Você está na página 1de 7

Universidade Estadual de Maringá

26 e 27/05/2011

TOMÁS DE AQUINO: O HÁBITO COMO QUALIDADE QUE


DETERMINA A AÇÃO

BOVETO, Lais (UEM)


OLIVEIRA, Terezinha (Orientadora/UEM)

Neste texto, pretendemos abordar a perspectiva tomasiana do conceito de hábito,


estabelecendo algumas relações com a concepção aristotélica. Utilizamos, para tanto, a
questão 49 (Ia IIae) da Suma Teológica de Tomás de Aquino e os livros I e II da obra
Ética a Nicômaco de Aristóteles.
A questão 49 – intitulada Os hábitos em geral quanto à sua substância – está
inserida na parte Os hábitos e as virtudes e está dividida em 4 artigos: 1. O hábito é uma
qualidade?; 2. O hábito é uma espécie determinada de qualidade?; 3. O hábito existe
em ordem ao ato?; 4. Sobre a necessidade do hábito. Antes de tratarmos de cada um
dos artigos, é fundamental compreendermos o conceito aristotélico de hábito que está
presente na obra tomasiana, mas recebe um tratamento diferenciado por parte dos dois
estudiosos.
Em Aristóteles, observamos que, no Livro II da Ética, o hábito é apresentando
como meio pelo qual os homens aprendem as virtudes morais.

Sendo a virtude, como vimos, de dois tipos, nomeadamente,


intelectual e moral, a intelectual é majoritariamente tanto produzida
quanto ampliada pela instrução, exigindo, consequentemente,
experiência e tempo, ao passo que a virtude moral ou ética é o produto
do hábito, sendo seu nome derivado, com uma ligeira variação da
forma, dessa palavra. E, portanto, fica evidente que nenhuma das
virtudes morais é em nós engendrada pela natureza, uma vez que
nenhuma propriedade natural é passível de ser alterada pelo hábito.
(ARISTÓTELES, Ética, L. II, 1, § 1).

O Filósofo expressa que a virtude moral não nos é concedida pela natureza.
Recebemos a potência para desenvolver as virtudes morais, mas a capacidade de agir de
acordo com elas só pode ser adquirida pelo hábito. Ao contrário das capacidades

1
Universidade Estadual de Maringá
26 e 27/05/2011

sensitivas, como a visão, por exemplo, as virtudes morais só podem ser desenvolvidas
pelo exercício constante, pelo hábito de exercê-las. Assim, Aristóteles afirma que “[...] a
virtude moral ou ética é produto do hábito [...]” (Ética, L. II, 1, § 1), ou seja, para que o
homem seja ético é necessário que tenha o hábito de agir de maneira ética. Contudo,
como este hábito não é oferecido pela natureza, é necessário que o homem seja educado
para adquiri-lo.
Nesse sentido, as ações humanas se encontram imersas na cultura, nos hábitos e
no conhecimento. São esses aspectos que nos movem e temos a liberdade de
encaminhá-los para boas ou más ações. A prática social cotidiana depende, diretamente,
dos hábitos adquiridos, das escolhas realizadas e do conhecimento que possuímos.
Escolhas, conhecimento e hábitos determinam, desse modo, as características sociais do
homem, pois determinam, também, o seu agir.

É através da participação em transações com nossos semelhantes que


alguns de nós se tornam justos e outros, injustos [...]. Em síntese,
nossas disposições morais são formadas como produto das atividades
correspondentes. Consequentemente, nos compete controlar o caráter
de nossas atividades, já que a qualidade destas determina a qualidade
de nossas disposições. Não é, portanto, de pouca monta se somos
educados, desde a infância dentro de um conjunto de hábitos ou outro;
é, ao contrário, de imensa, ou melhor, de suprema importância.
(ARISTÓTELES, Ética, L. II, 1, § 2).

A noção aristotélica de hábito está relacionada, diretamente, com a percepção de


política do Filósofo. A política pode assegurar a existência da cidade, no sentido de
desenvolver leis, costumes e práticas educativas. O desenvolvimento dos hábitos, por
sua vez, assegura as características que cada homem necessita para conviver com o
outro, condição essencial para a existência da sociedade. O bem da polis e o bem
individual formam uma unidade indissolúvel. O homem, neste sentido, deve ser
educado, desde cedo, para compreender que o bem da cidade assegura sua própria
felicidade. A educação é que afasta o homem de um estado de animalidade para inseri-
lo em um estado de humanidade. Como Aristóteles viveu em um contexto em que a
Filosofia passou a se concentrar no homem em sua totalidade – diferentemente do
período anterior em que o foco era a natureza –, sua noção de desenvolvimento moral e

2
Universidade Estadual de Maringá
26 e 27/05/2011

intelectual é direcionada a permitir ao ser humano existir, em sociedade, como ser


autônomo e livre.
A preocupação com a totalidade, com a noção de unidade e com um agir
responsável surge, também, nos textos tomasianos. Tomás de Aquino vivencia, no
século XIII, o momento em que a cidade e o comércio florescem. A preocupação com o
conhecimento, as ciências, assim como, com a evangelização esteve presente neste
período e se manifestou, especialmente, nas Ordens Mendicantes (OLIVEIRA, 2007). A
realidade social vivenciada pelo mestre Tomás é, evidentemente, muito diferente da
Antiguidade, contudo, isso não impede que as teorias aristotélicas sejam aplicadas ao
cristianismo medieval, na tentativa de promover uma Filosofia cristã. A unidade
existente entre razão e fé, esteve presente no medievo e, muitas vezes, é interpretada
como o vínculo entre duas ‘coisas’ diferentes. É necessário destacar que, para os
pensadores medievais, razão e fé, alma e matéria, constituíam uma unidade
indissociável1. Esta percepção levou Tomás de Aquino a desenvolver um pensamento
original tanto em termos teológicos, como filosóficos (OLIVEIRA, 2005)2.
No caso de sua análise do conceito de hábito, essa originalidade pode ser
percebida pelo método com o qual Tomás de Aquino apresenta as noções de hábito e
virtude. Se em Aristóteles o hábito é o meio para o desenvolvimento das virtudes morais
e da ética; no mestre Tomás, as virtudes são formas de manifestação dos hábitos. Logo
no início da questão 49, isto é expresso com a indicação de que primeiro serão
abordados os hábitos em geral e, posteriormente, “[...] as virtudes e os vícios, e outros
hábitos semelhantes [...]” (TOMÁS DE AQUINO, ST, Ia IIae, q. 49).
No primeiro artigo da questão 49, Tomás de Aquino questiona se o hábito é uma
qualidade e, na sequência, indaga se é uma espécie determinada de qualidade.

1
Conforme o professor Gerald Cresta, os homens medievais distinguiam razão e fé, porém não as
consideravam num estado de oposição ou de superioridade. Mas, como interdependentes: para que a
razão se desenvolva a fé é essencial e a fé só pode existir num ser que possui e utiliza a razão. “Este punto
de partida originario constituído por la fe es el que mueve al entendimiento a examinar el objeto creído.
Se parte de la fe porque se está frente a un objeto de conocimiento al cual no es posible acceder con los
sentidos, y sobretodo porque se trata de un objeto trascendente que es dado históricamente por la fe a la
razón natural para que ésta última lo examine” (CRESTA, ¿Es Posible el conocimiento de Dios? –
aproximaciones y diferencias entre Santo Tomás y San Buenaventura. Disponível em:
http://www.hottopos.com/rih4/gerald.htm. Consulta em: 24/mai/2010).
2
No período pré-tomista (séculos IX – XIII), predominava a escolástica de Santo Agostinho, que, embora
não distinguisse fé e razão, priorizava a primeira.

3
Universidade Estadual de Maringá
26 e 27/05/2011

A palavra hábito vem do verbo habere [haver-ter]. [...].


Se, porém, ter é tomado no sentido de uma coisa que, de alguma
forma, se tem em si mesma ou relativamente a outra, como esse modo
de ter supõe alguma qualidade, então o hábito é uma qualidade. Daí a
afirmação do Filósofo: “chama-se hábito a disposição pela qual a
coisa disposta se dispõe bem ou mal ou em si mesma ou em relação a
outra coisa, de modo que a saúde é um hábito”. É nesse sentido que
falamos agora de hábito e por isso deve-se concluir que ele é uma
qualidade. (TOMÁS DE AQUINO, ST, Ia IIae, q. 49, a. 1).

Vemos que mestre Tomás parte da origem latina da palavra hábito, ao passo que
o conceito aristotélico está vinculado à origem grega da palavra – ethos (hábito) e éthos
(caráter) são congêneres. Tanto em um sentido, quanto em outro, o hábito qualifica o
sujeito, dispondo-o bem ou mal em relação a si mesmo ou a ‘outra coisa’. No segundo
artigo, isto se torna mais claro com a demonstração da diferença entre hábito e
disposição, com a finalidade de comprovar que o hábito é uma qualidade distinta.

Disposição tem dois sentidos: no primeiro, é o gênero do hábito, por


isso o livro V da Metafísica afirma a disposição na definição do
hábito. No segundo, é algo contraposto ao hábito. É a disposição
propriamente dita, que se contrapõe ao hábito de duas maneiras: uma,
como o perfeito e o imperfeito na mesma espécie: assim a disposição,
conservando o nome comum, está inerente ao sujeito imperfeitamente,
e por isso, facilmente se perde: enquanto o hábito está inerente
perfeitamente, de modo que não se perde com facilidade. Assim, as
disposições se tornam hábitos, como a criança em adulto. [...]. É por
esse motivo que ele [Aristóteles], para provar essa distinção, invoca o
linguajar comum, segundo o qual as qualidades que por sua razão são
facilmente móveis, se por algum acidente se tornam dificilmente
móveis, se chamam hábitos. O contrário sucede com as qualidades que
são por natureza dificilmente móveis: pois se alguém domina
imperfeitamente uma ciência, a ponto de poder perdê-la com
facilidade, diz-se antes estar disposto à ciência do que ter a ciência.
Donde se vê que o nome de hábito implica uma certa durabilidade;
mas a disposição, não. (TOMÁS DE AQUINO, ST, Ia IIae, q. 49, a. 2).

Desse modo, é relevante ressaltar que o mestre dominicano indica o hábito como
uma qualidade específica, que se diferencia da disposição por ser dificilmente removível
– difficile mobile – e por ser qualitativamente superior a esta. Na passagem acima, a
disposição é apresentada como uma característica que, por se desenvolver, transforma-
se em hábito. Nesta ideia está expressa a relevância do hábito como qualidade que

4
Universidade Estadual de Maringá
26 e 27/05/2011

dificilmente perdemos e acreditamos que, por esse motivo, deve ser desenvolvida e
direcionada às ações virtuosas. O que nos leva a pensar desse modo em relação à análise
da questão 49, é o fato de que Tomás de Aquino indaga, no artigo seguinte, se ‘o hábito
implica ordenação ao ato’. Sua conclusão é que “[...] o hábito não implica só ordenação
à natureza da coisa, mas também, por conseqüência, à ação, enquanto é fim da natureza,
ou conduz para o fim.” (TOMÁS DE AQUINO, ST, Ia IIae, q. 49, a. 3). Assim, a
qualidade hábito implica em uma ação que conduz à finalidade da natureza e à
determinação das potências para o bem ou para o mal.
No artigo quarto, esta argumentação prossegue com a questão relativa à
necessidade ou não dos hábitos. Tomás de Aquino explica que são necessários três
requisitos para uma coisa se dispor a outra, tal qual alguém se dispõe bem ou mal para
algo. O primeiro, é que essa ‘coisa’ seja composta de potência e ato e não exista por si
mesma, pois se assim não o for, não haverá lugar para o hábito ou para a disposição, tal
como ocorre em Deus. O segundo requisito, para que ocorra tanto a disposição, quanto
o hábito, é que o sujeito tenha potência relacionada a mais de uma ação, ou seja, é
necessário que haja possibilidade de escolha. Assim, o exemplo que o mestre Tomás
apresenta é de um corpo celeste que tem, em potência, um único movimento – este não
poderá ser sujeito de disposições ou hábitos. O terceiro requisito, é que haja condições
de comparação entre muitas formas e ações para que o sujeito possa se dispor bem ou
mal em relação a estas, ou seja, para que tenha escolha.
Observa-se, portanto, que o argumento utilizado por Tomás de Aquino para
comprovar a necessidade do hábito, relaciona-se à escolha. Os hábitos e as disposições
só podem existir em seres que têm como característica a potência a realizar diferentes
ações – boas ou más.

QUANTO AO 2º, deve-se dizer que a potência de algum modo está


para muitas coisas: por isso precisa que seja determinada por alguma
outra coisa. Se houver alguma potência que não esteja para muitas
coisas, não necessita de hábito determinante, como foi dito. É este o
motivo por que as forças naturais não exercem suas ações por meio de
hábitos, já que por si mesmas estão determinadas a uma só coisa.
QUANTO AO 3º, deve-se dizer que não é o mesmo hábito que está
para o bem e para o mal, como mais adiante se verá. Mas é a mesma
potência que está para o bem e para o mal. Por isso são necessários os

5
Universidade Estadual de Maringá
26 e 27/05/2011

hábitos para que as potências sejam determinadas para o bem.


(TOMÁS DE AQUINO, ST, Ia IIae, q. 49, a. 4).

Para o autor, os hábitos são necessários aos seres humanos para determinar suas
ações para o bem. Potencialmente, os homens podem agir tanto para o bem quanto para
o mal. O que Tomás de Aquino expressa é que o hábito é a forma apropriada para
determinar as potências humanas para o bem. As denominadas ‘forças naturais’ não são
objetos dos hábitos, pois possuem uma potência direcionada a uma única ação. Deus,
também, não é ordenado pelo hábito, pois possui existência em si mesmo. Mas as
potências do homem necessitam de ‘algo’ que as orientem.
É possível, portanto, considerar que, tanto para Aristóteles, quanto para Tomás
de Aquino, o hábito orienta as ações. Para o Filósofo da Antiguidade, o hábito é o meio
pelo qual as ações virtuosas podem ser aprendidas; para o mestre medieval o hábito é a
qualidade necessária para que as ações sejam ordenadas para o bem. Desse modo,
observamos que, a concepção tomasiana de hábito é fundamentada com a teoria
aristotélica, porém, é apresentada de uma nova maneira, adequada a seu tempo. A
questão que se apresenta na teoria de Tomás de Aquino é a relação do homem com a
espiritualidade e com Deus.
Nesta noção, reside um dos pontos que consideramos relevantes no estudo do
conceito de hábito na História da Educação: observar o que se mantém na teoria dos
autores clássicos em relação ao conceito. Neste texto, elegemos Tomás de Aquino e
procuramos observar como este considerou a percepção aristotélica de hábito em uma
de suas inúmeras questões. Para o mestre Tomás, o conceito passa a se configurar como
uma qualidade superior à disposição, pois, é dificilmente removível e, portanto, deve ser
orientado pelo bem. Desenvolver hábitos significa, dessa maneira, desenvolver
qualidades que se manifestarão nas ações humanas – a ética, por exemplo, é uma
qualidade de quem desenvolveu o hábito de praticar ações éticas.
Outro ponto que consideramos relevante – e que nos move a dar continuidade ao
estudo sobre o hábito – é que, na História da Educação, temos a possibilidade de
aprender, com este e outros conceitos, formas de educar que podem ser aplicadas em
nossos dias. Afinal, quando observamos a educação escolarizada, por exemplo, são
vários os hábitos e disposições indesejáveis que poderíamos mencionar – desde a falta

6
Universidade Estadual de Maringá
26 e 27/05/2011

de atenção, até a falta de respeito; alunos e educadores têm se questionado a respeito de


suas funções nas instituições educativas. Se por um lado, os alunos não veem na escola
um ambiente estimulante e saem dela com um nível de aprendizagem abaixo do
mínimo; por outro, muitos educadores não têm clareza da real função da instituição e de
seu papel no processo de ensino e aprendizagem. Acreditamos que é neste sentido que o
estudo de conceitos – como o de hábito – pode colaborar para a formação no campo
educacional.

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Bauru, SP: Edipro, 2009.

CRESTA, G. ¿Es Posible el conocimiento de Dios? – aproximaciones y diferencias


entre Santo Tomás y San Buenaventura. Disponível em: <<http://www.hottopos.com>>.
Consulta em: 24/mai/2010.

OLIVEIRA, T. Escolástica. São Paulo: Mandruvá, 2005.

______. Os mendicantes e o ensino na Universidade Medieval: Boaventura e Tomás de


Aquino. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, XXIV, 2007. São Leopoldo, RS.
Anais... São Leopoldo: Unisinos, 2007.

TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. São Paulo: Loyola, 2005. IV volume, q. 49-
114.

Você também pode gostar