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Revista Portuguesa de Filosofia

Interculturalidade e Religião: Para Além da Violência


Author(s): JOÃO DUQUE
Source: Revista Portuguesa de Filosofia, T. 67, Fasc. 4, RELIGIÃO e INTERCULTURALIDADE
/ RELIGION and INTERCULTURALITY (2011), pp. 695-709
Published by: Revista Portuguesa de Filosofia
Stable URL: https://www.jstor.org/stable/41804059
Accessed: 07-07-2021 18:22 UTC

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Interculturalidade e Religião:
Para Além da Violência

JOÃO DUQUE*

Resumo

Depois de apresentar a inseparável relação entre religião e cultura, com base nu


dagem hermenêutica da filosofia da religião, focaliza-se a questão no topos da relaç
religião e violência, com recurso às leitura de Girard, Ricoeur e Marquard. Ao cont
que muitas propostas defendem, considera-se o potencial do monoteísmo como s
de violência. Nesse contexto, o conceito cristão de Deus, baseado na originária ar
da identidade com a relação, é considerado como caminho religioso para a supe
violência - também no âmbito da relação inter-cultural.
Palavras-chave : cultura, Filosofia da religião, monoteísmo, relação, violência

Abstract

After presenting the inseparable relation between religion and culture from the perspective of
a hermeneutics of the philosophy of religion, the article centres its attention on the relation
between religion and violence, with special recourse made to Girard, Ricoeur, and Marquard.
Contrary to what has been often proposed, the essay advances the idea that monotheism has
the potential of overcoming violence. In this context, the Christian concept of God, based on
an original articulation of identity and relation, is conceived as the religious path to the over-
coming of violence - also in the ambit of intercultural relation.
Keywords : culture, monotheism, Philosophy of Religion, relation, violence

que são as faces de uma mesma moeda: por um lado, trata-se de


A pensar questão quepensar
são o asefeito
fundamental
da relação efeito faces dasobrede relação
intercultural o modo uma aqui mesma intercultural colocada moeda: pode sobre por assumir um o modo lado, duas trata-se de pensar faces, de
de pensar
e viver a religião; por outro lado, trata-se de pensar o lugar da religião
- no caso concreto, das religiões - na relação intercultural que marca o
contexto contemporâneo das relações humanas, seja a nível global seja
a nível local. No sentido de organizar algumas ideias em torno a esta
questão dupla, proponho que, em primeiro lugar, seja refletida a relação
básica entre religião e cultura; partindo daí, levanta-se a questão da
relação entre culturas, com base na relação entre religiões - o que nos
conduz ao problema da violência e da tolerância; com base nesses dois
passos, proponho uma abordagem do fenómeno religioso no contexto das

* Universidade Católica Portuguesa, Braga, jduque@braga.ucp.pt

Vol. 67 I
Fase. 4 Q RPF 2011 | 695-710

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identidades culturais e d
o ponto de partida teol
de religião, embora pre
- o que permite o discur
todo o percurso é constit
que me parecem poder i
em estudo.

1. Religião e cultura

Para se entender mais profundamente, sobretudo em registo filo-


sófico, a relação entre religião e cultura, é importante recordar, de modo
extremamente sintético, alguns tópicos do trajeto da filosofia da religião,
da modernidade para cá. De facto, um dos núcleos fundamentais desse
trajeto está relacionado, precisamente, com a relação entre a religião, tal
como ela é vivida historicamente - e, por isso, como fenómeno cultural - e
a sua verdade conceptual, que a pensa para além dessa dimensão cultural.
Na relação dinâmica, por vezes mesmo dialética, entre esses dois aspetos
é que a reflexão filosófica sobre a religião se desenvolveu nos últimos
séculos.
Nessa relação podemos encontrar espelhada a ancestral relação entre
o mythos e o logos, enquanto modos de compreender o real e o habitar.
No caso, contudo, quer um quer outro assumem o estatuto de religião,
independentemente do modo de relação entre um e outro. O que signi-
ficou, em muitos casos, que o logos da religião se transformou em religião
do logos , por vezes em confronto com uma pretensa religião do mythos.
Poderíamos, assim, falar da evolução da história da filosofia da religião,
nos últimos séculos, como uma conjugação entre especulação (enquanto
trabalho do logos) e realidade histórica (enquanto articulação cultural do
mythos ).
Se é certo que só a partir de Kant é que se pode falar em filosofia da
religião, enquanto filosofia do fenómeno religioso, o certo é que o próprio
Kant desenvolve a mesma com base numa distinção dicotòmica entre o
fenómeno religioso histórico e uma "religião nos limites da simples razão",1
a qual constitui, para ele, a única base viável para uma autêntica filosofia
da religião. Esse estilo «racional» de abordagem da religião, que pretende

1 . Cf. Kant, I. - Die Religion innerhalb der Grenzen der blossen Vernunft. Königsberg:
Friedrich Nocolovius, 1793.

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compreender a sua verdade intrínseca, abstraindo das suas realizaç


históricas concretas, supera qualquer simplificação funcionalista, s
lógica ou pragmatista da mesma - como foi grande parte das aborda
que viriam a afirmar-se posteriormente. Num certo sentido, pergun
pela essência do religioso, pressupondo que todas as realizações huma
porque inseridas em contextos que lhe atribuem outros tantos significad
ficam aquém dessa essência, pois acabam por sucumbir ao interesse
condicionado pelos sujeitos, no espaço e no tempo. O problema inerente
à posição de Kant - pelo menos tendencialmente, já que essa posição se
encontra muito diferenciada no texto kantiano2 - reside no facto de a
sua base dicotomica (entre racionalidade e historicidade da religião) não
permitir pensar, em última análise, o fenómeno religioso enquanto tal, e
conduzir, paradigmaticamente, a uma oposição irreconciliável entre, por
assim dizer, uma religião filosófica e uma religião teológica (considerada,
no caso, como presa nas malhas da história e das circunstâncias culturais
de uma revelação concreta), destinando-se a segunda a desaparecer, no
contexto da Aufklärung.
Uma primeira fenomenologia da religião, em sentido rigoroso - isto
é, que pretende partir do fenómeno histórico da religião, enquanto arti-
culado sempre culturalmente - deve-se apenas a Hegel, cujo principal
intuito era, precisamente, o de superar a dicotomia entre religião histórica
(do âmbito da Vorstellung , ou seja, da representação ou melhor da figuração3)
e religião da razão (do âmbito do Begriff, ou seja, do conceito ).4 Efetuada
essa superação, já não faria sentido falar numa religião «natural», pois toda
a religião é sempre «positiva» por natureza. Mas, por outro lado e segundo
o sistema hegeliano, toda a religião positiva se encontra, já, a caminho
do conceito de si mesma e não é, portanto, apenas histórica. A positi-
vidade da representação constitui o seu próprio conceito (a sua essência,
se quisermos).5 E isso torna-se mais evidente na religião absoluta, que é a
religião da ideia de Deus, enquanto reino do Pai, do Filho e do Espírito.
O cristianismo seria, pois, a verdade da religião, enquanto superação da
positividade de todas as religiões na religião da absoluta ideia de Deus -
ou seja, no conceito da verdadeira religião.

2. Para uma leitura sintética, ver Duque, J. - "Kant e a religião". Estudos (CADC) (2004).
3. Cf. Ricœur, P. - "Le statut de la «Vorstellung» dans la philosophie hégélienne de la
religion". In : Id. -Lectures 3. Paris: Seuil, pp. 41-62.
4. Cf. Hegel, G. W. F. - Vorlesungen über die Philosophie der Religion. Werke in 20 Bände.
Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 1986.
5. Cf. Ricœur - "Le statut", 42: "É por isso que nada há de pejorativo na caracterização
da religião como intrinsecamente «positiva», e não natural ou racional".

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Nesse sentido, a fenomen


menos na sua positividad
"fenomenologia do espírit
do próprio conceito, até s
sofia da religião não é, pr
religioso enquanto tal, mas
religiosa (discurso religios
conceito de religião (discu
"Compreender filosoficam
especulativa, permanecend
Mais uma vez, é impor
metafísico-transcendenta
de "dissolver a tarefa de
menal numa simples epis
De qualquer modo, a tiran
ração ao conceito impede
aquela como algo mais do
chegada ao conceito. Corr
(ainda figurativa) orientam
na qual se dissolvem.
A esse movimento espec
a filosofia hermenêutica
mação. É Gadamer, um d
modo insuperável "Mas, n
pensar, mantém-se a exig
contrária ( Gegenrichtun
une. Quanto mais radicalm
mesmo e desenvolve a ex
para aquilo que ele não é.
para a hermenêutica".8 Es
do conceito à figuração: n

6. Ricœur - "Le statut", 43; cf.


rativo, mas gera a dialética inter
giosas não são conteúdos inerte
orientado para o modo especulat
7. Greisch, J. - "La métamorp
In: AA.W. - Paul Ricœur. Métam
pp. 311-336, 312.
8. Gadamer, H.-G. - Die Idee de
Gesammelte Werke 3, Tübingen,

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da filosofia da religião, que leva em consideração sempre a sua articul


histórico-cultural.
Sobretudo influenciada pela fenomenologia da religião de Mircea
Eliade, a filosofia hermenêutica da religião, tal como é evocada - não
propriamente desenvolvida - por Paul Ricoeur, parte da articulação na
linguagem e nos símbolos, não para conduzir ao conceito, mas para se
manter no constante jogo hermenêutico entre conceito e o símbolo ou a
linguagem. O conceito, sempre precedido por essas articulações de sentido,
pensa-as, sem as esgotar e, desse modo, reconduz a filosofia da religião à
sua dimensão figurativa. Não se trata, portanto, de uma afirmação da figu-
ração, por oposição ao conceito, mas de se manter no jogo entre figuração
e especulação, sem que qualquer uma cumpra definitivamente a outra.
Assumido esse estatuto cultural da religião - o que implicará sempre
uma espécie de estatuto religioso da cultura - pensar o seu lugar no dina-
mismo intercultural implica, antes de mais, refletir sobre o potencial
conflitivo dessa particularização simbólico-cultural do religioso. Também
aí, como se verá, a relação entre o símbolo particular e o conceito universal
poderá ser inspiradora.

2. Da violência à paz

Há algumas décadas já, Arnold Gehlen lançava uma afirmação sinto-


mática: "Que a religião volta a ser algo sério, notar-se-ia pelo menos com
o aparecimento de frontes de combate determinadas religiosamente".9
Ou seja, após a pretensa superação moderna do religioso como origem
de conflito, a presença desse mesmo religioso manifesta-se como não
superada e, ao mesmo tempo, de novo como potencial fonte de conflito.
A violência entre os seres humanos ou destes em relação ao resto
do mundo não pode deixar de ser vista como um dos mais fundamen-
tais enigmas da existência. Enquanto manifestação do fenómeno do
mal, partilha com ele essa condição simultaneamente fundamental e
enigmática.10
Ora, se a religião se situa também nesse âmbito fundamental e enig-
mático para o ser humano, não admira que sempre se tenha encontrado na
vizinhança do problema da violência. Antes de tudo, evidentemente, como
tentativa de domínio desse fenómeno originalmente caótico e causador de

9. Gehlen, A. - "Religion und Umweltstabili-sierung". In: O. Schatz, O. [Ed.] - Hat die


Religion Zukunft ? Graz / Wien / Köln 1971, p. 96.
10. Cf. J. Duque, J. - "O mal: Deus em questão (?)". Didaskalia 29 (1999): 301-334.

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caos, que ameaça a destru


inter-humanas.

1« Ninguém como René Girard terá analisado de forma tão vasta e


fundamental esta relação primordial entre religião e violência. 1 1 0 primeiro
grande pressuposto da sua teoria é que a relação humana assenta primor-
dialmente na violência, provocada pelo desejo mimètico, isto é, pelo desejo
de imitar ou de ocupar o lugar do outro e de ter aquilo que o outro tem.
Se assim é, toda a relação humana estaria condenada ao fracasso, à partida.
No caos instaurado por esse desejo mimètico total e indiferenciado, não
seria possível o surgimento de nenhuma comunidade humana - nem,
por isso, a sobrevivência da Humanidade. Essa sobrevivência dependerá,
portanto, de um mecanismo que controle esse caos primordial e sem-
pre ameaçador, diferenciando assim a relação de violência generalizada.
Girard encontra esse mecanismo no esquema do sacrifício expia-
tório, em que um inocente carrega com a violência generalizada, sendo
considerado culpado e possibilitando, desse modo, que em relação a si
se unam os membros de uma comunidade. Ou seja, através da violência
sobre um bode expiatório constrói-se a paz entre o resto dos membros de
uma sociedade, o que possibilita a convivência humana.
Toda e qualquer comunidade humana, superadora da violência,
assentaria nesse ato violento primordial, que é por isso considerado da
ordem do sagrado. Segundo Girard, todas as religiões se baseiam nessa
violência contra a violência e só a permanência e repetição ritual do
esquema sacrificial originário é que permite a superação da violência
destruidora, provocada pelo desejo mimètico.

2. Paul Ricoeur,12 por seu turno, partindo embora de Girard mas


seguindo um caminho algo diverso, situa a relação entre religião e
violência a um nível que me parece mais próximo do cerne do religioso
do que a sua fundamentação no esquema do sacrifício, segundo Girard.
Para este, tudo se situa no nível sociológico ou quando muito psíquico da
construção do ligame social, reduzindo-se a religião a essa função e a esse
processo imanente de construção da sociedade humana. Para Ricoeur,
de modo diferente, o elemento fundamental da religião é precisamente
a desproporção entre o "excesso do fundamento... e a minha capacidade

11. Para o que se segue, ver sobretudo a interessante síntese da sua vasta obra em
Girard, R. - "Violence et religion". Revista Portuguesa de Filosofia 56 (2000): 3-10.
12. Ver, sobretudo: Ricœur, P. - "A religião e a violência". Revista Portuguesa de Filosofia
56 (2000): 25-35.

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finita de acolhimento, de receção, de apropriação, de acultura


ou seja, o núcleo do fenómeno religioso reside numa relação di
ou tensional entre estes dois elementos, tal como têm sido tematizados
precisamente pela transformação moderna e contemporânea da filosofia
da religião. Ora, o excesso manifesto nessa tensão pode surgir como uma
ameaça para aquilo que eu sou, no meu grupo ou na minha cultura finita.
Ou seja, a identidade pessoal e coletiva, sendo sempre particular e por isso
finita, sente-se ameaçada por uma referência infinita, que a excede e que
a impede de dominar o real, no seu fundamento. "É pois em mim mesmo
que experimento essa desproporção que existe entre a minha capacidade
finita de adesão e o reconhecimento de algo fundamental que sempre me
excede e, pelo seu excesso, me ameaça, o que me faz sofrer. A violência
torna-se, então, uma tentativa de proteção contra o perigo de desenraiza-
mento, de cuja ameaça iminente surdamente me apercebo".14 A violência
aparece então como proteção contra esse excesso, em todas as suas mani-
festações possíveis, sobretudo naquelas manifestações concretas em que
nos sentimos ameaçados pela diferença de outras identidades pessoais ou
coletivas. "Todas as outras comunidades históricas que se reclamam de um
mesmo transcendente, mas nos termos de uma outra confissão, aparecem
como rivais na luta pela apropriação do Ser, do Outro absoluto, tratado
como um mesmo, a possuir com exclusão dos outros".15 Lendo este meca-
nismo à luz da sua origem primeira, poder-se-ia então dizer: "O excesso
de ser converte-se em ter, objeto do desejo de apropriação, projetando
nas outras comunidades o mesmo gesto de apropriação-expropriação
por rivalidade que se prolonga até mesmo no processo de acolhimento".16
A transformação do sentimento de excesso em relação ao funda-
mento transcendente da nossa finitude humana em motivo de violência
contra esse excesso, tal como surge nas suas manifestações concretas
através das diferenças de outros em relação a mim ou ao meu contexto
cultural - isto é, na transformação da relação entre culturas em choque de
culturas - dá-se, segundo Ricoeur, através de um mecanismo semelhante
ao descrito por Girard. De facto, a reação violenta ao excesso do funda-
mento dá-se, na medida em que se cria uma comunidade de acolhimento
que se apodera - ou pretende apoderar-se - de modo finito, desse infinito
fundamental. Ao constituir-se essa comunidade, os seus membros recon-

13. Ricœur, P. - "A religião", p. 28.


14. Ricœur, P. - "A religião", p. 29.
15. Ricœur, P. - "A religião", p. 33.
16. Ricœur, P. - "A religião", p. 34. É essa uma das leituras interessantes que Ricœur faz
da tese de René Girard, sobre o carácter violento do sagrado.

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ciliam-se entre si, superan


(como básico potencial de violência inter-humana) através da defesa
contra um terceiro (transcendente), de que pretendem tomar posse, ou
que pretendem controlar.
Mas, ao pretender tomar posse do fundamento transcendente, uma
comunidade insere-se no leque de todas as comunidades que também
pretendem apropriar-se do mesmo, as quais surgem assim como rivais
nesse processo de apropriação finita do fundamento infinito. Daí resulta,
sem dúvida, uma atitude de violência entre formas diferentes de pretensa
apropriação do infinito, enquanto manifestações da tensão primordial
entre finitude humana e infinitude do fundamento. É o que podemos veri-
ficar através do conflito de convicções ou dogmáticas religiosas.
Claro que, como o próprio Ricoeur reconhece, o cerne da religião
poderá ser concebido de forma diferente, como anterior a essa manifes-
tação humana de reação violenta ao excesso, mesmo que esta se encontre
muito expandida. Basta conceber o excesso do fundamento não como
ameaça, mas como precisamente o seu contrário, o que corresponderá
mais à sua verdade. "Ora, porquê perceber aquilo que funda como uma
ameaça e não como gratuidade e generosidade? É isso que ele é, funda-
mentalmente. Não é a projeção do nosso desejo de apropriação sobre a
própria origem da nossa convocação ao ser que transforma em ameaça
aquilo que não é senão doação, alargamento da minha capacidade de
acolhimento?"17
Assim, a referência ao transcendente resultaria em acolhimento de
um dom gratuito e não em defesa contra uma ameaça, que se prolon-
garia em violência contra todo o diferente, o outro. Ou seja, mesmo a este
nível profundo e primordial - ontológico, poderíamos dizer - de relação
entre religião e violência, é possível pensar a atitude religiosa como supe-
ração, na sua raiz originária, de todo o tipo de violência, mesmo que em
muitas manifestações concretas do fenómeno religioso se tenha seguido o
caminho precisamente inverso.

3. Ora, a referência a um único fundamento divino do mundo, como


dádiva gratuita, evoca a questão do monoteísmo, que nos conduz de novo
ao problema da violência intercultural. O filósofo alemão Odo Marquard,
numa análise do percurso da sociedade ocidental e das suas referências
orientadoras (a que poderíamos chamar «mitos»), escreveu sem rodeios:
"Perigoso é sempre e pelo menos o mono-mito; sem perigo, pelo contrário,

17. Ricœur, P. - "A religião", p. 34.

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são os poli-mitos... Quem participa - através da vida e da narra


em muitas histórias, possui liberdade, através da respetiva histór
relação à outra e vice-versa... Quem participa... apenas numa histór
possui essa liberdade. Está totalmente... obcecado com ela".18
Consequência direta dessa obsessão seria, então e como vimos,
atitude violenta: primeiro, em relação à própria origem transcend
pretensamente manipulada no «mito»; depois e como consequência
relação a todos os que possuem «mitos» diferentes. A ameaça do O
(divino) seria transposta para a ameaça do outro (humano), resulta
disso um processo de confronto concorrencial e destruidor.
Uma dessas tentativas «violentas» seria a do próprio conceito:
enquanto conceito de Deus (ou de Infinito), que pretende captar
na ideia, violentando a sua transcendência; quer enquanto referên
conceptual de tudo e de todos a esse conceito, violentando a plura
da sua diferença. Sendo assim, parece haver, de facto, uma relação e
«metafísica» (conceptual ou «onto-teológica»), o monoteísmo (como
física do conceito/Deus único, fundador e transcendente) e a violên
Esta, por seu turno, não se fica pela relação a Deus, enquanto
violência sobre o transcendente, manipulado em conceitos (doutrina) e,
por extensão (ou ainda antes), em ritos e normas de conduta; o prolonga-
mento direto desta atitude violenta primeira é a violência sobre os outros,
que se referem a Deus de modo diferente.
Para além disso, esse ponto de partida terá levado, mesmo, a uma
atitude violenta em relação à história e à sua pluralidade, reduzindo-a
à identidade de um único percurso. E teria sido, segundo estas leituras,
precisamente o monoteísmo - judaico, cristão ou islâmico - o impulsio-
nador dessa redução monomítica. Nietzsche leu o conceito de Deus do
ocidente judeo-cristão precisamente como unidade estática e aniquiladora
do real, no sentido de um ironico «mono-tono-teísmo»,19 como princípio
de "uniformização homogénea".20 A sua proposta de politeismo dionisiaco
pretende recuperar a diversidade da vida - e das suas histórias fragmen-

18. Marquard, O. - "Lob des Polytheismus". In: Höhn, H.-J. (Ed.) - Krise der Immanenz.
Frankfurt a. M.: Fischer, 1996, pp. 154-173, aqui pp. 158-159; cf. Metz, J. B. - "Religion und
Politik auf dem Boden der Moderne". In: Ibid., pp. 265-279, 265: "O monoteísmo é visto, na
maioria dos casos, como fonte de legitimação de um pensamento de soberania pré-demo-
crático e inimigo da separação de poderes, como raiz de um patriarcalismo obsoleto e como
inspirador de fundamentalismos políticos".
19. Nietzsche, F. - O Anti-Cristo , n.° 19.
20. Cura Elena, S. Del - "El Dios único: crítica y apología del monoteísmo trinitario".
Burgense 37 (1996): 65-92, 68.

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tárias - como manifesta


"exuberância vital".21
Assim se compreende genealogicamente que, como reação ao
monoteísmo (pretensamente) de pretensão totalizante, a cultura «pós-
moderna» esteja claramente dominada pela derrocada de todas as refe-
rências universais unitárias. Essa pluralidade, assumida como tal na
sua positividade e no seu valor incontornável, tem as suas repercussões
sobre o conceito de Deus e de religião, e sobre todas as conceções que daí
advêm. Numa vertente mais «a-teísta», prescinde totalmente do próprio
conceito de Deus, enquanto referência unitária da realidade - nessa sua
função fundamentadora para todo o real (metafísica) considera-se que
«Deus morreu». Ficou apenas o real, na sua multiplicidade ou diferença,
sem fundamentação universal primeira e última, por isso única e una.
Noutra vertente mais «religiosa», a pós-modernidade abandona o conceito
monoteísta de Deus em favor de uma visão politeísta da divindade, quer
recuperando o politeísmo antigo, quer inventando novas formas de poli-
teísmo, numa nebulosa religiosa pouco definível que, como se viu acima,
diviniza cada vez mais sobretudo forças cósmicas, ou então forças sociais
ou culturais (como acontece com a contextualização cultural extrema), ou
ainda os sistemas que comandam atualmente a relação ao real. Por tudo
isso, no contexto do «império do fragmento», o problema da relação entre
conceção monoteísta e conceção politeísta de Deus agudiza-se e exige
uma abordagem cuidada. Sobretudo porque se potencia o conflito entre
os indivíduos (desde a luta competitiva, até ao confronto violento mais
extremo), ou então entre os contextos, que pode assumir mesmo o aspeto
de conflito cultural ou até de «guerra de civilizações».22
Ora, o chamado «novo politeísmo», de que anteriormente se traça-
ram já algumas características e que é o objeto central do «louvor» de
Marquard, encontra-se nesta sequência. Implica a «morte de Deus»,
enquanto princípio único, unificador e dominador universal, que teria
levado ao imperialismo e à tirania social, por oposição à tolerância da
pluralidade. Também a possibilidade de referência a uma verdade absoluta
e, por isso, unificadora foi posta de parte. O próprio sujeito se encontra
marcado pela lei da fragmentarização, já que não possui um centro de
identidade bem determinável. Até o pluralismo religioso atual, com o
correspondente diálogo inter-religioso, parece abonar em favor de uma
visão politeísta do real. Os deuses seriam "expressão dos modelos plurais

21. Cura Elena, S. Del - "El Dios", p. 69.


22. Huntington, S. - El choque de civilizaciones. Barcelona: Paidós, 1997.

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da nossa existência",23 irredutíveis a um único modelo supremo, un


salmente válido.
De facto, também o novo «regresso do sagrado» ou dos «deuses»
parece situar-se nesta linha politeísta. O monoteísmo é considerado
perigoso e o politeísmo proveitoso para a nossa existência pessoal e social.
A pluralidade de mitos superaria a unicidade do mito de um só Deus e
de uma só «história da salvação» (judeo-cristã, marxista ou do progresso
científico-técnico). Existiria, eventualmente, uma identidade entre a visão
monolítica da divindade e a visão totalitária da história e da sociedade,
com as consequências repressoras da intolerância do diferente. O «fim da
história» única, unificada pelo seu sentido ou finalidade ( telos , enquanto
parusia ou manifestação - apocalipse - da sua verdade) será, então, uma
segunda manifestação da «morte» do Deus único.
Ora, ao iniciar qualquer análise crítica desta situação, convém ter
em conta que já os deuses da mitologia grega não eram pessoas indivi-
duais, mas poderes mais ou menos personificados nessas figuras, poderes
esses constituintes do cosmos, da natureza, da sociedade, manifestando
forças em interação - na maioria das vezes conflituosa. "As mitologias
apresentam, em forma de narrativas, as relações de união e de luta, entre
o dia e a noite, a terra e os oceanos, o amor e o ciúme que persegue, etc.
O divino não é realmente o Outro".24
Nesse sentido, o politeísmo identifica-se, em última análise, com uma
visão panteista da realidade, já que, pelo menos potencialmente, todos os
elementos do mundo podem ser considerados deuses (ou divinos, o que
é o mesmo, numa visão impessoal). Mas, onde tudo é (potencialmente)
«deus», nada o é, em particular; o que significa que, no mesmo movi-
mento em que nos aproximamos do panteísmo, podemos também consi-
derar o politeísmo como uma forma velada - sub contrario - de ateísmo.
Uma conceção impessoal de «deus» resulta, não apenas numa conceção
impessoal do ser humano, mas também numa dissolução do mesmo em
forças panteístas ou num ateísmo completo. De facto, de uma conceção
não pessoal de Deus resulta a necessária ausência de relação verdadeira
- isto é, inter-pessoal - entre Deus e o ser humano, o que não permite
pensar o ser humano, quanto à sua origem ou verdade mais profunda,
como ser de relação - isto é, como pessoa livre e responsável.
Mas, se um reverso da medalha implica a anulação da mais profunda
liberdade do ser humano, que resulta do seu carácter originariamente

23. Cura Elena, S. DeL - "El Dios", p. 72.


24. Vergüte, A. - Modernité et Christianisme. Paris: Cerf, 1999, 17.

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706 João Duque

relacional, o outro revers


transcendência e da imp
do ser humano. Nesse co
em ordem à realização d
tório de todos os desejos
ou imanentes. É nesse co
individual dos mitos, no
Mas, se os deuses são u
seres humanos, não adm
sejam inseridos num pro
luta entre eles. Do polite
na visão agonística do rea
derado). A violência é, a
ser humano, a marca da
refere ou que funcionali
A pluralidade do real, c
uma identidade originár
teísmo e anulada pelo mo
a uma visão da diferença
conciliadora. Defender ou
significa, mais uma vez e
a violência como dado pr
qualquer forma de recon
Começa, assim, a presse
origem e a um único fim
ter consequências violent
essa referência for autên
da violência, na sua raiz m
mento transcendente, un
mento do ser como doaç
solidariedade profunda e

3. Identidade e relação

1. A questão do monoteísmo, como referência religiosa - em alguns


casos, como alternativa a certo «espírito religioso» problemático - é
o cerne da proposta do teólogo alemão Johann Baptist Metz. Penso ser

25 Cf. Milbank, J. - Theology and Social Theory. Oxford, 1990, esp. cap. 10 ("Ontological
violence or the postmodern problematic").

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Interculturalida.de e Religião: para além da violência 707

possível recorrer a essa proposta teológica, para podermos avançar


uma leitura do contributo da religião para a relação inter-cultura
supere o potencial de violência latente e possa contribuir para a c
trução de uma relação mais humanizante e pacificadora.
Antes de mais, é importante ter em conta que, quando Metz fa
religião, não fala propriamente do fenómeno religioso em geral (n
sentido quase kantiano), muito menos de manifestações religio
diversas contemporâneas, ao estilo da sociologia. Aliás, é conhe
posição crítica deste teólogo em relação à religiosidade difusa que m
sociedades atuais.26 Segundo ele, a religião de que se fala aqui é a "r
cristã, com um núcleo monoteísta ainda não completamente esmaga
Ou seja, em realidade refere-se ao teológico, enquanto possível essên
religioso, precisamente por ter como cerne a referência a um determin
conceito de Deus, no qual se baseia a experiência política e cultura
sujeito crente. E Metz reconhece que é precisamente esse monoteí
que mais dificuldades teve com a modernidade - ou vice-versa. O qu
ser confirmado pela breve análise da discussão em torno à relação
monoteísmo e violência.
Por seu turno, a proposta de Metz baseia-se numa releitura da racio-
nalidade moderna, que vai além da racionalidade meramente instrumental,
mesmo da racionalidade discursivo-comunicativa: trata-se da raciona-
lidade anamnética, baseada na categoria da memória, a qual, por seu turno,
corresponde ao denominado «apriori do sofrimento» ( Leidensapriori ), ou
seja, ao critério da autoridade do sofrimento do outro inocente. Segundo
ele, este "apriori do sofrimento orienta o discurso político em tempos de
incerteza".28 Ao mesmo tempo que é a recuperação de uma categoria e uma
orientação originada pela tradição judaico-cristã - por isso com recurso
religioso e mesmo especificamente teológico - permanece conciliável com
a modernidade, na medida em que pode ser assumida como uma cate-
goria da razão humana universalizável. A base dessa universalização é o
próprio monoteísmo bíblico - que Metz considera um monoteísmo pático,
porque sensível ao sofrimento - e a máxima, daí derivada, da autoridade

26 "Religião como nome para o sonho de felicidade isenta de sofrimento, como encanta-
mento mítico da alma, como presunção psicológico-estética de inocência para o ser humano:
sim. Mas Deus, o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob, o deus de Jesus...? [...] Que aconteceu
com Deus?" Metz, J. B. - Memoria passionis. Ein provozierendes Gedächtnis in pluralistischer
Gesellschaft. Freiburg: Herder, 2006, p. 71.
27 Metz, J. B. - "Religion und Politik", p. 265.
28 Metz, J. B. - "Religion und Politik", p. 271.

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708 João Duque

do sofredor. Neste horizon


exigida".29
Ao mesmo tempo que se salvaguarda este universalismo da perti-
nência política e cultural do religioso, quanto à própria fundamentação
última do político, tratando-se aqui da categoria da memória, torna-se
evidente que o trabalho dessa fundamentação não é possível sem o recurso
a uma tradição, sobretudo articulada narrativamente. Essa fonte permite
a superação do maior problema contemporâneo, talvez aquele que mais
fortemente coloca em questão a capacidade de fundamentação do político
e do cultural: precisamente o individualismo extremo. A pergunta de Metz
é incisiva: "Como podemos compreender um indivíduo que se recusa a
acreditar em tradições que, por seu turno, acreditam [fundamentam] o
indivíduo?"30
Ora, o conteúdo de uma tradição é o recurso para enfrentar os aprioris
do horizonte de sentido numa cultura da modernidade tardia, nos quais
sobressai o apriori do mercado. Não poderá, nesse sentido, a dimensão
religiosa ajudar o político a libertar-se da ditadura do económico, possi-
bilitando a concentração numa ética do humano como forma pragmática
de existência sociocultural e de organização do poder? E, ao mesmo
tempo, não será essa pragmática político-cultural o modo de realização da
salvação prometida e oferecida em Jesus Cristo, por isso elemento funda-
mental da soteriologia cristã, enquanto base de um modo religioso de
habitar o mundo?

2. A referência ao Deus bíblico, tal como é apresentada por Metz como


base de uma universalização do religioso, implica a concentração na iden-
tidade judaico-cristã, como identidade religiosa e cultural, ao mesmo
tempo, superando ambas na sua estrita imanência, precisamente pela refe-
rência a Deus. Ora - pensando agora para além de Metz, que permanece
estritamente monoteísta - essa identidade radica na mais profunda dife-
rença marcante da identidade cristã: a diferença trinitária. Aí articula-se
uma relação primordial entre identidade e diferença, que poderá ser fértil
na compreensão da pertinência inter-cultural da religião, pois essa perti-
nência medir-se-á sempre pela capacidade de articulação pacífica entre
identidade e diferença.
Ora, segundo a teologia cristã, a diferença entre Pai, Filho e Espírito
constitui o cerne do conceito cristão de Deus e constitui, simultaneamente,

29 Metz, J. B. - "Religion und Politik", p. 273.


30 Metz, J. B. - "Religion und Politik", p. 276.

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o modelo de compreensão cristã da realidade - proposta, contudo, u


salmente, e não apenas aos cristãos. E porque essa diferença é relac
o Deus cristão é «relativo» em si mesmo, consistindo nisso a sua verdade
absoluta e a verdade absoluta do cristianismo também. Ser relativo
significa, na sua raiz, viver a partir do outro e para o outro diferente, se
anular a sua diferença. Isso implica, precisamente, o descentrament
si, como forma de identidade, em vez de a afirmação de si.
A diferença, que implica o acolhimento positivo do excesso presen
na alteridade do outro que não é como eu, constitui então o núcleo d
religião cristã: a identidade da revelação bíblica reside, precisamente
na afirmação constante do valor primordial dessa diferença. Isso é a
verdade absoluta, critério de auto-critica, para si e também para as ou
religiões. Aí se situam, também, os limites da tolerância, por parte
cristianismo, em relação a outras tradições (já que não se pode toler
o intolerável, isto é, tudo e todo o que não tolera a diferença presente
alteridade do outro, pessoal ou coletivo).
Com base nestes elementos fundamentais da identidade cristã - com
os seus antecedentes judaicos, sem dúvida, e potencialmente univer-
salizáveis - podemos considerar que o cerne do cristianismo, enquanto
religião, reside na conceção da sua relação aos outros como doação de si,
e não como conquista dos outros para si. A kenosis, enquanto entrega de si
mesmo pelos outros e constituinte da identidade cristã, pode ser assumida
como futuro de todos os seres humanos, como salvação universal. Claro
que as formas concretas de percorrer esse caminho podem - e devem -
divergir, conforme as diferentes tradições e pertenças. Mas o caminho é
comum, porque é o caminho da concreta e absoluta aceitação dessas diver-
gências. O «ser-para-outro» - em vez do «ser-em-função-de- si -mesmo» -
constitui, então a identidade do cristão, que pretende ser a manifestação
da identidade de todo o ser humano, como correspondência àquilo que é
o próprio Deus, em si mesmo. «Ser-para» que se manifesta, por seu turno,
em várias dimensões: Ser para Deus / ser para as nações (judaísmo); ser
para o Pai (no Filho, pelo Espírito) / ser para o próximo (cristianismo). A
identidade cristã - potencial base para toda a compreensão da religião e da
sua relação à cultura - pode, assim, ser definida como «ex-centricidade»,
e não como eventual «ex-clusividade» resultante da «com-centração» em
si mesmo.

Ora, parece-me que este «conceito» cristão de religião, incarnado


- embora de modo falível e muitas vezes desadequado - em realizações
culturais e históricas, pode ser apresentado beneficamente como desafio
à compreensão da relação entre religião e cultura, no contexto da inter-
culturalidade.

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