillip pediu baixinho.
Clara estava prestes a se debater quando, ao longe, eles ouviram. De leve a
princípio, depois foi ficando mais alto. Era uma gargalhada maníaca e
tagarelante, como se uma dúzia de desagradáveis bobos da corte estivessem se
movendo na direção deles pelo céu. Antes que Clara conseguisse descobrir o que
estava acontecendo, uma fileira inteira de galhos de árvores mortas pairando
acima das ruínas da cidade se ergueu, como se puxada por uma criatura imensa.
Algo procurava por eles.
– O que…? – Clara engasgou horrorizada.
– Quando eu mandar – Phillip sussurrou –, corra para a floresta.
A coisa que puxava as árvores para trás avançou na direção deles. Foi só então
que Clara percebeu o que era – uma mão! Uma mão de porcelana branca
inacreditavelmente grande. Ela deslizou pela neblina, passando a poucos
centímetros deles!
– Corra! – Phillip ordenou.
Ele e Clara dispararam para longe do esconderijo, correndo para a fileira
formada pelas árvores. A gargalhada alucinada os seguiu. O soldado levou os
dedos à boca e assobiou e, num piscar de olhos, seu cavalo veio galopando das
sombras. Phillip lançou Clara em seu dorso, e os dois galoparam trovejando em
meio às árvores. Folhas rodopiaram. Galhos se partiram. E, durante todo o
tempo, a gargalhada maníaca ecoou às costas deles.
O que está acontecendo?, Clara pensou desesperadamente enquanto
cavalgavam, o vento frio açoitando sua pele e trazendo lágrimas aos olhos. Estou
sonhando? Como isso tudo pode ser possível?
Phillip e Clara cavalgaram por muito, muito tempo. Por fim, quando o cavalo
ficou sem fôlego e sem forças, Phillip diminuiu o ritmo do corcel, fazendo com
que caminhasse.
– Acho que os deixamos para trás – ele arfou.
– O que era aquilo? – Clara perguntou, incrédula.
– Aquilo era Mãe Ginger – Phillip respondeu. – Um monstro que governa o
Quarto Reino. Motivo pelo qual ninguém vai até lá. Você teve muita sorte por eu
ter avistado do meu posto de vigia que estava com problemas. No que estava
pensando ao ficar lá sozinha?
– Mas eu estava na casa do meu padrinho – Clara insistiu. – Em Londres.
– Você não está mais em Londres – Phillip assegurou.
– Não estou em… Espere, pare. – Clara pulou do cavalo, extremamente
frustrada. Nada daquilo fazia sentido. – Primeiro aqueles ratos, depois Mãe
Ginger, e agora não estava em Londres?
Phillip a encarou, parecendo sem palavras.
– Sim – respondeu apenas.
Clara balançou a cabeça.
– Estou começando a pensar que minha irmã tem razão e que sou mesmo a
maluca da família Stahlbaum.
– Stahlbaum? – Phillip arquejou. De pronto desmontou e fez uma reverência.
– Vossa Majestade. Não sabia que era filha de Marie.
O coração de Clara saltou ante a menção do nome da mãe.
– Você a conheceu? – perguntou, incrédula.
– Claro – asseverou Phillip. – Esta é a terra dela. Ela criou os Quatro Reinos.
E se você é filha dela, então temos que nos apressar. Não está segura aqui.
Precisamos correr para o palácio.
– Mas, Phillip, por favor – Clara suplicou. – Não estou entendendo. O que é
isto tudo?
– Venha! – Phillip a ajudou a montar novamente em seu cavalo e o incitou a se
mover. – Eu lhe mostrarei!
CAPÍTULO 8
CLARA
Clara mal acreditou no que viu quando ela e Phillip escaparam da floresta,
surgindo em plena luz do dia. Era noite há apenas poucos instantes na casa do
padrinho. Mas aqui, o sol estava alto no céu, brilhando como se fosse meio-dia.
A névoa e as sombras do decrépito Quarto Reino se afastavam atrás deles, e
Phillip fez o corcel parar na beira de um precipício que dava para a majestosa
grandiosidade que eram…
– Os Reinos – Phillip anunciou com orgulho.
– Oh! – Clara suspirou. Estendendo-se diante deles havia terras como
nenhuma outra que ela já tivesse imaginado – um vasto caleidoscópio de pujante
beleza e vida.
– Ali está o Reino das Flores – explicou Phillip.
Apontou para um vale com uma explosão de cores. Fileiras intermináveis de
rosas, lírios e narcisos cresciam em jardins planejados cuidadosamente. Chalés e
moinhos salpicavam a paisagem, cobertos por lavanda e hera. Alegres pássaros
canoros adejavam, sobrevoando os campos de flores, fazendo com que os brotos
se abrissem em toda a sua glória antes de, suavemente, voltarem à forma de
delicados botões.
– E o Reino dos Flocos de Neve. – Phillip apontou para os picos das
montanhas acima do vale, o segundo reino.
Além dos picos havia um cintilante vilarejo invernal de gelo e de neve,
centralizado sobre uma geleira congelada. As pontas das torres de uma igreja e
os tetos brilhavam com a geada, e o cenário gélido era tão lustroso que quase
parecia refletir o brilhante céu azul tal qual um espelho perfeito.
– E, por fim, o Reino dos Doces – anunciou Phillip.
Clara acompanhou o olhar dele. O terceiro reino era uma cidade inteiramente
feita de doces deliciosos. Casas de biscoito de gengibre. Pontes de bengalas
doces. Paralelepípedos de balas de hortelã. Até mesmo os telhados eram de
cobertura de bolo e as chaminés emitiam lufadas de fumaça feitas de
marshmallow.
– São incríveis – disse Clara, hipnotizada. Mal conseguia encontrar as
palavras para descrever o que sentia. Esse mundo – esses reinos – era um cenário
saído diretamente de um conto de fadas. E, naquele instante, ela teve uma
estranha sensação de déjà vu. Uma lembrança antiga a cutucava nos recessos da
mente, flutuante e esquiva, algo que ela não conseguia captar ao certo. Flores e
flocos de neve e doces – o padrão lhe parecia familiar, mas ela não conseguia se
lembrar de onde ouvira aquilo. Talvez numa história, há muito tempo? Talvez
fosse de onde a mãe tirara sua inspiração?
Minha mãe, pensou repetidamente. Minha mãe criou isto, secretamente, sem
que soubéssemos. Pela primeira vez na vida, Clara se viu sem fala.
– Lá está o palácio – Phillip disse ao seu lado. Apontou para um castelo
magnífico no meio dos reinos. Ele contemplava tudo, assomando-se como um
guardião régio. Quatro pontes compridas ligavam o pátio do castelo a cada um
dos reinos, apesar de a que o ligava ao desolado Quarto Reino fosse
interrompida por uma imensa ponte levadiça erguida. Debaixo do palácio, uma
imensa cascata ressoava, cujas águas poderosas se despejavam num precipício
nebuloso.
– É para lá que temos que ir – explicou ele. – Os regentes vão ficar muito
ansiosos por conhecê-la, Clara Stahlbaum.
– Os regentes? – ela perguntou.
Phillip sorriu.
– Os companheiros mais próximos da sua mãe.
Clara inspirou fundo. Companheiros mais próximos?
Como podia haver tanto sobre sua mãe que ela jamais soubera?
Phillip incitou o corcel com os calcanhares e, juntos, eles atravessaram a ponte
da sombria floresta cavalgando rumo à beleza repleta de luminosidade dos
Reinos.
Os guardas baixaram a maciça ponte levadiça, concedendo-lhes entrada até o
pátio do palácio.
– A ponte levadiça é a única coisa que nos mantém a salvo – Phillip explicou.
– Enquanto estiver erguida, Mãe Ginger e seus ratos não poderão deixar o
Quarto Reino.
As cabeças dos aldeões se viraram quando Clara e Phillip passaram trotando,
curiosos ao verem a nova visitante. Clara se maravilhou com as vestimentas
deles. Vestidos feitos com fios de caramelo. Laços e meias-calças coloridos
como arco-íris. Para Clara, pareciam-se com lindas bonecas de uma loja de
brinquedos que ganharam vida.
Phillip prendeu o cavalo no pátio, e os dois entraram no palácio. Clara nunca
vira nada como aquilo. Enfeites complicados representavam cada um dos três
reinos remanescentes. Arbustos de flores rodeavam esculturas de gelo
perfeitamente entalhadas. Um imenso lustre feito completamente de fios de
caramelo se dependurava do teto. E a luz do sol se infiltrava através de janelas
de doce cristalizado, projetando reflexos sobre o piso espelhado de gelo.
Phillip conduziu Clara ao longo de uma larga escadaria, e uma trombeta
anunciou a chegada deles. Guardas abriram duas portas enormes, permitindo-
lhes a entrada no salão dos tronos.
Lá dentro, quatro tronos estavam propositadamente dispostos diante de quatro
janelas, cada uma com vista para um dos reinos. Três dos tronos estavam
ocupados; o quarto permanecia ostensivamente desocupado. No centro da sala
havia uma redoma de vidro com uma delicada coroa repousando sobre uma
almofada de veludo.
– Vossas Excelências – Phillip disse para os regentes. – Permitam-me que eu
lhes apresente a senhorita Clara Stahlbaum?
Apesar de costumeiramente Clara permanecer tranquila quando examinada,
seu coração deu um pequeno salto quando os regentes se voltaram para ela.
Estava prestes a conhecer as pessoas que a mãe considerava seus melhores
amigos – e tomara conhecimento da existência deles há apenas poucos
momentos.
Os olhos de Clara se arregalaram quando os regentes se viraram. Nunca vira
uma realeza como a deles. Em um dos tronos estava sentado o regente dos
Flocos de Neve, envolvido em peles espessas. Os cabelos estavam enrolados em
espirais brancos como neve ao redor das feições esculpidas, e pingentes de gelo
se penduravam em sua testa como se fossem uma franja congelada.
O trono oposto estava ocupado por um homem muito menos imponente – o
regente das Flores. Seu terno era feito inteiramente de pétalas e um elaborado
arranjo floral coroava sua cabeça. Os olhos verdes reluziam com um misto de
excitação e curiosidade.
– É verdade? É verdade? – o regente das Flores exclamou subitamente,
saltando do trono. – Que esplêndido, que…
– Hawthorn, por favor – o regente dos Flocos de Neve o interrompeu. –
Acalme-se.
– Desculpe, desculpe – disse. – Hawthorn, regente do Reino das Flores, a seu
dispor.
Hawthorn agarrou a mão de Clara e a beijou.
– Ah – Clara exclamou, surpresa.
O regente dos Flocos de Neve deu um passo à frente.
– Shiver, regente do Reino dos Flocos de Neve – apresentou-se com uma
elegante reverência. – Senhorita, é uma honra.
– Eu… Obrigada – respondeu Clara.
– E a regente do Reino dos Doces – Shiver prosseguiu, gesticulando para a
terceira regente sentada em seu trono. – A Fada Plum.
Clara observou quando Fada Plum se ergueu com graciosidade. Sentiu como
se, de alguma maneira, já tivesse conhecido essa bela mulher, apesar de ter
certeza de que isso jamais acontecera. A regente dos Doces era uma visão da
perfeição – uma beleza além de qualquer comparação. A pele de porcelana
parecia extremamente macia em contato com o deslumbrante vestido rosa.
Açúcar cristalizado brilhava no corpete e nos ombros. Os lábios eram vermelhos
como frutos do bosque, os olhos, castanhos como chocolate. E os cabelos cor-de-
rosa se enrolavam num delicado pufe acima da cabeça como algodão-doce.
– É um prazer conhecê-la – disse Clara.
Fada Plum deu um passo à frente, de leve, como uma bailarina. Apoiou ambas
as mãos nos ombros de Clara e a estudou, fitando-a profundamente nos olhos.
– Jamais pensei que este dia fosse chegar – declarou Fada Plum baixinho.
Clara abriu a boca para responder, mas depois a fechou. Não tinha certeza do
que dizer.
– Conte-me, estamos ansiosos por novidades – continuou Fada Plum. – Como
está a nossa rainha… nossa querida Marie?
– Minha mãe? – Clara perguntou, pega de surpresa.
Fada Plum assentiu.
– Sentimos tantas saudades dela.
– Eu… – Clara gaguejou. – Vocês não sabem?
Os regentes olharam para ela na expectativa. Evidentemente, não sabiam.
– Minha mãe está… Ela morreu – contou Clara.
Os regentes arquejaram.
– Marie, morta? – Hawthorn balbuciou.
Shiver balançou a cabeça, os pingentes de gelo tilintando.
– Lamentamos muito a sua perda.
– A nossa perda – Hawthorn corrigiu. Lágrimas se formaram como gotas de
orvalho nos cantos dos olhos.
– A perda, meu caro, é de todos. Mas especialmente desta moça – Shiver o
admoestou.
– Sim, sim, claro. – Hawthorn se esforçou para se recompor.
Nesse meio-tempo, o rosto de Fada Plum permaneceu congelado de
descrença. O olhar ficou distante, refletindo, talvez, sobre uma lembrança
remota.
– Deixar a vida tão jovem assim – sussurrou ela. – Ah, Clara, ela era a mais
linda, a mais maravilhosa… Ela significava tudo para nós. E nunca tivemos a
oportunidade de nos despedirmos.
Uma lágrima delicada deslizou pela face de Fada Plum.
– Lamento muito – disse Clara. Acostumara-se com os sussurros de
condolências que cercavam sua família, mas, pela primeira vez, nunca pensou no
que dizer para alguém tomado pelo mesmo luto que ela.
Os olhos de Fada Plum voltaram a se concentrar.
– Minha doce menina. – Tocou no rosto de Clara. – Confortando-nos quando
devíamos ser nós a confortá-la.
– Então, veio nos guiar, Clara? – Hawthorn perguntou na expectativa. –
Assumir a coroa da sua mãe?
– Eu… Não – Clara começou a dizer. – Sinto dizer que não sabia de nada
disto tudo. Vim parar aqui mais por um acidente, na verdade. Minha mãe me
deixou um presente de Natal. Uma caixinha.
Clara retirou o ovo de sua bolsinha. Ao vê-lo, os olhos de Fada Plum se
arregalaram.
– Posso vê-lo? – pediu.
Fada Plum o apanhou com delicadeza ainda que precipitadamente, visto que
Clara ainda não tivera a chance de responder. Virou-o nas mãos.
– Notável – suspirou. – Tão típico de sua querida mãe.
– E, no entanto, acabei indo parar no Quarto Reino – Clara prosseguiu. – Um
rato nojento com uma cicatriz pegou a chave que abre a caixa e…
– Uma chave! – Hawthorn exclamou de súbito. – Ouviu isso, Shiver? Uma
chave! Uma chave! É a mesma chave, Fada Plum?
Fada Plum estudou o ovo. Passou o dedo delicado pela fechadura em forma de
estrela de seis pontas.
– Poderia ser a chave? – Shiver perguntou ansioso.
CAPÍTULO 9
MARIE
CLARA
Fada Plum virou a caixinha em formato de ovo de Clara nas mãos. Os dedos
deslizaram pela fechadura de estrela de seis pontas, e um sorriso esperançoso
atravessou seus lábios.
– Acredito que seja – respondeu. – Sim, definitivamente é a chave!
Hawthorn deu pulinhos de alegria.
– A chave! A chave! – exclamou. – Ouviu isso, Shiver? Finalmente, temos a
chave!
Ante as palavras de Hawthorn, a expressão de Shiver de pronto se anuviou.
– Mas não a temos – ele disse, desanimado. – Pode ser a chave, mas, como a
jovem Clara mesma disse, ela está perdida.
O rosto de Hawthorn também se entristeceu.
– Oh – murmurou.
– Você a perdeu no Quarto Reino? – Shiver se virou para Clara. – Para um
rato com uma cicatriz? Só pode ser Mouserinks.
– Ele mesmo, senhor – assentiu Phillip.
Shiver passou uma mão trêmula pelo rosto.
– Ah, isso significa que Mãe Ginger está com ela e tudo está perdido.
– Se permite a minha intromissão – Phillip sugeriu –, podemos formar uma
expedição, Vossa Excelência.
– Acho uma excelente ideia – Clara opinou, grata pela sugestão imediata de
Phillip. – Preciso recuperar aquela chave.
– Todos nós precisamos, minha cara, todos nós precisamos. – Hawthorn se
apoiou pesadamente num pilar. – Mas você não pode voltar ao Quarto Reino. Lá
é um lugar horrendo. É muita sorte ter saído de lá viva.
– Hawthorn tem razão – Shiver acrescentou. – Não podemos nos arriscar a
perder a nossa princesa bem quando ela acabou de chegar.
– Falando em chegar – Hawthorn prosseguiu –, onde estão nossos modos,
regentes? Precisamos organizar a peça para celebrar a sua chegada.
– Creio que seja uma ideia excelente – concordou Fada Plum.
– Mas a chave… – Clara pressionou. Sentia as chances de recuperá-la
escapando pelos dedos.
– Não, não. – Shiver meneou a cabeça. – Isso está fora de questão.
O rosto de Clara se entristeceu. Ela desabou sobre um dos tronos vazios.
– Hã… Esse é o trono de Mãe Ginger… – Phillip disse, nervoso.
Fada Plum deslizou para o lado de Clara e a segurou pela mão.
– Seu dia foi longo e cansativo. Deixe-me levá-la aos seus aposentos.
Antes que Clara pudesse protestar, Fada Plum a conduziu para fora da sala dos
tronos. Clara olhou para trás e lançou um olhar confuso para Phillip antes de as
portas duplas se fecharem atrás delas.
– Mãe Ginger tem um trono? – Clara perguntou ao caminharem ao longo do
corredor forrado por tapeçarias. Ela não entendia como uma criatura tão horrível
poderia ter um assento reservado no palácio.
– Mãe Ginger costumava ser a regente do Quarto Reino – Fada Plum
explicou. – Antes de ser banida.
– O que aconteceu? – Clara perguntou.
– Quando Marie… não voltou – Fada Plum disse devagar –, Mãe Ginger
tentou controlar todos os Reinos à força. A sua mãe nos confiou o controle dos
Reinos na ausência dela. Ela confiou em Mãe Ginger. Mas Mãe Ginger tinha
outros planos. Ela queria governar tudo o que a sua mãe criara, sozinha.
Fada Plum guiou Clara até uma janela que dava para o Quarto Reino. Dali,
Clara conseguia ver uma ilha envolvida em neblina e sucumbida em ruínas.
– São tempos assustadores agora – Fada Plum disse com gravidade. –
Forçamos Mãe Ginger ao exílio, mas ela criou o monstro que quase a apanhou e
destruiu o Quarto Reino.
Apontou para a ponte levadiça pela qual Clara e Phillip passaram para entrar
no terreno do palácio. Estava erguida agora, impedindo que os inimigos do
Quarto Reino atravessassem para o lado em que estavam.
– Aquela ponte não manterá os ratos afastados por muito tempo – Fada Plum
explicou. – Não creio que a sua mãe iria querer que você voltasse lá. Tenho o
dever de mantê-la a salvo.
Clara encarou a ponte levadiça. E pensar que era tudo o que estava protegendo
a maior criação da mãe da completa ruína… Não conseguia acreditar. Como
alguém em quem a mãe confiara podia ter se tornado tão cruel?
Fada Plum pegou a mão de Clara com suavidade.
– Venha.
A bela regente conduziu Clara através dos corredores do palácio e escada
acima até um quarto no alto de uma torre. Ao entrar, Clara arquejou.
– Que quarto lindo! – exclamou. O cômodo era de fato adorável, decorado
com cetim, renda e flores. Um quarto digno de uma rainha.
– Era da sua mãe – revelou Fada Plum. – E agora é seu, se quiser.
Clara passou os dedos com suavidade sobre a macia e fofa colcha. Um retrato
da mãe estava pendurado na parede. Fada Plum estava no retrato ao lado dela.
As duas garotas pareciam estar rindo, aproveitando o entardecer iluminado num
campo de flores. Clara fitou o retrato por bastante tempo. A mãe parecia jovem.
Feliz e cheia de vida.
Clara sentiu o familiar aperto no peito. Era como se a mãe estivesse em toda a
sua volta na beleza delicada daquele quarto, próxima o bastante para poder
conversar com ela, para to-cá-la, mas, ainda assim, fora do seu alcance.
– Por favor, Fada Plum – pediu Clara. – Conte-me a respeito da minha mãe.
Fada Plum sorriu.
– Íamos a toda parte juntas – disse ela. – Éramos inseparáveis; patinando nas
margens dos rios, dançando no pátio, tirando doces das casas quando não havia
ninguém olhando. Ficávamos acordadas a noite inteira no meio das flores do
jardim, apenas conversando e conversando. Ah, que época feliz.
Os cantos dos lábios de Fada Plum se curvaram para baixo enquanto ela
falava. Clara pensou que ela devia estar muito triste, constatando que essas
lembranças jamais seriam revividas. Clara entendia porque se sentia da mesma
maneira.
De repente, Fada Plum olhou para Clara.
– Clara, querida, consegue guardar um segredo? – perguntou confabulatória.
Clara assentiu. Fada Plum a tomou pela mão e a conduziu através de outra
porta, subindo um lance curto de escadas até entrarem num lugar repleto de
máquinas. Engrenagens giravam lentamente, estalando a cada segundo. Doze
janelas com cortinas fechadas se enfileiravam nas paredes.
– Sua mãe e eu adorávamos nossas excursões para o outro mundo – Fada
Plum disse com um sorriso travesso.
– O outro mundo? – Clara perguntou.
– O seu mundo – Fada Plum respondeu.
Ela afastou uma cortina, revelando o vidro craquelado de uma janela com um
número grande pintado ao contrário. Através do vidro embaçado, Clara
conseguiu distinguir o salão de festas de Drosselmeyer logo abaixo delas,
decorado com os enfeites de Natal.
– É o salão de baile do meu padrinho! – exclamou. – Estamos no relógio dele!
Mas… Como?
O maquinário atrás delas de repente começou a chiar mais audivelmente. Algo
estava para acontecer.
– Está na hora – Fada Plum a apressou. Fez Clara subir rapidamente numa
plataforma móvel. – Espere… espere… ok, agora! Suba!
Juntas, Clara e Fada Plum subiram na plataforma móvel impulsionada por
uma esteira rolante que percorria a extensão da sala do relógio. Ela as deslocou
com rapidez em direção a uma porta, que se abriu numa explosão de luz,
conduzindo a…
– Estamos do lado de fora! – Clara exclamou ao avançarem para a luz e para o
som do salão de baile da festa de Natal. Do alto do relógio de pêndulo, Clara
tinha uma visão panorâmica de toda a celebração. Mas não estava em seu
tamanho normal – estava minúscula como uma estatueta de brinquedo. Clara
baixou o olhar para as mãos. Ela era uma estatueta! Ela e Fada Plum se
transformaram em versões em miniatura de si mesmas, movendo-se para o lado
externo do relógio de pêndulo numa pequenina esteira rolante como dois
adornos dando as horas enquanto o relógio ressoava. Clara olhou maravilhada
enquanto a magia dos Reinos tremeluzia ao seu redor.
– Como isto é possível? – perguntou incrédula.
Fada Plum apenas sorriu.
– Era a vista predileta da sua mãe. E a minha.
Clara observou impressionada a festa alegre abaixo delas.
– Lá está papai, e Fritz e Louise! – exclamou de repente. Clara apontou para a
família de pé no meio da festa.
Fritz brincava com seu quebra-nozes, tentando fazer o pai rir. Enquanto isso,
um belo rapaz conversava com Louise.
– Ela é tão linda, não acha? – Clara disse de Louise, notando mais uma vez a
semelhança dela com a mãe naquele belo vestido verde.
– É? – Fada Plum inquiriu, inclinando a cabeça. – Ah, sim, é uma doçura. Mas
não se esqueça, a sua mãe escolheu você para vir aos Quatro Reinos. Não ela.
Clara não pôde deixar de se sentir inundada de orgulho. Fada Plum estava
certa. A mãe escolhera a ela para esta aventura. Mesmo não sendo graciosa, ou
alinhada, nem sabendo as coisas certas a dizer na hora adequada, a mãe confiara
o bastante nela para partilhar aquele segredo maravilhoso. E isso significava
tudo.
A esteira rolante foi seguindo em frente, levando Clara e Fada Plum ao longo
do relógio e conduzindo-as até uma porta automática. Pouco antes de passarem,
Fada Plum se inclinou e sussurrou no ouvido de Clara.
– Eu costumava observar você crescendo daqui de cima e ficava imaginando
quando a sua mãe a traria para nos conhecer.
Entraram pela porta, voltando ao quarto escuro e fresco do interior do relógio.
– Foi o que ela fez – Clara sorriu, levantando o precioso ovo. – Ela me deu
isto e aqui estou eu!
– Finalmente – Fada Plum concordou. – Ela era tão inteligente!
– Mas… A minha família não se preocupará com o meu sumiço? – Clara se
deu conta de repente.
– Não, não – Fada Plum a tranquilizou. – O tempo passa muito lentamente
aqui. Você estará de volta antes que percebam. Se realmente quiser voltar.
– Não posso voltar até ter encontrado a chave – Clara disse, determinada.
– Eu entendo isso muito bem – assegurou Fada Plum. – Mas, até lá, você é a
convidada de honra da nossa peça. Todos os cidadãos do nosso mundo vão
querer vê-la!
Fada Plum uma vez mais segurou a mão de Clara e a guiou de volta ao lindo
quarto de sua mãe. A bela regente se apressou até um guarda-roupa dourado e
escancarou as portas. Fileiras e fileiras de lindos vestidos de festa estavam
pendurados em cabides de cetim.
– Então, qual deles você escolhe para a sua apresentação? – perguntou ela.
Clara hesitou.
– Não sei – respondeu, incerta. – Não sou muito boa com vestidos e cabelos e
sapatos, bem… – A voz de Clara foi sumindo. Ela sabia que os regentes só
estavam tentando acolhê-la. Mas ela não tinha certeza se queria ser
homenageada numa peça onde todos os olhos se voltariam para ela. Clara não
era tímida, mas ali, nos Reinos, onde a mãe fora tão reverenciada e adorada e
perfeita… E se ela não estivesse à altura das expectativas? E se eles ficassem
desapontados? Clara desejava mais do que tudo poder conversar com a mãe.
Queria a chave para poder saber sua mensagem final.
Fada Plum se aproximou por trás dela.
– Se me permite a ousadia, posso oferecer a minha ajuda?
– Você faria isso? – Clara perguntou, aliviada.
– Claro! – exclamou Fada Plum. – É o que mais gosto de fazer.
Pouco depois, Clara estava diante de um espelho, com os olhos fechados.
Pilhas de vestidos a cercavam, e Fada Plum lhe aplicava os últimos retoques no
cabelo.
– Sem espiar – Fada Plum a lembrou. – Você está quase pronta.
Clara assentiu. O modo como ela penteava e prendia seus cabelos era muito
mais delicado do que o toque de Louise, mas ainda assim não era o mesmo que o
da mãe.
– Minha mãe falava de mim? – Clara perguntou baixinho.
– Ah, sim, o tempo inteiro – Fada Plum respondeu.
O último grampo a ser colocado espetou acidentalmente a cabeça de Clara
com um pouquinho de força demais, mas a menina não disse nada.
– Tanto que às vezes parecia que você estava bem aqui conosco. – Fada Plum
terminou. – Agora, abra os olhos.
Clara fez o que lhe foi pedido e encarou seu reflexo no espelho. Arquejou.
– Puxa!
Clara estava… magnífica! Fada Plum escolhera um maravilhoso vestido de
inverno branco decorado com penas e flores para que usasse na peça. Brocados
dourados circundavam o corpete e as mangas, e os cabelos estavam trançados de
uma forma complexa com fitas brilhantes e pérolas.
Clara nunca antes tinha se visto tão adorável. Por um breve momento, de fato
se sentiu tão linda quanto a mãe.
– Gostou? – perguntou Fada Plum.
– Amei – Clara respondeu. – Pareço tão… diferente.
Fada Plum sorriu.
– Como a filha de uma rainha.
CAPÍTULO 11
FADA PLUM
Certa tarde, na Sala da Máquina, Fada Plum assistia curiosa enquanto Marie
segurava um brinquedo novo nas mãos. O velho Drosselmeyer estava com elas.
Toda vez que ele vinha, algo novo ou excitante normalmente estava reservado.
– É magnífico, tio – Marie admirou o lindo quebra-nozes que Drosselmeyer
lhe dera de aniversário. – Muito obrigada.
– Admito, meu presente também serve a mim – Drosselmeyer respondeu. –
Estou ansioso em ver o seu invento funcionar de novo.
– Claro! – disse Marie. – E ele será um guarda perfeito para o palácio.
– Bem, perfeito não – Fada Plum brincou.
– Sim, claro. – Marie encostou o nariz no dela. – Só você é perfeita.
As meninas riram, tendo partilhado dessa piada em particular tantas vezes
antes.
Marie depositou o quebra-nozes na plataforma da Máquina. Depois, subiu
para girar a chave em forma de estrela na enorme máquina.
Zuum. Clique. Vruuuuuuuuum.
A máquina zuniu ganhando vida e, com uma luz brilhante, o boneco quebra-
nozes desapareceu. Em seu lugar surgiu um soldado em tamanho real: alto e
imponente, com a pele morena e um uniforme de veludo vermelho escovado.
O soldado quebra-nozes piscou.
– Onde estou? – perguntou.
Marie apoiou uma mão em seu ombro, como fazia com cada brinquedo a que
dava vida.
– Está em casa – disse-lhe. – Meu nome é Marie. E o seu?
O soldado fitou os olhos de Marie.
– Phillip. – Deu um passo vacilante à frente. Marie o equilibrou.
– Cuidado – advertiu-o. – Ganhar vida requer um pouco de prática.
Fada Plum observou o soldado recobrar o equilíbrio. Toda vez que Marie dava
vida a um brinquedo, seus primeiros passos eram sempre desengonçados. Mas os
dela não foram. Orgulhava-se em ser tão graciosa quanto uma bailarina desde o
início.
Nesse meio-tempo, Drosselmeyer estendeu a mão para tocar no metal da
Máquina.
– Ainda não consigo acreditar – disse a Marie. – A sua máquina não usa nada
além de energia a vapor?
– Sim. As turbinas ligam as esteiras que transportam as diferentes
engrenagens necessárias para mecanizar cada brinquedo – Marie explicou. – Lá
dentro, eles são montados da forma que precisariam ser combinados para
permitir que cada brinquedo se movesse. Mas com a magia dos Reinos, ela faz
mais do que isso. Ela lhes dá…
– Vida – Fada Plum completou por ela.
Drosselmeyer sorriu com orgulho, como um pai testemunhando um grande
feito de um filho.
– Minha querida Marie, somente você poderia ter pensando em algo tão
inteligente.
– Ela é brilhante, não é? – Fada Plum pegou no braço de Marie.
– Não sei nada sobre ser brilhante. – Marie gargalhou. Gesticulou para Phillip.
– Cada brinquedo que ganha vida é único a seu modo.
– Talvez eu seja o brinquedo mágico que permitiu que a máquina funcionasse!
– sugeriu Fada Plum. – Fui a primeira, afinal.
– Talvez você tenha razão – considerou Marie. – Eu jamais teria pensado na
Máquina, para início de conversa, se não fosse por você. Você é a minha melhor
amiga.
Isso deixou Fada Plum muito feliz.
– O que me faz lembrar – Drosselmeyer anunciou de súbito. – Marie, sua
professora pediu que nos encontrássemos com ela, juntos.
– Pediu? – Marie perguntou com uma expressão surpresa. – Fiz algo errado?
– Não, não – Drosselmeyer a tranquilizou. – Muito pelo contrário, os seus
estudos estão exemplares. Mas ela anda um pouco preocupada com a sua
exposição social.
– Exposição social? – Fada Plum repetiu com a voz sufocada. – Isso parece
muito sério.
– O que ela quer dizer com isso, tio? – Marie perguntou.
– Não tenho muita certeza – Drosselmeyer respondeu. – Vamos descobrir
juntos. Está pronta?
– Claro, tio. – Marie soltou do braço de Fada Plum. – Irei com o senhor agora.
– Mas… – Fada Plum começou a dizer. Não queria que a amiga partisse ainda.
– Pensei que faríamos anjos na neve. E depois anjos com flores. E depois anjos
de doces.
Marie deu uma risada.
– Ainda podemos fazer isso, bobinha. Voltarei assim que tiver terminado.
Enquanto eu estiver ausente, por que não mostra tudo a Phillip? Você pode levá-
lo à fábrica de doces ou aos jardins floridos! Os lírios-de-um-dia estão
florescendo… os seus favoritos!
Fada Plum ficou vendo Drosselmeyer guiar Marie para fora da Sala da
Máquina.
– Ela está sempre tão ocupada – Fada Plum disse para Phillip. – Fico
imaginando se as pessoas no mundo real percebem o quanto ela é inteligente.
– Ela deve ser muito inteligente para ter criado tal coisa. – Phillip olhou para a
Máquina. – Devemos, então, ir para a fábrica de doces, como disse Marie?
Fada Plum deu de ombros.
– Imagino que sim. – Francamente, estava mais interessada em começar a
fazer os adoráveis anjos de neve para surpreender Marie quando ela voltasse.
Mas depois olhou para o uniforme de Phillip e começou a rir. – Talvez
encontremos algumas nozes para você quebrar.
Phillip baixou os olhos para as mãos e o uniforme e também riu.
– Creio que não serei mais de grande ajuda nisso – admitiu.
CLARA
FADA PLUM
– Venha comigo! – Marie encorajou Fada Plum certa manhã nos Reinos. –
Tenho uma surpresa para você!
– Uma surpresa? – Fada Plum perguntou com… bem, surpresa.
– Isso! – Marie subiu puxando a amiga pelos largos degraus do palácio. –
Uma coisa que fiz para você no palácio.
– Mas como? – Fada Plum tropeçava ao tentar acompanhar. Não era comum
que Marie fosse mais rápida do que ela. – Não estivemos juntas o tempo inteiro
sempre que você veio aos Reinos?
Marie piscou para ela.
– Isto é especial. Quis manter segredo até estar pronto.
Chegaram a um conjunto de portas duplas que Fada Plum jamais vira antes, e
Marie se virou para ela.
– Feche os olhos – sussurrou. – Não os abra até eu mandar.
Fada Plum fez como lhe foi dito, e Marie a guiou para dentro da sala
misteriosa.
– Muito bem – disse Marie. – Agora!
Fada Plum abriu os olhos e arquejou. Estavam numa imensa sala dos tronos,
novíssima no palácio. Marie deve ter passado séculos aperfeiçoando-a. Nas
paredes havia desenhos elaborados de reluzentes mecanismos e engrenagens de
ouro puro. Colunas de mármore sustentavam arcos e contrafortes decorados. O
espaço todo era iluminado pela luz de velas, refletindo milhares de minúsculos
cristais pensos em lustres majestosos. E precisamente posicionados diante de
quatro janelas que iam do teto ao chão havia quatro tronos imponentes, de frente
para cada um dos reinos.
– O que é isto? – perguntou, maravilhada, Fada Plum. – O que você criou?
– Não consegue adivinhar? – Marie perguntou animada. – É a sala dos tronos!
– Para mim? – Fada Plum estava confusa. – Mas por quê? Você é a rainha.
– Porque – Marie explicou, batendo as palmas das mãos – você merece algo
especial e grandioso! Uma sala à altura da realeza!
As faces de Fada Plum se enrubesceram de prazer. Marie planejava torná-la
rainha também, para que pudessem governar os Reinos juntas? Fada Plum
jamais pensara em si mesma como rainha. Mas agora que o fazia, ah, parecia
algo maravilhoso!
– Que adorável! – exclamou para Marie. – Não consigo acreditar que…
Mas, de pronto, se calou.
– Mas por que há quatro tronos? – perguntou.
Foi então que Fada Plum notou três figuras na sala com elas. Novos
brinquedos que ganharam vida e que ela jamais vira antes. Estavam sentados em
cada um dos tronos de frente para as janelas e, para Fada Plum, eles pareciam…
diferentes.
– Podem vir agora! – Marie os chamou. – Venham conhecer Fada Plum.
– Ah, finalmente! – disse o primeiro, descendo do trono. Ele era jovial e
corpulento, coberto por mantos feitos inteiramente por flores vibrantes. Até
mesmo de seus cabelos brotavam rosas. – Hawthorn, a seu dispor – apresentou-
se para Fada Plum, segurando-lhe a mão para apertá-la com vigor. – Um prazer,
é um prazer conhecê-la.
– Estou… encantada, com certeza – Fada Plum gaguejou.
A segunda figura se aproximou para cumprimentá-la.
– Shiver – disse, apresentando-se com uma reverência pronunciada,
permitindo que a casaca prateada resvalasse no chão. Onde quer que ele tocasse,
cristais de gelo se formavam. – É uma honra conhecê-la, Fada Plum. Marie nos
contou tantas coisas a seu respeito.
– Contou? – Fada Plum perguntou. O que estava acontecendo? Quem eram
essas pessoas?
Por fim, a última figura apareceu. Essa era uma mulher, com um vestido de
babados laranja e vinho com a barra decorada com borlas de cortinas. Os cabelos
encaracolados ruivos eram fofos e estavam presos com uma fita amarela.
– E eu sou Mãe Ginger – a mulher anunciou. A voz parecia mais velha, mais
direta. – É maravilhoso conhecê-la, querida. Você é tão adorável quanto Marie a
descreveu.
Fada Plum olhou para os três e de volta para Marie.
– Sinto que… desculpe, mas não estou entendendo – confessou.
– Estes são os seus novos amigos! – exclamou Marie. – Eu os criei para que
sejam os regentes dos quatro diferentes reinos!
– Regentes? – Fada Plum perguntou.
Marie segurou as mãos de Fada Plum. Parecia resplandecer de felicidade.
– Venho pensando já há algum tempo… Você me ajudou a dar vida aos
Reinos, e quero que o administre comigo. Mas não serei capaz de retornar com a
frequência que fazia, e me pareceu injusto pedir a você que governe todos os
Reinos sozinha. Por isso criei três companheiros para você. É perfeito, entende?
Marie se virou para Hawthorn.
– Hawthorn é o regente do Reino das Flores. Ele é um jardineiro excelente,
assim como o foi meu pai.
As bochechas de Hawthorn coraram.
– Ah, não, pare com isso. Decerto não posso ser tão habilidoso quanto seu pai!
– Você é, sim – Marie insistiu com um sorriso. Virou-se para Shiver. – Shiver
é o regente do Reino dos Flocos de Neve.
– Que faz com que se lembre do dia em que chegou à propriedade de
Drosselmeyer. – Shiver assentiu, satisfeito. – Estou ansioso por conhecer esse
senhor Drosselmeyer, a pessoa em cuja homenagem você me criou.
– E logo o conhecerá, prometo! – disse Marie. Virou-se para a mulher de
cabelos ruivos. – E Mãe Ginger é a regente do Reino do Divertimento. Pensei
nesse nome porque minha mãe sempre fazia biscoitos de gengibre para as
minhas festinhas na hora do chá. Eram os meus prediletos.
– São os meus também – Mãe Ginger respondeu com afeto.
Marie se aproximou mais de Fada Plum.
– Sabe o que isso a torna? – perguntou.
Fada Plum abriu a boca, mas nenhum som saiu. Pela primeira vez na vida,
estava sem palavras.
– Isso a torna a regente do Reino dos Doces! – Marie gritou, abraçando a
amiga e dando pulinhos. – Não é perfeito? Ah, Fada Plum, você será tão feliz.
Faremos uma peça de teatro e um baile e tudo o mais! Este é um novo capítulo
para os Reinos, com você bem no centro de tudo!
A mente de Fada Plum girava enquanto Marie a empurrava. Queria muito
estar feliz pela amiga. Mas nada daquilo fazia sentido.
– Ainda não compreendo – disse lentamente. – Não será mais a nossa rainha?
– Ah, não! Não, não, não. Ainda serei a sua rainha – Marie a tranquilizou. – É
que, como vou começar no colégio neste outono, não poderei voltar aos Reinos
com tanta frequência, e eu…
– Colégio? – Fada Plum a interrompeu. – Vai para um colégio? Mas por quê?
Marie riu.
– Para aprender, claro. Todos frequentam o colégio. Bem, talvez não todos.
Mas todos vão à escola. Para aprender e para trabalhar e para educar suas
próprias famílias um dia.
– Ah. – Fada Plum pensou nisso por um momento.
– Você não… Não gostou da surpresa? – Marie confundiu a hesitação de Fada
Plum com desaprovação. – Não está feliz? Ah, por favor, diga que sim, Fada
Plum. Pensei nisto tudo por você!
– Claro que gostei. – Fada Plum não queria desapontar a amiga. – É que tudo
isso é… tão impressionante.
– Você irá amar, pode acreditar. – Marie a abraçou de novo com força. – Você
será a bela regente do Reino dos Doces.
– Bela, de fato! – Hawthorn entoou. – A mais bela regente dos Reinos! –
Cobriu a boca com uma mão. – Sem querer ofender, claro, Mãe Ginger.
Mãe Ginger ergueu uma sobrancelha.
– Não me ofendeu, meu bom homem.
Aliviado, Hawthorn prosseguiu.
– Será muito divertido! Os Quatro Reinos ficarão bem em nossas mãos.
– Hawthorn está certo. – Shiver tocou no braço de Fada Plum. Os dedos dele
eram como gelo. – Juntos, nós quatro devemos cuidar dos Reinos enquanto a
nossa rainha estiver ausente.
– E é o que faremos. – Mãe Ginger se aproximou e segurou as mãos de Marie
nas suas. – Nós ficaremos felizes em cuidar dos Reinos na sua ausência.
Fada Plum fitou os três novos regentes. Eles de fato pareciam amigáveis,
concluiu. Só precisaria se acostumar. Mas se Marie acreditava mesmo que seria
melhor assim, com certeza ela poderia fazer dar certo. Afinal, era a primeira.
Perfeita, como Marie sempre dizia. Que dificuldade teria em ensinar aos três
regentes os detalhes envolvidos nos cuidados dos Reinos?
Mãe Ginger pareceu sentir o olhar de Fada Plum sobre si. A mulher se virou e
lhe lançou um sorriso estranho.
Fada Plum rapidamente desviou o olhar.
Daria o melhor de si.
CAPÍTULO 14
CLARA
Fada Plum conduziu Clara e Phillip por uma escada espiralada. A aclamação e
os aplausos da plateia do teatro ficaram para trás à medida que desciam e
desciam cada vez mais, até que tudo o que conseguiam ouvir eram apenas seus
passos nos degraus de pedras. Lâmpadas de gás tremulavam nas paredes,
fazendo com que suas sombras dançassem.
Lá embaixo, chegaram a uma pesada porta de ferro. Fada Plum subitamente
agarrou o braço de Clara.
– Não pode contar a ninguém o que vou lhe mostrar – sussurrou com
veemência.
Clara assentiu.
– Prometo.
– Sua mãe não era apenas a nossa rainha – Fada Plum explicou num tom de
voz baixo. – Ela também foi a nossa criadora. Ela nos fez.
Clara franziu o cenho.
– Não estou entendendo.
– Éramos apenas brinquedos antes – Fada Plum continuou. – Objetos sem
vida com que as crianças como você brincavam. Então, sua mãe apareceu e
mudou tudo. Ela nos deu vida. Com isto.
Fada Plum empurrou a pesada porta, abrindo-a, e as dobradiças rangeram num
protesto. Logo atrás dela havia uma sala cavernosa repleta de maquinários. Clara
jamais vira algo semelhante antes. Passar por aquela soleira foi o mesmo que
entrar nas engrenagens de uma imensa máquina. Mas tudo estava estranhamente
silencioso. Pistões e rodas dentadas estavam de prontidão; correias e polias
permaneciam inertes de maneira atípica. As únicas coisas que se moviam eram
uma série de rodas-d’água, girando muito devagar. E no centro de tudo havia um
tubo cônico comprido apontado para uma plataforma. A máquina sibilava
soltando vapor, à espera de alguém, de algo que a ativasse.
– A Máquina – anunciou Fada Plum.
Clara observou o cômodo de olhos arregalados.
– Isto foi invenção da minha mãe? – perguntou incrédula. Clara sabia muito
bem o quanto a mãe fora talentosa com suas invenções. Mas o mecanismo diante
deles era tão complexo, visivelmente poderoso. Clara não fazia ideia de que a
mãe fora uma inventora tão engenhosa a ponto de criar… aquilo.
– A Máquina nos tornou reais. – Fada Plum passou a mão pálida ao longo do
metal liso da máquina. – Nos deu vida e humanidade. Tudo o que você tem, nós
temos. Sentimentos: alegria, tristeza, raiva…
– Amor – Phillip intercedeu de súbito.
Clara e Fada Plum o fitaram surpresas. Envergonhado, Phillip deu um tapinha
no metal da máquina. Ela acionou uma válvula, que soltou um vapor sibilante
nele. Phillip tossiu.
– Ah, sim, meu bom capitão, amor também – Fada Plum concordou. – Mas
não temos mais a única coisa de que precisamos para que ela funcione.
– A chave – disse Clara.
– Como pode ver. – Fada Plum apontou para uma pilha enorme de chaves
descartadas ao lado do painel de controle. – Sem a chave, a Máquina permanece
adormecida; os Reinos, paralisados. Mãe Ginger está na fronteira e os ratos,
prontos para entrar. O que aconteceu com o Quarto Reino pode acontecer aqui.
Tudo o que sua mãe criou pode ser destruído!
– Não! – Clara exclamou. – Isso não pode acontecer.
Clara estudou a fechadura que operava a maravilhosa Máquina. Pegou a caixa
em formato de ovo da bolsa e olhou para sua fechadura. Combinavam.
– É a mesma! – Clara constatou. – Minha mãe não podia voltar, por isso me
deu a chave!
Talvez essa seja a mensagem dentro da caixa!, Clara pensou desvairada.
Talvez mamãe soubesse que os Reinos corriam perigo e me enviou para salvá-
los. O bilhete dizia: “Tudo o que necessita está dentro”. Será que ela se referia
a tudo de que eu necessitava para salvar os Reinos?
– Esperamos e esperamos pela volta de sua mãe para podermos reiniciar a
Máquina – disse Fada Plum com gravidade. – Mas ela nunca retornou. E agora
temo que essa chave esteja perdida para sempre.
– Não! Nós podemos recuperá-la. Temos que recuperá-la – Clara insistiu.
Fada Plum meneou a cabeça.
– É extremamente contra o protocolo se opor aos desejos dos regentes.
– Mas e quanto aos desejos de minha mãe? – Clara argumentou.
Isso fez Fada Plum parar para pensar.
– Bem observado, minha querida – disse depois de um tempo demorado. –
Muito bem observado.
Clara e Phillip aguardaram ansiosos enquanto Fada Plum parecia ponderar
sobre as palavras de Clara. Por fim, a bela regente sorriu. As faces coradas
brilhavam na umidade do vapor emanado pela Máquina.
– O protocolo está suspenso! – declarou.
– Ah, obrigada, Fada Plum! – Clara a abraçou, contente. – Phillip?
O soldado bateu os calcanhares, em posição de sentido.
– Vossa Majestade?
– Virá comigo? – Clara pediu. – Ao Quarto Reino?
Phillip assentiu.
– Uma dúzia dos meus melhores homens estará reunida no pátio ao
amanhecer. Entraremos e sairemos, a missão estará cumprida até o cair da noite.
Clara deu um sorriso amplo. Conseguiriam! Recuperariam a chave da mãe!
Mas Fada Plum ainda parecia preocupada.
– Clara, está disposta a arriscar sua vida por nós?
Clara assentiu, determinada.
– Temos que pegar essa chave. Pelo bem de todos nós.
Ao ouvir isso, Fada Plum segurou o rosto de Clara entre as mãos. Seu toque
era gentil, mas firme. A pele era fria como mármore nas faces de Clara.
– Você também tem a bravura dela – disse Fada Plum com admiração. – Que
orgulho ela teria da filha corajosa.
Uma sensação imensa de gratidão se apossou de Clara. Há não tanto tempo,
ela desconhecia a existência de tudo aquilo.
Mas agora, dependia deles – dela – salvá-los. Fazer o que a mãe haveria de
querer fazer, mas já não podia. Manter seu sonho vivo.
Iriam salvar os Quatro Reinos.
Clara e Phillip estavam diante da ponte levadiça. Atrás deles, uma dúzia de
seus mais valentes soldados, todos prontos. E, à frente deles, do outro lado da
ponte, jazia o seu destino: o Quarto Reino destruído, envolvido em neblina e
incerteza.
– Eu gostaria de ir com vocês – sussurrou Fada Plum para Clara. –
Compreende que não posso ser vista indo contra as ordens dos outros regentes?
Clara assentiu. Vestia com orgulho o uniforme de um soldado em missão.
– Compreendo – disse a ela.
– Mas tenho um emissário para auxiliá-los em sua busca – continuou Fada
Plum. – Um excelente navegador a quem confio minha vida.
Fada Plum olhou ao redor.
– Dew Drop? – chamou.
– Ah, não – Phillip gemeu quando uma minúscula fadinha flutuou até eles
num crepitante rastro de faíscas.
– Você disse alguma coisa? – Dew Drop perguntou, jogando nele um borrifo
de água mágico. – Não consegui ouvir.
– Que linda! – exclamou Clara. Nunca vira uma fada de verdade antes.
Dew Drop pousou no ombro dela. Avaliou o rosto de Clara.
– Não posso dizer o mesmo – replicou.
– O que disse? – Clara perguntou, surpresa.
– Dew Drop – Fada Plum advertiu –, comporte-se.
– O quê? – Dew Drop reclamou. – Achei que ela seria mais alta!
Fada Plum meneou a cabeça e se virou para Clara e para Phillip. Mesmo na
luz fraca do início da manhã, a linda pele de porcelana da regente reluzia como
poeira estelar.
– Rezo pelo regresso em segurança de vocês – disse a Clara. – Cuidem-se, e
cuidado com a Mãe Ginger.
– Pode deixar – Clara prometeu.
CAPÍTULO 15
FADA PLUM
Com o passar do tempo, Fada Plum acabou se acosumando com a presença dos
outros regentes. Cinco anos já haviam se passado desde que Marie começara
seus estudos no colégio em Londres. Suas visitas aos Reinos se tornaram menos
frequentes, apesar de Fada Plum parecer sentir sozinha o impacto total da
ausência de sua querida amiga. Nunca mais as coisas foram as mesmas desde os
velhos tempos em que havia apenas Fada Plum e Marie. Mas a companhia dos
regentes tornou os períodos entre as visitas de Marie menos solitários e, de vez
em quando, Fada Plum se esquecia por alguns instantes de que eles não
estiveram sempre ali, administrando os Reinos com ela.
De fato, Fada Plum se sentiu surpreendentemente grata pelo papel natural de
líder que cumpria. Apreciava seu recém-adquirido prestígio. Os trabalhadores do
Reino dos Doces atendiam seus pedidos de pronto, construindo novos caminhos
de balas de hortelã, preparando banquetes abundantes de doces, até mesmo
repintando a padaria predileta de Marie para combinar com as cores de Fada
Plum. E ficavam felizes por fazê-lo! Todos os pedidos eram recebidos com um
sorriso alegre e satisfação por serem capazes de agradar à bela regente deles.
Fada Plum deduziu que devia ser uma líder natural para ser amada de tal
maneira.
Os outros regentes executavam suas tarefas com semelhante decoro.
Hawthorn era um pouco estabanado, Fada Plum considerava, mas tinha mesmo
um toque mágico com as flores. Botões floresciam sob seus passos todas as
vezes em que ele caminhava em ambientes externos. E, apesar de ser
incessantemente exaltado, tratava Fada Plum com o maior respeito. Até chegara
a criar uma flor apenas para ela – um cruzamento entre uma petúnia e uma flor
de ameixeira que batizou de Petúnia Açucarada. Fada Plum se sentira tão
honrada que ordenara que buquês da sua flor especial fossem entregues nos seus
aposentos todas as manhãs.
Shiver, ela deduziu, era mais reservado. Ele observava seu reino a partir do
trono por horas e horas, fitando o horizonte, perdido em pensamentos. De vez
em quando, apontava um dedo numa direção e redirecionava uma nuvem de
neve para aspergir uma nova área com flocos frescos. Mas, em grande parte, ele
permanecia quieto e pensativo – exceto na vez em que foi patinar com as
crianças e caiu num buraco no gelo. Depois disso, ficou reclamando por horas a
fio sobre a experiência humilhante. Custara-lhe muito para que desgastasse o
excesso de pingentes de gelo de modo a não arrancar acidentalmente partes de
seus cabelos e barba congeladas. Fada Plum se divertira por uma semana inteira
com a tolice desse incidente.
A única regente com a qual ela nunca se sentira à vontade fora Mãe Ginger. A
velha mulher era bastante inofensiva. Cuidava dos seus afazeres, gerenciando os
jogos e os festivais no Reino do Divertimento, ainda que Fada Plum não
conseguisse se lembrar de um dia em que Mãe Ginger lhe parecera remotamente
divertida. Mas o que Fada Plum não conseguia suportar era a atitude da mulher
toda vez que Marie visitava os Reinos. Enquanto Fada Plum se sentia extasiada
em ter a amiga de volta, mesmo que por poucas horas, Mãe Ginger sempre
parecia louca para que Marie regressasse à sua vida no mundo real.
– Você não tem que estudar? – perguntava. Ou: – Em que invenções você tem
trabalhado? Decerto elas exigem sua total atenção. – E o pior era quando ela
pressionava Marie sobre possíveis pretendentes: – Ninguém conquistou seu
coração ainda? – Mãe Ginger a atormentava com insistência. – Uma moça
adorável como você não deveria passar a vida sozinha.
– Ela não está só. – Fada Plum sempre intervinha para defender Marie. – Ela
tem a nós. E aos Reinos. Como uma rainha pode se sentir só?
Mãe Ginger apenas sacudia a cabeça em desaprovação. Fada Plum não podia
deixar de pensar qual seria o motivo que a levava a fazer tantas perguntas sobre a
vida de Marie no mundo real. O que haveria de ser tão interessante nisso para a
velha mulher se mostrar sempre tão ávida em mandar Marie de volta para lá o
mais rápido possível?
No entanto, bem no íntimo, Fada Plum sabia que havia um fundo de verdade
nas palavras de Mãe Ginger. Marie tinha crescido e se tornado uma moça
adorável. Mesmo quando não trajava roupas majestosas, uma aura parecia
circundá-la. Sua mera presença era inspiradora, gentil e generosa. Se as pessoas
dos Reinos adoravam Marie tanto assim, o que as pessoas no mundo real
pensavam dela?
– Como é lá? – Fada Plum perguntou uma noite, quando Marie estava para
começar sua longa caminhada pelo corredor no interior da casca da árvore. – No
mundo real?
– É maravilhoso – respondeu Marie. Refletiu por uns instantes. – Mais
concreto, imagino. Mais sério. Aqui, nos Reinos, eu me sinto ilimitada. Mas,
quando estou lá, sinto como… se estivesse trabalhando para algo. Para uma
finalidade.
Fada Plum fitou o longo corredor. O que era aquele ponto de luz ao fim dele?
– Posso ir com você? – pediu. – Gostaria de ver como é.
Marie meneou a cabeça.
– Não creio que você possa – admitiu pesarosamente.
– Mas sempre saímos pelo relógio de pêndulo – Fada Plum observou. – Para o
salão de baile.
– Isso é diferente – Marie disse com tristeza. – Acredito que, quando estamos
olhando pelo portal do relógio, na verdade somos parte dele. A magia dos Reinos
nos protege. Mas sair pelo corredor é diferente. Tentamos uma vez, há muito
tempo, levar algo daqui para lá. Não deu certo. As coisas criadas nos Reinos não
podem existir no mundo real. Creio que você voltaria a ser uma boneca.
– Uma boneca? – Fada Plum repetiu com desgosto. – Puxa.
Marie tocou nas faces da amiga.
– O seu lugar é aqui – tranquilizou-a. – Onde é belo e perfeito. O mundo real
pode ser confuso às vezes. Seu lugar é aqui, onde sempre tudo é feliz.
Fada Plum apoiou as mãos sobre as de Marie.
– Sou mais feliz quando você está comigo – confessou. – Sinto-me…
diferente. Sinto saudades do passado, quando costumávamos brincar juntas
como irmãs.
A preocupação atravessou o rosto de Marie.
– Não está contente com os outros regentes? Pensei que ficaria. Eu os criei
para que lhe fizessem companhia.
– Ah, sim, eles fazem. – Fada Plum refletiu. – Ao modo deles, suponho. Mas
eles não são você. Não são a minha família.
– A sua família? – Marie repetiu.
– Isso. – Fada Plum assentiu. – É como você disse: estivemos juntas desde o
início. Antes mesmo dos Reinos. Antes até da casa de Drosselmeyer.
Uma expressão distante surgiu nos olhos de Marie.
– Parece que foi tanto tempo atrás – sussurrou. – Uma vida diferente.
Uma badalada soou em algum lugar ao longe. Talvez até mesmo no relógio de
pêndulo no salão de baile de Drosselmeyer.
Marie olhou para o fim do corredor e depois segurou as mãos de Fada Plum.
– Tenho que ir agora. Mas prometo, voltarei logo. Já é quase Natal! E teremos
uma grande comemoração, como as festas na casa de titio. – Deu uma piscadela.
– Talvez eu até possa pensar numa surpresa, em homenagem ao passado.
A véspera de Natal chegou. A neve caiu com suavidade nas janelas do palácio,
cobrindo os Quatro Reinos com um manto de serenidade invernal. Marie acabara
de retornar, como havia prometido. Usava um lindo vestido de baile verde e
dourado, pronta para participar das comemorações natalinas de Drosselmeyer.
Mas antes reunira os regentes na sala dos tronos com a promessa de um
presente especial.
Fada Plum reluzia de expectativa. A véspera de Natal sempre era uma época
mágica, a noite pela qual mais ansiava. Não por causa da árvore ou da neve, nem
mesmo pelos presentes, mas porque sabia que, nessa noite, dentre todas as
noites, Marie sempre retornava.
E por mais que Marie ainda não soubesse, Fada Plum tinha uma surpresa
especial para sua querida amiga também.
– Tenho presentes! – Marie exclamou para os regentes reunidos, com um
sorriso afetuoso e o rosto corado. – Presentes especiais que projetei
exclusivamente para vocês.
Entregou um presente belamente embalado para cada um deles.
Hawthorn abriu o seu com gosto.
– Sementes! – exclamou, segurando um frasco repleto de sementes de flores
das cores do arco-íris.
– Não são sementes comuns – explicou Marie. – São sementes exóticas que
meu tio Drosselmeyer trouxe de suas viagens aos distantes países tropicais.
Essas flores não conseguem florescer no clima frio da Inglaterra. Mas aqui, nos
Reinos, pensei que…
– Será uma honra! – prontificou-se Hawthorn. – Cuidarei delas pessoalmente
em seu cantinho próprio no Reino das Flores. Elas crescerão mais lindas do que
qualquer outra flor dos Reinos!
Marie sorriu com alegria.
– Eu sabia que você ficaria contente – disse.
Shiver foi o seguinte. Abriu seu presente com cuidado, revelando um delicado
relógio de bolso de vidro. A caixa brilhava como gelo e o mecanismo do interior
do pequenino relógio, clicando e girando sem parar, era visível através do vidro
transparente.
– Eu mesma o fiz – Marie explicou. – O vidro me faz lembrar do gelo. Não
consigo trabalhar com gelo no mundo real. Mas consegui lhe dar algo que ainda
pareça mágico como…
– O Reino dos Flocos de Neve – Shiver concluiu a frase por ela. Uma
minúscula lágrima congelada se formou no canto do seu olho. – É lindo, minha
Rainha. Obrigado, obrigado. Eu o guardarei com carinho para sempre.
Mãe Ginger olhou para Marie.
– É a minha vez, querida? – perguntou.
– Sim – Marie respondeu. – Por favor.
Mãe Ginger abriu a caixa e o glitter do delicado embrulho de brocado saiu
voando até o chão. Dentro dele havia uma matriosca. Mãe Ginger a abriu com
cuidado, revelando mais uma boneca dentro dela, e dentro dessa mais uma e, em
seguida, mais uma – cinco bonecas no total, cada uma delas menor do que a
anterior. As maiores estavam pintadas de mãe e de pai e as menores eram os
filhos, um menino e uma menina, e o último, um bebê.
– Encontrei-as numa loja de brinquedos – Marie explicou. – Não sei por que,
mas me fizeram pensar em você. São tão lindas. Algo que minha mãe teria
adorado. Gostou?
Pela primeira vez em que Fada Plum podia se lembrar, viu a expressão de Mãe
Ginger se suavizar.
– Sim – declarou, evidentemente emocionada. – Obrigada.
Fada Plum foi a última. A bela regente virou o presente nas mãos. Pequenos
alfinetes estavam espetados em suas laterais.
– Abra – Marie a encorajou. – Vamos.
Fada Plum levantou a tampa. Numa lufada de brilho e faíscas, uma pequenina
criatura voou!
– Ah, puxa! – Fada Plum arquejou. – Uma fada!
– Não apenas uma fada qualquer! – a fadinha reclamou. – A mais doce das
fadas! Dew Drop é o meu nome.
– Você a reconhece? – Marie perguntou a Fada Plum.
Fada Plum olhou mais atentamente para a fada, que retribuiu o olhar.
– Ela é… a presilha de cabelos que fiz para você? – Fada Plum perguntou. –
De açúcar cristalizado?
Marie assentiu e bateu palmas.
– A própria. Precisou ser mexida um pouco, mas consegui engrenagens
pequenas o bastante para fazer com que a Máquina lhe desse vida. Pensei que ela
seria a companhia perfeita para você… uma amiguinha que nós duas criamos
juntas. Como uma família.
Um sentimento que Fada Plum não sentia há tempos a invadiu. Como o calor
do qual se lembrava do primeiro abraço de Marie ou a alegria que sentira ao
verem a aurora boreal juntas. Um sentimento de paz e amor.
– Ela é perfeita – Fada Plum suspirou. – Eu a amo.
Dew Drop aterrissou com leveza no ombro de Fada Plum; inclinou a cabeça.
– Amar é uma palavra muito forte, Rosadinha. Acabamos de nos encontrar.
Vamos nos conhecer melhor primeiro.
Fada Plum ergueu uma sobrancelha e olhou para Marie, que deu de ombros.
– Ela acabou ficando um pouco… atrevida. Mas pensei que, talvez, com seu
toque gracioso…
– Não se preocupe, Abelha Rainha. – Dew Drop flutuou e deu uns tapinhas no
rosto de Marie. – Tenho certeza de que a Rainha do Açúcar e eu nos daremos
muito bem.
– Também temos um presente para Vossa Majestade – Shiver anunciou. –
Uma peça real, a primeira do tipo.
– Ele narra a história de como você criou os Reinos! – Fada Plum interpelou,
incapaz de conter sua empolgação por mais tempo. – É um lindo balé. Eu mesma
o coreografei. Você ficará tão impressionada! Ele tem flores valsantes e flocos
de neve rodopiantes e tudo o mais! É absolutamente perfeito! Uma peça à altura
de uma rainha. Mas, primeiro, preparamos um maravilhoso banquete em sua
homenagem. Com todos os seus doces prediletos! Chocolate quente e laranjas
picantes e biscoitos de gengibre. Venha! A comida está pronta!
Fada Plum deu um salto e puxou o braço de Marie, mas Marie permaneceu
sentada.
– Ah, meus queridos – lamentou ela. – Como eu gostaria de poder ficar. Mas
prometi a tio Drosselmeyer…
– Não! – Fada Plum a interrompeu sem pensar. – Esta noite não. É véspera de
Natal!
Os outros regentes olharam surpresos para Fada Plum.
– Fada Plum, sinto muito – Marie gaguejou. – Mas… a festa de titio já
começou. Há uma pessoa que ele quer que eu conheça… Um rapaz chamado
Charles. Ele é sobrinho de um querido amigo da família, e titio estava prestes a
me apresentar a ele quando implorei que me deixasse vir aqui para lhes dar seus
presentes. Ele disse que eu poderia, mas se eu ficasse apenas alguns minutos. Se
eu demorar demais, será rude de minha parte. Tenho que ir.
– Mas… – Fada Plum sentiu toda a alegria e o conforto anterior serem
drenados dela. Em seu lugar, infiltrou-se a pontada fria e amarga da decepção.
– Claro que você deve ir, minha criança – interveio Mãe Ginger. – Não deve
deixar seu tio esperando.
– Ela não é uma criança! – Fada Plum bradou. – Ela é a nossa rainha.
– E a nossa rainha tem deveres a cumprir – argumentou Mãe Ginger. – Ela nos
criou para cuidarmos dos Reinos em sua ausência. E é isso o que faremos.
Mesmo na véspera de Natal.
– Eu… – Marie pareceu dividida. – Eu sinto…
– Está tudo bem, Vossa Majestade – assegurou Shiver. – Mãe Ginger tem
razão. Seu tempo é precioso, e ficamos honrados que tenha vindo passar estes
momentos conosco. Estamos imensamente gratos pelos seus generosos
presentes.
– São deveras extraordinários! – Hawthorn elogiou, esfuziante. – Tenho
certeza de que poderemos remarcar a peça para o seu regresso. Não podemos,
Fada Plum?
Todos olharam para a regente dos Doces. Fada Plum não disse nada.
Esforçara-se tanto naquela peça de teatro para Marie. De modo inacreditável.
Passara horas ensinando às bailarinas os movimentos da dança, sem jamais
aceitar nada menos que a perfeição. Houve dias em que as fez ensaiar noite
adentro até o sol brilhar sobre os Reinos e as bailarinas mal conseguirem manter
os olhos abertos de tanto sono. Aperfeiçoara cada canção, fizera ela própria
todos os figurinos com a maquininha de costura que Marie levara aos Reinos há
tantos anos. Porque nesta noite, dentre tantas outras, Fada Plum queria lembrá-la
do quanto os Reinos eram mágicos. Do quanto os cidadãos a amavam e
precisavam de sua rainha.
Mas enquanto os regentes a encaravam, com olhos arregalados e críticos – e
enquanto Marie fitava com tristeza as portas do palácio, já com um pé na direção
de sua casa –, Fada Plum sentiu seu plano inteiro desmoronando. Tudo o que ela
almejara terminado antes mesmo de que pudesse tentar.
– Fada Plum? – Hawthorn repetiu. – Podemos remarcar, não?
Num torpor, Fada Plum cerrou a mandíbula e assentiu.
– Ficará tudo bem, Rosadinha! – Dew Drop farfalhou até os cabelos de Fada
Plum e se sentou de pernas cruzadas no penteado cor-de-rosa. – Voltando ao
assunto, alguém mencionou laranjas picantes? Gosto dos meus doces picantes.
– Voltarei logo – Marie jurou. – Eu…
– Prometo – Fada Plum terminou a frase por ela. – Eu sei.
Os regentes se despediram da rainha. Mas assim que Marie se foi, Fada Plum
saiu correndo. Lágrimas escorriam por seu rosto como melaço.
Por que Marie sempre tem que partir?, pensou com tristeza. Por que estamos
sempre em segundo plano? Quem é tão relevante no mundo real que acaba
sendo mais importante do que nós na véspera de Natal? Do que eu?
Fada Plum disparou até a torre mais alta, subindo dois degraus de cada vez
com seus graciosos saltos de bailarina. Entrou apressada no quarto de Marie e
empurrou as portas que davam para a sala do relógio de pêndulo. Com um puxão
forte, afastou as cortinas e pressionou o rosto na janela embaçada. Suas lágrimas
quentes formaram vapor contra o vidro enquanto ela observava o salão de baile
abaixo.
Marie chegara à celebração. Em câmera lenta, Drosselmeyer a guiou até a
árvore de Natal. O belo rapaz chamado Charles estava lá, imponente e garboso.
O coração de Fada Plum se despedaçou quando Marie aceitou a mão do homem.
Mesmo em câmera lenta, ela viu que Marie corava.
– Você não pode deter o tempo. – A voz de Mãe Ginger ecoou atrás dela.
Fada Plum se virou. A velha mulher estava parada na soleira. Caminhou até
ficar ao lado de Fada Plum e seguiu o olhar dela através da janela.
– É por isso que estamos aqui – disse Mãe Ginger. – Marie não pode ficar
conosco para sempre.
– Isso não é verdade – Fada Plum insistiu entre lágrimas.
Charles e Marie caminharam até a pista de dança. Os passos deles demoraram
uma eternidade.
– Mas ainda podemos deixar os Reinos perfeitos – Mãe Ginger prosseguiu
apesar de Fada Plum não ter dito nada. – Sozinhos.
– Eles já são perfeitos – murmurou Fada Plum. – Contanto que tenham Marie.
Mãe Ginger balançou a cabeça. Abaixo, Marie e Charles começaram a dançar.
– Todas as mocinhas precisam crescer.
CAPÍTULO 16
MARIE
CLARA
MARIE
CLARA
O palhaço de corpo arredondado olhou de soslaio para Clara, com seus olhos
amarelos perturbadores. Loucos.
Então, uma fenda se abriu no meio, revelando um segundo palhaço menor. O
segundo palhaço saltou para fora, e o primeiro voltou a fechar o zíper da
abertura central com um horrível som de arranhar. O segundo palhaço fez o
mesmo, e mais e mais criaturas de barriga redonda surgiram, uma menor do que
a outra, saltando para fora como bonecas matrioscas.
Saíram rolando ao redor de Clara, gargalhando.
Polichinelos.
Clara recuou instintivamente, mas não havia para onde fugir. Eles a haviam
cercado.
Os palhaços comprimiram sua formação, aproximando-se dela. Então,
atacaram! Um saltou por cima da cabeça dela, batendo no seu ombro. Ela
cambaleou para fora do círculo, mas outro colidiu contra ela, empurrando-a de
volta à armadilha. Os Polichinelos rapidamente a subjugaram com seus ataques
acrobáticos. Balbuciavam e riam enquanto sobrevoavam – a risada maníaca que
Clara e Phillip tinham ouvido quando ela chegara aos Reinos.
– Yi dong ta! Pasado! Ey ya zdes podprygivayu!
Clara se esquivou quando um Polichinelo saltou na sua direção, mas acabou
tropeçando em outro que passava por seus pés. Um terceiro saltou direto na
barriga de Clara, que caiu no chão, sem ar.
Daquela sua posição no terreno empoeirado, de repente, ela percebeu algo que
não havia visto antes: cordas estavam amarradas até o meio do chão, todas
levando ao tronco da gigantesca marionete. E lá no meio da enorme saia de Mãe
Ginger havia um poste com corte espiralado, tal qual um parafuso. Uma
cadeirinha estava presa à base. Alguém – ou algo – estava usando essas cordas
para operar a marionete!
– Você não é um monstro! – Clara exclamou quando os Polichinelos se
enfileiravam para outra investida. – Alguém a está controlando!
Pensando rápido, Clara caiu para a esquerda e se desviou dos Polichinelos que
vinham pela direita, que tropeçaram em outros dois. Isso lhe deu tempo
suficiente.
Saltou na cadeirinha e puxou uma alavanca próxima. Então, fechou os olhos
quando o assento foi lançado para o meio do tronco da boneca, espiralando para
cima.
A cadeirinha parou de repente, deixando Clara tonta e nauseada. Mas ela logo
se recobrou, olhando ao redor. Agora estava no tronco da marionete, no que
parecia ser uma grande sala de controle. Manivelas e maçanetas estavam
afixadas às paredes, com o objetivo de operar os movimentos da marionete.
E pendurada acima do meio da sala, presa a uma corda dourada, estava a
chave.
Sua chave.
Clara esticou o braço para pegá-la. Seus dedos quase a resvalavam quando
uma voz a assustou:
– Tire as mãos, menina!
Ela se virou. Parada atrás dela havia uma mulher mais velha de cabelos ruivos
revoltos. Ela usava um vestido vinho com bordas de brocado dourado. A mulher
a encarou firme, não de modo maligno, mas imponente. Como uma figura de
grande importância.
– Você é Mãe Ginger? – Clara perguntou.
– E você é filha da Rainha Marie, pelo visto – a velha mulher respondeu. –
Diga, o que traz a filha da Rainha Marie ao Quarto Reino?
Clara aprumou os ombros.
– Vim pegar o que me pertence. Aquela chave.
Sem hesitar, Clara estendeu a mão para a chave. Mas a mulher era rápida.
Puxou uma das alavancas da marionete, fazendo com que a boneca se inclinasse.
Clara foi derrubada para trás, com as mãos vazias.
– Ah, ah. – Mãe Ginger estalou a língua. – Mas isso não é verdade, não é
mesmo? Se essa chave pertence a alguém, esse alguém é a sua mãe.
– Ela abre uma caixinha que foi deixada para mim – Clara declarou. – Depois
que minha mãe morreu.
Uma centelha momentânea de confusão atravessou as feições de Mãe Ginger.
– Marie está morta? – perguntou.
Clara assentiu.
Mãe Ginger ficou com o olhar perdido por um instante.
– Eu não sabia.
– Como se você se importasse com isso! – Clara replicou. – Está tentando
destruir tudo o que minha mãe criou!
Um sorriso amargo curvou os cantos dos lábios de Mãe Ginger.
– Ah, certo. É isso o que a doce Fada Plum andou lhe contando?
– Consigo ver com meus próprios olhos – Clara rebateu. – O Quarto Reino
está destruído, graças a você.
– Mas está vendo por uma perspectiva cor-de-rosa – Mãe Ginger respondeu. –
E se eu lhe disser que a chave da sua mãe destrava mais do que a sua caixinha? E
se eu lhe contar exatamente o que aconteceu depois que sua mãe nos deixou
governando sozinhos?
Por um instante, Clara hesitou.
Então, as palavras de Fada Plum ecoaram em sua cabeça. Não deixe que ela a
engane agora.
– Por que eu deveria acreditar em você? – perguntou Clara.
– Você não tem que acreditar em mim. – Mãe Ginger deu um passo na direção
dela. – Mas por que não me ouvir mesmo assim? – Outro passo. – Depois,
decida o que fazer com a chave. – Mais um passo. – Decida como a história
terminará, que tal?
Mãe Ginger estava próxima o bastante para tocar em Clara. Mas antes de
conseguir fazer isso, Clara puxou uma das alavancas. A boneca inteira se
inclinou, fazendo com que Mãe Ginger se chocasse de costas contra o painel de
controle. A chave pendeu para o lado de Clara, e ela a apanhou.
– Não! Clara, espere! – Mãe Ginger suplicou. – Por favor!
Mas Clara não lhe deu ouvidos. Saltou da cadeirinha e pressionou o botão de
soltar. Vuush! Com um último olhar para os olhos penetrantes de Mãe Ginger,
escorregou para baixo em espiral, descendo e descendo, até chegar ao piso da
enorme marionete.
Para sua surpresa – e deleite –, Phillip estava ali. Ele conseguira subjugar os
Polichinelos.
– Clara! – exclamou. – Por aqui!
Seu valente amigo a conduziu por uma fenda que ele entalhara na enorme saia
de Mãe Ginger. Correram o mais rápido que suas pernas conseguiam transportá-
los, saltando por cima de buracos de rato e avançando na escuridão.
– Você está bem? – Phillip gritou para Clara enquanto fugiam.
– Sim! – Clara saltou por cima de um buraco enorme. – Mas Mãe Ginger
estava… diferente. – Não conseguia esquecer a expressão que vira no olhar da
mulher conforme deslizava em espiral pelo poste da cadeira. Não era fúria, nem
maldade, mas…
Medo, concluiu. Os olhos de Mãe Ginger estavam tomados por medo.
– Não se deixe enganar pelo fingimento daquela velhota – Phillip a advertiu. –
Ela é traiçoeira.
De repente, a voz de Mãe Ginger ecoou na escuridão.
– Atrás deles, ratos!
– Viu? – Phillip gritou.
Juntos, Clara e Phillip correram pela floresta, chocando-se em galhos e
moitas, Clara apertando a chave na mão o tempo inteiro. Por fim, chegaram ao
limite das árvores, surgindo num ímpeto no campo coberto de neblina que dava
para a ponte. A grandiosidade dos outros três reinos se estendia diante deles ao
longe. Conseguiram. Escaparam da névoa, do Quarto Reino. E tinham a chave.
Dew Drop de repente apareceu sobrevoando próxima ao ombro de Phillip.
– Já era hora! – exclamou. – Estavam numa festa lá dentro?
– Não é hora para suas travessuras – Phillip vociferou. – Temos a chave. Mas
Mãe Ginger não será contida por muito tempo.
– E quanto aos outros soldados? – Clara perguntou, preocupada. – Não
podemos deixá-los para trás.
– Dew Drop, você é a navegadora. – Phillip olhou para a fada. – Guie-os para
fora da floresta e seja rápida. Mãe Ginger não está muito atrás de nós.
– Está bem, está bem – Dew Drop concordou. – Mas segurem bem essa chave,
entenderam?
Zumbiu para a névoa, deixando um rastro de faíscas atrás de si.
Ainda parcialmente sem fôlego, Clara caminhou até o limite do precipício,
fitando a água caudalosa nas profundezas da fenda. Sentou-se.
– Precisamos retornar para o palácio – Phillip a chamou. – Não é seguro aqui.
– Só um segundo – Clara insistiu. Retirou a caixinha da bolsa e segurou a
chave dourada.
Enfim havia chegado. O momento pelo qual vinha esperando. O momento
pelo qual enfrentara ratos e marionetes e grandes perigos.
Finalmente conheceria a mensagem final da mãe. Talvez ela a ajudasse a
salvar os Reinos.
Clara prendeu a respiração e inseriu a chave na fechadura do ovo. Sua mão
tremia ao girá-la. A chave emitiu um clique.
Mal respirando, ela abriu a delicada caixinha.
Uma melodia adorável começou a soar.
– Uma caixa de música? – Clara piscou, confusa. – Não estou entendendo.
Pensei…
De repente, Clara sentiu o aperto familiar dentro do peito. O ovo não estava
tocando uma música qualquer. Era a melodia predileta da mãe – sua canção
favorita. Aquela que o quarteto de cordas tocara no baile do padrinho.
Aquela que seu pai quisera dançar com ela.
Clara encarou a caixinha de música, virando-a nas mãos.
Estava vazia. Nada além de mecanismos de uma caixinha de música envoltos
por minúsculas paredes espelhadas. Olhou em cada cantinho, em torno de cada
engrenagem. Mas não havia nada. Nenhuma mensagem. Nenhuma lembrança.
Nada.
O que aquilo significava? A mensagem se perdera? Fora extraída?
Ou talvez, Clara pensou com lágrimas se formando, talvez não houvesse
nenhuma mensagem para início de conversa. Talvez não tivesse compreendido
bem o bilhete da mãe. Talvez estivesse errada o tempo inteiro.
Clara fechou a caixinha de música, fazendo a melodia parar.
– O que foi? – Phillip se ajoelhou ao lado dela.
– Minha mãe me disse que tudo o que eu necessitava estava dentro – Clara
disse com tristeza. – Mas está vazia.
Phillip esticou o braço e apanhou a caixinha de música. Abriu-a, fazendo com
que a melodia voltasse a tocar.
– Feche-a, por favor – Clara pediu.
– Por quê? – Phillip perguntou, confuso.
– Era a canção predileta da minha mãe – Clara respondeu.
Olhou para Phillip. Ele ainda parecia confuso.
– Faz com que eu me lembre dela – Clara explicou. – E de quanto eu sinto
saudades dela. Dói.
– Ah – Phillip disse. – Nunca tive ninguém de quem sentir saudades.
Os ombros de Clara desabaram. Ter chegado até ali… ter descoberto tantas
coisas que jamais soubera sobre sua mãe… só para descobrir que não havia
mensagem alguma para ela, no fim das contas.
– Pensei que haveria algo dentro – admitiu para Phillip. – Alguma coisa
bonita, pessoal, útil… qualquer coisa. Mas vim até aqui para nada. Não faz
nenhum sentido.
– Para nada? – Phillip ergueu uma sobrancelha. – Você fez o que ninguém
mais aqui conseguiu. Encontrou a chave. A chave que pode salvar a todos nós.
Clara pensou sobre isso.
– Sim, imagino que isso seja verdade.
– E, ao mesmo tempo, provou que é destemida, forte e leal. – Phillip pegou o
chapéu de soldado de Clara, bateu a poeira, limpando-o, e o devolveu a ela. – Há
algum sentido nisso.
Clara sorriu.
– Obrigada, Phillip – disse, agradecida.
Por alguns breves instantes, não trocaram nenhuma palavra. Apenas a luz do
sol nascente se infiltrou por entre as nuvens.
Então, Phillip a cutucou.
– Venha, soldado – disse ele. – Temos que ir salvar os Reinos.
CAPÍTULO 20
MARIE
CLARA
FADA PLUM
CLARA
FADA PLUM
– Não pode ser. – Hawthorn andava de um lado a outro na sala dos tronos,
nervoso.
– Tem absoluta certeza? – Shiver perguntou, batendo as pontas dos dedos de
uma mão na outra.
– Lamento dizer que sim. – A expressão de Fada Plum era a imagem da mais
perfeita preocupação quando se encontrou secretamente com Shiver e Hawthorn
na noite seguinte. – Ouvi com meus próprios ouvidos. Mãe Ginger não teve a
intenção de que outra alma a ouvisse. Mas suas palavras foram claras como
cristal: “Eu governarei os Reinos”.
– E ela disse isso nos aposentos da nossa querida Rainha Marie? – Hawthorn
perguntou, consternado.
Fada Plum assentiu.
– Enquanto usava a coroa.
Shiver zombou.
– Isso é impensável. Que uma regente trame uma revolta é simplesmente…
simplesmente…
– Maldade? – Fada Plum sugeriu, prestativa.
– Exato! – Shiver exclamou.
– Então, meus caros regentes, talvez vocês precisem se sentar para ouvir o que
tenho a lhes dizer. – Fada Plum guiou os dois homens para seus tronos. – Porque
eu estive no Quarto Reino outro dia e vi algo verdadeiramente horrível.
– O quê? O que você viu? – Hawthorn perguntou, com um sussurro rouco.
– Fui conversar com Mãe Ginger – Fada Plum explicou –, para ver se poderia
dissuadi-la de seus empreendimentos sombrios antes de levá-los à sua estimada
atenção. Mas, infelizmente, não cheguei a encontrá-la porque, ao passar pela
floresta, eu deparei com… com…
Cobriu os lábios em formato de pétala e desviou o rosto.
– Com o quê, minha querida? – Shiver a pressionou.
Fada Plum se virou de frente para eles.
– Um rato.
– Um rato! – os dois regentes gritaram alarmados.
– Seguramente Mãe Ginger não pode ser tão descuidada – Hawthorn se
agitou.
– Uma criatura como essa pode destruir o nosso mundo. – Shiver passou uma
mão trêmula pelo rosto.
– Marie me contou histórias sobre os animais selvagens do mundo real – Fada
Plum admitiu. – Eu nem sequer saberia o que é um rato se não fosse pelas
orientações expressas de Marie de que, caso uma criatura como aquela fosse
avistada aqui, nós deveríamos alertá-la de imediato.
– Ela nos deu o mesmo aviso – Hawthorn concordou.
– Ela avisou a todos nós! – exclamou Shiver.
– Mas agora não temos nenhuma rainha a qual avisar. – Hawthorn se largou
em seu trono.
– E, sem ela, temo que a segurança dos Reinos esteja em risco – concluiu
Shiver.
Fada Plum retornou para a bela caixa no centro da sala dos tronos, onde a
antiga coroa de Marie fora colocada delicadamente à mostra.
– Não necessariamente – disse-lhes.
– O que quer dizer? – Shiver perguntou.
– Sim, o que tem em mente? – Hawthorn acrescentou.
Nenhum dos regentes viu o sorriso fugidio que passou pelos lábios de Fada
Plum.
– Algum de vocês, caros cavalheiros, já ouviu falar em… ponte levadiça?
CAPÍTULO 25
FADA PLUM
CLARA
A escotilha conduziu Clara e Phillip por uma longa escada em um poço que
parecia não ter fim. Desceram e desceram, até finalmente chegarem a um túnel
comprido. O som de água corrente ecoou nas profundezas. Mouserinks correu à
frente.
– Por aqui – Clara disse, incitando Phillip a continuar.
Juntos, eles percorreram o corredor escuro até chegarem a um portão velho e
enferrujado. Abriram-no… e foram recepcionados por uma vista surpreendente:
uma perigosa borda rochosa que dava para o rio caudaloso que cercava o
palácio. Clara e Phillip espiaram lá embaixo… e engoliram em seco. A queda era
traiçoeira, e o paredão de pedra, escorregadio e fragmentável. Não distante dali,
uma cascata rugia, fazendo girar os moinhos imensos que forneciam energia para
o palácio.
E para a Sala da Máquina, Clara percebeu.
Devia ser isso o que Mouserinks queria que eles encontrassem. Se ela
conseguisse chegar até as pás dos moinhos, esse era o seu caminho de entrada.
Tinha que ser.
Muito acima deles, a ponte que dava para o Quarto Reino estava em plena
vista. Phillip e Clara observaram os soldados de chumbo de Fada Plum
marchando ao longo dela, lutando contra os ratos e os Polichinelos de Mãe
Ginger. Os soldados eram fortes, e estavam em número muito maior – estavam
ganhando. Se Clara e Phillip não se apressassem, não haveria um Quarto Reino a
ser salvo.
– Você tem que voltar – Clara instou Phillip. – Tem que deter o exército de
Fada Plum.
– Como? – Phillip perguntou.
– Encontre uma maneira, Phillip – Clara insistiu. – Você consegue. Acredito
em você.
Gratidão misturada a preocupação cruzou o rosto de Phillip quando Clara
pisou na traiçoeira borda rochosa.
– E quanto a você? – ele quis saber, preocupado.
– Tenho tudo de que preciso. – Clara se segurou firme no paredão de pedra. –
Sou eu quem tem que fazer isto. Vá!
Phillip lhe lançou um último olhar.
– Boa sorte – desejou ele.
Então ele se foi, correndo pelo túnel. E Clara ficou sozinha.
Olhou para o seu destino e continuou pelo rochedo perigoso. Seus pés
escorregaram várias vezes, mas ela conseguiu se segurar, as mãos se
machucando nas pedras ásperas. Ela subiu mais e mais, os braços e os ombros
doendo com o esforço. De repente, sentiu algo se partindo sob seus pés. Deu um
salto à frente, agarrando-se com firmeza à parede enquanto um pedaço da
beirada desmoronava bem onde estivera pouco antes. Não havia mais onde se
apoiar ali – e não havia um caminho de volta.
Muito lentamente, ela foi se aproximando do moinho. Bons apoios para os pés
e para as mãos estavam rareando. Ela cravou as unhas, a rocha estava
escorregadia por conta da água espirrada.
Segurando bem firme com uma mão, ela tateou com a outra, tentando
encontrar um lugar para se apoiar com segurança. A mão deslizou para dentro de
uma fenda profunda…
E uma revoada de pássaros surgiu dali.
Assustada, ela gritou, e sua voz foi suplantada pelo rugido das águas. A
pegada escorregou, e ela balançou no ar, segurando-se apenas com uma mão, os
pés dependurando-se soltos sobre o abismo ruidoso abaixo!
Os pássaros voavam para o alto quando Clara recuperou o equilíbrio,
miraculosamente encontrando de novo um ponto no qual se segurar. Abraçou o
paredão de pedra, respirando com dificuldade.
– Tudo o que você necessita está dentro – repetiu para si, vezes sem conta. –
Tudo o que você necessita está dentro.
As pás do moinho estavam diante dela agora. Cortinas de água se
derramavam. Trêmula, ela olhou para cima para avaliar o revestimento da roda.
Devia haver uma entrada para a Sala da Máquina em algum lugar ali. Tinha que
haver…
– Ali! – Clara exclamou. No pináculo do moinho havia uma abertura. Era
isso! Aquela era a entrada para a Sala da Máquina.
Só que não havia nenhuma rocha no paredão para ela escalar até lá. O único
modo de subir era…
Clara observou as pás do moinho se movendo com velocidade.
– Só pode ser brincadeira – murmurou.
Seu coração acelerou. Mas ela ficou firme onde estava.
– Posso fazer isso – disse.
As pás passavam rápido. Um movimento errado – qualquer movimento errado
– e ela seria lançada numa espiral até o fundo do abismo.
– No três – sussurrou para si. – Um… dois… três!
Lançou-se para a frente, quase não conseguindo agarrar uma pá que passava
zunindo. A pá se moveu para cima, carregando-a com ela. Seus cabelos foram
jogados para trás – seu estômago se revirou – e, então, por algum milagre…
Tum!
Clara voou pela abertura da Sala da Máquina, aterrissando no piso frio de
pedra. Ficou deitada ali por um momento, molhada, arfante e exausta.
Mas conseguira.
Engoliu em seco e se sentou. Todos os músculos do seu corpo gritaram em
protesto.
Mas ela ignorou a dor.
– Hora de trabalhar – disse.
CLARA
CLARA
MARIE
CLARA