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20/08/2008 TRIBUNAL PLENO

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 579.951-4 RIO GRANDE DO NORTE

RELATOR : MIN. RICARDO LEWANDOWSKI


RECORRENTE(S) : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO
NORTE
RECORRIDO(A/S) : MUNICÍPIO DE ÁGUA NOVA E OUTRO(A/S)
ADVOGADO(A/S) : FRANCISCO DE ASSIS CORREIA REGO E OUTRO(A/S)

EMENTA: ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. VEDAÇÃO NEPOTISMO.


NECESSIDADE DE LEI FORMAL. INEXIGIBILIDADE. PROIBIÇÃO QUE DECORRE
DO ART. 37, CAPUT, DA CF. RE PROVIDO EM PARTE.
I - Embora restrita ao âmbito do Judiciário, a Resolução
7/2005 do Conselho Nacional da Justiça, a prática do nepotismo nos
demais Poderes é ilícita.
II - A vedação do nepotismo não exige a edição de lei
formal para coibir a prática.
III - Proibição que decorre diretamente dos princípios
contidos no art. 37, caput, da Constituição Federal.
IV - Precedentes.
V - RE conhecido e parcialmente provido para anular a
nomeação do servidor, aparentado com agente político, ocupante, de
cargo em comissão.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os


Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Sessão Plenária, sob a
Presidência do Senhor Ministro Gilmar Mendes, na conformidade da
ata de julgamentos e das notas taquigráficas, por unanimidade,
conhecer e dar parcial provimento ao recurso extraordinário, nos
termos do voto do Relator. Votou o Presidente, Ministro Gilmar
Mendes. Ausentes, justificadamente, a Senhora Ministra Ellen
Gracie e o Senhor Ministro Joaquim Barbosa.

Brasília, 20 de agosto de 2008.

RICARDO LEWANDOWSKI - RELATOR


20/08/2008 TRIBUNAL PLENO

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 579.951-4 RIO GRANDE DO NORTE

RELATOR : MIN. RICARDO LEWANDOWSKI


RECORRENTE(S) : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO
NORTE
RECORRIDO(A/S) : MUNICÍPIO DE ÁGUA NOVA E OUTRO(A/S)
ADVOGADO(A/S) : FRANCISCO DE ASSIS CORREIA REGO E OUTRO(A/S)

RELATÓRIO

O Sr. Ministro RICARDO LEWANDOWSKI: - Cuida-se de

recurso extraordinário interposto contra acórdão do Tribunal de

Justiça do Rio Grande do Norte que, julgando apelação em ação

declaratória de nulidade de ato administrativo, entendeu não

existir qualquer inconstitucionalidade ou ilegalidade na nomeação

de Elias Raimundo de Souza e Francisco Souza do Nascimento para o

exercício, respectivamente, dos cargos em comissão de Secretário

Municipal de Saúde e de motorista, embora sejam, o primeiro, irmão

de vereador, e, o segundo, do Vice-Prefeito do Município de Água

Nova daquele Estado.

O aresto atacado considerou inaplicável a Resolução

7/2005 do Conselho Nacional de Justiça ao Executivo e ao

Legislativo, assentando que a vedação à pratica do nepotismo no

âmbito desses poderes exige a edição de lei formal.

Consignou, ainda, o acórdão recorrido que a nomeação de

parentes de agentes políticos para o exercício de cargos de


confiança ou em comissão não viola qualquer dispositivo

constitucional.

Neste RE, fundado no art. 102, III, a, da Constituição

da República, o Ministério Público local, que subscreve as razões

recursais, alega, em suma, que a decisão do TJ/RN contraria o

princípio da moralidade abrigado no art. 37 da mesma Carta, não

sendo lícito dar-se aos seus incisos II e V uma interpretação

isolada, dissociada do que se contém no caput do mencionado

dispositivo.

O recorrente sustenta, também, que a proibição ao

nepotismo decorre diretamente do referido princípio

constitucional, sendo dispensável a edição de lei expressa nesse

sentido, segundo decidiu esta Corte na ADC 12-MC/DF.

Com esses fundamentos, e assinalando que "não há

controvérsia acerca da existência da relação de parentesco”,

requer

"o conhecimento e provimento do presente


recurso extraordinário, a fim de que se reforme o
acórdão e, por consequência, exonere os Srs. Elias
Raimundo de Souza e Francisco Souza do Nascimento dos
cargos em comissão até então ocupados. Na mesma linha de
raciocínio, que o Município de Água Nova se abstenha de
contratar ou nomear qualquer pessoa física que seja
parente daquele ocupante de mandato eletivo ou cargo em
comissão, estendendo-se a vedação também às pessoas
jurídicas, cujos sócios mantenham alguma relação de
parentesco com as citadas pessoas" (fls. 366-367).

Em 28/3/2008, submeti à Corte manifestação reconhecendo

a existência de repercussão geral do tema constitucional debatido

nos autos, a qual foi por ela sufragado, conforme publicação no

DJe de 15/5/2008.

Solicitei, em 20/5/2008, a manifestação do Procurador-

Geral da República (fl. 390). Após o decurso do prazo regimental

(art. 50, § lº, RISTF) , encontrando-se o processo em pauta para o

julgamento, e tendo em conta que o Ministério Público já havia se

manifestado anteriormente sobre matéria idêntica, em especial na

ADC 12-MC/DF, requisitei a devolução dos autos.

Naquele processo, em parecer subscrito pelo ilustre

Procurador-Geral da República, Antonio Fernando Barros e Silva de

Souza, o Parquet Federal consignou que os princípios da moralidade

e da impessoalidade expressos no art. 37 da Constituição,

apresentam ampla normatividade, "dando imediata direção aos

agentes públicos", razão pela qual a concreção de seu conteúdo

"não está a depender de veiculação de lei formal".

É o relatório.
20/08/2008 TRIBUNAL PLENO

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 579.951-4 RIO GRANDE DO NORTE

VOTO

O Sr. Ministro RICARDO LEWANDOWSKI (Relator): Bem

examinada a questão em debate, penso que o entendimento agasalhado

no acórdão recorrido não merece prosperar.

Com efeito, o aresto impugnado, após constatar "que, de

fato, no Município-apelado há funções gratificadas e cargos

comissionados ocupados por parentes de agentes públicos do

referido Município, prática esta denominada de nepotismo",

consigna, com todas as letras, que "não há qualquer ilegalidade ou

inconstitucional idade na referida prática" (fl. 337).

Assenta, mais, que a Carta Magna, em se tratando de

cargos públicos de livre nomeação, não estabelece "qualquer

limitação relacionada ao grau de parentesco porventura existente

entre a pessoa nomeada e algum agente público” (fl. 338).

Dentre outros argumentos, afirma, ainda, que


"(...) é a Constituição que permite o chamado
'nepotismo', na medida em que dá ao administrador
público liberdade para ocupar parte dos cargos que tem á
sua disposição com pessoas de sua confiança,
independentemente do fato de serem ou não seus parentes"
(fl. 338).

Em conclusão,atesta "que somente uma lei específica" -

inexistente no caso - ”poderia estabelecer restrições à

investidura deparentes nos cargos de confiança do Município

apelado" (fls. 338).

Consta dos autos, contudo, um voto vencido, que dava

provimento ao recurso de apelação, por entender que, não obstante

a inexistência de lei local impeditiva da prática do nepotismo, a

contratação deparentes é ilícita, porquanto a Administração

Pública deve pautar-se em conformidade com o princípio da

moralidade, que corresponde à obrigação de agir "segundo os

padrões éticos de probidade, decoro, honradez, dignidade e boa-

fé." (fl. 344).

Pois bem. Como se sabe, do ponto de vista etimológico, a

palavra "nepotismo" tem origem no latim, derivando da conjugação

do termo nepote, significando sobrinho ou protegido, com o sufixo

"ismo", que remete à idéia de ato, prática ou resultado. A

utilização desse termo, historicamente, advém da autoridade


exercida pelos sobrinhos e outros aparentados dos Papas na

administração eclesiástica, nos séculos XV e XVI de nossa era,

ganhando, atualmente, o significado pejorativo do favorecimento de

parentes por parte de alguém que exerce o poder na esfera pública

ou privada.

Ora, no julgamento da ADC 12-MC/DF, em que foi relator o

Ministro Carlos Britto, esta Corte reconheceu, em sede cautelar, a

constitucionalidade da Resolução 7/2005 do CNJ, que "disciplina o

exercício de cargos, empregos e funções por parentes, cônjuges e

companheiros de magistrados e servidores investidos em cargos de

direção e assessoramento, no âmbito dos órgãos do Poder Judiciário

e dá outras providências".

E, muito embora haja então o STF estabelecido que a

eficácia vinculante daquele texto normativo estaria circunscrito à

seara da magistratura,1 o pronunciamento de vários de seus

Ministros foi no sentido de que a sua força normativa deriva

diretamente dos princípios abrigados no art. 37, caput, da

Constituição, tendo a dita Resolução apenas disciplinado, em maior

detalhe, aspectos da vedação ao nepotismo que são próprios à

atuação dos órgãos jurisdicionais.


Tal entendimento encontrou expressão inclusive na ementa

da medida cautelar deferida pelo Plenário, da qual destaco o

seguinte trecho:

"(...) as restrições constantes do ato


normativo do CNJ são, no rigor dos termos, as mesmas
restrições já dedutíveis dos princípios republicanos da
impessoalidade, da eficiência, da igualdade e da
moralidade".

Dentre tais pronunciamentos, ressalto a manifestação do

Ministro Gilmar Mendes, nos seguintes termos:

"Essa moralidade não é elemento do ato


administrativo, como ressalta GORDILLO, mas compõe-se
dos valores éticos compartilhados culturalmente pela
comunidade e que fazem parte, por isso, da ordem
jurídica vigente.
A indeterminação semântica dos princípios da
moralidade e da impessoalidade não podem ser um
obstáculo à determinação da regra da proibição ao
nepotismo. Como bem anota GARCIA DE ENTERRIA, na
estrutura de todo conceito indeterminado é identificável
um 'núcleo fixo' (Begriffkern) ou ’zona de certeza', que
é configurada por dados prévios e seguros, dos quais
pode ser extraída uma regra aplicável ao caso. A vedação
ao nepotismo é regra constitucional que está na zona de
certeza dos princípios da moralidade e da
impessoalidade" (grifei).
Apesar de não ter participado daquele julgamento, a

Ministra Cármen Lúcia perfilha o mesmo entendimento, veiculado em

sede doutrinária:

"O princípio da moralidade administrativa tem


uma primazia sobre os outros princípios
constitucionalmente formulados, por constituir-se, em
sua exigência, de elemento interno a fornecer a
substância válida do comportamento público. Toda atuação
administrativa parte deste princípio e a ele se volta.
Os demais princípios constitucionais, expressos ou
implícitos, somente podem ter a sua leitura correta no
sentido de admitir a moralidade como parte integrante do
seu conteúdo. Assim, o que se exige, no sistema de
Estado Democrático de Direito no presente, é a
legalidade moral, vale dizer, a legalidade legítima da
conduta administrativa".

Já o Ministro Carlos Britto, relator da mencionada ADC

12-MC/DF, referindo-se aos princípios em tela, afirmou o seguinte:

"[São] Conceitos que se contrapõem à


multissecular cultura do patrimonialismo e que se
vulnerabilizam, não há negar, com a prática do chamado
'nepotismo'. Traduzido este no mais renitente vezo da
nomeação ou da designação de parentes não-concursados
para trabalhar, comissionadamente ou em função de
confiança, debaixo da aba familiar dos seus próprios
nomeantes. Seja ostensivamente, seja pela fórmula
enrustida do 'cruzamento' (situação em que uma
autoridade recruta o parente de um colega para ocupar
cargo ou função de confiança, em troca do mesmo favor)".
E acrescenta:

as restrições constantes do ato


normativo do CNJ são (...) as mesmas restrições já
impostas pela Constituição de 1988, dedutíveis dos
republicanos princípios da impessoalidade, da eficiência
e da igualdade (...). Quero dizer: o que já era
constitucionalmente proibido permanece com essa
tipificação, porém, agora, mais expletivamente
positivado. Não se tratando, então, de discriminar o
Poder Judiciário perante os outros dois Poderes
Orgânicos do Estado, sob a equivocada proposição de que
o Poder Executivo e o Poder Legislativo estariam
inteiramente libertos de peias jurídicas para prover
seus cargos em comissão e funções de confiança, naquelas
situações em que os respectivos ocupantes não hajam
ingressado na atividade estatal por meio de concurso
público" (grifos no original).

O historiador Sérgio Buarque de Holanda, em sua clássica

obra Raízes do Brasil, ao dissertar sobre as origens da

dificuldade de separação entre o público e o privado pelos

detentores do poder em nossa sociedade, afirmou:

"Para o funcionário ’patrimonial', a própria


gestão política apresenta-se como assunto de seu
interesse particular; as funções, os empregos e os
benefícios que deles se aufere relacionam-se a direitos
pessoais do funcionário e não a interesses objetivos,
como sucede no verdadeiro Estado burocrático, em que
prevalecem a especialização das funções e o esforço para
se assegurarem garantias jurídicas aos cidadãos. A
escolha dos homens que irão exercer funções públicas
faz-se de acordo com a confiança pessoal que mereçam os
candidatos e muito menos de acordo com suas capacidades
próprias. Falta a tudo ordenação impessoal que
caracteriza a vida no Estado burocrático".3

Claro está que o notável historiador brasileiro empregou

a expressão "Estado burocrático" no sentido que lhe emprestava Max

Weber, qual seja, uma forma de organização estatal própria das

sociedades modernas, em que o poder dos governantes e do

funcionalismo público deriva sua legitimidade do ordenamento legal

e não da tradição ou do carisma do líder político.4

Aliás, essa mesma perspectiva foi trazida a debate pelo

Ministro Cezar Peluso, no julgamento da ADC 12-MC/DF, ao lembrar

que

"As necessidades da administração pública


dependem daquilo que WEBER denominava a 'dominação
burocrática de impessoalidade formalística', cujo
conteúdo relevava bem com a expressão latina sine ira et
studio, ou seja, regida pelo dever jurídico estrito de
não se deixar guiar, não se deixar conduzir, na tutela
da coisa pública, nem por ódio, nem por amor. "

Retomando o ponto nodal da controvérsia debatida neste

RE, recordo, por oportuno, que o Plenário desta Corte já se

3 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26ª ed. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995, p. 146.
4 WEBER, Max. Economy and society: an outline of interpretative sociology. vol.
1. New York: Bedminster, 1968, pp. 212-254.
manifestou a respeito da proibição ao nepotismo, antes mesmo do

advento da Resolução 7/2005 do CNJ, conforme se depreende da

ementa do julgamento do MS 23.780/MA, em que foi Relator o

Ministro Joaquim Barbosa, verbis:

"MANDADO DE SEGURANÇA. NEPOTISMO. CARGO EM


COMISSÃO. IMPOSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DA MORALIDADE
ADMINISTRATIVA.
Servidora pública da Secretaria de Educação
nomeada para cargo em comissão no Tribunal Regional do
Trabalho da 16a Região à época em que o vice-presidente
do Tribunal era parente seu. Impossibilidade.
A proibição do preenchimento de cargos em
comissão por cônjuges e parentes de servidores públicos
é medida que homenageia e concretiza o princípio da
moralidade administrativa, o qual deve nortear toda a
Administração Pública, em qualquer esfera do poder.
Mandado de segurança denegado" (grifei).

De fato, embora existam diversos atos normativos no

plano federal que vedam o nepotismo,5 inclusive no âmbito desta

Corte,6 tal não significa que apenas leis em sentido formal ou

5 Ver Lei 8.112/90, art. 117, VIII; Lei 9.421/96, art. 10; e Lei 9.953/00, art.
22 .
6 Resolução 246 do STF de 18/12/2002, alterada pela resolução 249 de 5/2/2003,
art. 7º: "É vedado ao servidor do Supremo Tribunal Federal: I - usar cargo ou
função, facilidades, amizades, tempo, posição e influências para obter
favorecimento para si ou para outrem; (...) XVIII - manter sob sua subordinação
hierárquica cônjuge ou parente, em linha reta ou colateral, até o 3º grau".
Regimento Interno do STF: Art. 355, § 7º: "Salvo se funcionário efetivo do
Tribunal, não poderá ser nomeado para cargo em Comissão, ou designado para
função gratificada, cônjuge ou parente (arts. 330 a 336 do Código Civil), em
linha reta ou colateral, até terceiro grau, inclusive, de qualquer dos Ministros
em atividade” (Novo Código Civil, Lei 10.406/02: arts. 1.591 a 1.595). Art. 357,
parágrafo único: "Não pode ser designado Assessor, Assistente Judiciário ou
Auxiliar, na forma deste artigo, cônjuge ou parente, em linha reta ou colateral,
até o terceiro grau, inclusive, de qualquer dos Ministros em atividade".
outros diplomas regulamentares sejam aptos a coibir a nefasta e

anti-republicana prática do nepotismo. É que os princípios

constitucionais, longe de configurarem meras recomendações de

caráter moral ou ético, consubstanciam regras jurídicas de caráter

prescritivo, hierarquicamente superiores às demais e

"positivamente vinculantes", como ensina Gomes Canotilho.7

A sua inobservância, ao contrário do que muitos pregavam

até recentemente, atribuindo-lhes uma natureza apenas

programática, deflagra sempre uma conseqüência jurídica, de

maneira compatível com a carga de normatividade que encerram.

Independentemente da preeminência que ostentam no âmbito do

sistema ou da abrangência de seu impacto sobre a ordem legal, os

princípios constitucionais, como se reconhece atualmente, são

sempre dotados de eficácia, cuja materialização pode ser cobrada

judicialmente se necessário.

Por oportuna, relembro aqui a conhecida e sempre atual

lição de Celso Antônio Bandeira de Mello, segundo a qual

"(...) violar um princípio é muito mais grave


que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao
princípio implica ofensa não apenas a um específico

7 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional, Coimbra: Almedina,


1992, p. 352.
mandamento obrigatório mas a todo sistema de comandos. É
a mais grave forma de ilegalidade ou
inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio
atingido, porque representa insurgência contra todo o
sistema, subversão de seus valores fundamentais,
contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e
corrosão de sua estrutura mestra. Isto porque, com
ofendê-lo, abatem-se as vigas que o sustêm e alui-se
toda estrutura nelas esforçada".8

Ora, tendo em conta a expressiva densidade axiológica e

a elevada carga normativa que encerram os princípios abrigados no

caput do art. 37 da Constituição, não há como deixar de concluir

que a proibição do nepotismo independe de norma secundária que

obste formalmente essa reprovável conduta. Para o expurgo de tal

prática, que lamentavelmente resiste incólume em alguns "bolsões"

de atraso institucional que ainda existem no País, basta

contrastar as circunstâncias de cada caso concreto com o que se

contém no referido dispositivo constitucional.

Em estudo sobre as modalidades de eficácia jurídica, Ana

Paula de Barcelos, ao afirmar que uma dessas modalidades, a

negativa, é uma construção doutrinária especialmente relacionada

com os princípios constitucionais, observa, com pertinência, que

"a eficácia negativa autoriza que sejam declaradas inválidas todas

8 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 25 ed. São
Paulo: Malheiros, 2008. p. 943.
as normas (em sentido amplo) ou atos que contravenham os efeitos

pretendidos pelo enunciado".9

Desse modo, admitir que apenas ao Legislativo ou ao

Executivo é dado exaurir, mediante ato formal, todo o conteúdo dos

princípios constitucionais em questão, seria mitigar os efeitos

dos postulados da supremacia, unidade e harmonização da

Constituição, subvertendo-se a hierarquia entre a Lei Maior e

ordem jurídica em geral, "como se a Carta Magna fosse formada por

um conjunto de cláusulas vazias e o legislador ou o administrador

pudessem livremente dispor a respeito de seu conteúdo".10

A Constituição de 1988, em seu art. 37, caput, preceitua

que a Administração Pública rege-se por princípios destinados a

resguardar o interesse público na tutela dos bens da coletividade.

Esses princípios, dentre os quais destaco o da

moralidade e o da impessoalidade, exigem que o agente público

paute a sua conduta por padrões éticos que têm como fim último

lograr a consecução do bem comum, seja qual for a esfera de poder

ou o nível político-administrativo da Federação em que atue.

9 BARCELOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o


princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, pp. 82-
83.
10 Idem, p. 224.
Nesse contexto, verifica-se que o legislador

constituinte originário, bem assim o derivado, especialmente a

partir do advento da Emenda Constitucional 19/1998, que levou a

cabo a chamada "Reforma Administrativa", instituiu balizas de

natureza cogente para coibir quaisquer práticas, por parte dos

administradores públicos que, de alguma forma, pudessem buscar

finalidade diversa do interesse público. Uma dessas práticas, não

é demais repisar, consiste na nomeação de parentes para cargos em

comissão ou de confiança, segundo uma interpretação equivocada ou,

até mesmo, abusiva dos incisos II e V, do art. 37 da Constituição.

Convém notar que o constituinte de um modo geral,

sobretudo a partir da EC 19/1998, procurou reduzir ao máximo a

discricionariedade do administrador público no tocante ao

preenchimento dos cargos em comissão e de confiança, restringindo

o provimento destes últimos exclusivamente aos servidores

ocupantes de cargo efetivo. Quanto aos primeiros, estabeleceu que

eles se destinam apenas a "atribuições de chefia, assessoramento e

direção”, determinando, ainda, que um percentual deles fosse

preenchido por servidores de carreira.


De fato, em se tratando de gestão da res publica, como

ensina Maria Sylvia Zanella Di Pietro, a atuação do administrador,

ainda que, em muitos casos, esteja em consonância com o sentido

literal da lei, caso se revele ofensiva à moral, aos bons

costumes, ao poder-dever de probidade, às idéias de justiça e

eqüidade e ao senso comum de honestidade, estará em evidente

confronto com o princípio da moralidade administrativa.11 Afinal,

como diziam os antigos romanos, non omne guod licet honestum est.

Sim, porque como ensina Humberto Ávila, "o princípio da

moralidade administrativa estabelece um estado de confiabilidade,

honestidade, estabilidade e continuidade nas relações entre o

poder público e o particular, para cuja promoção são necessários

comportamentos sérios, motivados, leais e contínuos”.12

Além de ofensiva à moralidade administrativa, a nomeação

de parentes para cargos e funções que não exigem concurso público,

como já se viu acima, fere o princípio da impessoalidade e, por

extensão, o basilar princípio da isonomia, porque prevalece o

nefasto "QI", o popular "quem indica”, mencionado pelo Ministro

Marco Aurélio em seu voto pioneiro sobre o nepotismo, na ADI

11 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 20ª ed. São Paulo:
Atlas, 2007. p. 70.
12 ÁVILA, Humberto. Sistema constitucional tributário. 2ª. ed. São Paulo:
Saraiva, 2006, p. 38.
1.521/RS, em que o Plenário indeferiu pedido de medida cautelar

para suspender a eficácia de dispositivos da Constituição do

Estado do Rio Grande do Sul, que traziam normas vedando a

contratação de parentes de autoridades públicas.

E no mais das vezes, a nomeação de parentes, dada

absoluta inapetência destes para o trabalho e o seu completo

despreparo para o exercício das funções que alegadamente exercem,

vulnera também o princípio da eficiência, introduzido pelo

constituinte derivado no caput do art. 37 da Carta Magna, por meio

da EC 19/1998, num evidente desvio de finalidade, porquanto

permite que o interesse privado, isto é, patrimonial, no sentido

sociológico e também vulgar da expressão, prevaleça sobre o

interesse coletivo.

Em suma, como afirmou o Ministro Celso de Mello, no

julgamento da citada ADI 1.521/RS:

"(...) quem tem o poder e a força do Estado


em suas mãos, não tem o direito de exercer, em seu
próprio benefício, a autoridade que lhe é conferida
pelas leis da República. O nepotismo, além de refletir
um gesto ilegítimo de dominação patrimonial do Estado,
desrespeita os postulados republicanos da igualdade, da
impessoalidade e da moralidade administrativa".
Como se vê, as restrições impostas à atuação do

administrador público pelo princípio da moralidade e demais

postulados contidos no referido dispositivo da Constituição são

auto-aplicáveis, visto que trazem em si carga de normatividade

apta a produzir efeitos jurídicos, permitindo, em conseqüência, ao

Judiciário exercer o controle dos os atos que vulnerem os valores

fundantes do texto constitucional.

Não se olvide, ademais, que o estrito respeito a esses

postulados, em especial ao da moralidade, por parte do

administrador público, configura pressuposto de validade de seus

atos, como se decidiu na ADI 2.661/MA, que teve como relator o

Ministro Celso de Mello, a saber:

"O PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA -


ENQUANTO VALOR CONSTITUCIONAL REVESTIDO DE CARÁTER
ÉTICO-JURÍDICO - CONDICIONA A LEGITIMIDADE E A VALIDADE
DOS ATOS ESTATAIS.
- A atividade estatal, qualquer que seja o
domínio institucional de sua incidência está
necessariamente subordinada à observância de parâmetros
ético-jurídicos que se refletem na consagração
constitucional do princípio da moralidade
administrativa. Esse postulado fundamental, que rege a
atuação do Poder Público, confere substância e dá
expressão a uma pauta de valores éticos sobre os quais
se funda a ordem positiva do Estado.
- O princípio constitucional da moralidade
administrativa, ao impor limitações ao exercício do
poder estatal, legitima o controle jurisdicional de
todos os atos do Poder Público que transgridam os
valores éticos que devem pautar o comportamento dos
agentes e órgãos governamentais" (grifos no original).

Sobre a questão da sindicabilidade dos atos

administrativos pelo Poder Judiciário, quando contrários à moral

pública refletida no texto constitucional, extraio, ainda, da

sobredita ADC 12-MC/DF, significativo trecho do voto do Ministro

Joaquim Barbosa, assim redigido:

"O Direito não pode dissociar-se da Moral,


isto é, de uma moral coletiva, pois ele reflete um
conjunto de crenças e valores profundamente arraigados,
que emanam da autoridade soberana, ou seja, do povo.
Quando, em determinada sociedade, há sinais de
dissociação entre esses valores comunitários e certos
padrões de conduta de alguns segmentos do aparelho
estatal, tem-se grave sintoma de anomalia, a requerer a
intervenção da justiça constitucional como força
intermediadora e corretiva" (grifos no original).

É que, na lição de Konrad Hesse, a interpretação da

Constituição deve amoldar-se à realidade em que está imersa, daí

decorrendo a sua pretensão de eficácia.13 Essa pretensão, diz o

mestre germânico,

“não pode ser separada das condições


históricas de sua realização, que estão, de diferentes
formas, numa relação de interdependência, criando regras

13 HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Tradução de Gilmar Ferreira


Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1991, pp. 14-15.
próprias que não podem ser desconsideradas. Devem ser
contempladas aqui as condições naturais, técnicas,
econômicas e sociais.
(...)
Há de ser, igualmente, contemplado o
substrato espiritual que se consubstancia num
determinado povo, isto é, as concepções sociais
concretas e o baldrame axiológico que influenciaram
decisivamente a conformação, o entendimento e a
autoridade das proposições normativas".14

Não se ignora que a sociedade brasileira padece do mal

da descrença em suas instituições, reflexo, sobretudo, das

recorrentes manchetes da imprensa escrita, falada e televisionada

sobre corrupção, desvios de verbas públicas, tráfico de

influências, utilização dos cargos públicos para favorecimento

pessoal etc.

Mas a sociedade, em contrapartida, dispõe, atualmente,

de toda sorte de informações, cada vez mais acessíveis ao conjunto

dos cidadãos, que lhes permite acompanhar e fiscalizar os agentes

responsáveis pelo trato e gestão da coisa pública.

É bem verdade que não é de hoje o consenso social acerca

da reprovabilidade do nepotismo e de todas as condutas que, mesmo

travestidas de uma aparência de legalidade, contrariem o direito


público subjetivo dos cidadãos ao trato honesto dos bens que a

todos pertencem. Como já dizia Rui Barbosa, nos idos de 1919:

"O Brasil não é isso. É isto. (...) O Brasil


é este comício imenso de almas livres. Não são os
comensais do erário. Não são as ratazanas do Tesoiro.
Não são os mercadores do Parlamento. Não são as
sanguessugas da riqueza pública. (...) Não são os
corruptores do sistema republicano. São as células
ativas da vida nacional. É a multidão que não adula, não
teme, não corre, não recua, não deserta, não se vende. É
o povo, em um desses movimentos seus, em que se descobre
toda a sua majestade".15

Essa mesma sociedade, com o progressivo amadurecimento

da democracia registrado no País, sobretudo nas duas últimas

décadas, exige hoje dos administradores públicos uma conduta

inequivocamente ilibada e, sabendo-os ímprobos, não mais aceita

contemplá-los com qualquer condescendência.

Assim, o argumento, data venia falacioso, de que, se a

Carta Magna não vedou expressamente a ocupação de cargos em

comissão ou de confiança por parentes, essa prática seria lícita,

não merece prosperar, pois totalmente apartada do ethos que

permeia a "Constituição-cidadã" a que se referia o saudoso Ulisses

Guimarães.
De repelir-se, também, a artificiosa alegativa constante

do acórdão recorrido segundo o qual "não há nos autos qualquer

particularidade que desqualifique os servidores ocupantes dos

cargos apontados, ou mesmo referência de que os nomeados não

estejam desempenhando suas funções de forma correta e capacitada,

o que gera uma presunção de que o princípio da eficiência está

sendo respeitado" (fl. 341).

É que o que está causa em não é o trabalho desempenhado

por esses "servidores-parentes", mesmo porque a obrigação de bem

trabalhar constitui dever de todos os ocupantes de cargos

públicos, sejam eles concursados ou não. O que está em debate, com

efeito, não é a qualidade do serviço por eles realizado, mas a

forma do provimento dos cargos que ocupam, que se deu em

detrimento de outros cidadãos igualmente ou mais capacitados para

o exercício das mesmas funções, gerando a presunção de dano à

sociedade como um todo.

E aqui surge mais um relevante aspecto a ser sublinhado,

qual seja: o fato de que essa prática atenta não apenas contra o

princípio da impessoalidade, como também o da eficiência, ambos

inseridos no rol daqueles que devem nortear a ação dos agentes


públicos. E o Ministro Cezar Peluso, interessantemente, no

julgamento da ADC 12-MC/DF, evidenciou a íntima relação entre

esses dois conceitos, ao afirmar:

"(...) o princípio da impessoalidade está


ligado à idéia de eficiência, porque constitui condição
ou requisito indispensável da eficiência operacional da
administração pública

Eficiência, tal como ensina Odete Medauar, "contrapõe-se

a lentidão, o descaso, a negligência, a omissão", segundo a

professora, "características habituais da Administração Pública

brasileira",16 e que permanecerão, permito-me acrescentar, enquanto

perdurar a histórica confusão que os administradores públicos, com

honrosas exceções, têm feito entre patrimônio público e privado.

Por fim, observo que não se mostra razoável admitir que

uma conveniente interpretação literal dos incisos II e V do art.

37 da Lei Maior possa contrariar o sentido lógico e teleológico do

que se contém no caput do referido dispositivo, em flagrante

dissonância com a idéia de unidade e harmonização que deve nortear

a hermenêutica constitucional.17
Por tudo quanto até aqui exposto, entendo que carece de

plausibilidade a exegese segundo a qual que o nepotismo seria

permitido simplesmente porque não há lei que o proíba.

Não vejo como, todavia, dar provimento integral ao

pedido do recorrente, em especial quanto à segunda parte do pedido

formulado no recurso extraordinário, ou seja, "que o Município de

Água Nova se abstenha de contratar ou nomear qualquer pessoa

física que seja parente daquele ocupante de mandato eletivo ou

cargo em comissão, estendendo-se a vedação também às pessoas

jurídicas, cujos sócios mantenham alguma relação de parentesco com

as citadas pessoas".

Isso porque não cabe a esta Corte, conforme pacífica

jurisprudência, atuar como legislador positivo, sendo-lhe vedado

inovar o sistema normativo, função reservada ao Poder Legislativo.

O provimento integral do RE, com efeito, revelaria

flagrante extravasamento de competências, com ofensa ao princípio

constitucional da separação dos poderes.18


Por todo o exposto, pelo meu voto, conheço do recurso

extraordinário, dando-lhe parcial provimento, declarando nulo o

ato de nomeação de Francisco Souza do Nascimento. Considero hígida

a nomeação do agente político Elias Raimundo de Souza, em especial

por não ter ficado evidenciada a prática do nepotismo cruzado,

acompanhando, nesse aspecto, o entendimento da douta maioria.


20/08/2008 TRIBUNAL PLENO

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 579.951-4 RIO GRANDE DO NORTE

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO - Presidente, gostaria

de ter um esclarecimento do relator: os interessados no desfecho

deste extraordinário, Souza e Souza, guardam parentesco com o Chefe

do Executivo municipal?

O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (RELATOR) - Não.

Aqui, eminente Ministro, como assentei no relatório, Elias Raimundo

de Souza e Francisco Souza do Nascimento foram nomeados,

respectivamente, para os cargos em comissão de Secretário Municipal

de Saúde e de motorista, embora sejam, o primeiro, irmão de vereador

e, o segundo, do Vice-Prefeito do Município de Água Nova daquele

Estado.

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO - Vereador e vice-

prefeito. E, no caso, contratados pelo Executivo.

O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (RELATOR) -Pelo

Executivo, exatamente.

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO - Presidente, a base

do voto de Vossa Excelência não é a Resolução do Conselho Nacional

de Justiça. É o artigo 37 da Constituição Federal.


O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (RELATOR) -

Vossa Excelência deve ter percebido - e certamente percebeu - que a

questão, aqui, é a de que o Tribunal vinha entendendo - e cito,

aqui, nota de rodapé, inclusive a ADC 12 - que a discussão cingiu-se

à aplicação da Resolução nº 07/2005 ao Poder Judiciário. E como não

havia - e não há - em muitos locais e, sobretudo, no município em

questão uma norma que proíba, formalmente, a prática do nepotismo,

então o Tribunal local do Rio Grande do Norte entendeu que, em não

havendo norma formal proibindo o nepotismo, ele seria permitido,

decorrendo tal interpretação da própria Constituição.

O que estamos a discutir, aqui, eminente Ministro, é

se os princípios do artigo 37, caput, são, ou não, auto-aplicáveis e

se a proibição do nepotismo se estende a todos os Poderes da

República e a todos os níveis político-administrativos da Federação,

independentemente de lei formal. Essa é a questão.

Estou afirmando, no meu voto, a partir de um caso

concreto que, realmente, os princípios são auto-aplicáveis, que a

vedação ao nepotismo decorre exatamente da conjugação desses

princípios da Constituição, com o et os prevalente na sociedade

brasileira.

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO - A ação ajuizada é

ação civil pública?


O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (RELATOR) - É

uma ação declaratória de nulidade de ato administrativo por parte do

Ministério Público local.

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO - Então estaria

voltada, realmente, contra atos concretos de nomeação.

O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (RELATOR) -

Contra atos concretos.

O EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO MENEZES DIREITO:


Ministro Marco Aurélio, Vossa Excelência me permite?

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO - Sim.

O EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO MENEZES DIREITO:


Talvez valesse a pena a leitura do pedido final. O
pedido final diz o seguinte:

4. II) condenar o Município de Água Nova:


4. II. a) a proceder a exoneração de ELIAS
RAIMUNDO DE SOUZA E FRANCISCO SOUZA DO NASCIMENTO,
nomeados para exercício de cargo em comissão ou
contrato temporário por excepcional interesse público;
4.11. b) se abster de contratar por
determinado para atender a necessidade temporária de
excepcional interesse público, FRANCISCO BOUZA DO
NASCIMENTO, parente do Vice-Prefeito do Município
Antônio Sezanildo do Nascimento, enquanto este for
mantido no referido cargo ou em outros equivalentes ;
4.11.c) se abster de nomear para ocupar cargos
comissionados ou funções gratificadas a pessoa de
ELIAS RAIMUNDO DE SOUZA, Secretário Municipal de
Saúde, parente do vereador Antônio Raimundo de Souza,
enquanto este for mantido no referido mandato ou em
outros cargos equivalentes;
4.II.d) se abster de contratar qualguer
empresa para prestação de serviço terceirizado ao
Município de Água Nova, que tenha em seus quadros
funcionais as pessoas de ELIAS RAIMUNDO DE SOUZA ,
FRANCISCO SOUZA DO NASCIMENTO:
5) cominar multa diária pessoal no valor de
dez mil reais (R$ 10.000,00), imposta ao agente
público a quem incumbir o cumprimento da ordem
judicial, em caso de descumprimento. "

Esse é o pedido.

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO - Agora, a

"contratação" não foi para ser o titular da Secretariade Saúde, mas

para certo cargo.

O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (RELATOR) -

Correto,

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO - Presidente, estou

satisfeito com os esclarecimentos.

O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (RELATOR) -

Perdão. As contratações foram para os cargos de Secretário Municipal

de Saúde e de motorista.

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO - Ele seria, a um só

tempo, secretário e motorista?


O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (RELATOR) -

Trata-se de duas pessoas: um é Secretário Municipal da Saúde e o

outro é motorista.

O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES (PRESIDENTE) - São

duas pessoas.

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO - No caso, Vossa

Excelência glosa, também, a escolha, a nomeação de certa pessoa como

secretário de saúde?

O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (RELATOR) -

Também.

O SENHOR MINISTRO CARLOS BRITTO - Aqui, faço uma

distinção também, porque é membro de Poder.

A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA - É membro de Poder.

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO - Não chego a esse

ponto, considerado o nepotismo.

O EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO MENEZES DIREITO:


Ministro Presidente, tenho a impressão que nós temos
de examinar, primeiro, uma dificuldade, que é quanto ao recurso
extraordinário em si mesmo. Temos, diante de nós, uma tese jurídica,
que, tenho a impressão, ficou vencida a questão com o julgamento na
ação anterior, porque, na ação constitucional anterior, nós
entendemos que, de fato, é dispensável a lei formal para efeito de
aplicação do princípio da moralidade que alcança o nepotismo.

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO - Bastando a cabeça do

artigo 37 da Constituição Federal.

O EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO MENEZES DIREITO:


Bastando a aplicação da cabeça do artigo 37, ou seja,
nós afirmamos que a proibição não decorre da lei formal, decorre
diretamente da Constituição. Então, a tese jurídica, a meu ver, está
mantida.
Agora, temos, diante de nós, o julgamento de um
recurso extraordinário, e o recurso extraordinário faz referência, e
nós já vimos em outras oportunidades, ao pedido inaugural.

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO - Aponta-se a

infringência ao citado artigo 37.

O EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO MENEZES DIREITO:


Ao pedido inaugural por infringência do 37. Então,
temos de examinar, primeiro, a posição do Ministro Ricardo
Lewandowski, nesse preciosíssimo voto, com um conteúdo denso do
ponto de vista histórico e do ponto de vista jurídico, que concluiu
no sentido de que nós não poderiamos, sob pena de nos transformarmos
em legislador positivo, decidir o caso concreto. Essa questão é um
óbice que nós temos de enfrentar, porque, se prevalecer a posição do
Ministro Lewandowski nesta matéria, evidentemente, não teremos mais
o que discutir. Se não prevalecer, nós teremos de examinar o caso
concreto.

O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (RELATOR) -

Senhor Presidente, queria fazer um esclarecimento: estou dando

provimento em parte.

A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA - A conclusão do

Ministro-Relator foi no sentido de dar provimento parcial.

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO - Sim, porque a ação

pode ter como objeto a obrigação de não fazer. Por isso perguntei se

seria ação civil pública. Mas a ação anulatória está cumulada, está

voltada quanto a atos comissivos concretos e, também, engloba a

obrigação de não fazer. Talvez devéssemos estabelecer apenas a

distinção: servidor público e agente político.

O EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO MENEZES DIREITO:


Ministro Marco Aurélio, é uma ação civil pública
declaratória de nulidade.

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO - Não estendo a cabeça

do artigo 37, de início, ao agente político e, no caso, o secretário

municipal o é.
O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES (PRESIDENTE) - No

caso, ainda haveria um outro aspecto: está-se estabelecendo uma

relação - éclaro que Vossa Excelência, com essa premissa, já pré-

resolve a questão - de parentesco do vereador.

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO - O secretário de

saúde seria parente do vereador e não do chefe do Executivo

municipal que o designou?

O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES (PRESIDENTE) - Sim, do

vereador.

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO - Ele foi

arregimentado não para prestar serviços à Câmara de Vereadores, mas

para atuar no Executivo?

O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES (PRESIDENTE) - O

Secretário Municipal de Saúde é parente do vereador.

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO - Mas aí, mata. A

questão é prejudicial. Ainda haveria esse complicador.

O EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO MENEZES DIREITO:


Mas são duas hipóteses: uma, é o Vice-Prefeito que
contrata o seu irmão para motorista, e outra, é um vereador, que
teve o irmão nomeado Secretário Municipal de Saúde. São duas
questões distintas.

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO - Tenho que reconhecer

a modicidade quanto ao cargo de motorista.

O SENHOR MINISTRO CARLOS BRITTO - Vou fazer uma

distinção que me parece procedente. O voto do Ministro Ricardo

Lewandowski, sem dúvida, é excelente.

O EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO MENEZES DIREITO:


O Ministro Ricardo Lewandowski me explicou que está
dando provimento, em parte, para reconhecer a tese e para excluir a
nomeação dos dois, mas não a aplicação para a frente.

O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (RELATOR) - Sim,

para o futuro.

O EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO MENEZES DIREITO:


Então, nós vamos ter de examinar, primeiro, a tese, e,
segundo, se alcançamos, no julgamento do extraordinário, as duas
situações. Essa é a discussão.

O SENHOR MINISTRO CARLOS BRITTO - Perfeito.


O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO - De início, excluo o

provimento do recurso, uma vez que o conhecimento já está assegurado

porque adentramos a matéria de fundo.

Desprovejo-o quanto ao secretário de saúde. Entendo

que não podemos, a partir do disposto na cabeça do artigo 37 da

Constituição Federal, glosar a escolha. E haveria, ainda, a

problemática a que se referiu Vossa Excelência: o parentesco não é

com o titular, não é com o vice-prefeito, não é com alguém ligado ao

Executivo, como servidor ou agente político, mas com um vereador.

Não adentro o que seria a promiscuidade Executivo/Legislativo. Fico

apenas na tese segundo a qual não cabe a glosa, o provimento quanto

ao agente político.

O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (RELATOR) -

Ministro Marco Aurélio, Vossa Excelência me permite um aparte? Ao

longo do meu voto, eu disse exatamente isto: essa questão há de ser

apreciada em cada caso concreto, conforme Vossa Excelência está

fazendo. Quer dizer, o Ministério Público atuará em cada caso

concreto e verificará se houve, ou não, ofensa aos princípios do

artigo 37.

Vossa Excelência, certamente, diz estar havendo, pelo

que estou entendendo, ofensa em parte.


O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO - Creio que poderiamos

avançar quanto à obrigação de não fazer.

O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (RELATOR) -

Ministro Marco Aurélio, impressionou-me o fato de que a inicial

deste recurso extraordinário dá a entender que houve, realmente, uma

troca política; há um contexto, como se diz, de um franciscano

"toma-lá-dá-cá".

Então, parece-me que, neste caso concreto, embora se

possa admitir, em tese, que o parente possa ocupar um cargo de

Secretário, configurou-se o ilícito.

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO - Mas não se diz quem

teria sido nomeado por indicação do vereador, para a Câmara de

Vereadores, visando a atender o troca-troca. Não está dito, não há

esclarecimento e não está no acórdão.

O SENHOR MINISTRO CARLOS BRITTO - Quando proferi voto

na ADC nº 12, entendendo - e a Corte concordou - que os princípios

do artigo 37 eram extensíveis a toda a Administração Pública, tive

em conta a própria expressão "Administração Pública", porque esses

princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, até vêm num

contexto não de governo, não de poder político, mas de Administração

Pública, ou seja, para exercício da atividade administrativa. A

Administração Pública, aqui, parece-me, é segmento do governo. O


governo é mais do que a Administração Pública, porque incorpora

ingrediente político.

Então, quando o artigo 37 refere-se a cargo em

comissão e função de confiança, está tratando de cargos e funções

singelamente administrativos, não de cargos políticos. Portanto, os

cargos políticos estariam fora do alcance da decisão que tomamos na

ADC nº 12, porque o próprio Capítulo VII é Da Administração Pública

enquanto segmento do Poder Executivo. E sabemos que os cargos

políticos, como, por exemplo, os de Secretário Municipal, são de

agentes do Poder, fazem parte do Poder Executivo. O cargo não é em

comissão, no sentido do artigo 37. Somente os cargos e funções

singelamente administrativos - é como penso - são alcançados pela

imperiosidade do artigo 37, com seus lapidares princípios. Então,

essa distinção me parece importante para, no caso, excluir do âmbito

da nossa decisão anterior os Secretários Municipais, que

correspondem a Secretários de Estado, no âmbito dos Estados, e

Ministros de Estado, no âmbito federal.

Louvo o magnífico voto do Ministro Ricardo

Lewandowski, de um conteúdo atualíssimo, que nos brindou a todos,

porém, para travar uma discussão um pouco mais focada.

O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (RELATOR) -

Vossa Excelência daria provimento, mas em menor extensão: apenas

quanto ao motorista.
O SENHOR MINISTRO CARLOS BRITTO - Em menor extensão,

só quanto ao motorista.

O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (RELATOR) - Até

porque a jurisprudência consolidada desta Casa é no sentido de que

cargo técnico, como é o de motorista, não pode ser objeto de cargo

em comissão.

O SENHOR MINISTRO CARLOS BRITTO - Estão confundindo o

cargo de direção com cargo de direção de um carro. Não tem nada a

ver uma coisa com a outra.


20/08/2008 TRIBUNAL PLENO

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 579.951-4 RIO GRANDE DO NORTE

VOTO

O EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO MENEZES DIREITO:


Senhor Presidente, creio que a parte inaugural já ficou bem
assentada e bem delineada na Ação 12, ou seja, nós decidimos, em síntese, que não é
necessário lei formal para aplicação do princípio da moralidade contido no caput do
artigo 37. O que quer dizer que, evidentemente, não há necessidade da lei, porque o
princípio decorre diretamente da Constituição. Então, eu não tenho dúvida em
acompanhar o belíssimo voto proferido pelo Ministro Lewandowski nessa perspectiva.
Eu, hoje de manhã, estava relendo um texto de Hume, do Século
XVIII, no volume dos ensaios políticos, econômicos, sociais e literários. E há uma
passagem sobre o papel dos Juízes, exatamente nessa interpretação possível de punir
e reparar essas fraudes. No fundo, a aplicação do princípio da moralidade com o
alcance do nepotismo tem esse sentido e esse alcance, ou seja, de reparar a fraude
que significa autorizar-se esse tipo de contratação.
Então, eu não tenho dúvida alguma, pelo menos na minha
avaliação, de seguir as linhas traçadas pelo Ministro Lewandowski no que diz
especificamente com a tese que foi posta, e que é a tese fundamental.
No que concerne ao recurso extraordinário propriamente dito, ou
seja, ao provimento que Sua Excelência dá em maior extensão, alcançando o primeiro
caso, que é da nomeação de um irmão do vereador para o cargo de secretário
municipal de saúde, eu faço as mesmas restrições que já foram feitas pelo eminente
Ministro Marco Aurélio e pelo eminente Ministro Carlos Britto. Eu entendo que nessa
circunstância não cabe a aplicação do princípio, não se trata aqui de nepotismo. Seria
absolutamente incompossível fazer essa vinculação. Todavia, tal não ocorre com o
cargo de motorista, porque ele está sendo contratado para o gabinete do vice-prefeito,
ele é funcionário da administração municipal também servindo o vice-prefeito, e aí fica
evidente que está havendo a contratação de um irmão para a mesma repartição, para o
mesmo local e até mesmo, um caso mais grave que me parece este, escapando do
necessário concurso público, considerando que o cargo do motorista não é suscetível
de contratação por via de cargo de direção e assessoramento superior.
Então, pedindo vênia ao Ministro Lewandowski, apenas nesta
parte, eu ficaria com o conhecimento e provimento para a afirmação da tese e para
afastar apenas o segundo caso que foi posto. No mais, quanto à complementação,
também acompanho Sua Excelência.
20/08/2008 TRIBUNAL PLENO

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 579.951-4 RIO GRANDE DO NORTE

VOTO

A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA - Senhor Presidente,

também eu não posso deixar de reconhecer o brilhantismo do voto do

eminente Ministro-Relator, cuja fundamentação acolho integralmente.

Penso que fica assentada, portanto, hoje, a partir do julgamento da

Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 12, e agora como

estamos diante de um caso concreto do Poder Executivo basicamente,

a definição deste Tribunal no sentido de que o artigo 37, quanto

aos seus princípios, tem aplicação imediata e não depende de

legislação infraconstitucional

O SENHOR MINISTRO CARLOS BRITTO - E alcança os

Poderes todos.

A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA - Sim, na fórmula do

artigo 37.

"Art. 37. A administração pública direta e indireta


de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos
princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade,
publicidade e eficiência (...)"

Isso é auto-aplicável, não depende de nada, todo

mundo tem de cumprir, vale para todos, vale para o Poder Público
para o particular, que também não pode alegar desconhecimento e não

ter como dado válido, resolvendo que pode tomar assento a esses

cargos. Portanto, quanto a essa fundamentação acolho integralmente.

A parte em que o Ministro conclui exatamente no

sentido de não ser possível avançar para projetar isso para novas

situações para esse Município lembra-me de um caso em que, ainda

como advogada, pedi umas liminares em vários casos, e uma juíza

despachou no sentido de que negava uma liminar e todas as outras

que eu por acaso viesse a pedir. Isso é mais ou menos o que se pede

às vezes do Judiciário. Neste caso, nesta sede, foi negado com

acerto e também sigo.

Quanto à matéria suscitada basicamente pelo Ministro

Marco Aurélio, pode ocorrer a seguinte circunstância, Senhor

Presidente: o membro de Poder ou o cargo que não compõe a estrutura

- eu não diria, Ministro Carlos Britto, da Administração Pública,

porque alguns cargos de governo são da Administração Pública, por

exemplo, cargos de direção e assessoramento até compõe o

Governo, mas quem o ocupa não é um membro de Poder; o Secretário é.

Neste caso específico e nesta situação narrada nos autos,

exclusivamente, vou seguir a divergência, pedindo vênia ao Ministro

Ricardo Lewandowski.

Digo neste caso porque ficou muito famosa no Brasil a

situação das chamadas contratações cruzadas. Era vedado alguém;

contrata-se para outro Poder, para outro cargo. Com isso o


nepotismo grassou depois da Constituição de 1988, mudando-se,

inclusive, e mantendo-se as mesmas pessoas num compadrismo

absolutamente inconstitucional.

Mas reconheço que, num município de interior, às

vezes - não tenho esses elementos, imagino que nem o Ministro-

Relator os tenha para verificar -, no nosso fundo do Brasil

profundo, num município às vezes mínimo, não haja alguém que possa

substituir ou que não tenha parentesco, como, por exemplo, um

vereador, para exercer um cargo de Secretário da Fazenda.

Enfim, por essa exclusiva razão, e sem me

comprometer, porque essas contratações cruzadas são fórmulas de

nepotismo vedadas constitucionalmente, então não me estou

comprometendo, de modo algum, em dizer qualquer cargo de estrutura

de Poder, porque se pode criar um exatamente para determinado

partido dar apoio a um prefeito e votar uma lei, e, nesse caso,

coloca-se alguém, o irmão de um deles para Secretário. Nessa

situação, realmente penso que haveria inconstitucionalidade.

Como neste caso não há esse dado concreto - há o dado

apenas de que é um vereador e que o irmão dele foi nomeado para o

cargo de Secretário da Saúde -, como sei que, em alguns municípios

brasileiros, nos municípios de Minas Gerais, por exemplo, nos quais

hã um ou dois médicos na cidade, e talvez seja este o único que

pode exercer esse cargo, eu não quero avançar aqui por essa falta

de dados
Portanto, com essa ressalva exclusiva, vou pedir

vênia ao Ministro Ricardo Lewandowski para prover em parte. Não é

em menor extensão, porque acompanho integralmente as teses e os

fundamentos de Sua Excelência, apenas com relação a uma das pessoas

que o Ministério Público considerou que teria sido nomeada; nem é

contratada porque é cargo de Secretário, e rigorosamente para esse

caso.

Lembro aqui, Ministro, que, nesses casos, inclusive,

de membros de poder, são pessoas que não titularizam cargo em

comissão. Tanto que não contam esse prazo, por exemplo, para efeito

de aposentadoria. É um regime jurídico realmente diferenciado. Mas

tenho certeza de que é por essa via que se pode abrir uma cunha

extremamente perigosa.

Neste caso, no entanto, em razão da situação e tudo o

mais, vou pedir vênia ao Ministro Ricardo Lewandowski para

acompanhar a divergência, apesar de, na fundamentação, não haver

divergência alguma.
20/08/2006 TRIBUNAL PLENO

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 579.951-4 RIO GRANDE DO NORTE

VOTO

O SENHOR MINISTRO EROS GRAU: - Senhor Presidente,


também vou, neste caso, com todas essas ressalvas, acompanhar a
divergência e fazer uma brevíssima ponderação com relação ao meu
cuidado a propósito da extensão do princípio da moralidade.

Não posso conceber a moralidade como uma substituição


da eticidade, da ética da legalidade. Mas não vou dizer nada sobre
isso, apenas me referir ao que tenho escrito sobre esse tema no meu
livro "O direito posto e o direito pressuposto", capítulos XIII e
XIV. Apenas para conforto intelectual meu, nada além disso.
20/08/2008 TRIBUNAL PLENO

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 579.951-4 RIO GRANDE DO NORTE

VOTO

O SENHOR MINISTRO CARLOS BRITTO - Senhor Presidente,

quando introduzi essa discussão, a partir do voto do Ministro Marco

Aurélio, sobre a distinção entre cargo em comissão e função de

confiança, de um lado, e, do outro, cargo de Secretário Municipal,

Secretário de Estado, Ministro de Estado, portanto, cargos de

natureza política, claro que eu não quis dizer que esses princípios

do artigo 37 - legalidade e moralidade - não se aplicam aos

dirigentes superiores de toda a Administração Pública. Agora, os

cargos aqui referidos no inciso V do artigo 37 são singelamente

administrativos; são cargos criados por lei, não são nominados pela

Constituição. Os cargos de Secretário de Estado, Secretário

Municipal têm por êmulo ou paradigma federal os cargos de Ministro

de Estado cuja natureza é política, e não singelamente

administrativa. Diz a Constituição Federal sobre o Poder Executivo:

o Poder Executivo é exercido pelo Presidente da República, auxiliado

pelos Ministros de Estado (art. 76). Ou seja, os Ministros de Estado

são ocupantes de cargos de existência necessária, política, porque


componentes do governo. Aonde eu quero chegar? O Chefe do Poder

Executivo é livre para escolher seus quadros de governo, mas não o é

para escolher seus quadros administrativos, porque dentre os quadros

administrativos estão os cargos em comissão, os cargos de provimento

efetivo e as funções de confiança. A própria Constituição, sentando

praça desse caráter constitucional, eminentemente político, dos

Ministros de Estado - e isso vale no plano dos Estados-membros e no

plano dos municípios -, além de dizer os requisitos deles - "os

Ministros de Estado serão escolhidos dentre brasileiros maiores de

vinte e um anos e no exercício dos direitos políticos" -, diz o que

basicamente lhes compete. Então, o assento, o locus jurídico dos

auxiliares de governo é diretamente constitucional. A Constituição

Federal a atestar o caráter político do cargo e do agente.

Por isso, o que decidimos no plano da ADC nº 12, e agora

servindo de fundamento para a nova decisão, a proibição do nepotismo

arranca, decola, deriva diretamente dos princípios do artigo 37, que

são princípios extensíveis a toda a Administração Pública de

qualquer dos Poderes, de qualquer das pessoas federadas. Tudo isso

na vertente, na perspectiva de cargos em comissão e funções de

confiança, que têm caráter apenas administrativo, e não caráter

político.
O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (RELATOR) - Ministro

Carlos Britto, eu concordo com a tese de Vossa Excelência, e,

realmente, fiquei preocupado ao redigir o voto com essa situação. É

que eu fiquei impressionado com o que se veiculou na inicial, onde

ficou demonstrado, a meu ver, um tráfico de influência, digamos

assim, uma relação promíscua entre a Câmara e o Executivo.

Eu estou apenas a imaginar, eminente Ministro Carlos

Britto, sem querer discordar de Vossa Excelência, e até trazendo à

baila uma situação muito comum nos pequenos municípios: o Prefeito

coloca sua esposa como Secretária Municipal, coloca o filho em outra

secretaria; coloca o sobrinho em outra. Como ficaríamos.

O SENHOR MINISTRO CARLOS BRITTO - Desgraçadamente acontece

isso.

O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (RELATOR) - E o que

aconteceria? Isso seria lícito?

O SENHOR MINISTRO CARLOS BRITTO - Mas está formando os

seus quadros de governo. Ou seja, o inciso V do artigo 37 não se

aplicaria.
O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (RELATOR) - Então,

por isso é que eu preferi dizer, eminente Ministro, que cada caso

concreto deverá ser avaliado à luz da proibição do nepotismo que

emana do artigo 37, caput, um pouco na linha do que colocou a

Ministra Cármen Lúcia. Eu fico com certo receio de assentarmos, com

todas as letras, que, em se tratando de Secretário Municipal, que é

um cargo político de livre nomeação, enfim, de confiança do

prefeito, tal atitude seria lícita. Amanhã, se ele colocar a esposa

em um "cargo chave" de Secretária de Governo, isso seria lícito à

luz da proibição do nepotismo, do princípio da moralidade? Isso

acontece no cotidiano deste grande Brasil.

A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA - Ministro Carlos Britto,

essa liberdade não me parece absoluta.

Ministro Ricardo Lewandowski, porque teria de haver

limites, não é isso? Não existe liberdade absoluta em espaço algum,

senão o governante poderia escolher apenas os seus familiares para

todos os cargos. E por ser cargo político, isso seria permitido? De

modo algum.

O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (RELATOR) - Ministro

Carlos Britto, eu não estou discordando de Vossa Excelência, apenas

temo afirmar essa tese com todas as letras. Como eu examinei o caso
concreto achei melhor decidir em sentido contrário ao proposto por

Vossa Excelência no tocante ao cargo político.

O SENHOR MINISTRO CARLOS BRITTO - Vossa Excelência ficou

temendo pelas conseqüências práticas, não é?

O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (RELATOR) - Sem

dúvida. Mas eu louvo a preocupação de Vossa Excelência.

O SENHOR MINISTRO CARLOS BRITTO - Vamos aguardar os votos

dos demais Ministros. Vou aguardar para ver se permaneço.

O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES (PRESIDENTE) - Mas Vossa

Excelência, em princípio, encaminho-se na linha que o Ministro

Carlos Alberto Direito também perfilhou?

O SENHOR MINISTRO CARLOS BRITTO - Perfeito.


20/08/2008 TRIBUNAL PLENO

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 579.951-4 RIO GRANDE DO NORTE

VOTO

O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO - Senhor Presidente,

eu também vou pedir vênia ao eminente Ministro-Relator, para essa pequena

restrição. O seu voto é brilhantíssimo, em todos os aspectos. Quanto a isso, não

há dúvida nenhuma.

Em primeiro lugar - e não quero comprometer-me quanto a isso

tenho certa dúvida, ainda, se o princípio se aplica, ou não, aos chamados

agentes políticos. Este é o primeiro ponto. Mas acho sobretudo que o ponto

fundamental é ligar o princípio da impessoalidade à relação que se estabelece

entre o nomeado e a autoridade nomeante. Em outras palavras, o caso aqui não

é de prefeito que nomeou seu irmão, o que poderia ter contorno diferenciado. É

de prefeito que nomeou o irmão de um vereador. Então, a menos que - essa era

a ressalva que faço - se tratasse do chamado “favor cruzado”, isto é, que o

prefeito tivesse nomeado, como secretário, o irmão do vereador e este, na

Câmara, tivesse, de algum modo, nomeado para a Câmara Municipal um

parente do prefeito, eu veria, aí sim, característica típica do chamado “nepotismo

cruzado", que me parece alcançado pela regra da impessoalidade. Mas não é o

caso.
A meu ver, não se podem levar as hipóteses em que não haja

vínculo de incompatibilidade entre a autoridade nomeante e o nomeado, a

extremos. Se se imagina que o prefeito nomeou o irmão do vereador, porque

teria interesse em agradar ao vereador, existe, também, a hipótese em que se

nomeia terceiro, que não tem parentesco com nenhum agente público, mas tem

parentesco com quem seja amigo do nomeante. Isto é, qualquer autoridade pode

nomear alguém para cargo em comissão atendendo a amigo, e isso não é

alcançado pela restrição do princípio da impessoalidade. Não se sabe o que se

passa na subjetividade do nomeante: se é para atender a este ou àquele. Enfim,

não há dado objetivo para o confronto dessa hipótese com o princípio da

impessoalidade.

Por essa razão, peço vênia ao eminente Relator: vou

acompanhar a divergência, para excluir o provimento em relação ao Secretário

de Saúde.
20/08/2008

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 579.951-4 RIO GRANDE DO NORTE

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO - Presidente, adiantei

o voto justamente para proceder a essa exclusão. Não sei se o

relator evolui na espécie para prover parcialmente e excluirmos o

secretário. Então a decisão passará a ser unânime.

O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (RELATOR) -

Atento às argumentações dos Colegas, e, sobretudo, considerando a

distinção feita entre um cargo estritamente administrativo e um

cargo político, eu faço o ajustamento no meu voto para, continuando

a prover em parte, retirar da proibição o Secretário de Saúde.

O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (RELATOR) - Sim.

A menos que, no caso concreto, se configure uma troca de favores.

A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA - Sim, penso que se

pode afirmar como princípio, mas a partir da análise deste caso

concreto, de suas circunstâncias.

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO - O ministro questiona

quanto ao entendimento, porque o caso concreto envolve o secretário

municipal e o motorista. O motorista, sim, terá a situação glosada.

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO - Ministro Celso de

Mello (inserido ante o cancelamento do aparte por Sua Excelência),

ele já evoluiu.

O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (RELATOR) Eu


-

evoluo nesse sentido.


20/08/2008 TRIBUNAL PLENO

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 579.951-4 RIO GRANDE DO NORTE

VOTO

O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: Sabemos todos que a

atividade estatal, qualquer que seja o domínio institucional de sua

incidência, está necessariamente subordinada à observância de

parâmetros ético-jurídicos que se refletem na consagração

constitucional do princípio da moralidade administrativa, que se

qualifica como valor constitucional impregnado de substrato ético e

erigido à condição de vetor fundamental no processo de poder,

condicionando, de modo estrito, o exercício, pelo Estado e por seus

agentes, da autoridade que lhes foi outorgada pelo ordenamento

normativo. Esse postulado, que rege a atuação do Poder Público,

confere substância e dá expressão a uma pauta de valores éticos, nos

quais se funda a própria ordem positiva do Estado.

É por essa razão que o princípio constitucional da

moralidade administrativa, ao impor limitações ao exercício do poder

estatal, legitima o controle de todos os atos do poder público que

transgridam os valores éticos que devem pautar o comportamento dos


órgãos e dos agentes governamentais, não importando em que instância

de poder eles se situem.

Na realidade - e especialmente a partir da Constituição

republicana de 1988 -, a estrita observância do postulado da

moralidade administrativa passou a qualificar-se como pressuposto de

validade dos atos que, fundados ou não em competência

discricionária, tenham emanado de autoridade ou órgãos do Poder

Público, consoante proclama autorizado magistério doutrinário

(MANOEL DE OLIVEIRA FRANCO SOBRINHO, "O Princípio Constitucional da

Moralidade Administrativa", 2a ed., 1993, Genesis; ALEXANDRE DE

MORAES, "Direito Constitucional", p. 284, item n. 2.3, 3a ed., 1998,

Atlas; LÚCIA VALLE FIGUEIREDO, "Curso de Direito Administrativo",

p. 132/134, 2ª ed., 1995, Malheiros; CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO,

"Curso de Direito Administrativo", p. 412/414, itens ns. 14/16,

4a ed., 1993, Malheiros; HELY LOPES MEIRELLES, "Direito Administrativo

Brasileiro", p. 83/85, 17ª ed., 1992, Malheiros; MARIA SYLVIA ZANELLA

DE PIETRO, "Discricionariedade Administrativa na Constituição de

1988", p. 116/118, item n. 2.5, 1991, Atlas, v.g.).

Cabe relembrar, neste ponto, Senhor Presidente, o alto

significado que o princípio da moralidade assume, em nosso sistema


constitucional, tal como esta Suprema Corte já teve o ensejo de

enfatizar:

"O PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA -


ENQUANTO VALOR CONSTITUCIONAL REVESTIDO DE CARÁTER
ÉTICO-JURÍDICO - CONDICIONA A LEGITIMIDADE E A VALIDADE
DOS ATOS ESTATAIS.
- A atividade estatal, qualquer que seja o domínio
institucional de sua incidência, está necessariamente
subordinada à observância de parâmetros ético-jurídicos
que se refletem na consagração constitucional do
princípio da moralidade administrativa. Esse postulado
fundamental, que
rege a atuação do Poder Público,
confere substância e dá expressão a uma pauta de
valores éticos sobre os quais se funda a ordem positiva
do Estado.
O princípio constitucional da moralidade
administrativa, ao impor limitações ao exercício do
poder estatal, legitima o controle jurisdicional de
todos os atos do Poder Público que transgridam os
valores éticos que devem pautar o comportamento dos
agentes e órgãos governamentais. (...)."
(RTJ 182/525-526, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno)

Assentadas tais premissas, Senhor Presidente, entendo

que a prática do nepotismo traduz a própria antítese da pauta de

valores cujo substrato constitucional repousa no postulado da

moralidade administrativa, que não tolera - porque incompatível com o

espírito republicano e com a essência da ordem democrática - o

exercício do poder "pro domo sua".


Esta Suprema Corte, ao reconhecer que a vedação à

prática do nepotismo incide sobre os Poderes Legislativo, Executivo

e Judiciário, independentemente de sua previsão em lei formal,

estendendo-se tal proibição a todos os órgãos estatais (qualquer que

seja a instância de poder em que se situem), reafirma a força

normativa da Constituição da República e preserva a supremacia

(formal e material) de que se revestem as normas e princípios

constitucionais, cuja integridade, eficácia e aplicabilidade, por

isso mesmo, hão de ser valorizadas em face de sua precedência, de

sua autoridade e de seu grau hierárquico.

Tenho para mim, Senhor Presidente, consideradas as

razões que venho de mencionar, que o entendimento ora exposto presta

efetiva reverência ao texto da Constituição Federal, revelando-se

fiel aos grandes princípios fundados na ética republicana e

consagrados na Carta Política do Brasil.

Não custa rememorar, neste ponto, tal como pude

acentuar, em voto que proferi no julgamento da ADI 1.521/RS, Rel.

Min. MARCO AURÉLIO (RTJ 173/424, 439), que a concepção republicana

de poder mostra-se absolutamente incompatível com qualquer prática

governamental tendente a restaurar a inaceitável teoria do Estado

patrimonial.
Sabemos que o Estado, no exercício das atividades que

lhe são inerentes, não pode ignorar os princípios essenciais, que,

derivando da constelação axiológica que confere substrato ético às

ações do Poder Público, proclamam que as funções governamentais, não

importa se no âmbito do Poder Executivo, no âmbito do Poder

Legislativo ou no domínio do Poder Judiciário, hão de ser exercidas

com estrita observância dos postulados da igualdade, da

impessoalidade e da moralidade administrativa.

Esses princípios, erigidos à condição de valores

fundamentais pela Carta Política, representam pauta de observância

necessária por parte dos órgãos estatais. Mais do que isso, Senhor

Presidente, tais postulados qualificam-se como diretrizes essenciais

que dão substância e significado à repulsa que busca fazer

prevalecer, no âmbito do aparelho de Estado, o sentido real da idéia

republicana, que não tolera práticas e costumes administrativos

tendentes a confundir o espaço público com a dimensão pessoal do

governante, em claro desvio de caráter ético-jurídico.

Como anteriormente já pude expor, entendo que a repulsa

desta Suprema Corte ao nepotismo permitirá obstar a formação de grupos

familiares cuja atuação - facilitada pelas nomeações em comissão ou por


designações para funções de confiança - acaba, virtualmente, por

patrimonializar o poder governamental, convertendo-o, em razão de uma

inadmissível inversão dos postulados republicanos, em verdadeira "res

domestica", degradando-o, assim, à condição subalterna de instrumento

de mera dominação do Estado, vocacionado, não a servir ao interesse

público e ao bem comum, mas, antes, a atuar como incompreensível e

inaceitável meio de satisfazer conveniências pessoais e de realizar

aspirações particulares.

A interpretação que ora se preconiza deriva da

necessidade mesma de consolidar-se a ordem democrática em nosso

País, justificando-se, plenamente, em face de seus altos propósitos.

Tenho para mim, analisada a questão sob essa

perspectiva, que se impõe fazer essencial distinção entre o espaço

público, de um lado, e o espaço privado, de outro, em ordem a obstar

que os indivíduos, mediante ilegítima apropriação, culminem por

incorporar, ao âmbito de seus interesses particulares, a esfera de

domínio institucional do Estado, marginalizando, como consequência

desse gesto de indevida patrimonialização, o concurso dos demais

cidadãos na edificação da "res publica".


Daí a reflexão doutrinária, impregnada de acentuado

componente filosófico, que examina o pensamento democrático à luz

das grandes dicotomias, como, por exemplo, aquela pertinente à

dualidade público/privado, subjacente à idéia mesma de que o

respeito, pelos indivíduos, aos limites que definem o domínio

público de atuação do Estado, separando-o, de modo nítido, do espaço

meramente privado, qualifica-se como pressuposto necessário ao

exercício da cidadania e do pluralismo político, que representam,

enquanto categorias essenciais que são (pois dão ênfase à prática da

igualdade, do diálogo, da tolerância e da liberdade), alguns dos

fundamentos em que se estrutura, em nosso sistema institucional, o

Estado republicano e democrático (CF, art. 1º, incisos II e V).

Cabe preservar, desse modo, as relações que os

conceitos d
e espaço público e de espaço privado guardam entre si,

para que tais noções não se deformem nem provoquem a subversão dos

fins ético-jurídicos visados pelo legislador constituinte.

A consagração do nepotismo na esfera institucional do

poder político não pode ser tolerada, sob pena de o processo de

governo - que há de ser impessoal, transparente e fundado em bases

éticas - ser conduzido a verdadeiro retrocesso histórico, o que


constituirá, na perspectiva da atualização e modernização do

aparelho de Estado, situação de todo inaceitável.

O fato é um só, Senhor Presidente: quem tem o poder e a

força do Estado, em suas mãos, não tem o direito de exercer, em seu

próprio benefício, a autoridade que lhe é conferida pelas leis da

República. O nepotismo, além de refletir um gesto ilegítimo de

dominação patrimonial do Estado, desrespeita os postulados

republicanos da igualdade, da impessoalidade e da moralidade

administrativa. E esta Suprema Corte, Senhor Presidente, não pode

permanecer indiferente a tão graves transgressões da ordem

constitucional.

Concluo o meu voto. E, ao fazê-lo, reafirmo o meu

entendimento de que o nepotismo se mostra incompatível com o sistema

constitucional, impondo-se, por isso mesmo, a vedação de sua prática

a todos os Poderes da República e a todos os níveis em que se

estrutura o Estado Federal brasileiro.

Torna-se necessário banir, definitivamente, de nossos

costumes administrativos, a prática inaceitável do nepotismo,

porque, além de infringente da ética republicana, transgride os


postulados constitucionais da igualdade, da impessoalidade, da

transparência e da moralidade administrativa.

Sendo assim, Senhor Presidente, e consideradas as

razões expostas, acompanho o doutíssimo voto proferido pelo eminente

Relator.

É o meu voto.
RECURSO EXTRAORDINÁRIO 579.951-4 RIO GRANDE DO NORTE

VOTO

O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES (PRESIDENTE) -

Senhores Ministros, também acompanho a manifestação do eminente

Ministro-Relator, agora com os ajustes devidos, e saúdo o brilhante

voto por ele proferido.

Também eu já tinha intuído a necessidade de uma

ressalva em relação às funções de natureza eminentemente política. É

tradição mundial - a situação de John e Bob Kennedy - e, no próprio

plano nacional, muitas vezes parentes ou irmãos fazem carreiras

paralelas e estabelecem um plano eventual de cooperação - temos

governadores e secretários de Estado -, sem que haja qualquer

conotação de nepotismo. Parece-me que devemos, então, ter cuidado

quanto à fixação. Mas isso não foi objeto de maior consideração. A

vinculação há de ser com o titular ou titulares do cargo de que se

cuida na relação com a Administração.

Com essas brevíssimas observações e com notas que

farei juntar, acompanho o voto do eminente Relator e os dos demais

Ministros.
PLENÁRIO
EXTRATO DE ATA

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 579.951-4


PROCED. : RIO GRANDE DO NORTE
RELATOR : MIN. RICARDO LEWANDOWSKI
RECTE.(S) : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE
RECDO.(A/S) : MUNICÍPIO DE ÁGUA NOVA E OUTRO(A/S)
ADV.(A/S) : FRANCISCO DE ASSIS CORREIA RÊGO E OUTRO(A/S)

Decisão: O Tribunal, por unanimidade, conheceu e deu parcial


provimento ao recurso extraordinário, nos termos do voto do
Relator. Votou o Presidente, Ministro Gilmar Mendes. Ausentes,
justificadamente, a Senhora Ministra Ellen Gracie e o Senhor
Ministro Joaquim Barbosa. Plenário, 20.08,2008

Presidência do Senhor Ministro Gilmar Mendes. Presentes à


sessão os Senhores Ministros Celso de Mello, Marco Aurélio, Cezar
Peluso, Carlos Britto, Eros Grau, Ricardo Lewandowski, Cármen
Lúcia e Menezes Direito.

Procurador-Geral da República, Dr. Antônio Fernando Barros e


Silva de Souza.

Luiz Tomimatsu
Secretário

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