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SAVANNAH BAY

MARGUERITE DURAS
Não sabes mais que és, quem foste, sabes que representaste, não sabes mais o que
representaste, o que representas; representas, sabes que tens que representar, não sabes mais o
quê, representas. Nem quais são teus papéis, nem quais os teus filhos vivos ou mortos. Nem quais
são teus papéis, nem quais os teus filhos vivos ou mortos. Nem quais são os lugares, os palcos, as
capitais, os continentes onde gritaste a paixão dos amantes. Salvo que a platéia pagou e que o
espetáculo lhe é devido.
Você é atriz de teatro, o apogeu da idade do mundo, sua realização, a imensidão de seu
último parto.
Esqueceste tudo salvo Savannah, Savannah Bay.
Savannah Bay é você.
M.D.

A mulher jovem: Tem entre vinte e trinta anos. Ama Madeleine da mesma maneira como
amaria o filho, rigorosamente da mesma maneira. Madeleine, por sua parte, consentiria nesse amor
da mesma maneira que uma criança.
Madeleine: Eu a vejo de preferência vestida de negro, salvo o vestido experimentado, que
vejo branco, floreado de amarelo-claro.
O Papel da personagem chamada Madeleine em Savannah Bay deverá ser representado
apenas por uma atriz no apogeu da idade.
A peça Savannah Bay foi concebida e escrita em virtude desse apogeu.
Nenhuma atriz jovem pode representar o papel de Madeleine em Savannah Bay.

(NO PALCO, DOIS LUGARES, UM DEPOIS DO OUTRO: UMA ESPÉCIE DE SALETA


ÍNTIMA À ESQUERDA, UM POUCO DISFARÇADA, E NO MEIO DO PALCO UMA MESA
E TRÊS CADEIRAS.
NÃO HÁ NADA NAS PAREDES. HÁ AS CORTINAS DO TEATRO.
NUMA DAS CADEIRAS HÁ UM VESTIDO FLOREADO, ABERTO.
O PALCO ESTÁ ILUMINADO COMO A PLATÉIA. LUZ MORNA QUE LEMBRA A DE UM
HALL DE HOTEL À NOITE.
É COM ESSA LUZ QUE MADELEINE ENTRA. ANDA EM DIREÇÃO AO CENTRO DO
PALCO, DA MESA E DAS CADEIRAS. SENTA-SE NA QUE ESTÁ MAIS À VISTA DA
PLATÉIA.
ASSIM QUE APARECE, ENTRA COM ELA O BARULHO DE UM RUMOR DE VOZES
LONGÍNQUAS QUE VEM DE DETRÁS DAS CORTINAS.
QUANDO SENTA, É ILUMINADA: ELA, O CENTRO DO MUNDO. A LUZ AUMENTA
SOBRE ELA E DEPOIS PÁRA. O LUGAR ESTÁ PRONTO PARA O ESPETÁCULO. O
CENÁRIO ESTÁ NUMA PENUMBRA RELATIVA. SÓ MADELEINE ESTÁ SOB LUZ
TEATRAL.
ELA ESTÁ COLOCADA OBLIQUAMENTE DIANTE DO PÚBLICO. CALADA. SEMPRE O
BARULHO DE VOZES DETRÁS DAS CORTINAS DO TEATRO DO LADO DO CANTINHO
ACONCHEGANTE. SÃO VOZES JOVENS, NATURAIS, DE UMA MOÇA E DE UM HOMEM
OVEM E POSSIVELMENTE TAMBÉM A DE UMA CRIANÇA. AS VOZES PODERIAM RIR
DE UMA FRASE (INAUDÍVEL) DA CRIANÇA, UMA VEZ.
MADELEINE ESCUTA ESSE RUMOR COM MUITA INTENSIDADE. NÃO TENTA DE
FORMA ALGUMA COMPREENDER O QUE SE DIZ. ESCUTA, COM MEDO, TUDO DO
BARULHO QUE AS VOZES FAZEM.
PASSA-SE ASSIM UM BOM TEMPO DURANTE O QUAL MADELEINE É ENTREGUE AO
PÚBLICO, PARA QUE ESTE A VEJA EM SUA SOLIDÃO, SEUS DEVANEIOS DE
CRIANÇA, NA REALIZAÇÃO DE SUA MAJESTADE.

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EIS ENTÃO QUE, SEMPRE DE DETRÁS DAS CORTINAS, UMA VOZ DE DISCO COM
ORQUESTRA COANTA LES MOTS D’AMOUR DE EDITH PIAF. É MUITO DISTANTE,
MUITO ABAFADO.
TOCA DA MESMA MANEIRA TODAS AS MEMÓRIAS.
MADELEINE PERMANECE DIANTE DO PÚBLICO DURANTE O TEMPO DO REFRÃO,
DOIS MINUTOS. DIR-SE-IA QUE ELA RECONHECE A VOZ DA CANTORA, MAS QUE SE
TRATA DE UMA RECORDAÇÃO FRAGMENTADA, QUE SE DESVANECE SEM CESSAR,
OBSTRUINDO-SE. MADELEINE SE LEVANTA COM O ESFORÇO DA MEMÓRIA, AO
MESMO TEMPO AFLITA E TRANQÜILA, FORA DO ALCANCE DE QUALQUER DOR, NO
CENTRO INDOLOR DA DOR.)
É ENTÃO QUE DA DIREITA DO PALCO ENTRA A SEGUNDA PERSONAGEM DA PEÇA,
UMA MULHER JOVEM. ELA SERÁ A MULHER JOVEM. NÃO TERÁ NOME.
A MULHER JOVEM VAI PARA PERTO DE MADELEINE. SENTA-SE NO CHÃO, A SEUS
PÉS. ELAS NÃO SE OLHAM, A MULHER JOVEM SORRI. MADELEINE PARECE SENTIR
MEDO. A MULHER JOVEM PÕE O ROSTO NOS JOELHOS DE MADELEINE.
MADELEINE APONTA PARA O FUNDO DO PALCO.)

MADELEINE
- O que é?
MULHER JOVEM
- Jean e Hélène. Eles trouxeram um disco para você. (Tempo) Já foram embora1.
MADELEINE
- Ah...
(A MULHER JOVEM ACARICIA AS MÃOS DE MADELEINE, BEIJA-AS. A VOZ DA
CANTORA CESSA.)

MULHER JOVEM
- Você reconhece essa canção?
MADELEINE (hesitação)
- Quer dizer... um pouco...
(TEMPO LONGO)
MULHER JOVEM
- Vou cantar, e você vai repetir a letra.
(MADELEINE NÃO RESPONDE. FAZ UMA LIGEIRA CARETA. A MULHER JOVEM
OLHA PARA ELA COM SERIEDADE.)
MULHER JOVEM
- Não quer?
MADELEINE
- Sim... quero sim...
(A MULHER JOVEM CONTINUA A OLHAR MADELEINE COM UMA SERIEDADE
INTRIGADA. MADELEINE PASSA A MÃO NO ROSTO DA MULHER JOVEM.)

MADELEINE
- Você é minha garotinha?
MULHER JOVEM
- Talvez.
MADELEINE (procura)
- Minha garotinha?... Minha filha?...
MULHER JOVEM
- Sim, talvez.
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No decorrer da peça haverá visitas de “Robert”, “Suzanne”, “Jean-Pierre”, “Claude” etc. , pessoas saídas dela que
passam por ali, mas que nunca serão vistas. Somente ouvidas ao longe.

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MADELEINE (procura)
- É isto mesmo?
MULHER JOVEM
- Sim. É isto mesmo.
(TEMPO. SILÊNCIO. MADELEINE FECHA OS OLHOS E ACARICIA A CABEÇA DA
MULHER JOVEM COMO UMA CEGA. A MULHER JOVEM DEIXA-SE ACARICIAR. E
ENTÃO MADELEINE SOLTA-LHE A CABEÇA, SUAS MÃOS CAEM, DESESPERADAS.)
MADELEINE (tempo)
- Eu queria que me deixassem em paz.
MULHER JOVEM
- Não.
(A MULHER JOVEM PEGA AS MÃOS DE MADELEINE E COLOCA-AS EM SUA PRÓPRIA
CABEÇA, PARA QUE ELA CONTINUE A ACARICIAR “A TERCEIRA AUSENTE”. AS
MÃOS DE MADELEINE TORNAM A CAIR DESESPERADAS. A MULHER JOVEM
DESISTE. MÃOS INERTES DAS DUAS MULHERES.
MULHER JOVEM
- Está entediada?
MADELEINE
- Não.
MULHER JOVEM
- Não fica nunca?
MADELEINE (simples)
- Nunca.
(SILÊNCIO. A MULHER JOVEM CANTAROLA LES MOTS D’AMOUR. DIR-SE-IA QUE
MADELEINE PROCURA VER DE ONDE VEM O SOM. O CANTO PÁRA. ENTÃO A
MULHER JOVEM COMEÇA A CANTAR A CANÇÃO DE MANEIRA ARRASTADA,
PRONUNCIANDO AS PALAVRAS DE MODO MUITO INTELIGÍVEL.)
MULHER JOVEM (cantando)
- É uma loucura o quanto eu te amo
O quando te amo às vezes
Às vezes eu gostaria de gritar...
MADELEINE (olha a Mulher Jovem como se fosse uma aluna e repete lentamente, sem pontuação
definida, como um ditado):
- É uma loucura o quanto eu te amo
O quanto eu te amo às vezes (Tempo)
Às vezes eu gostaria de gritar...
MULHER JOVEM
- Sim. (Silêncio) (Cantando – canto mais lento) Pois nunca amei
Nunca amei assim
Posso te jurar...
MADELEINE (cada vez mais atenta)
- Pois nunca amei
Nunca amei assim
Posso te jurar...
(TEMPO)
MULHER JOVEM
- Assim mesmo.
(TEMPO. A MULHER JOVEM SE CALA POR UM INSTANTE E DEPOIS RECOMEÇA A
CANTAR.)
MULHER JOVEM (cantando)
- Se você fosse embora
Fosse embora e me deixasse

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Acho que eu morreria
Que eu morreria de amor
Meu amor, meu amor...
(SILÊNCIO)
MADELEINE (fixa, estupefata pela violência das palavras)
- Não.
(SILÊNCIO)
MULHER JOVEM (no mesmo tom)
- Que eu morreria de amor
Meu amor, meu amor.
MADELEINE
- Não.
(SILÊNCIO. A MULHER JOVEM SE CALA. É MADELEINE QUE, CONTRITA, RETOMA.)
MADELEINE
- Meu amor, meu amor...
MULHER JOVEM (Corrige com imensa suavidade):
- Que eu morreria de amor
Meu amor, meu amor.
MADELEINE (repete, dócil)
- Que eu morreria de amor
Meu amor, meu amor.
(A MULHER JOVEM ESPERA, E, DEPOIS, MUITO LENTAMENTE, CANTA A CANÇÃO E
MADELEINE REPETE A LETRA. AS DUAS ESTÃO DIANTE DO PÚBLICO. AS DUAS
ÚLTIMAS FRASES DA CANÇÃO SÃO ESQUECIDAS POR MADELEINE, QUE AS ESCUTA
COM GRANDE INTENSIDADE QUANDO A MULHER JOVEM CANTA, MAS NÃO AS
REPETE.)
MULHER JOVEM
- Com certeza eu morreria
Morreria de amor
Meu amor, meu amor...
(A MULHER JOVEM SE VIRA PARA MADELEINE OUTRA VEZ ESTUPEFATA, COMO SE
ESSAS PALAVRAS FOSSEM DIRIGIDAS A ELA. TEMPO. DEPOIS A MULHER JOVEM
CANTA LENTA E MONOTONAMENTE ENQUANTO MADELEINE, NUM ESFORÇO DE
MEMÓRIA, DIZ A LETRA DE MODO MUITO INDECISO, LENTO, NÃO RITMADO.)
MADELEINE
- É uma loucura o que ele me dizia.
Palavras de amor tão lindas
E como ele me dizia...
Mas ele não se matou
Pois apesar de seu amor
Foi ele que me deixou...
Sem dizer palavra
E no entanto palavras
Havia tantas... (ela demora, repete duas vezes as palavras como se lembrasse de repente. a
mulher jovem espera.) Havia demais...
(A MULHER JOVEM REPETE O REFRÃO E MADELEINE A ESCUTA, SEMPRE COM
PAIXÃO. A MULHER JOVEM NÃO PRONUNCIA TODAS AS PALAVRAS.)
MULHER JOVEM (com a melodia da canção)
- É um loucura o quanto eu te amo... Lá lá lá lá lá... Meu amor, meu amor...
(MADELEINE AQUIESCE AO CANTO COMO SE A MULHER JOVEM ESTIVESSE
DIZENDO AS PALAVRAS: “SIM”, “É ISSO”. O CANTO TERMINA. MADELEINE FICA
COMO QUE ASSOMBRADA POR UMA LEMBRANÇA FRAGMENTÁRIA A PARTIR DO

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CANTO. O SILÊNCIO SE INSTALA ENTRE AS DUAS MULHERES. MADELEINE
PERMANECE NESSA ESPÉCIE DE DEVANEIO PROVOCADO PELA CANÇÃO. E A
MULHER JOVEM, PROFUNDAMENTE ATENTA A MADELEINE, ESPIANDO-A, POR
ASSIM DIZER, NÃO APENAS EM VIRTUDE DE SEU PRÓPRIO VÍNCULO, MAS
TAMBÉM DA PAIXÃO DE CONHECIMENTO EM QUE A MANTÉM. ELAS NÃO SE
OLHAM. CONTUDO SE FALAM.)
MULHER JOVEM (tom muito pensativo)
- É de você que eu mais gosto no mundo (Tempo) Mais que tudo. (Tempo) Mais que tudo
que vi. (Tempo) Mais que tudo que li. (Tempo) Mais que tudo que tenho. (Tempo) Mais que tudo.
MADELEINE (distraída, quase assustada)
- De mim...?
MULHER JOVEM
- De você.
MADELEINE
- Ah.
(SILÊNCIO. MADELEINE FRANZE A TESTA, DESCONFIADA COMO À PROXIMIDADE
DE UM PERIGO. TENTA ENTENDER, NÃO CONSEGUE, TORNA-SE QUASE
ENGRAÇADA POR NÃO ENTENDER.)
MADELEINE (voz baixa)
- Por que me dizer isso hoje...
MULHER JOVEM (tempo, prudência)
- O que é que tem hoje?
(MADELEINE OLHA PARA OUTRO LADO COMO QUE CONFUSA.)
MADELEINE
- Eu havia decidido pedir que não me visitassem mais tanto... bem... que viessem um
pouco menos...
(A MULHER JOVEM NÃO DÁ NENHUMA RESPOSTA.)
MADELEINE (sorriso de desculpas)
- Eu gostaria de ficar sozinha aqui. (Mostra o espaço à sua volta) Sozinha. (Violência
súbita, ela grita) Que ninguém mais viesse.
MULHER JOVEM (ternura)
- Sim.
MADELEINE (virada total, falso lamento, amor)
- Mas, e você... o que vai ser de você sem mim?...
(A MULHER JOVEM NÃO DÁ NENHUMA RESPOSTA.)
MADELEINE (fecha os olhos, com amor)
- Minha criança.. minha criança...minha beleza... não queria mais comer... não queria mais
viver... se comportava bem... não queria nada... nada...
(A MULHER JOVEM PARECE QUE GOSTARIA DE NÃO TER OUVIDO. MADELEINE
FALOU LONGE DELA NO TEMPO. SILÊNCIO.)
MULHER JOVEM (canta, como que em resposta, duas ou três frases da canção)
É uma loucura o quanto eu te amo
O quanto te amo às vezes
Às vezes gostaria de gritar...
(A MULHER JOVEM PÁRA. OLHA MADELEINE.)
MADELEINE
- Eu não morrerei. (Tempo) Sabe?
MULHER JOVEM (movimenta a cabeça, assentindo)
- Sim.
MADELEINE
- Se eu morresse, todo mundo morreria, então... isso não existe...
MULHER JOVEM

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- É verdade...
MADELEINE
- Não seria possível que todo mundo... todo mundo...
(SILÊNCIO. E DEPOIS DESVARIO.)
MULHER JOVEM
- Não, não seria possível.
MADELEINE
- Não.
(TEMPO)
MULHER JOVEM (Olha-a, desvairada)
- Sua voz ficou indecisa, surda.
MADELEINE
- Acontece, acontece, eu percebo a diferença.
MULHER JOVEM (terna)
- Você agora entende muito pouco do que lhe dizem.
MADELEINE
- Sim, muito pouco do que dizem. (Tempo) Às vezes nada.
MULHER JOVEM (Lenta)
- Você é assustadora...
MADELEINE
- Assustadora...
MULHER JOVEM
- Sim.
MADELEINE
- Sem dúvida. Não tenho mais medo da morte. (Tempo) Isso deve fazer alguma diferença.
(SILÊNCIO)
MULHER JOVEM (terna)
- Num determinado dia, numa determinada noite, eu a deixarei para sempre (mostra a sala).
Fecharei a porta, assim (gesto), e tudo estará acabado. Beijarei suas mãos. Fecharei a porta. Estará
tudo acabado.
(SILÊNCIO. A MULHER JOVEM FAZ O QUE DISSE, BEIJA AS MÃOS DE MADELEINE,
QUE PERMITE. A MULHER JOVEM PÁRA DE BEIJAR MADELEINE, OLHA PARA ELA.)
MADELEINE (apavorada)
- Alguém virá todas as noites para ver... E para acender as luzes...?
MULHER JOVEM
- Sim. (Tempo) E um dia não haverá mais luz. Não valerá mais a pena te luz.
(SILÊNCIO)
MADELEINE
- Sim, é isso. Alguém escutará. A respiração terá cessado.
(SILÊNCIO. MADELEINE OLHA A MULHER JOVEM)
MADELEINE
- E você, onde estará?
MULHER JOVEM
- Terei ido embora. Diferente para sempre. Freqüentando a sociedade. Para sempre sem
você.
(O MEDO PERPASSA O PALCO. MADELEINE OLHA À SUA VOLTA O VAZIO DEIXADO
PELA MULHER JOVEM.)
MADELEINE (tempo)
- Sim. (Tempo) A morte chegará de fora de mim.
MULHER JOVEM
- De muito longe. (Tempo) Você não saberá quando.
MADELEINE

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- Não, não saberei.
MULHER JOVEM
- Ela partiu no começo do mundo só pensando em você.
MADELEINE
- Sim. Inscrita desde o nascimento, antes do nascimento.
MULHER JOVEM
- Sim.
(TEMPO)
MADELEINE
- Como você sabe essas coisas?
MULHER JOVEM
- Eu vejo você. Eu sei.
(SILÊNCIO. OLHAR INTENSO DA MULHER JOVEM SOBRE MADELEINE.)
MULHER JOVEM
- Você pensa o tempo todo, o tempo todo.
MADELEINE (como que evidente)
- Sim.
MULHER JOVEM (violenta)
- Em quê? Pode dizer pelo menos uma vez?
MADELEINE (igualmente violenta)
- Bem, você mesma vai ter que investigar para saber em que se pensa.
(SILÊNCIO. A TERNURA VOLTA.)
MULHER JOVEM
- Chega com a velocidade da luz. Desaparece com a velocidade da luz. As palavras não
têm mais tempo de chegar.

MADELEINE
- Não, não têm.
MULHER JOVEM
- E a qualquer momento, é impossível prever.
MADELEINE
- Impossível, seria como prever a morte.
(SILÊNCIO. A MULHER JOVEM TORNA A COLOCAR A CABEÇA NOS JOELHOS DE
MADELEINE. A TERNURA VOLTA. E A DOR TAMBÉM. SILÊNCIO. TALVEZ O CANTO
AO LONGE, TALVEZ SÓ A MELODIA DO CANTO. FIM DO CANTO. SILÊNCIO. COM
ESSE SILÊNCIO COMEÇA O SEGUNDO PERÍODO DA PEÇA.)
MULHER JOVEM
- Vamos experimentar seu vestido floreado?
MADELEINE
- Sim... sim... é uma idéia...
(A MULHER JOVEM LEVANTA-SE LENTAMENTE DOS JOELHOS DE MADELEINE.
MADELEINE LEVANTA POR SUA VEZ. ESTÁ COMO QUE UM POUCO CHATEADA
PELO ESFORÇO DE EXPERIMENTAR O VESTIDO, MAS CONCORDA. A MULHER
JOVEM TIRA-LHE O VESTIDO DE CENA E VESTE-LHE O VESTIDO FLOREADO (QUE
ESTAVA ALI, ABERTO NUMA CADEIRA). MADELEINE, UMA VEZ COM O VESTIDO
FLOREADO, VIRA-SE PARA UM ESPELHO IMAGINÁRIO E SE OLHA. ENTRA ASSIM
DE REPENTE NUMA ZONA DE LUZ VIOLENTA REFLETIDA, DIR-SE-IA, POR UM
ESPELHO. NÃO SE VÊ ESSE ESPELHO. UM REFLETOR DIRIGE O FOCO SOBRE O
CORPO DE MADELEINE MAS ESSE ESPELHO NUNCA SERÁ VISTO. SOB A LUZ,
MADELEINE SE OLHA. A MULHER JOVEM CHEGA, ENTRA NO REFLEXO E TAMBÉM
OLHA NA DIREÇÃO DO ESPELHO O CORPO REFLETIDO DE MADELEINE. OLHARES
NA MESMA DIREÇÃO. SILÊNCIO. HÁ ASSIM NA PEÇA LONGOS MOMENTOS DE UM

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SILÊNCIO QUE SE PODERIA DIZER “DISTRAÍDO” DURANTE O QUAL AS DUAS
MULHERES ESTARIAM À PROCURA DO SENTIDO DO QUE ESTÁ EM CURSO NO
PALCO, INOCENTEMENTE, SEM FAZER DE PROPÓSITO. DURANTE ESSES
SILÊNCIOS, OUTRAS PESSOAS PASSARÃO POR TRÁS DA CORTINA, E SEU RUMOR
ALERTARÁ MADELEINE. – MAIS UMA VEZ O PUNHADO DE PARENTES. TEMPO. A
MULHER JOVEM ESCUTA.)
MULHER JOVEM
- É Jean-Marie, ele ia passar por aqui como pequenos Gilbert. Jacques deve ter-lhe dito que
eu não estava em casa.
MADELEINE (perdida)
- Está bem... está bem...
(AS PESSOAS PASSARAM. SILÊNCIO DE NOVO. DURANTE ESSE SILÊNCIO, A
MULHER JOVEM OLHA MADELEINE COM INSISTÊNCIA.)
MULHER JOVEM (claramente)
- Diga...
MADELEINE (como que descobrindo)
- Bem... eu era... eu era atriz. Era o que eu fazia. Atriz.
(SILÊNCIO. DEPOIS, AS PALAVRAS.)
MULHER JOVEM
- Atriz de teatro.
MADELEINE
- Sim.
MULHER JOVEM (Tempo)
- Nada mais.
MADELEINE (tempo)
- Nada.
(SILÊNCIO)
MULHER JOVEM
- Conta de novo.
MADELEINE (calma)
- De novo.
MULHER JOVEM
- Sim.
MADELEINE
- Todos os dias você quer essa história.
MULHER JOVEM
- Sim.
MADELEINE
- De tanto contar, todos os dias, eu me confundo nas datas... nas pessoas... nos lugares...
(RISOS DAS DUAS MULHERES)
MULHER JOVEM
- Você se engana cada vez mais.

MADELEINE
- É isso também que você quer?
MULHER JOVEM (riso)
- Sim. Nada além de você me agrada.
(A MULHER JOVEM RI. MADELEINE TAMBÉM. AS DUAS RIEM SEM DIZER PALAVRA,
LONGAMENTE, MADELEINE, MADELEINE RI COM CERTA INQUIETAÇÃO, NÃO TEM
CERTEZA DE ESTAR RINDO DA COISA CERTA, ESTÁ UM POUCO INSEGURA,
ENQUANTO A MULHER JOVEM RI SEM RESERVAS. O RISO SE APAGA. SILÊNCIO.
MADELEINE TORNA A SENTAR-SE. A MULHER JOVEM SE DEITA AOS PÉS DE

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MADELEINE, FECHA OS OLHOS. TRATA-SE DE UM RITUAL HABITUAL DAS DUAS, E
QUE SE REFERE A UM ACONTECIMENTO ESSENCIAL DE SUA VIDA PASSADA.
MADELEINE TERIA CONHECIDO ESSE ACONTECIMENTO. A MULHER JOVEM NÃO.
É PROVÁVEL QUE O NASCIMENTO DA MULHER JOVEM COINCIDA DE MANEIRA
DRAMÁTICA COM ESSE ACONTECIMENTO, MAS NÃO PODEMOS AFIRMÁ-LO AQUI
NADA É CERTO, TUDO SE BASEIA NA DETERIORAÇÃO DA MEMÓRIA DE
MADELEINE, NAQUELE LUGAR INABORDÁVEL, INSONDÁVEL, DE UM PASSADO
COMUM À MULHER JOVEM E A MADELEINE. UMA É JOVEM DEMAIS PARA
LEMBRAR, A OUTRA TEM IDADE DEMAIS PARA SEPARAR ESSE PASSADO DE SUA
REPRESENTAÇÃO. A MULHER JOVEM CONFIA NA LOUCURA MOMENTÂNEA DE
MADELEINE. É A PARTIR DA MEMÓRIA FALHA DE MADELEINE QUE ELA
CONSTRÓI AS LEMBRANÇAS DE SUA INFÂNCIA, DE SEU NASCIMENTO. O TEATRO
COMEÇA, DISTANTE, DOLOROSO.)
MULHER JOVEM
- Era uma grande pedra branca?...
MADELEINE
- Sim, é isso, uma grande pedra branca... Não se pode falar disso.
(LENTIDÃO)
MULHER JOVEM
- Era verão.
MADELEINE
- Era verão à beira-mar.
MULHER JOVEM
- Você não tem mais certeza de anda.
MADELEINE
- De quase nada. (Tempo) Da pedra branca, tenho certeza.
(SILÊNCIO)
MADELEINE (grita)
- Me deixa em paz...
MULHER JOVEM
- Por favor.
MADELEINE (grita)
- Não...
(SILÊNCIO. DEPOIS MADELEINE FALA DA LENDA, A MULHER JOVEM SE REVEZA
COM ELA.
MADELEINE
- Eles tinham se conhecido ali, naquele lugar, no lugar daquela grande forma plana,
naquela pedra branca no meio do mar...
MULHER JOVEM (repete os relatos de Madeleine)
- ... a pedra estava à flor da água, a onda a cobria de água fresca e depois o sol voltava, e
em alguns segundos a tornava infernal, novamente em fogo; era verão. Ela era muito jovem, recém-
saída do colégio. Nadava até muito longe. Nunca se sabia. Nunca. Nunca se sabia se voltaria. Havia
momentos... teria sido possível pensar que não... durante alguns minutos...que ela jamais voltaria.
(Tempo) Ela voltava. (Tempo) Eles tinham se conhecido ali. Ele a havia visto deitada, sorridente,
periodicamente coberta pela águas da onda... e depois a vira jogar-se no mar e se afastar... (Tempo)
Ela furou o mar com o corpo e desapareceu no buraco d’água. O mar tornou a fechar-se. até onde a
vista alcançava, só o que se via era a superfície nua do mar, ela havia se tornado impossível de
encontrar, inventada. Então de repente ele se levantou na pedra branca. Chamou. Um grito. Não o
nome. Um grito. (Tempo) E com esse grito ela voltou. Do fim do horizonte, ela, um ponto que se
desloca. (Tempo) Foi quando ele a viu voltar... ele sorriu... ela sorriu, e aquele sorriso...
MADELEINE (desvairada)

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- ... aquele sorriso, aquele sorriso.. teria podido fazer com que se acreditasse que... uma
vez... mesmo durante um momento muito curto... como se fosse possível...q eu se poderia amar.
(SILÊNCIO. MADELEINE PÁRA, CONFUSA, COMO SE TIVESSE OUVIDO O QUE
ACABARA DE DIZER DITO POR OUTRA. A MULHER JOVEM TAMBÉM ESCUTOU O
RELATO. A MULHER JOVEM BAIXA A CABEÇA COM UMA GRANDE EMOÇÃO QUE
TENTA DISSIMULAR. SILÊNCIO.)
MADELEINE (tímida)
- Me enganei?
MULHER JOVEM (ternura, gesto: dá no mesmo)
- Dá no mesmo.
MADELEINE
- Acho que era em Montpellier em 1930-1935. Teatro da cidade. O autor era desconhecido.
Francês, creio.
MULHER JOVEM
- Não.
MADELEINE
- Ah. bem, nesse caso devia ser aquele senhor, aquele avô, sabe, não? Quando estávamos
noivos...
MULHER JOVEM
- Você acha...
MADELEINE (duvidando)
- Então era aquele amigo?
MULHER JOVEM
- Não. O amigo foi antes. Também não era meu avô.
MADELEINE (tempo)
- Ah. (Tempo) É possível, veja... com todos aqueles textos...decorar tudo... tão...
MULHER JOVEM (voz baixa, quase inaudível)
- Sim. (Tempo) Você se lembra?
MADELEINE
- De tudo. Sim... totalmente. De tudo (gesto) De tudo... mas de quê?... isso... (gesto: eu não
sei mais)
MULHER JOVEM
- Talvez também... não fosse mais você.
MADELEINE
- Eu devo ter-me enganado de pessoa então...
MULHER JOVEM
- Sim.
MADELEINE
- Sim.
MULHER JOVEM
- Não era num teatro.
MADELEINE
- Era sim. Também era num teatro, pois durante aqueles anos, e nos anos seguintes, todas
as noites eu estava no palco dos teatros. (Tempo) Podia parecer que eu representava diferentes
coisas, mas na verdade só representava aquilo; perpassando tudo, eu representava a história da
Pedra Branca. Eu sempre esbarrava nisso.
MULHER JOVEM
- Sim.

MADELEINE
- Está entendendo um pouco?
MULHER JOVEM

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- Sim (Tempo) Você está fazendo essa encenação de propósito?
MADELEINE
- Estou.
MULHER JOVEM
- Você está mentindo.
MADELEINE
- Não.
MULHER JOVEM
- Meu amor, meu tesouro adorado.
MADELEINE
- Sim.
(SILÊNCIO. BAIXANDO A VISTA, MADELEINE SE CALA. ESTÁ AO MESMO TEMPO
VERDADEIRA E FALSA, ALARMADO E CALMA. FALA.)
MADELEINE
- Lembro-me de alguma coisa... sim... sim... mas está escondida. Não sei mais do que me
lembro, nem quem era, nem quando, mas está aqui... (aponta a cabeça)
(SILÊNCIO PROLONGADO. DEPOIS O RELATO COMEÇA.)
MULHER JOVEM
- Uma grande pedra branca...
MADELEINE
- Sim. É isso, uma grande pedra branca. Não se pode falar disso.
(TEMPO)
MULHER JOVEM
- Podemos falar de outra coisa.
MADELEINE
- É. Podemos falar de outra coisa. Do quê?
MULHER JOVEM
- Não sei do quê. Fale-me de outra coisa.

MADELEINE
- Sim.
(SILÊNCIO. ELAS SE OLHAM.)
MULHER JOVEM
- Jamais vou deixar você.
(A MULHER JOVEM ABRAÇA MADELEINE. ENTÃO, EM SEUS BRAÇOS, MADELEINE
FALA., SUPÕE-SE QUE INVENTA. A MULHER JOVEM A APERTA CONTRA SI PARA
IMPEDI-LA DE SOFRER, COMO SE FAZ ÀS VEZES COM UMA CRIANÇA ASSUSTADA.
MADELEINE FALA.
MADELEINE (muito lenta e ao mesmo tempo confusa)
- Nunca se sabia... Ninguém, ninguém jamais sabia... Nunca se tinha certeza absoluta...
Não se podia acreditar nunca por completo que ela consentiria em continuar a viver... Que ela nos
permitiria vê-la novamente... Ouvi-la outra vez... Esperar que mais uma vez ela se dispusesse a
voltar do mar...
MULHER JOVEM
- E isso desde a infância. (Tempo) É o que se diz: desde a primeira infância, ela não
mudara nunca.

MADELEINE
- Nunca.
(TEMPO LONGO. A HISTÓRIA RECUPERA O FÔLEGO. A MULHER JOVEM SOLTA
MADELEINE, AFASTA-SE DELA, DEIXA-A. VAI FALAR, POR SUA VEZ. DURANTE
TODO O RELATO DA MULHER JOVEM, MADELEINE NÃO BAIXA A VISTA. FICARÁ

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ASSIM, FIXA, DECIDIDA A NÃO DEIXAR TRANSPARECER NENHUM SINAL DE DOR.
NÃO SE DEVERIA MAIS SABER, A ESSA ALTURA, ONDE ESTÁ A ENCENAÇÃO. AO
QUE PARECE, ESTÁ INTEIRAMENTE APENAS NO “JOGO” DAS DUAS MULHERES,
MAS TOTALMENTE EXCLUÍDA DO AMOR MUITO FORTE QUE AS UNE ATRAVÉS DA
TERCEIRA, AUSENTE, MORTA SEM DÚVIDA, QUE É SEM DÚVIDA AQUELA DA
PEDRA BRANCA – AQUELA QUE É, ENTRE OS FILHOS DE MADELEINE, A MÃE DA
MULHER JOVEM.2)
MULHER JOVEM
- O que diz a história?
MADELEINE
- Que quando ela ria era possível acreditar que estava presente, e que estaria outra vez, e
outra mais.

MULHER JOVEM
- Mas alguns dizem que já se pressentia a morte naquele riso leve, fácil,
que inundava o espaço, que o invadia como se fosse o ar. (Tempo) Nem todo mundo concorda com
isto.
(SILÊNCIO)
MADELEINE
- Ela estava com um maiô preto, muito esbelta.
MULHER JOVEM
- Muito loura?
MADELEINE
- Não sei mais, também não sei a cor de seus olhos.
MULHER JOVEM
- Ele berrava que queria tornar a ver aquela moça de maio preto.
MADELEINE
- Sim.
(SILÊNCIO)
MULHER JOVEM
- Ela voltou com certa dificuldade, esbelta demais para a água espessa, o rosto estirado na
direção dele, e lhe sorriu com um sorriso extenuado e súplice – uma súplica que devia pressagiar o
desenrolar da história. Ele lhe sorriu em troca, e aquele sorriso que deram um ao outro poderia nos
fazer crer que eles podiam, aqueles dois mesmo que por um momento curto como aquele, entende,
aqueles dois teriam podido, como se isso fosse possível, eles teriam podido morrer de amor.
(SILÊNCIO.)
MADELEINE
- Era um dia muito quente. Estávamos na canícula. Lembro, o teatro estava cheio. Não sei
mais quando nem onde. Era numa grande capital. Eu estava no auge do sucesso. Não se podia
representar o mar. Então eu contava a história, como ele era azul, pesado.
(SILÊNCIO)
MULHER JOVEM
- Não é exatamente a mesma história?
MADELEINE
- Não exatamente. O mar também era azul. Mas a pedra branca não existia. Era um terraço
construído à beira-mar.
(TEMPO)
MULHER JOVEM
- Mas você estava dizendo... Ela sorriu para ele com um sorriso extenuado...
MADELEINE
- Sim.
2
Pessoalmente , sou partidária dessa proposta.

13
MULHER JOVEM
- E ele também sorria?
MADELEINE
- Sim, ele também, para ela e para mim. Entre ela e ele, entre ele e eu havia aquele espaço
do mar pesado que sustentava os corpos, muito profundo e muito azul.
MULHER JOVEM
- Então, depois, ele avançava até a beira da água, com os braços estendidos para você.
MADELEINE
- Sim. Ele estava com a pele ardendo, a pele estalava quando ele a puxava pelas mãos,
quando ele a tirava do mar. Depois os beijos... os beijos...
MULHER JOVEM
- Os beijos, apesar de ele não a conhecer, de não saber seu nome...
MADELEINE
- No teatro, o nome era diferente. Por pudor, acho, ou porque aconteceu assim, os nomes
eram diferentes.
(A MULHER JOVEM SE CALA. ELAS NÃO SE FALAM MAIS. A MULHER JOVEM VOLTA
ATÉ ONDE ESTÁ MADELEINE, PUXA-LHE O VESTIDO FLOREADO PARA BAIXO, FAZ
COMO UMA CAMAREIRA DE TEATRO. MADELEINE FECHOU OS OLHOS EM
“BEIJOS” E DEPOIS SE OLHA NO ESPELHO. SEUS OLHARES SE ENCONTRAM. ELAS
SE FALAM ASSIM, UNIDAS NO REFLEXO DO ESPELHO.)
MADELEINE
- Um instante como aquele não pode acontecer duas vezes.
MULHER JOVEM
- Pode sim.
MADELEINE
- Ah.
(A MULHER JOVEM OLHA O VESTIDO, SE AFASTA, SAI DO FOCO DE LUZ.
MADELEINE GIRA SOBRE SI MESMA LENTAMENTE, COMO NUMA PROVA DE
ROUPA. SILÊNCIO. DURANTE O MOVIMENTO DE MADELEINE, A MULHER JOVEM
FALA.)

MULHER JOVEM
- Ele teria voltado pelos caminho que margeava o rio, em torno do meio-dia, quando o
calor é mais forte. E a teria visto já na embocadura do rio ao descortinar o mar, no lugar branco da
pedra; ele teria visto contra o branco da pedra aquela pequena forma contornada de preto que o
movimento da onda cobria regularmente.
MADELEINE
- Ele teria chegado perto dela, ela o teria visto no último minuto, quando ele já subira na
pedra. Ele a olharia por muito tempo e depois expressaria seu assombro de vê-la ali, naquele lugar
do mundo, em cima daquela pedra branca, tão longe.
MULHER JOVEM (lentidão)
- Ele teria dito certas palavras que ela devia estar esperando havia já alguns anos.
MADELEINE
- Talvez desde a infância, sem saber quais. Eles teriam saído juntos da pedra branca,
lentamente, e ele lhe teria falado dela.
(ELAS FALAM COMO OUTRAS PESSOAS, COMO OS AMANTES TERIAM FALADO.)
MADELEINE (tempo)
- “Você não está cansada demais?”
MULHER JOVEM
- Você nada até tão longe. (Tempo) Hoje de manhã, por exemplo.” “Cuidado com o sol,
aqui ele é terrível, você parece não saber.” Ela diz: “Estou acostumada com o mar.” Ele diz: “Não.

14
Isto nunca é possível.” Ela diz que é verdade. (Tempo) Ele diz: “Não é que você seja bonita. Não
sei olhar para você. (Tempo) Trata-se de outra coisa mais misteriosa, mais terrível, não sei o que é.”
MADELEINE
- Ela sorriria com aquele riso claro e louco, louco de infância. E diria: “Não sei o que é,
não sei do que você está falando, nunca estive tão perto de um homem. Tenho dezesseis anos.”
MULHER JOVEM
- Ele fecharia os olhos para não vê-la mais, nadaria depressa para perdê-la. E depois
voltaria: “Voltei”. Então ela teria dito: “Se você quiser, posso me prestar a você. Se lhe agrada, eu
faço. Tenho idade de fazer e aqui, olhe, não há ninguém para ver, chegamos à embocadura do rio
Magra.”
(ELAS FALAM EM LUGAR E EM NOME DE OUTRAS PESSOAS, SEM SE OLHAR, COM
TAL PUDOR E CONTENÇÃO QUE É COMO SE SE TIVESSEM TORNADO ESTRANHAS
UMA À OUTRA.)
MADELEINE
- Ele teria perguntado por que ela desejava agradá-lo. Ela teria dito que era apenas maneira
de falar...
MULHER JOVEM
- ... que ainda não sabia nada a respeito do que estava propondo, portanto tinha falado
assim, ao acaso.
(TEMPO)
MADELEINE
- Ele teria dito que aceitava que ela se prestasse a ele. (Tempo) Teria dito que estava com
medo.
MULHER JOVEM
- Ele teria pedido que ela lhe dissesse do que ele estava com medo. Ela diria que tinha
guardado em si desde sempre como que um desejo esquisito, o desejo de morrer. Ela acrescentaria,
rindo, que dizia aquela palavra por não ter outra, mas que talvez ele tivesse adivinhado aquele
desejo através da falta de jeito do seu pedido. E que talvez fosse por isso que ele estava com medo.
MADELEINE
- Ele lhe teria perguntado se ela o havia escolhido por ele ter tido medo. Ela diria: “Sem
dúvida, sim, foi por isso, mas não tenho certeza, pois não sei nada sobre o que estou falando,
também não posso saber a natureza desse medo.”
MULHER JOVEM
- Ele teria dito: “No entanto, você está falando disso.” Ela teria sorrido de novo. Teria dito:
“Sim, estou falando desse medo, mas nem por isso posso dizer o desconhecido que esse medo
contém, sobretudo se sou a causa. Essa dificuldade faz parte dessa razão esquisita de que lhe falei..”
(SILÊNCIO.)
MULHER JOVEM
- Eles teriam chegado aos grandes pântanos do rio Magra. Aí estao o vento domar
amainava, empurrado pelo do rio. Seu perfume se desvanecia na insipidez das terras doces
depositadas por aquele rio. Terras do campo, espessas, mingau de húmus, ardente, onde qualquer
movimento se apagava. Havia juncos e ninhos de aves marinhas. Ele diz a ela que não conhecia
aquele lugar. Ela diz: “É aqui que não sinto mais medo de morrer.”
MADELEINE
- Ela lhe diz: “É aqui que eu sempre quis vir.” (Tempo) Ele não responde.
MULHER JOVEM
- Não.
(SILÊNCIO. FIM DA ESTROFE DE PIAF AO LONGE. ELAS OUVEM COMO OS
ESPECTADORES. SILÊNCIO. DEPOIS MADELEINE GIRA SOBRE SI MESMA NA LUZ
REFLETIDA NO ESPELHO. MOSTRA O VESTIDO.)

MULHER JOVEM (perdida em seus pensamentos)

15
- Como não pode acontecer nunca... Não pode acontecer duas vezes...
MULHER JOVEM
- Pode sim.
MADELEINE
- Ah. (Tempo) Vejo que não vale a pena insistir..
(A MULHER JOVEM CONTINUA A FALAR DO VESTIDO.)
MULHER JOVEM
- Está bom de comprimento.
MADELEINE (tempo)
- Por que você está fazendo um vestido para mim?
(NUM MOVIMENTO CONTÍNUO, MADELEINE GIRA MAIS UMA VEZ EM SILÊNCIO E
DEPOIS PÁRA.)
MULHER JOVEM
- Sempre faço vestidos para você.
MADELEINE
- É verdade (Tempo) Mas não tão floreados...
(A MULHER JOVEM BEIJA MADELEINE)
MULHER JOVEM (ternura infinita)
- Minha filhinha... minha filha... minha bonequinha... meu tesouro,,, minha querida... meu
amor... minha menina, minha menina.
(MADELEINE RECONHECE ESSAS PALAVRAS, FELIZ. MADELEINE RECOMEÇA A
GIRAR A PASSOS CURTOS PARA MOSTRAR O VESTIDO E FALA. FALA, REVEZANDO-
SE COM A MULHER JOVEM, TORNA A REPETIR O RELATO SOBRE AS ORIGENS
FAMILIARES INCONTROLÁVEIS E MISTERIOSAS DE SEU AMOR.)
MADELEINE
- É verdade, eram dias quentes. Muito claros. Muito, muito claros. Lembro como se fosse
hoje. A pedra branca é banhada pela onda quando os barcos passam, e está cheia de veranistas,
cheias de luz. E ele só vê aquela pequena forma adolescente que avança em direção à pedra.
(Tempo) Passou o tempo. Ela está com dezessete anos.
MULHER JOVEM
- Entre ela e ele há também o mar: achatado, plano como a pedra, sublime, abandonado
pela vida. Ela não faz esforço algum, o mar a leva, ela avança em direção a ele.
MADELEINE
- Dezessete anos. Um filho dele. Um filho encerrado dentro do corpo.
Ela nada com o filho acima das profundidades assustadoras da água azul. Ele se mantém à beira
dessa profundidade de seus corpos sobre a plataforma branca abandonada pela vida e sorri para eles,
os braços estendidos para ela como no primeiro dia. Ele está com medo.
MULHER JOVEM
- Desta vez ele grita o nome dela. Ele está com medo, continua com medo. Grita o nome
daquela mulher que se tornou definitivamente estranha a qualquer outro que não ele. E a puxa para
fora da água. Ela ri, grita que está com a pele queimando, que se queima na pele dele, e ele a puxa
pelos braços, como uma enguia, e ela cede e se deita na pedra, na matéria mineral, e pousa o corpo,
o coração e toda a pele sobre a pedra tão quente, branca como o nome. Ele lhe tira o maiô molhado.
Ela está nua. Ela está nua, e ele a cobre de beijos, de beijos, de beijos, por todo o corpo, no ventre,
no coração, no olhos. (Tempo) No ventre, o filho se mexe.
MULHER JOVEM
- No ventre, o filho ignora.
MADELEINE
- Sim.
MULHER JOVEM
- Alguém chora porque eles vão morrer de se amar.

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MADELEINE
- O filho viverá.
(FIM DO RELATO. MADELEINE SE CALA. A MULHER JOVEM TAMBÉM. TEMPO
LONGO – NÃO HESITAR QUANTO À DURAÇÃO DESTE TEMPO. ELAS ESTÃO FIXAS
NO “IMAGINÁRIO” DA CENA CONTADA. E ENTÃO, POUCO A POUCO, SE
MOVIMENTAM. MADELEINE RECOMEÇA A GIRAR SOBRE SI MESMA, MAS
LENTAMENTE. A MULHER JOVEM VIRA-SE PARA ELA. FALAM DO VESTIDO.)
MADELEINE (sorri)
- Sim. (Tempo) Este vestido é para os aniversários.
MULHER JOVEM
- O aniversário de cada um dos dias da tua vida.
MADELEINE
- Sim. Pois é.
(LENTIDÃO, LENTIDÃO PESADA)
MULHER JOVEM (transtornada, grave)
- Será que houve algum dia em que não aconteceu nada?
MADELEINE (num delírio claro e infinito)
- Sim (Tempo) Um dia choveu e o céu ficou cinzento, o ar, as árvores? A noite caiu muito
cedo?
MADELEINE
- Sim.
MULHER JOVEM
- Ninguém falava? (Tempo) Acenderam-se as luzes?
MADELEINE
- Sim.
MULHER JOVEM
- Quem tinha morrido?
MADELEINE (tempo)
- Não sei mais. Digamos – não sei mais quem. (Sorriso) Digamos que o vestido é para o
aniversário daquela morte.
MULHER JOVEM
- Está bem.
(SILÊNCIO. MADELEINE SE OLHA, APONTA O PRÓPRIO PESCOÇO. O GESTO
DEVERIA SER ASSUSTADOR.)
MADELEINE
- Eu gostaria de um babadinho no pescoço...aqui (gesto)
MULHER JOVEM
- Mais claro que o vestido, quem sabe?
MADELEINE (teatral de repente, engraçada)
- Sim, branco, como o branco amarelado das flores do vestido... é isso... mas se for tomar
muito tempo, a senhora sabe, Sra. Costureira, posso ficar sem isso... é um pouquinho para me fazer
diferente, entende; peço desculpas. Sra. Costureira. Por pedir esse babadinho, porque... na verdade...
(SORRISO DAS DUAS MULHERES, DO FUNDO DA DOR.)
MULHER JOVEM
- Olha, não é trabalho nenhum para mim colocar um babadinho no decote, Madame, não
incomoda nada, nada mesmo, muito pelo contrário, o fato de a senhora não concordar inteiramente
comigo mas ao mesmo tempo me considerar capaz de corrigir esse desacordo e de satisfazer seu
desejo do babado no decote me enche de alegria... é o contrário de incomodar... madame, acredite,
peço-lhe que acredite, fico feliz...
(SILÊNCIO. A MULHER JOVEM SE IMOBILIZA DE REPENTE. DESEJO VIOLENTO DE
APRENDER O INCOGNOSCÍVEL DO PASSADO ATRAVÉS DA VIDA DE MADELEINE,
ATRAVÉS DOS TEXTOS CONSAGRADOS. FRACASSO. VOZES DIFERENTES, AINDA

17
DOLORIDAS. FRACASSO. E DEPOIS, DE REPENTE, PRANTO. ELAS ESCONDEM O
ROSTO NAS MÃOS, CHORAM SEM PALAVRA. E DEPOIS SE ABRAÇAM,
DESCOMPOSTAS, E FICAM ABRAÇADAS ASSIM. A SEGUIR SE SEPARAM. E DEPOIS
SE OLHAM. E SE ENCONTRAM. SILÊNCIO. O TERCEIRO PERÍODO DA PEÇA É
ATINGIDO.)
MULHER JOVEM
- Quem tinha morrido naquele dia cinzento?
MADELEINE (mentira)
- Não sei mais.
MULHER JOVEM
- Uma moça da França ou da Alemanha central?
MADELEINE
- Talvez...
MULHER JOVEM (tempo, voz murmurada)
- Muito jovem?
MADELEINE
- Por que não? Dentre todas as outras, por que não?

MULHER JOVEM (voz murmurada)


- Por que não?
MADELEINE
- Sim. Entre as outras, ela.
MULHER JOVEM
- Eu vi as fotos, sim. Ela, tão pessoal, insubstituível, ela. (Gritando) Ela.
MADELEINE
- Por que não?
MULHER JOVEM
- Sim. (Tempo) Você sempre me falou de um certo dia sem sol. Dos postigos que haviam
sido fechados naquele dia daquela morte. Dos pântanos do rio Magra. Dos bosques à volta da casa.
De um homem que havia chamado durante três dias e três noites.
(SILÊNCIO DE MADELEINE)
MULHER JOVEM
- Vi uma foto das férias. Havia uma mulher jovem.
MADELEINE
- Sempre havia mulheres jovens nas fotos das férias.
(SILÊNCIO.)
MULHER JOVEM
- Eu me reconheci na foto das férias... a mulher jovem à direita de um homem louro, alto,
que estava segurando a mão dela...
MADELEINE
- Veja só...
MULHER JOVEM
- Pois é. Da última vez também havia mulher jovem nas fotos. (Tempo) Mas diferente.
Uma mulher jovem diferente. Era uma cena de teatro.
MADELEINE
- Tudo é possível. Ali era eu. A semelhança é tanta... a data não importa.
(SILÊNCIO. A MULHER JOVEM NÃO RESPONDE. OBSTINA-SE EM RECUSAR A
LEMBRANÇA QUE SE LHE OFERECE.)
MULHER JOVEM (súplice)
- Você sempre me falou de um certo dia muito longo, muito cinzento. Postigos que tinham
sido fechados. Dos pântanos, do rio. Daqueles bosques em torno da casa. Daquele homem que
chamava a morta.

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(SILÊNCIO)
MADELEINE
- É verdade, havia um pântano grande na embocadura do rio Magra.
(SILÊNCIO)
MULHER JOVEM
- E os gritos, também eram verdade?
MADELEINE
- Como se pode saber? Mas acho que sim, acho que alguém gritava na direção dos lagos.
(SILÊNCIO. MOMENTOS MUITO SOMBRIOS.)
MULHER JOVEM (voz baixa)
- Nunca se vira um amor assim?
MADELEINE
- Nunca.
(SILÊNCIO.)
MULHER JOVEM (grita)
- Um amor como? Você vai dizer...
MADELEINE (olha para ela)
- Não se pode dizer. Não se sabe dizer.
MULHER JOVEM (grito informe de desespero)
- Eu lhe suplico...
MADELEINE (lenta)
- Um amor de todos os momentos. (Tempo) Sem passado (Tempo) Sem futuro. (Tempo)
Fixo. (Tempo) Imutável.
MULHER JOVEM
- O sol saindo cada manhã do escuro, a cada noite, e eles, eles se amavam mais que tudo
no mundo, com um amor inteiro, mortal na monotonia do tempo.
(NÃO HÁ RESPOSTA DE MADELEINE.)
MULHER JOVEM
- Era isso que se dizia? Depois foi escrito num livro?
MADELEINE
- Sim, num filme também, acho.
(SILÊNCIO)
MULHER JOVEM
- A menininha tinha nascido...
MADELEINE (claramente)
- Sim. Pouco antes. Sobre esse ponto a lembrança é clara, luminosa. Pelo menos acho que a
lembrança é clara. Mas quem sabe? A não ser que esteja naquele livro que lhe dei, minha
pequenininha, quando você tinha quinze anos. Não sei mais.
MULHER JOVEM
- Não, pare, por favor. (Tempo) Vamos continuar: a existência da menininha não impediu a
morte.
MADELEINE
- Nada teria impedido. (Tempo) Ela saiu de seu leito de parida e foi para os lagos. Era
noite, e chovia, como tantas vezes acontece naquela região no fim de agosto.
(SILÊNCIO. A MULHER JOVEM ABRAÇA DE NOVO MADELEINE. PERMANECE
AGARRADA A ELA.)
MADELEINE (tempo)
- Eu queria ir embora.
MULHER JOVEM
- Não. Eu lhe imploro, fique só mais um pouquinho...
MADELEINE (tempo)
- Não sei mais nada sobre essa história.

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MULHER JOVEM
- Dá no mesmo.
(SILÊNCIO)
MULHER JOVEM (baixinho)
- O que foi?
MADELEINE (baixinho)
- Felicidade demais... talvez a criança fosse felicidade demais.
(SILÊNCIO)
MULHER JOVEM
- O homem que chamava a morta... na direção dos lagos...
MADELEINE
- Sim, é isso, era ele. (Tempo) Ninguém foi ver. (Tempo) Alguém deixara uma porta aberta
na copa. (Tempo) Ele poderia voltar. (Tempo. Lamento) Mas onde era isso?... não sei mais.

MULHER JOVEM
- Ele não sabia mais o caminho de volta a casa.
MADELEINE
- Talvez. Não sabíamos mais nada. não se sabia mais nada.
MULHER JOVEM
- Seu corpo nunca foi encontrado.
MADELEINE (tempo)
- Não sei mais muito bem.
MULHER JOVEM
- Mas o que é que você ainda sabe?
MADELEINE
- Que eles se amavam como eu nunca tinha visto. (Tempo) Que não é preciso sofrer.
MULHER JOVEM
- Nada pode contra esse sofrimento.
MADELEINE (tempo)
- Eu, eu não sofro mais.
(SILÊNCIO. MADELEINE LEVANTA-SE. DEPOIS, MUDANÇA BRUSCA DE MADELEINE,
QUE FICA ALEGRE.)
MADELEINE (subitamente clara)
- Bem, Madame, será um babadinho de organdi branco ou então nada.
MULHER JOVEM
- Está bem, Madame. Exatamente. A senhora tem razão. Sobretudo porque não custa, vai
ser feito ainda esta noite. (Tempo) Ficará pronto.
(SILÊNCIO.)
MADELEINE
- Pronto, por via das dúvidas.
MULHER JOVEM
- Sim. Por via das dúvidas.
MADELEINE (tempo)
- Pois é, é verdade, é o mais adequado.
MULHER JOVEM
- Sim.
(MADELEINE TIRA O VESTIDO FLOREADO. A MULHER JOVEM AJUDA. SILÊNCIO.
DEPOIS MADELEINE TORNA A VESTIR O VESTIDO DE CENA. DEPOIS ELAS
SORRIEM DE LEVE UMA PARA A OUTRA SEM PALAVRA. ENTÃO SE TRANQÜILIZAM.
REPOUSO.)
MULHER JOVEM (tempo)
- Então ninguém quis escrever essa peça para você?

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MADELEINE (tempo)
- Ninguém nunca quis. Não. Por motivos muito corriqueiros... Para não despertar a dor,
entende. E também porque eu não podia mais sair correndo para me atirar em seus braços...correr
para ir embora, que... (Mostra o próprio corpo, faz um gesto como se estivesse caindo, se
prostrando) ... Bem, entende...
MULHER JOVEM
- Teríamos ouvido uma canção....
MADELEINE
- Sim, o digo, aquele, você sabe qual é: “meu amor, meu amor.”
MULHER JOVEM
- Sim.
(TEMPO.)

MADELEINE
- A peça nunca será escrita. Então, é preferível morrer.
MULHER JOVEM
- É provável viver também.
MADELEINE
- Isso também seria uma idéia.
(SILÊNCIO)
MULHER JOVEM (tempo)
- Assim, é uma peça de teatro que não terá sido jamais encenada?
MADELEINE
- Jamais. (Tempo) Mas tenho que dizer isto algum dia, nunca se encena quase nada no
teatro... tudo é sempre como se... como se fosse possível...
MULHER JOVEM
- Sim...
MADELEINE
- Dizer... (Simplicidade sublime) “Madame, bom dia... o tempo que faz hoje daria vontade
de morrer de excesso de luz... do azul do céu...d e um amor tão... Bom dia...”
MULHER JOVEM
- “Bom dia, bom dia...”
(SILÊNCIO)
MULHER JOVEM
- Onde você o encontrava?
MADELEINE
- Eu não o encontrava. Ele já estava lá quando eu chegava.
MULHER JOVEM (mostra o teatro à sua volta)
- Num lugar como este aqui?...
MADELEINE (hesita)
- Mas aqui é um teatro.
MULHER JOVEM
- Eu queria dizer num lugar sem paredes, como um teatro...
MADELEINE
- Sim, é isso.
(SILÊNCIO)
MADELEINE
- Vamos descansar um pouco.
MULHER JOVEM
- Vamos.
(A MULHER JOVEM TORNA A SENTAR-SE AOS PÉS DE MADELEINE. AS DUAS
FECHAM OS OLHOS POR ALGUNS SEGUNDOS. COMO SE DURANTE AQUELES

21
INSTANTES ESTIVESSEM DORMINDO DIANTE DO PÚBLICO. PAZ. PESSOAS PASSAM
ATRÁS DAS CORTINAS. RUMOR HABITUAL, TRANQÜILO. MADELEINE E A MULHER
JOVEM CONTINUAM DE OLHOS FECHADOS. MADELEINE, COM OS OLHOS
FECHADOS, APONTA AS CORTINAS ATRÁS DE SI, SEMPRE SURPRESA COMO DA
PRIMEIRA VEZ.)
MADELEINE
- Quem é?
MULHER JOVEM
- Jacques, com amigos.
MADELEINE
- Ah.
(RUÍDO ATRÁS DAS CORTINAS DO PALCO, RUMOR QUE AUMENTA, SE AFASTA E
DESAPARECE.)
MULHER JOVEM
- Foram embora.
(IMOBILIDADE DAS DUAS MULHERES, DURANTE MUITO TEMPO. DEPOIS A
MULHER JOVEM CANTA O REFRÃO DA CANÇÃO, DIZENDO APENAS A METADE DAS
PALAVRAS.
MULHER JOVEM
- É uma loucura o quanto eu te amo
Lá...lá...lá...lá...
Às vezes eu gostaria de gritar
Pois nunca amei
Nunca amei assim
Posso te jurar
Se você fosse embora
Lá...lá..lá...lá...
..........................
Meu amor, meu amor.
(MADELEINE ACOMPANHA O CANTO SEMPRE COM A MESMA INTENSIDADE, COM A
MESMA SURPRESA ASSUSTADA, COMO SE O ESTIVESSE OUVINDO PELA PRIMEIRA
VEZ. A MULHER JOVEM ACABA DE CANTAR. LENTIDÃO DO DIÁLOGO.)
MADELEINE
- “Meu amor, meu amor”... (Tempo) Quem é que canta isso no disco?
MULHER JOVEM
- Uma cantora que já morreu.
MADELEINE
- Ah. (Tempo) Há quanto tempo?
(NUNCA SE SABE SE MADELEINE ESCONDE O QUE AINDA SABE, OU SE JÁ NÃO
SABE MAIS.
MULHER JOVEM
- Há uns quinze anos. (Tempo) O nome não significaria nada para você.
MADELEINE
- Parece que ela está aqui.
MULHER JOVEM
- E está. (Tempo) No rio Magra, quem cantava essa canção durante as férias?
(O SOFRIMENTO VOLTOU DE NOVO.)
MADELEINE
- Não sei mais.

MULHER JOVEM (murmurando)


- Ela.

22
MADELEINE (mentindo)
- Não sei mais.
(SILÊNCIO)
MADELEINE (mentindo)
- Não sei mais.
MULHER JOVEM (murmurando)
- Ela.
MADELEINE (mentindo)
- Não sei mais.
(SILÊNCIO)
MADELEINE (tempo, procura lembrar)
- E eu conheci essa que canta aí?
MULHER JOVEM
- Sem dúvida. (Tempo) Você esqueceu dela. (Tempo) Não está reconhecendo a voz?
MADELEINE
- Não reconheço mais nada. salvo você. (Tempo) Talvez, se você me dissesse o nome
dela...
MULHER JOVEM
- Não vou dizer.
MADELEINE
- E no entanto, na voz... já ouvi essa força... mas...
MULHER JOVEM
- É sua força. É a sua voz. É a mesma.
MADELEINE (surpresa)
- Veja só... É possível... (Tempo) Estranho,... é verdade isso que você está dizendo, que ela
está ali (gesto, mostra o lugar) Você não acha? (Tempo) Essa cantora se matou?
MULHER JOVEM (hesitante)
- Sim.
MADELEINE
- Não me surpreende. (Tempo) Através da força de sua voz adivinha-se outra força...

MULHER JOVEM
- A morte...
MADELEINE
- Sim, talvez. (Tempo) A morte. (Tempo) Eu saberia como querer. Durante meses me
aconteceu de morrer todas as noites no teatro. (Tempo) Foi na época de uma grande dor. Qualquer
que fosse a peça, aquele tempo todo a dor se introduzia no papel, e também representava, ela me
mostrava como se podia representar a partir de tudo, até disso, dessa dor tão terrível.
(SILÊNCIO. TERNURA.)
MULHER JOVEM
- Você se lembra?
MADELEINE (mentindo)
- Não.
MULHER JOVEM
- Você está mentindo.
MADELEINE
- Estou (Tempo) Como você poderia saber essas coisas, você é tão pequena.

MULHER JOVEM
- Sei por você. E já sei também por meu lado. Você me disse: a dor se oferece como uma
solução para a dor, como um segundo amor.
(TEMPO)

23
MADELEINE
- Sim, começa-se a duvidar do que aconteceu, de quem morreu, de quem continua vivo, de
que livro era, de que cidade, de quem sofre, de quem conhece a história, de quem a fez...
MULHER JOVEM (violenta)
- E de repente você grita e olha ela aqui, ela, a mortinha, num relâmpago... com o rostinho
debaixo da onda, sorrindo de contentamento e o coração explode por causa de uma abominável
verdade.
MADELEINE
- Sim, é aí que ela se mostra, no mesmo momento em que pensamos tê-la esquecido.
(Tempo) Dezessete anos. Nós nos abstemos de morrer por delicadeza. O teatro está cheio, a platéia
pagou, nós lhe devemos o espetáculo.
(SILÊNCIO MUITO DIFERENTE. A MULHER JOVEM FALA EM VOZ ALTA PARA TODO
MUNDO, QUASE COM INSOLÊNCIA.)

MULHER JOVEM
- Começamos a entender tudo. Coisas inacreditáveis: por exemplo, que ela está morta.
Morta. Coisas extenuantes. Que sua graça era a própria graça da morte. Que nunca há nada a
entender, de fora. Nunca. Em parte alguma.
(PREPARA-SE O QUARTO PERÍODO DA PEÇA. A MULHER JOVEM CANTA LES MOTS
D’AMOUR VIOLENTAMENTE, DE FRENTE PARA O PÚBLICO.)
MULHER JOVEM
- É uma loucura o quanto eu te amo
Lá...lá...lá...lá...
.........................
.........................
Meu amor, meu amor.
(SILÊNCIO. O QUARTO PERÍODO SERÁ CONFORME A REPRESENTAÇÃO TEATRAL
TRADICIONAL. NÃO PODERÁ HAVER MAIS ENGANO. HÁ UM INTERMÉDIO MUITO
CURTO DURANTE O QUAL AS DUAS MULHERES APROXIMAM A MESA E AS
CADEIRAS DO PÚBLICO E O ESPELHO SE PROJETA DE MODO MUITO BRILHANTE,
QUASE INCONVENIENTE, SOBRE O CONJUNTO FORMADO PELA MESA, AS
CADEIRAS, AS DUAS MULHERES. DEPOIS A MULHER JOVEM SE LEVANTA. ESTÁ DE
FRENTE PARA O PÚBLICO À ESQUERDA DE MADELEINE. MADELEINE OLHA PARA
ELA. NÃO SE SABE MUITO BEM O QUE ESTÁ SE PREPARANDO. MADELEINE ESTÁ
COMO QUE ABANDONADA PELA MULHER JOVEM. E ENTÃO A MULHER JOVEM
FALA E DEVE-SE ENTENDER DE IMEDIATO, PELO MODO COMO GIRA NUM PASSO
EM DIREÇÃO A MADELEINE E COMO APONTA PARA ELA COM A POSIÇÃO DO
CORPO TODO, TAMBÉM POR SUA VOZ UM NADINHA DESLOCADA EM DIREÇÃO À
DECLAMAÇÃO, QUE ELA ESTÁ FALANDO POR MADELEINE. EM LUGAR DE
MADELEINE. PARA LEVÁ-LA PARA LONGE DA MORTE.)
MULHER JOVEM (escandindo quase mecanicamente, lenta)
- Era uma vez então, era um bar, à tarde, o bar ficava numa praça, no centro da praça havia
um laguinho. Era numa região que poderia ter sido o Sudoeste da França. Ou um bairro de uma
cidade européia. Ou ainda outro lugar. Nessas pequenas cidades principais do Sul da China. Ou em
Pequim. Calcutá. Versalhes. Mil novecentos e vinte. Ou em Viena. Ou em Paris. Ou ainda em outro
lugar.
(POUCO A POUCO, SOBRETUDO POR MEIO DA PROCLAMAÇÃO DO NOME DAS
CIDADES ONDE A HISTÓRIA TERIA PODIDO ACONTECER, MADELEINE RECUPERA
VIDA E COMEÇA A SE REANIMAR SEM QUERER, A PROFERIR OUTROS NOMES DE
CIDADES: POR EXEMPLO, “CALCUTÁ, SAIGON, MANDALAY, SINGAPURA,
YOKOHAMA”. ELA DIZ OS NOMES BEM BAIXINHO OU OS PRONUNCIA SEM
PROFERI-LOS OU AQUIESCE SILENCIOSAMENTE QUE “É ISSO MESMO”, QUE

24
“ESTÁ CERTO” O QUE A MULHER JOVEM CONTA. É EVIDENTE QUE COM
QUALQUER RELATO, FOSSE DO TIPO QUE FOSSE, MADELEINE AQUIESCERIA DA
MESMA FORMA, QUE “RECONHECERIA” A HISTÓRIA.)
MADELEINE (murmurando)
- Ou em outro lugar. Em Saigon, Singapura. Em Mandalay, Yokohama. E quem sabe? E
quem sabe?
MULHER JOVEM
- Sim. (Tempo) Sempre aconteceria, seja nas regiões das latitudes quentes da terra, ou
durante os verões nos países do Norte. Em qualquer lugar que tivesse acontecido, seria durante uma
tarde.
MADELEINE (fazendo eco)
- Teria sido durante o verão de um país do Norte. À tarde.
MULHER JOVEM
- Sim. Teria sido no fim de um dia, logo antes da noite.
(AQUI COMEÇA O DIÁLOGO TEATRAL, SEMPRE RECONHECÍVEL DENTRE TODOS)
MULHER JOVEM
- Era lá para o fim do dia, antes da chegada da noite. Mas quando a noite já se anuncia,
quando a luz se estira, já enfraquecida, e entra em todos os lugares que encontra antes de se apagar.
Era então esse momento, muito em breve, a iluminação antes do escuro. O homem que estava
sentado no bar do lado contra uma vidraça que dava para o laguinho. Ele tirou uma carta do bolso.
Leu a carta. E eu estava olhando. (Tempo) Depois tornou a colocar a carta no bolso. E eu
continuava a olhar. Depois tirou de novo a carta do bolso e releu outra vez. E eu vi: ele estava
chorando. (Tempo) Depois de reler, tornou a pôr a carta no bolso sem dobrar, amassando-a.
(Tempo) Eu continuava a olhar. Ele não a releu mais. Ficou ali, como morto, diante do crepúsculo.
MADELEINE (olha a Mulher Jovem, como se a Mulher Jovem ditasse sua fala, sempre como que
insegura)
- Sim, até cair noite profunda ele não fez um único movimento. Olhava o laguinho. Eu não
ficava olhando para ele o tempo todo. Olhava às vezes para o laguinho, às vezes para ele. Queria
ver-lhe os olhos.
MULHER JOVEM
- Sim, seus olhos. (Tempo) O que eu queria ver eram seus olhos. E de repente aconteceu.
Ele parou de olhar para o laguinho e súbito olhou para mim.
(MADELEINE DIZ A FRASE DE MODO INCONTESTÁVEL, COMO QUE
DETERMINANTE:)
MADELEINE
- Ele tinha olhos claros.
MULHER JOVEM
- Ele se perguntou o que queria dizer aquilo, aquele olhar sobre ele, aquela insistência.
Deve ter pensado: mas que indiscrição, que inconveniência...
MADELEINE
- Mas eu não baixei a vista.
MULHER JOVEM
- Foi ele, foi ele que baixou a vista. Voltou a olhar para o laguinho.
MADELEINE
- Me esqueceu.
MULHER JOVEM
- Sim, é isso. (Tempo) E depois lembrou. (Tempo) Tornou a olhar o olhar.
MADELEINE
- E depois esqueceu de novo. (Tempo) Mas eu continuava a olhar.
(TEMPO)
MULHER JOVEM
- E então, de repente, tudo mudou.

25
MADELEINE
- Tudo. (Tempo) Assim que ele virou a cabeça pela última vez, tudo tinha mudado: ele
sabia. Ele sabia que alguém assistia a sua terrível história.
(TEMPO)
MULHER JOVEM
- Sim, ele sabia que havia no mundo, ali, naquela noite, alguém que olhava o desenrolar de
sua dor terrível.
MADELEINE
- O quê? Ele não sabia. Mas o olhar ele viu.
MULHER JOVEM
- E ele já teria podido reconhecer aquele olhar. Parou de novo de olhar para o laguinho.
Virou-se, e sem nenhuma hesitação olhou direto para mim.
(TEMPO. LENTIDÃO.)
MADELEINE
- Sua expressão mudara e pela postura, naquele momento, teria-se podido pensar que ia
sair do bar, fugir daquela mulher no canto do balcão que o olhava tão fixamente.
MULHER JOVEM
- Para que aquilo terminasse, entende, foi o que pensei. (Tempo) Mas eu estava enganada.
(TEMPO. LENTIDÃO.)
MADELEINE
- Em vez dele, fui eu que baixei a vista para não atrapalhar, para que ele ficasse livre para
ir embora, para me deixar, me destruir... me matar...
MULHER JOVEM
- Mas fechar os olhos de repente, assim, diante dele, só provava meu amor por ele, tão
súbito e tão forte.
MADELEINE
- Era claro. Era óbvio.
MULHER JOVEM
- Ele entendeu. Distraído de repente de sua própria história, ele olhava para mim.
MULHER JOVEM
- Olhava aquele amor se fazer, uma mor tal que era de uma evidência esmagadora que
aquela moça nunca o havia sentido por outro homem além dele.
(TEMPO)
MULHER JOVEM
- Por causa de sua dor...?

MADELEINE
- Por causa de sua dor, sim.
MULHER JOVEM
- Sim. De sua dor por outra mulher que nos privava, a ele e a mim, da história de uma mor.
MADELEINE
- Quero lhe dizer, escute bem, escute vou reformular: de sua dor por outra mulher que ele
amava e que permitia, a ele e a mim, que vivessemos um sentimento de amor sem viver sua história.
(TEMPO)
MADELEINE
- Ele tinha olhos claros?
MULHER JOVEM
- Acho que sim. Você dizia: azuis.
MADELEINE
- Não, eu disse: claros. (Tempo) Disse também: olhos... não sei mais. (Tempo) Hoje digo:
olhos claros. Cabelos louros. Não mudo mais nada.

26
MULHER JOVEM
- Olhos claros...
MADELEINE
- Sim...
MULHER JOVEM
- Olhos que parecem enxergar bem longe, em direção ao passado.
MADELEINE
- Sim, mas não é verdade, olhos que não vêem tudo.
MULHER JOVEM
- Olhos que impedem que uma história venha substituir a outra, aquela que sucumbiu na
morte.
MADELEINE
- É isso.
MULHER JOVEM
- Olhos que talvez não vejam tudo, que estão cegos de luz.
MADELEINE
- Não. Olhos que só vêem a imortalidade.)
(SILÊNCIO. ELAS SE OLHAM. A MULHER JOVEM CANTA A MELODIA E MADELEINE
DIZ A LETRA DO FIM DA CANÇÃO.)
MULHER JOVEM (canta)
- Palavras de amor
Há tantas
Há tantas
Há demais
..................
MADELEINE
- Sim
(SILÊNCIO)
MULHER JOVEM (canta)
- Lá...lá...lá...
Lá...lá...lá....
Meu amor, meu amor.
MADELEINE
- Ele amava com loucura alguém que não veria nunca mais.
MULHER JOVEM
- Foi assim que o amei, privado dela, daquela outra mulher, naquela dor.
Eu sentia um grande desejo de seu corpo privado daquela outra mulher. E eu chorava, tão grande
era o desejo.
(SILÊNCIO. PASSAGEM DE PESSOAS ATRÁS DA CORTINA, COMO UMA AMEAÇA. O
RUMOR DESAPARECE.)
MULHER JOVEM
- Ele começou a olhar de novo o laguinho que agora mal se via através das vidraças do bar.
(A MULHER JOVEM OLHA PARA MADELEINE. SILÊNCIO. LENTIDÃO
DECLAMATÓRIA.)
MADELEINE
- Não era um laguinho. Era o mar.
MULHER JOVEM
- Sim.
MADELEINE
Não era a França. Era o Sião.
MULHER JOVEM
- Sim.

27
MADELEINE
- Era Savannah Bay.
MULHER JOVEM
- Sim, era Savannah Bay. Era o Sião. Era a embocadura de um rio tropical.
(SILÊNCIO. DEPOIS A MULHER JOVEM CANTA BEM BAIXINHO LES MOTS
D’AMOUR)
MADELEINE (por cima do canto)
- Era Henry Fonda, era Savannah Bay, era numa peça de teatro. Título: Savannah Bay.
Ator: Henry Fonda.
(TEMPO LONGO.)
MULHER JOVEM
- Ele se levantou. Vi seus movimentos pela vidraça e até seu rosto, que ficou quase
escondido.
(TEMPO.)
MADELEINE
- A noite já estava caindo sobre Savannah Bay. (Tempo) Os barcos de pesca já estavam
indo para alto-mar.
MULHER JOVEM
- As lâmpadas do balcão se acenderam. Ele se virou. Me olhou.
MADELEINE
- E se levantou. Virou-se para mim e esperou sem dúvida que eu lhe fizesse um sinal.
Quem sabe? Então eu fiz com a mão, em um gesto muito leve e quase invisível, sinal de que viesse
para perto de mim.
MULHER JOVEM
- Ele se levantou.
MADELEINE
- Sim.
MULHER JOVEM
- E se aproximou.
MADELEINE
- Sim.
(AS DUAS MULHERES MUDAM A DIREÇÃO DO OLHAR, COMO SE OLHASSEM PARA
UMA TERCEIRA PESSOA. ELAS SE FALAM COMO OS AMANTES DE SAVANNAH BAY.)

MULHER JOVEM
- Ele estava com um terno de tussor branco. Sorriu para mim. Fiz sinal que se sentasse.
MADELEINE
- Sim (Tempo) Ele disse: “Sou um europeu de Savannah Bay.”
MULHER JOVEM
- Então eu fico surpresa. “Aqui se diz europeu? Que curioso...”
MADELEINE
- Ele diz que é assim. “Europeu”, diz ele.
MULHER JOVEM
- Ele diz que isso vem da época do Império colonial. “Diziam-se europeus para dizer
brancos.” E depois me olha: “Você mora no Sião?”
MADELEINE (pega de surpresa)
- “Quer dizer...”
MULHER JOVEM
- “No Sião?”
MADELEINE (pega de surpresa, como se tivesse esquecido uma fala)
- “Quer dizer...”
MULHER JOVEM

28
- “Ela está aqui para um filme, Senhor. Está filmando em Savannah Bay. Com Henry
Fonda. De amor. Um filme de amor.”
MADELEINE (livre do esforço da memória, deliciando-se)
- “Sim, é isso mesmo, estou filmando em Savannah Bay com Henry Fonda. O título é:
Savannah Bay.”
MULHER JOVEM
- “Acontece com freqüência fazerem filmes aqui, por causa da luz de Savannah Bay.”
MADELEINE
- “Ah... Savannah, Savannah Bay” (Tempo) “Luz admirável.”
MULHER JOVEM
- “Sim. E sempre igual. Não chove quase nunca. Só tufões na época dos equinócios, mais
nada.”
MADELEINE (maravilhada)
- Que clima maravilhosos. Que sorte.”
(VOLTA AO LUGAR ATUAL.)

MULHER JOVEM
- “Não sei. Não penso nisso.” Ele parou de me olhar, fixou o olhar na direção do mar e se
calou.
MADELEINE
- Era um homem de grande e rara sinceridade.
MULHER JOVEM
- Sim. Perdido.
MADELEINE
- Sem mais nada a perder. Sem mais nada a ganhar.
MULHER JOVEM
- Sim.
(SILÊNCIO. VOLTA AO TOM IMPESSOAL.)
MADELEINE
- “Está infeliz, não é, Senhor?”
MULHER JOVEM (gesto)
- “Estou.”

MADELEINE
- “Por causa de sua mulher?”
MULHER JOVEM
- “Sim.”
MADELEINE (bem baixinho)
- “Diga-me... o que aconteceu?”
MULHER JOVEM
- “Ele me olhou e disse: o que acontece todos os dias, entende, que é ao mesmo tempo sem
importância e tão espantoso.”
MADELEINE
- “É verdade... o que está dizendo... oh, como é verdade.”
MULHER JOVEM
- Ele se virou de novo para o mar. Ela estava toda estirada na direção dele, com lágrimas
nos olhos. (Tempo) Ele disse: “É espantoso, é incrivelmente difícil passar por isso. Só o tempo pode
aliviar essa dor.” Ele estava chorando.
MADELEINE
- “Ela estaria morta, Senhor?”
MULHER JOVEM
- “Sim.”

29
MADELEINE
- “Morta, Senhor, morta?”
MULHER JOVEM
- “Sim, ela se concedeu a morte aqui, uma noite, aqui em Savannah Bay.”
MADELEINE
- “Que expressão curiosa, Senhor: se conceder a morte...”
MULHER JOVEM
- “Mesmo assim, Madame. Se disséssemos: encontrou a morte, já seira menos correto.”
MADELEINE
- “É verdade...”
(SILÊNCIO)
MADELEINE
- “Quantos anos, Senhor, quantos anos tinha ela?”
MULHER JOVEM (hesitação)
- Dezoito incompletos dezessete ainda, acho eu, faltavam algumas semana.
MADELEINE
- “Meu Deus.”
MULHER JOVEM
- “Pois é.”
MADELEINE (apavorada, voz murmurada)
- “Faz muito tempo que aconteceu?”
MULHER JOVEM
- “A idade do filho. Vinte e cinco anos.”
(SILÊNCIO)
MADELEINE
- “Foi nesta região de Savannah Bay?”
MULHER JOVEM
- “Sim, foi aqui. Foi no Sião.”
MADELEINE
- Eu não sabia que Savannah Bay era no Sião. Achava que era no Sul da Itália,”

MULHER JOVEM
- “É também no Sul da Itália. É em todos os lugares onde você foi.”
MADELEINE (tempo)
- “Entendo.”
(SILÊNCIO. MADELEINE SE DESVIA DA MULHER JOVEM.)
MADELEINE
- “Senhor... Senhor, que coisa horrível, você deveria esquecer.”
MULHER JOVEM
- “Sim, deveria.”
(A MULHER JOVEM SE VIRA PARA MADELEINE.)
MULHER JOVEM
- “Sempre me disseram, Madeleine, que a senhora era profundamente encantadora.”
MADELEINE (convicta)
- “Sim.”.
(SILÊNCIO. MADELEINE SE AFASTA DA MULHER JOVEM.)
MADELEINE
- Assim, Senhor, vejo que o senhor não morreu nos pântanos do rio Magra.”
MULHER JOVEM
- “Eu não conheço esse lugar, Madame, desculpe. Fora daqui deve ter outro nome.”
MADELEINE (confusa)
- “Sim, sem dúvida. (Tempo) Mas onde?”

30
MULHER JOVEM
- “Não sei.”(Ela se vira) Ele olhou para o mar. A luz estava baixando. Ele pareceu ter
esquecido. Então chamei-o.
MADELEINE
- Ele não se virou para mim.
(A MULHER JOVEM TORNA A CANTAR O REFRÃO, BEM BAIXINHO. FICAM IMÓVEIS
NA LUZ E NO CANTO. DEPOIS A MULHER JOVEM SAI E FECHA A PORTA ATRÁS DE
SI COMO TINHA AVISADO QUE FARIA UM DIA. MADELEINE FICA SOZINHA IGNORA
O FATO. ESCURO SOBRE A MÚSICA, QUE VAI DIMINUINDO E PÁRA.)

SAVANNAH BAY
(VERSÃO ENCENADA NO TEATRO DO ROND-POINT EM 27 DE SETEMBRO DE
1983.)

(O PALCO ESTÁ QUASE VAZIO. HÁ SEIS CADEIRAS E DOIS BANCOS COBERTOS COM
CAPAS CLARAS, E UMA MESA. O CHÃO ESTÁ NU. TUDO ISTO DEVE OCUPAR UM
DÉCIMO DO ESPAÇO DO PALCO. É AÍ QUE SERÁ REPRESENTADO SAVANNAH BAY.
ATRÁS DESSE ESPAÇO DA REPRESENTAÇÃO, SEPARADO DELE, ENCONTRA-SE O
CENÁRIO QUE ROBERTO PLATE FEZ PARA SAVANNAH BAY. É UM PALCO DE
TEATRO MUITO GRANDE, FEITO PARA SER ERIGIDO NUMA PAISAGEM VASTA E
DESERTA. DUAS CORTINAS DE VELUDO VERMELHO EM MADEIRA PINTADA
ERGUEM-SE DIANTE DO PALCO MONUMENTAL. UM ESPAÇO CENTRAL ABRE ESTE
ÚLTIMO ATÉ A PAREDE QUE FECHA O TEATRO DO ROND-POINT. DE AMBOS OS
LADOS DESSE LUGAR HÁ AS DUAS FOLHAS DE UMA PORTA MUITO ALTA, VERDE-
ESCURA, QUE LEMBRA AS PORTAS DAS CATEDRAIS, DO VALE DO PÓ. ATRÁS DESSA
PORTA HÁ DUAS IMENSAS COLUNAS DA ALTURA DO TEATRO, DE UM AMARELO-
CLARO E MARMORIZADO. ATRÁS DAS COLUNAS ENQUADRADAS PELAS FOLHAS
DESSA PORTA, DEPOIS DE UMA ZONA DE LUZ QUASE NEGRA, HÁ O MAR. ESTE É
ILUMINADO POR UMA LUZ VARIÁVEL, ALTERNATIVAMENTE “FRIA”, “ARDENTE”,
ESCURA, E ENQUADRADO COMO A LEI.
ASSIM, O CENÁRIO DE SAVANNAH BAY É SEPARADO DE SAVANNAH BAY,
INABITÁVEL PELAS MULHERES DE SAVANNAH BAY, ENTREGUE A SI MESMO.)

CENA I

(PRIMEIRO ESCUTA-SE MUITO ALTO A CANÇÃO LES MOTS D’AMOUR CANTADA POR
EDITH PIAF. NO FINAL DA QUARTA ESTROFE, MADELEINE APARECE NA
PENUMBRA. VEM DO CENÁRIO. POUCO DEPOIS, A MULHER JOVEM ENTRA. VAI
TER COM MADELEINE. NA PENUMBRA ELAS PARAM E ESCUTAM O CANTO. O
CANTO DIMINUI. ELAS FALAM.)

MADELEINE
- O que é isso?
MULHER JOVEM

31
- Um disco para você.
(A MULHER JOVEM E MADELEINE ESCUTAM A CANTORA.)
MULHER JOVEM
- Você reconhece essa canção?
MADELEINE (hesitante)
- Quer dizer... um pouco... sim.
(O DISCO CONTINUA. MADELEINE ACOMPANHA O CANTO SEMPRE COM A MESMA
INTENSIDADE.)
MADELEINE
- Quem está cantando?
MULHER JOVEM
- Uma cantora que já morreu.
MADELEINE
- Ah.
MULHER JOVEM
- Há uns quinze anos.
MADELEINE (escuta)
- Parece que ela está aqui.
MULHER JOVEM (tempo)
- E está. (Tempo) No rio Magra vocês devem ter cantado isso... Durante muitos verões.
MADELEINE
- Ah, talvez... talvez.

MULHER JOVEM (afirmativa)


- Sim.
MADELEINE (escuta)
- Ela tem muito talento.
MULHER JOVEM
- Sim. (Tempo) O disco esteve sempre aqui. Depois foi quebrado.
MADELEINE (num fio de voz)
- Ah sim... (Silêncio. O disco diminuiu de volume. Ela aponta na direção da música.) Eu
conheci essa que está cantando?
MULHER JOVEM
- O nome não lhe diria nada.
MADELEINE
- Sim.
MULHER JOVEM (tempo)
- Você está reconhecendo a voz?
MADELEINE
- A voz não...alguma coisa na voz, talvez a força... É uma voz que tem muita força...
MULHER JOVEM
- É a sua força. É a sua voz.
MADELEINE (não escuta)
- Essa mulher aí, ela se matou.
MULHER JOVEM
- Sim. (Tempo) Você sabia.
MADELEINE (tempo)
- Não. Eu disse por dizer. (Tempo) Talvez seja o que ela canta que faça pensar isso.
(Silêncio. O disco termina) Durante meses me aconteceu de morrer todas as noites no teatro.
(Tempo) Foi na época de uma grande dor.
(SILÊNCIO)
MULHER JOVEM

32
- Vou cantar essa canção, e você vai repetir a letra. (Madeleine faz uma ligeira careta) Não
quer?
MADELEINE
- Sim... quero... Quero sim. (Silêncio. Ela olha para a Mulher Jovem. De repente, ela se
assombra) Quem é você? (Tempo) Você é uma garotinha...? (Silêncio. Madeleine se levanta.
Medo.) Nunca me lembro ao certo...
(A MULHER JOVEM SE COLOCA DIANTE DE MADELEINE.)
MULHER JOVEM
- Olhe para mim. Venho ver você todos os dias.
MADELEINE
- Ah, sim... sim... Jogamos cartas...? contamos histórias....?
MULHER JOVEM
- Isso mesmo... tomamos chá... uma porção de coisas...
MADELEINE (tempo)
- Sim... um dia... é você que me faz contar... Sim... É isso... números.
MULHER JOVEM
- Sim.
MADELEINE
- Números consideráveis, enormes...
MULHER JOVEM
- É isso mesmo.
MADELEINE
- Reconheço você. (Tempo longo.) Você é a filha daquela criança morta.
De minha filha morta. (Tempo longo.) Você é a menina de Savannah. (Silêncio. Ela fecha os olhos
e acaricia o vazio.) Sim... É isso. (Ela solta a cabeça que estava acariciando, suas mãos caem,
desesperadas) Eu queria que me deixassem em paz.
(A MULHER JOVEM VAI SENTAR-SE NA FRENTE DE MADELEINE. COMEÇA A
CANTAR A CANÇÃO DE MANEIRA ARRASTADA, PRONUNCIANDO AS PALAVRAS DE
MODO MUITO INTELIGÍVEL.)
MULHER JOVEM
- Olhe para mim. (Tempo. Cantando)
É uma loucura o quanto eu te amo
O quando te amo às vezes
Às vezes eu gostaria de gritar...
MADELEINE (olha a Mulher Jovem como se fosse uma aluna e repete lentamente, sem pontuação
definida, como em um ditado)
- É uma loucura o quanto eu te amo
O quando te amo às vezes
(Tempo)
Às vezes eu gostaria de gritar...
MULHER JOVEM
- Sim. (Tempo. Mais lentamente)
Pois nunca amei
Nunca amei assim
Posso te jurar...
MADELEINE (cada vez mais atenta)
Pois nunca amei
Nunca amei assim
Posso jurar...
MULHER JOVEM (tempo)
- Assim mesmo. (Ela se cala por um instante, depois recomeça a cantar)
Se você fosse embora

33
Fosse embora e me deixasse
Eu acho que morreria
Que morreria de amor
Meu amor, meu amor...
MADELEINE (imóvel, como que estupefata pela violência das palavras)
- Não.
(SILÊNCIO)
MULHER JOVEM (no mesmo tom)
- Se você fosse embora
Fosse embora e me deixasse .
MADELEINE
- Se você fosse embora
Fosse embora e me deixasse.
MULHER JOVEM
- Sim
Eu acho que eu morreria
Que morreria de amor
Meu amor, meu amor...
MADELEINE
- Não.
MULHER JOVEM (tempo. Não cantado)
- Acho que eu morreria.
MADELEINE
- Acho que eu morreria.
MULHER JOVEM
- Que eu morreria de amor, meu amor, meu amor.
MADELEINE (dócil)
- Que morreria de amos, meu amor, meu amor, meu amor...
MULHER JOVEM
- Sim.
(A MULHER JOVEM REPETE O REFRÃO E MADELEINE A ESCUTA, SEMPRE COM
PAIXÃO. A MULHER JOVEM NÃO PRONUNCIA MAIS TODAS AS PALAVRAS.)
MULHER JOVEM (com a melodia da canção)
- É um loucura o quanto eu te amo... Lá lá lá lá lá... Meu amor, meu amor... (Silêncio. Tom
muito pensativo) É de você que eu mais gosto no mundo. (Tempo) Mais que tudo. (Tempo) Mais
que tudo que vi. (Tempo) Mais que tudo que li. (Tempo) Mais que tudo que tenho. (Tempo) Mais
que tudo.
MADELEINE (Distraída, porém natural, deixa-se dizer)
- Eu.
MULHER JOVEM
- Sim
(SILÊNCIO. MADELEINE. NOBRE. SELVAGEM. NÃO TENTA COMPREENDER. E
OLHADA PELA MULHER JOVEM COMO SERIA OLHADA POR NÓS.)
MADELEINE
- Por que dizer isso hoje...
MULHER JOVEM (Tempo, prudência)
- Que há de especial no dia de hoje?
MADELEINE (olha para outro lado, como que confusa)
- Eu havia decidido pedir que não me visitassem mais tanto... bem... um pouco menos...
(Silêncio. Sorriso de desculpas:) Gostaria de ficar sozinha aqui. (Mostra o espaço à sua volta)
Sozinha (Violência súbita, ela grita) Que ninguém mais viesse.
MULHER JOVEM (terna)

34
- Sim.
MADELEINE (virada total, lamento, amor)
- Mas, e você... o que vai ser de você sem mim?... (Silêncio. Fecha os olhos, chama por
outra)- Minha criança.. minha criança...minha beleza... não queria mais viver... não queria... não...
não queria nada... nada...
(A MULHER JOVEM, DIR-SE-IA, GOSTARIA DE NÃO TER OUVIDO. MADELEINE
FALOU LONGE DELA NO TEMPO. SILÊNCIO.)
MULHER JOVEM (canta, como que em resposta)
- É uma loucura o quanto eu te amo
O quanto te amo às vezes
Às vezes gostaria de gritar...
MADELEINE (no passado)
- Sim.
(SILÊNCIO)
MULHER JOVEM
- Eu queria lhe dizer, vi uma fotografia dessa época da canção. Estão todos na frente da
porta dos barcos. (Tempo) Há uma moça muito jovem.
MADELEINE (tempo)
- Sempre há moças nas fotografias da férias.
MULHER JOVEM (tempo)
- À sua direita há um homem, alto muito jovem também, segurando a mão dela. (Silêncio)
Além disso, mais adiante, há a foto de uma mulher. Ela tem o rosto escondido nas mãos. Está
chorando. (Tempo) É uma cena de teatro.
MADELEINE
- Sou eu. No teatro, sou eu.
(SILÊNCIO. A MULHER JOVEM OLHA PARA MADELEINE.)
MULHER JOVEM (com violência)
- Há momentos em que não reconheço mais sua voz..
MADELEINE
- Acontece, acontece, eu ouço a diferença.
MULHER JOVEM (terna)
- Você agora entende muito pouco do que lhe dizem.
MADELEINE
- Sim, muito pouco do que dizem. (Tempo) Às vezes nada.
MULHER JOVEM
- Às vezes, tudo.
(SILÊNCIO)
MULHER JOVEM (terna)
- Num determinado dia, numa determinada noite, eu a deixarei para sempre. (Mostra a
porta.) Fecharei a porta, assim (gesto), e estará tudo acabado. Beijarei suas mãos. Fecharei a porta.
Estará acabado.
MADELEINE (ritual)
- Alguém virá todas as noites para ver. E apara acender as luzes?
MULHER JOVEM
- Sim. (Tempo) e um dia não haverá mais luz. Não valerá mais a pena ter luz.
(SILÊNCIO.)
MADELEINE
- Sim, é isso. Alguém escutará. E a respiração, terá cessado?
MULHER JOVEM
- Sim.
(SILÊNCIO. MADELEINE OLHA A MULHER JOVEM)
MADELEINE

35
- E você, onde estará?
MULHER JOVEM
- Terei ido embora. Diferente. Diferente para sempre. Para sempre sem você.
MADELEINE
- Sem mim, sem quem?
MULHER JOVEM
- Você. Sem você.
(ELAS TOMAM O CHÁ.)
MADELEINE (tempo)
- A morte virá de fora de mim.
MULHER JOVEM
- De muito longe. (Tempo) Você não saberá quando.
MADELEINE
- Não, não saberei.
MULHER JOVEM
- Ela partiu no começo do mundo só pensando em você.
MADELEINE
- Sim. Inscrita desde o nascimento. Que honra, desde antes do nascimento.
MULHER JOVEM
- Sim.
MADELEINE (mostra o palco)
- Para chegar a isto. (silêncio) Como você sabe essas coisas?
MULHER JOVEM
- Eu vejo você.
(SILÊNCIO. OLHAR INTENSO DA MULHER JOVEM SOBRE MADELEINE. BEBEM.)
MULHER JOVEM
- Você pensa o tempo todo, o tempo todo, numa coisa só.
MADELEINE (como que evidente)
- Sim.
MULHER JOVEM (violenta)
- Em quê? Será que pode me dizer?
MADELEINE (igualmente violenta)
- Bem, você mesma vai ter que investigar, para saber em que se pensa.
MULHER JOVEM
- Você pensa em Savannah.
MADELEINE
- Sim. Acho que é isso mesmo.
(SILÊNCIO. A TERNURA VOLTA.)
MULHER JOVEM
- Savannah chega com a velocidade da luz. Desaparece com a velocidade da luz. As
palavras não têm mais tempo.
MADELEINE
- Não, não têm mais tempo.

MULHER JOVEM
- E a qualquer momento. É impossível prever.
MADELEINE
- Impossível, seria como prever a felicidade.
(SILÊNCIO. A MULHER JOVEM ANDA EM DIREÇÃO A MADELEINE, E MOSTRA SEU
VESTIDO.)
MULHER JOVEM
- Olhe... é o vestido que você usou, lembra, naquele filme, Le voyage au Siam.

36
MADELEINE
- Ah sim... sim... fica muito bem em você... muito bem...
(A MULHER JOVEM LEVA MADELEINE AO LUGAR INUNDADO DE LUZ DE UM
ESPELHO INVISÍVEL. AS DUAS OLHAM A “IMAGEM DE MADELEINE.)
MULHER JOVEM
- Olhe para você...
(SILÊNCIO.)
MADELEINE (muito simples)
- Acho que sou bonita.
MULHER JOVEM
- Eu também acho... que você é bonita.
(SILÊNCIO.)
MADELEINE
- Fico muito bem de vermelho... sempre... além disso este vestido também...
(MADELEINE OLHA SEU VESTIDO, GIRA NA FRENTE DO ESPELHO.)
MULHER JOVEM
- De onde saiu este vestido?
MADELEINE
- Dos armários, de lá. Tirei hoje de manhã.
MULHER JOVEM
- Você representou em muitas peças assim...
MADELEINE
- Ah sim... peças muito bonitas... tragédias... comédias... tudo.
MULHER JOVEM
- Ah sim... é verdade. (Tempo) Diga uma coisa, você era atriz?...
MADELEINE (como se estivesse descobrindo)
- Sim... é... eu era atriz. Era isso que eu fazia. Atriz.
MULHER JOVEM
- Atriz...
MADELEINE
- Atriz de teatro, é isso que eu era.
MULHER JOVEM (Tempo)
- Ou nada.
MADELEINE (tempo)
- Nada.
(A MULHER JOVEM ANDA EM TORNO DE MADELEINE.)
MULHER JOVEM
- Me conta essa história de novo.
MADELEINE
- Todos os dias você quer essa história.
MULHER JOVEM
- Sim.
MADELEINE
- De tanto contar, todos os dias, eu me engano... nas datas... nas pessoas... nos lugares...
(RISO REPENTINO DAS DUAS MULHERES.)
MULHER JOVEM
- Sim.
MADELEINE
- É isso que você quer?
MULHER JOVEM
- Sim.
(RISO. DEPOIS O RISO SE DESVANECE.)

37
CENA II

(COMEÇA O TEATRO. O CENÁRIO É COLOCADO LENTAMENTE.)

MULHER JOVEM
- É uma grande pedra branca, no meio do mar.
MADELEINE
- Chata. Do tamanho de uma sala.
MULHER JOVEM
- Bela como um palácio.
MADELEINE
- Como o mar, da mesma maneira.
MULHER JOVEM
- Ela se destacou da montanha quando o mar penetrou.
MADELEINE
- Ficou ali. Pesada demais para ser levada pelas águas.

MULHER JOVEM (tempo)


- Do mar ela tem a textura, a textura da água.
MADELEINE
- Do vento tem a forma brutal. (silêncio) Não se pode falar disso.
MULHER JOVEM
- Fala-se. (Silêncio. Lentidão) Era verão.
MADELEINE
- Era verão à beira-mar.
MULHER JOVEM
- Você não tem mais certeza de nada.
MADELEINE
- De quase nada. (Tempo) Da pedra branca, tenho certeza. (Tempo) Era preciso nadar para
chegar até lá. Ela havia caído no mar. (Tempo) Eles tinha se conhecido naquele lugar, no da grande
forma chata, no meio do mar...
MULHER JOVEM
- ... quase à flor da água, a pedra, e quando os barcos passavam a marola a cobria de água
fresca, depois o sol voltava e em poucos segundos a tornava infernal, novamente em fogo. (Tempo)
Era verão. Eram as férias escolares. Ela era muito jovem. Recém-saída do colégio. Nadava até
muito longe.
MADELEINE (Tempo)
- Havia momentos... em que teria sido possível pensar... durante alguns minutos... que ela
não voltaria mais. Ela voltava. Durante muito tempo ela havia voltado.
MULHER JOVEM
- Eles haviam se conhecido lá. Foi lá que ele a vira deitada na pedra, sorridente,
periodicamente coberta pelas águas da onda.
MADELEINE (tempo)
- Ela tinha pego o atalho pelos lagos, e ele viera pelo caminho que margeava o rio. Era
cerca de meio-dia.
MULHER JOVEM
- Eram dias muitos quentes, você esqueceu.
MADELEINE
- Não, eu lembro, eram dias muito quentes, os mais quentes do verão.

38
MULHER JOVEM (gesto)
- Já na embocadura do rio, ao descortinar o mar, no lugar da pedra, ele a havia visto. Ele
vira contra o branco daquela pedra a pequena forma contornada de preto. (Tempo longo) E depois
vira-a atirar-se no mar, se afastar.
MADELEINE
- Ela furou o mar com o corpo. E desapareceu no buraco de água. A água
tornou a se fechar.
MULHER JOVEM
- Não se vê mais nada na superfície do mar. (Tempo) Então ele grita. (Tempo) De repente
ele se ergue sobre a pedra branca e grita. Grita que quer tornar a ver aquela moça de maiô preto.
(Tempo) Com esse grito da volta.
MADELEINE
- Volta com algum esforço, leve demais para a água espessa e pesada, minha criança.
MULHER JOVEM
- Foi então que ele a viu voltar... ele sorriu... e aquele sorriso...
MADELEINE (em devaneio)
- ... Aquele sorriso é terrível, não se deve olhar, ele faz crer que... uma vez... durante um
momento mesmo muito curto... como se fosse possível... podia-se morrer de amor. (Silêncio) Acho
que foi em Montpellier em 1930-1935. No teatro da cidade. O autor era desconhecido. Francês,
acho. (silêncio) Naqueles anos, e nos seguintes, todas as noites eu estava nos palcos dos teatros. Por
toda parte, no mundo inteiro. (Tempo) Poderia parecer que eu representava diversas coisas, mas na
verdade só representava aquilo, perpassando tudo que se pensava que eu representava, eu
representava a história da Pedra Branca. (Tempo longo) Entende um pouco?

MULHER JOVEM
- Sim. (Tempo) Você está fazendo essa encenação de propósito?
MADELEINE
- Estou.
MULHER JOVEM
- Você está mentindo? (Silêncio) Não, não está.
MADELEINE
- Não.
MULHER JOVEM (Tempo. Ternura)
- Ela estava onde você estava.
MADELEINE
- Ela estava onde eu estava.
MULHER JOVEM (tempo)
- Ela estava também presente antes de nascer.
MADELEINE
- Sim, antes de nascer ela também estava presente.

MULHER JOVEM
- Sim. (Tempo) Nos teatros, tão encerrada como você, em todas as partes do mundo.
MADELEINE
- Todas.
MULHER JOVEM
- E então veio aquele dia de verão.
(ELAS DESVIAM O ROSTO, ESCONDEM O ROSTO NAS MÃOS SEM CHORAR, NEM
COM A VOZ NEM COM OS OLHOS.)
MULHER JOVEM
- Meu amor.
MADELEINE

39
- Sim. (Tempo) Meu amor, meu tesouro, minha adorada. Adorada. (Silêncio) Eu me
lembro, mas é uma lembrança sem forma, escondida. Não sei mais do que lembro quando lembro
dela, mas lembro.
(SILÊNCIO)
MULHER JOVEM
- Nunca vou deixar você.
MADELEINE (sempre em devaneio, não escuta)
- Meu amor, minha criança...
MULHER JOVEM
- Sim. (Tempo) O que diz a história?
MADELEINE
- Que era quando ela ria que se podia acreditar que estava presente. Que ela ficaria, ainda
mais.
MULHER JOVEM
- Mas nem todo mundo concordava. Alguns dizem, ao contrário, que já se ressentia a morte
naquele riso leve, fácil, dizem: um riso que era como o ar.
MADELEINE
- As pessoas dizem isso?
MULHER JOVEM
- Sim. (tempo) E você, o que diz?
MADELEINE
- Eu digo que quando ela ria.
(INTERRUPÇÃO BRUSCA, DOR, DEPOIS ELA FICA ENCARANDO A MULHER JOVEM.)
MULHER JOVEM (arrasta-a para fora da dor)
- Ela estava de maiô preto.
MADELEINE (repete)
- Ela estava de maiô preto.
MULHER JOVEM
- Muito esbelta...
MADELEINE
- Muito esbelta.
MULHER JOVEM
- Muito loura.
MADELEINE
- Não sei mais. (Aproxima-se da Mulher Jovem, põe a mão em seu rosto, lê a cor de seus
olhos.) Os olhos eu sei, eram azuis ou cinzentos, conforme a luz. No mar, eram azuis. (Silêncio)
Entre ela e ele, há essa cor azul, esse espaço do mar pesado, muito profundo e muito azul.
MULHER JOVEM (tempo)
- Ele avança até a beira da água e puxa-a pelos braços. (Tempo) Ele a retira, fá-la sair do
mar.

MADELEINE
- Ele pega suas mãos e puxa-a para si. Está com a pele ardendo, repuxando quando estende
as mãos, quando ele a tira do mar.
(SILÊNCIO)
MULHER JOVEM
- Ele a tirou do mar. (Tempo) Colocou-a sobre a pedra e a olhou. (Tempo longo. ) Ele olha
para ela. Pareceria surpreso. (Tempo) Ela descansa do nado, deixa-se cobrir pelo movimento da
marola, fecha os olhos.
MADELEINE

40
- Ele a pega pelos ombros, levanta-a, tira-a de repente da marola, beija seus olhos fechados
e a chama. (Tempo) Esses beijos... esses beijos... meu Deus... ele não a conhecia, não sabia seu
nome... Ele a chama por outros nomes e também de Savannah.
MULHER JOVEM
- Ela abre os olhos, o vê. (Tempo longo) Ficam um bom tempo se olhando. (Tempo longo)
Eles se vêem pela primeira vez. Eles vêem, sob o olhar, eles se vêem até onde a vista alcança.
MADELEINE
- E depois ele fala com ela.

MULHER JOVEM
- Fala com ela, ali (gesto), no rosto.
MADELEINE
- Ele fala como olha, não pensa nela quando fala com ela.
MULHER JOVEM
- O que ele diz é o que se diz.
MADELEINE
- São coisas que sempre se dizem antes de conhecer, antes de tocar, de pegar. (Tempo) Ele
lhe teria dito que estava surpreso de vê-la ali, naquele lugar do mundo, tão longe de tudo o que ele
conhecera até então, tão diferente.
MULHER JOVEM (tempo)
- E você, onde está?
MADELEINE
- Fiquei em casa, no escuro dos postigos fechados por causa do calor. A casa está escura,
abafada. Sei que ela foi à pedra branca.
MULHER JOVEM (tempo)
- Você escuta o que eles dizem.
MADELEINE
- Sim. O vento.
MULHER JOVEM
- O vento traz as vozes...
MADELEINE
- Sim, o vento do rio carrega as vozes...
MADELEINE
- Sim, o vento do rio carrega as vozes.
MULHER JOVEM (tempo)
- Ele lhe segura a cabeça com ambas as mãos, coloca-a em seus braços de costas para o sol,
fala com ela. (Tempo) Diz: “Você não está cansada demais, você nada até tão longe, como tem
força? Cuidado com o sol, aqui ele é tremendo, você parece não saber.
MADELEINE
- Ela diz: “Estou acostumada com o mar.”
MULHER JOVEM
- Ele diz que não, que isso nunca é possível, nunca. Ela diz que é verdade, nunca.
(Silêncio) Ele diz: “Não sei olhar para você. Não é que você seja bonita, é outra coisa, mais
misteriosa, mais terrível, não sei o que é.”
MADELEINE
- Ela diz: “Eu também não sei do que você está falando, do que se trata. Nunca estive tão
perto de um homem. Tenho dezesseis anos.”
MULHER JOVEM
- Eles saem da pedra branca. Muito lentamente, nadam ao longo da praia. E de repente ele
fecha os olhos para não vê-la mais, nada depressa para deixá-la para trás. E depois volta. Diz:
“Voltei.”
(SILÊNCIO)

41
MADELEINE
- É então que ela lhe diz: “Se você quiser, posso me prestar a você. Se lhe agrada, eu faço.
Estou em idade de fazer, e aqui, olhe, não há ninguém para ver, chegamos à embocadura do rio
Magra.” (Tempo longo) Ele pergunta: “Por que você deseja me agradar?”
MULHER JOVEM
- Ela diz que é jeito de falar, que ainda não sabe nada a respeito do que está propondo,
portanto tinha falado assim, ao acaso.
MADELEINE (tempo)
- Ele diz: “Aceito que você se preste a mim. No entanto estou com medo. Gostaria que
você me dissesse por que estou com medo.”
MULHER JOVEM
- Ela sorri. Diz: “Desde sempre guardo em mim como que um desejo esquisito, o desejo de
morrer. Digo essa palavra por não ter outra, mas você deve ter adivinhado esse desejo através da
falta de jeito do meu pedido. Talvez seja por isso que está com medo.”
MADELEINE
- Ele pergunta: “Será que você me escolheu porque estou com medo?”
MULHER JOVEM
- Ela diz: “Sem dúvida, sim, por isso, mas não tenho certeza, não sei nada sobre o que
estou falando, não conheço a natureza do medo que dá.”
MADELEINE
- “No entanto você falou da morte.”
MULHER JOVEM
- “Sim, falo do medo que essa palavra dá, mas nem por isso o conheço, nem por isso posso
dizer o desconhecido que contém, essa atração tão forte e também esse medo. Essa dificuldade faz
parte dessa razão esquisita de que lhe falei, dessa vontade de morrer.”
MADELEINE
- “Você sabe alguma coisa sobre a morte?”
MULHER JOVEM
- Ela sorri, diz: “Nada ainda, nada além da vida da qual ela vem.” (Silêncio) Chegaram aos
grandes pântanos do rio Magra. Aí então o vento do mar amaina. Apagam-se os barulhos do verão,
qualquer movimento. Há juncos, ninhos de aves marinhas.

MADELEINE
- Ela lhe diz: “É aqui que eu sempre quis vir.”
MULHER JOVEM (tempo)
- Ela diz: “Se você quiser, podemos nos amar. (Tempo) É aqui que não tenho mais medo
de morrer.”
(SILÊNCIO)
MADELEINE
- O céu do quarto ficou escuro. Suas sombras desapareceram das paredes. (Tempo) Estou
perdendo a memória.
(LONGO SILÊNCIO. ESCUTA-SE O QUINTETO DE SCHUBERT.)
MADELEINE
- Mando abrir todas as portas da casa, a porta que dá para o rio Magra, a porta dos barcos,
a porta dos quartos... que tudo entre e mate... os pântanos, a lama, o rio... Era um amor tão forte...
(ELAS FECHAM OS OLHOS, PERMANECENDO IMÓVEIS. ADÁGIO. MOMENTO DE
REPOUSO. DEPOIS A MULHER JOVEM LEVA MADELEINE ATÉ O ESPELHO E, MUITO
LENTAMENTE, ENQUANTO CONTINUA A SE DESENROLAR A MÚSICA DE
SCHUBERT, PÕE COLARES EM TORNO DO PESCOÇO DE MADELEINE. ESTA
CONSENTE. AJUDA A MULHER JOVEM A ENFEITÁ-LA, COM MUITO CUIDADO.
SORRI. QUANDO TODOS OS COLARES ESTÃO COLOCADOS, A MULHER JOVEM

42
ABRAÇA MADELEINE COMO SUA PRÓPRIA FILHA E A CHAMA NUMA ESPÉCIE DE
AMOR LOUCO.)
MULHER JOVEM (sorriso de uma ternura infinita)
- Minha filhinha... minha filha... minha bonequinha... meu tesouro... minha querida... meu
amor... minha menina, minha menina.
MADELEINE (em eco)
- Minha menina... minha menina... adorada, adorada.. (Tempo. Vibrante) Eram dias
quentes. (Tempo) Muito claros. (Tempo) Muito claros, muito. (Tempo) Está cheio de veranistas,
cheios de luz. (Tempo) Cheios de barcos. De lanças. De alegria.
MULHER JOVEM (estridente)
- Estava cheio de gritos, de risos. (Tempo) De cantos. (Tempo) E do mar. (Tempo) Do
azul.
MADELEINE
- De sombra fresca, cheio. De sol. Do branco da pedra.
MULHER JOVEM
- Dela. (Tempo) Do branco da pedra e dela sobre o branco. (silêncio) Ela grita que está
com a pele queimando, que se queima na pele dele, e ele a puxa pelos braços, tal uma enguia, e ela
cede e deita-se na pedra, pousa o corpo e seu coração e toda a pele sobre a pedra quente.
MADELEINE
- E ele lhe tira o maiô preto, e ela está nua, nua, e ele cobre de beijos por todo o corpo, no
ventre, no coração, nos olhos.
(SILÊNCIO. VOLTA DO TEMPO MAGNÍFICO.)
MADELEINE
- Alguém chora de felicidade ao vê-los.
MULHER JOVEM
- Alguém chora de felicidade porque eles vão morrer de amor. (silêncio) A criança.
MADELEINE
- A criança começou a chorar com o cair da noite. Estávamos tão inteiramente distraídos
com o sofrimento, que a havíamos esquecido.
MULHER JOVEM
- Uma garotinha? (Tempo) Estava com fome? (Riso)
MADELEINE (sorriso)
- Sim... sim... uma garotinha... ela estava com fome.
(SILÊNCIO. A MULHER JOVEM CONDUZ MADELEINE NUM LONGO PASSEIO PELO
PALCO. PRIMEIRO EM DIREÇÃO AO FUNDO DO CENÁRIO, À PORTA DO MAR, UMA
ESPÉCIE DE ALTAR ABERTO SOBRE O MAR, SOBRE A LUZ QUE ESCURECE OU, AO
CONTRÁRIO, SE TORNA DE UMA INCANDESCÊNCIA FRIA, SEGUNDO A VIOLÊNCIA
OU A SUAVIDADE DA EVOCAÇÃO, PELAS DUAS MULHERES, DA MOÇA MORTA NO
MAR QUENTE DE SAVANNAH BAY. EM SEGUIDA, ESSE PASSEIO VAI EM DIREÇÃO
ÀS PARAGENS LONGÍNQUAS DO PALCO PROPRIAMENTE DITO, EM DIREÇÃO ÀS
CORTINAS DE TEATRO E ÀS COLUNAS QUE ENQUADRAM A PORTA. ESSE TRAJETO
DURA ENTRE QUATRO E CINCO MINUTOS, ELAS NÃO FALAM DEPOIS DE TEREM
OLHADO O MAR AO LONGE, OLHAM PARA OS LUGARES ONDE ESTÃO E DEPOIS
PARAM E OLHAM A PLATÉIA, AS PESSOAS DA PLATÉIA. MÚSICA BAIXINHO DA
CANÇÃO DE PIAF DURANTE TODA A DEAMBULAÇÃO.)

CENA III

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MULHER JOVEM
- E então, um dia, nada aconteceu (Tempo) Um dia choveu e o céu ficou cinzento.
(Tempo) O dia todo. (Tempo) O céu desapareceu, a luz, o ar, as árvores. A noite caiu muito cedo.
(Tempo) Acenderam-se as luzes. Ninguém falava. (Silêncio) Quem tinha morrido naquele dia
cinzento? (Tempo longo) Quem tinha morrido naquele dia cinzento? Você nunca disse. Você nunca
disse que alguém tinha morrido. (Silêncio) Por que não ela? (Tempo) Por que não ela? Ela...
Insubstituível... ela ... na morte, entre os outros, por que não? (Silêncio. Olhar apavorado de
Madeleiene. ) Você sempre falou de um dia interminável, você dizia que tinha durado cem anos.
Que se fizera noite na casa. Que tudo estava silenciosos, salvo aqueles gritos do homem que
chamava. Não lembra?
MADELEINE
- Não.
MULHER JOVEM (tempo)
- Você sempre falou de um dia sem sol, muito longo. Das pessoas que tinham ficado
sabendo, que tinham ido, estavam em volta da casa. (Tempo. Gesto de Madeleine: não.) Você
sempre falou daquele homem que não compreendia a morte, que chamava uma morta para o rio
Magra. (Tempo. Gesto de Madeleine: não.) Não se lembra?

MADELEINE
- Não.
MULHER JOVEM
- De que você se lembra?
MADELEINE
- Dos grandes pântanos na embocadura do magra. Dos bosques. Continuam lá. (Tempo) O
mar. (Tempo) A pedra. (Tempo) O tempo.
MULHER JOVEM
- Os gritos.
MADELEINE
- Não. A história.
MULHER JOVEM (tempo)
- Nunca se vira um amor como aquele?
MADELEINE
- Não.
(SILÊNCIO.)
MULHER JOVEM
- Um amor como?
MADELEINE
- Um amor. (Tempo) Um amor de todos os instantes. (Tempo) Sem passado. (Tempo) Sem
futuro. (Tempo) Imutável. (Tempo) Um crime.
(SILÊNCIO.)
MULHER JOVEM
- O sol a cada manhã ao sair do escuro, e eles se amam com um amor inteiro, mortal, na
monotonia do tempo.
MADELEINE
- Na monotonia do tempo, sim, esse amor... singular...
(SILÊNCIO.)
MULHER JOVEM
- Era o que se dizia? E depois, foi escrito em um livro?
MADELEINE
- Acho que sim. Numa peça de teatro também. Além disso, depois num filme. (Tempo) O
filme veio depois, bem depois. No filme só se falava dele. (Tempo) Eu descobria que ele ainda

44
estava vivo. Encontrava com ele numa cidade do Sião, em Savannah Bay. (silêncio) Diga uma
coisa, teria nascido uma garotinha naqueles dias.. tão terríveis...?
MULHER JOVEM (tempo)
- Uma garotinha nasceu naquele dia da morte, sim. (Tempo) Quanto a esse ponto a
memória é clara, luminosa. Lembre, estava no jornal: ela teria saído de seu leito de parida para ir
para os lagos...
MADELEINE
- Ah... sim... Ela teria saído de seu leito de parida para ir para os lagos. (Tempo) Era o que
haviam dito. Ela seria muito reprovada por isso.... por ter deixado a criança.
MULHER JOVEM (tempo)
- Talvez com a criança fosse felicidade demais de uma vez só? (Tempo) Talvez não
tivessem espaço para a criança. (Tempo) Que o amor deles não podia conviver com nenhum outro
amor. (Tempo) Que nada teria podido impedir a morte. (Tempo) Era o fim do verão, era de noite,
chovia?
MADELEINE (Tempo)
- Era de noite, chovia. Naquela região chove com freqüência no fim do verão. (Tempo) Ela
também havia deixado a mãe. (Silêncio) Eles não queriam nada entre os dois. Queriam o mundo
vazio e só eles no mundo vazio. (Tempo) Para eles, não valia mais a pena que os dias fossem
diferentes, que fosse inverno, que fosse verão. (Tempo longo) No teatro, sim, era do lado dos lagos
que o homem chamava: “Escutem... estão gritando... vem dos lagos... escutem...”(Tempo longo)
Ninguém foi ver. (Tempo) Alguém deixara uma porta aberta na copa. Ele teria podido voltar. Não
voltou. (Tempo) Talvez ele não saiba mais o caminho... talvez... É preciso que se diga que nós não
sabíamos mais nada, nem falar, nem chorar. (Tempo) não sei se algum dia seu corpo foi encontrado.
Nunca perguntei isso. (Tempo) Não sei mais. (Silêncio. Ela procura na memória, duvida) Era sem
dúvida o homem da pedra branca, mas... quem sabe? (Tempo) Talvez fosse um dos homens da
pedra branca... o que ela escolhera para amar e morrer.
(SILÊNCIO.)
MULHER JOVEM
- No terceiro dia...
MADELEINE
- No terceiro dia, quando o sol raiou, ninguém gritava mais. Em parte alguma. (Tempo)
Quem sabe? (Tempo) Talvez ele tenha escolhido viver... ir embora. (Tempo longo) É curioso...
dessas coisa eu tenho certeza... do escuro da noite. (Tempo) Da chuva. (Tempo) Dos gritos.
(Tempo) Do raiar do sol no dia seguinte. (Tempo) Daquela cor do mar... (Tempo.) Do som das
vozes. (Tempo) Do silêncio entre as vozes. (Tempo) Do som das vozes. (Tempo) Do silêncio entre
as vozes. (Tempo longo. Em devaneio) Ele a chamava por sobre o mar: “Savannah”. Às vezes
berrava. Às vezes falava com ela muito baixinho. Ninguém entendia. (Tempo. Raiva) Como você
quer se que se entenda pessoas assim, que só se dirigem a outro diante do Eterno? Como?
(SILÊNCIO.)
MULHER JOVEM
- Poderiam tê-los chamado...
MADELEINE
- Poderiam tê-los chamado... suplicado que voltassem. Mas isso não foi feito... não teria
sido feito... Era um assunto entre os amantes... (Tempo. Lentidão) Eles devem ter nadado até bem
longe. A pedido dela. Isso, com certeza. E então...deve ter sido como a chegada do sono. (Tempo
longo) Para ela, a coisa deve ter sido fácil, ela estava tão cansada com o parto na mesma noite...
Para ele não, não deve ter sido possível, ele estava na plenitude de suas forças, não pôde livrar-se
delas para se impedir de nadar. (Tempo) É o que todo mundo diz, o que foi escrito, o que foi
encenado, por toda parte.
MULHER JOVEM (rosto escondido)
- E você, o que diz?
MADELEINE (clara como um veredicto)

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- Digo que é um instante como a pedra é branca. Sem mais ninguém. De repente.
MULHER JOVEM
- Somente o mar em volta da pedra. (Tempo) Os gritos. (Silêncio) É um instante de teatro.
MADELEINE
- É um instante de infinita dor.
(A MULHER JOVEM SE APROXIMA DE MADELEINE, QUE FICA SENTADA PERTO DA
MESA. FIM DA MÚSICA DE SCHUBERT.)
MULHER JOVEM
- O teatro está cheio. Nos abstemos de morrer por delicadeza. A platéia está esperando, nós
lhe devemos o espetáculo.
MADELEINE
- A platéia está escura. (Tempo) Contamos-lhe quem está morto. (Tempo) Quem continua
vivo. (Tempo) Quem gritava. (Tempo) Dizemos-lhe como o mar era azul. (Tempo) O calor que
fazia. (Tempo) Como a pedra é branca.
MULHER JOVEM
- Como a dor é longa. (Tempo) Como ela muda. (Tempo) Como se transforma (Tempo) A
segunda viagem. (Tempo) A outra margem. (Tempo) O segundo amor.
MADELEINE
- O segundo amor.
(A PORTA DO MAR SE ILUMINA. TODA A LUZ SE MODIFICA EM TORNO DAS DUAS
MULHERES. MADELEINE SE VIRA E OLHA A PORTA ABERTA SOBRE A LUZ. FICA
ALI PARADA, OLHANDO. A MULHER JOVEM ANDA EM DIREÇÃO A ESSA PORTA.
PÁRA UM BOM MOMENTO À BEIRA DA LUZ. COM A MÃO EM VISEIRA, PROCURA
ALGO NO MAR. DEPOIS VOLTA CALMAMENTE PARA JUNTO DE MADELEINE. PEGA
UM XALE E PÕE NOS OMBROS. PODER-SE-IA PENSAR QUE A NOITE SE APROXIMA.
ELAS ESTÃO PERTO UMA DA OUTRA. MÚSICA ALTA QUE ÀS VEZES DIMINUI ATÉ
DESAPARECER MAS QUE NÃO CESSARÁ NUNCA ATÉ O FIM DA PEÇA.
MULHER JOVEM
- Ninguém quis escrever essa peça para você?
MADELEINE (tempo)
- Ninguém jamais quis. Não. Por motivos muito corriqueiros. (Tempo) Para não despertar a
dor, entende. E também porque eu não podia mais sair correndo para me atirar em seus braços...
correr para ir embora. (Tempo) Bem, você entende...
MULHER JOVEM
- Teríamos ouvido uma canção...
MADELEINE
- Sim: Mon amour, mon amour. (Tempo) Você conhece?
MULHER JOVEM
- Sim.
(SILÊNCIO. ALEGRIA.)
MADELEINE
- A peça jamais será escrita. Então, é preferível morrer.
MULHER JOVEM
- É preferível viver, dá no mesmo...
MADELEINE
- Dá no mesmo... Pensando bem, é verdade.
MULHER JOVEM
- Assim, é uma peça que não foi nem montada nem escrita.
MADELEINE
- Nada... No que tange a essa peça, nada. (Tempo) Bem... ela não terá sido completamente
representada. (Tempo) Mas nada é completamente representado no teatro... então.... Achamos que
estamos representando isto e estamos representando aquilo... Vi grandes atores se enganarem de

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peça de repente... e ninguém perceber. (Tempo) Tudo se comunica no teatro, todas as peças entre si,
mas nada nunca é representado de fato, sempre se faz como se fosse possível... mas...
MULHER JOVEM
- Possível...? possível o quê...?
MADELEINE
- Bem... dizer... (simplicidade sublime) “Madame, bom dia, bom dia... o tempo que está
fazendo hoje daria vontade de morrer de excesso de luz, madame... do azul do céu, madame... de
um amor tão... Bom dia, madame...”
MULHER JOVEM
- “Bom dia, bom dia.”
(RISOS LEVES. FIM DOS RISOS. ELAS VOLTAM À MESA, TOMAM OUTRA XÍCARA DE
CHÁ.)
MULHER JOVEM
- No teatro, também teria sido numa cidade do Sião que você o encontrava?
MADELEINE
- Sim. Num bar. (Tempo) Eu o reconhecia.
MULHER JOVEM (tempo. Conta)
- É o fim do dia, (Tempo) pouco antes da noite, (tempo) quando a luz se prolonga, (tempo)
iluminante, antes de se apagar.
MADELEINE
- É o pôr-do-sol. (Tempo) Não se distingue mais a extensão do mar. (Tempo) A extensão
do mar se confunde com a extensão vermelha do céu.
(SILÊNCIO)
MULHER JOVEM
- Um homem chora.
MADELEINE
- É um homem inconsolável por ter perdido uma mulher. (Tempo) Eu o amo assim,
privado do objeto de seu amor como teria amado meu amante. Assim que o vejo, sinto um desejo
grande de seu corpo privado dela. (Tempo) Eu choro, tão grande é o desejo. (Tempo) Ele tem olhos
claros.
(SILÊNCIO. DE REPENTE, EIS O SIÃO.)
MULHER JOVEM
- A senhora mora no Sião?
MADELEINE
- Quer dizer, às vezes, senhor, pois é, esqueço onde... Desculpe.
MULHER JOVEM
- Ela está aqui para um filme, senhor. Está filmando em Savannah Bay. Com Henry Fonda.
MADELEINE (feliz)
- Sim, é isso mesmo, estou filmando em Savannah Bay com Henry Fonda. Título:
Savannah Bay.
MULHER JOVEM
- Acontece com freqüência fazerem filmes aqui, por causa da luz admirável de Savannah
Bay.
MADELEINE
- Admirável... admirável...
MULHER JOVEM
- Sempre igual. Não chove quase nunca. Só tufões, na época dos equinócios. Mais nada.
MADELEINE
- Mais nada.
MULHER JOVEM (tempo)
- Um filme de amor, madame?
MADELEINE

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- Claro, senhor, claro...
(MÚSICA DE SCHUBERT. GESTO DE TRISTEZA DE MADELEINE: DUAS LÁGRIMAS
QUE ENXUGA COM O DEDO.)
MULHER JOVEM
- “Madame, por que esse desespero de repente?”
MADELEINE (lentidão)
- “Porque... não sei mais, senhor, porque choro...” (silêncio) Na minha opinião, senhor, ela
teria ido ao encontro da morte numa noite, aqui mesmo. Em Savannah Bay. Morta de amor.
(Silêncio) O senhor teria sido seu amante. (Tempo) Ela teria tentado levá-lo para a morte. (Tempo).
O senhor não teria conseguido morrer. (Tempo) Ela teria dezessete anos. (Tempo) Uma menina
teria nascido desse amor. (Tempo) Dessa morte no mar quente de Savannah Bay. Mas quem sabe?
(Tempo longo.) Ter-se-ia passado há muito tempo atrás, senhor, é o que se diz, há um número
considerável de anos. (Tempo) Então, senhor, assim, eu me engano nas datas... nas pessoas... nos
lugares... (Tempo) Por toda parte ela morreu. (Tempo) Por toda parte nasceu. (Tempo) Por toda
parte morreu em Savannah Bay. (Tempo) Nascida ali. Em Savannah.
MULHER JOVEM
- Ele lhe disse que não era ele quem a havia amado. (Tempo) “Não fui eu, madame, que
vivi esse amor. Desculpe.”
MADELEINE
- “Dá no mesmo, senhor, dá no mesmo...” (Silêncio) Eu ia embora. Saía do Sião.
MULHER JOVEM
- Você recomeçava a procurar.
MADELEINE
- Sim. Por toda parte. Nas cidades do mundo que estão à beira-mar.
MULHER JOVEM
- Xangai... Calcutá... Rangun... (Tempo) Ou em outros lugares...
(Tempo) Bombaim...Paris-Praia... Bangkok... Djacarta... Singapura... lahore... Biarritz... Sydney...
MADELEINE
- Saigon... Dublin... Osaka... Colombo... Rio... (Tempo) E quem sabe? (Tempo) E quem
sabe?
MULHER JOVEM
- E quem sabe?
(SILÊNCIO. TOM DIFERENTE, COMO QUE DE OUTRO DIA.)
MULHER JOVEM
- Não deram nome à criança que nasceu. Eu lhe disse?
MADELEINE
- Ela mesma se nomeou mais tarde.
MULHER JOVEM
- Pois é. Ela se deu o nome de Savannah.
MULHER JOVEM (tempo)
- O nome do fogo.
MADELEINE
- O nome do mar.

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