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PARA ALÉM DO LIDE: O JORNALISMO INTERPRETATIVO BRASILEIRO

Eduardo Refkalefsky

Professor e Coordenador de Curso de Jornalismo da ECO/UFRJ


PARA ALÉM DO LIDE: O JORNALISMO INTERPRETATIVO BRASILEIRO
Eduardo Refkalefsky
Professor e Coordenador de Curso de Jornalismo da ECO/UFRJ

1. INTRODUÇÃO
Jornalismo interpretativo é um conceito da moda. Ele surge quando se discute o valor
que um jornalista agrega a um texto, quando se fala na especialização das redações de
jornal ou como produto da briga da imprensa com a mídia eletrônica. A polissemia é
muito grande, por isso cabe relembrar a origem histórica do contexto e como ele foi
introduzido no país.

A interpretação é importante para se questionar a validade dos conceitos, teorias e


práticas jornalísticas implantadas no Brasil a partir da reforma do Diário Carioca. A
pedra fundamental dessas reformas que modernizaram as técnicas jornalísticas no país
é o lide de seis perguntas — quem fez o que, onde, quando, como e por quê? —, base
do relato ordenado de fatos que caracteriza a notícia.

Os dois modelos principais de oposição à técnica do lide ou representam a


incorporação de elementos do nariz-de-cera (feature), ou são artigos de opinião
expressa, artesanais e fora da engrenagem industrial do jornalismo. A interpretação
ocupa a terra de ninguém entre relato e opinião, permitindo ao leitor contextualizar os
fatos e relacionar causas e conseqüências das notícias. Para isso, examinaremos três
momentos do jornalismo brasileiro para discutir os efeitos da interpretação: a segunda
parte da reforma do Jornal do Brasil, realizada por Alberto Dines; o lide de sete
perguntas de Carlos Lacerda e a realidade virtual do jornalismo de Hélio Fernandes.

2. DINES, JB E A INTERPRETAÇÃO EM ESCALA INDUSTRIAL


O jornalismo interpretativo surgiu nos Estados Unidos após a Primeira Guerra
Mundial. Em 1914, jornalistas e leitores foram pegos no contrapé, não sabiam direito
o que significavam as notícias que vinham da Europa, falando do que parecia ser
apenas uma guerra civil continental. O que adiantava saber que o país A invadiu o país
B?

Mas a realidade dos norte-americanos sofria efeitos do conflito do outro lado do


Atlântico. Setores econômicos aumentavam a produção, outros deixavam de exportar,
e isso mexia com a vida das pessoas. Só que a imprensa não tinha elementos para
relacionar as notícias da guerra com a realidade do país, ficando impotente diante dos
acontecimentos.

Quando veio a Segunda Guerra, não houve surpresa. Jornais e revistas haviam
desenvolvido a interpretação, correlação e contextualização de fatos para que o
público soubesse o que estava se passando. As notícias vindas da Europa eram
prontamente dissecadas pelos jornalistas da Time, Newsweek e mesmo do Reader’s
Digest. O New York Times também havia lançado seu review semanal para aprofundar
notícias e informações.

Foi com base nestes casos que, durante a década de 60, Alberto Dines montou no JB a
primeira estrutura industrial para incorporar o jornalismo interpretativo no país. Era
uma tentativa de ir além do relato factual do óbvio. O principal produto desta
estratégia foi o Caderno Especial, de 1962, contendo matérias longas, análises, artigos
e ensaios para aprofundar o noticiário da semana.

Antes desta reforma, vários jornalistas de prestígio no Brasil já produziam textos


analíticos e interpretativos. O que Dines trouxe de novo foi montar uma engrenagem
industrial da interpretação, da mesma maneira que o Diário Carioca funcionava como
uma linha de montagem de textos copidescados. Uma coisa é povoar a redação de
bons analistas. Outra, montar uma estrutura que ande sozinha, permita a produção em
série destes profissionais e funcione da mesma maneira que uma linha de montagem
industrial.

O jornalismo interpretativo em produção industrial não pode depender do talento


individual dos analistas, que, se abandonarem o barco, dificilmente podem ser
substituídos. A engrenagem de Alberto Dines pressupunha novos processos para se
obter e referenciar as informações, sem se basear na “mente-fichário” dos jornalistas.

As maiores inovações de Dines foram a estruturação do Departamento de Pesquisa e


Documentação (DPD) do Jornal do Brasil e a ênfase na especialização dos jornalistas.
O DPD foi criado a partir dos departamentos de pesquisa do New York Times e das
revistas Time e Life. Dines tomara conhecimento de ambos na viagem que fez aos
Estados Unidos, pouco antes das reformas no jornal.

A. Beluco Maria, em artigo nos Cadernos de Jornalismo do Jornal do Brasil — outra


iniciativa de Dines para melhorar a formação e o aperfeiçoamento profissional —
relata como foi o surgimento do DPD:

“Desde o dia em que começou a funcionar — 13/3/1964 — o Departamento de


Pesquisa e Documentação do JB desviou-se de seu objetivo inicial — fornecer dados
complementares ao trabalho dos redatores e repórteres, escrever pequenas biografias
— para criar as próprias matérias. Estruturou uma equipe de redação e reportagem
(que passaram a ser chamados de pesquisadores). (...) participará, com matérias
redigidas, da totalidade do jornal. Começa a ser transmissora de informação com
características de periodicidade, de atualidade, de recepção coletiva (jornalismo) e
recuperadora de informação, participando da organização do acesso à informação
(documentação). (...) Numa palavra, interpreta”[grifos nossos].

Se para um jornalista, a memória e o caderno de telefones são os maiores aliados, para


a redação, o banco de dados funciona como memória coletiva. Sem dúvida, a ênfase
no uso da documentação por jornalistas cresceu em progressão geométrica, ainda mais
agora quando todos os grandes jornais brasileiros discutem o futuro da reportagem
através da utilização de bancos de dados e redes de informação.

O próprio conceito de conhecimento ou sabedoria está se modificando. Se antes a


pessoa era considerada culta ou sábia pela quantidade de informação armazenada na
memória, hoje, com a memória virtual dos bancos de dados, o sábio é aquele que
possui referências. Não é preciso ler todos os livros de determinada área, mas saber
sobre o que eles falam. Quando houver interesse ou necessidade, se pode recorrer a
eles, ou à informação acessável na Internet.

O problema é que a pedagogia do conhecimento ainda funciona com o paradigma


anterior. Muitos cursos de primeiro e segundo graus continuam ensinando a decorar
tabelas periódicas, mapas e sucessões estanques de datas em História. Em vez disso,
deveriam privilegiar a utilização das informações de livros, Atlas e dicionários. Nem
precisa falar em arquivos de computadores ou base de dados, pois o raciocínio lógico
do conhecimento indexado é o mesmo.

Mesmo assim, os jornalistas ainda têm resistências à disseminação do uso dos bancos
de dados como fonte para reportagens e matérias. Os cursos de Jornalismo, por sua
vez, apresentam pouquíssimas disciplinas ligadas a este assunto, como “Sistemas de
Armazenamento e Recuperação de Dados e Informações”, que faz parte do currículo
obrigatório da ECO/UFRJ — embora os alunos não valorizem a disciplina como
deveriam.

Além do DPD, Alberto Dines também investiu na especialização dos jornalistas. A


criação de processos de treinamento e a publicação dos Cadernos de Jornalismo e
Comunicação foram as principais estratégias do autor de O papel do jornal, o livro
que se tornou clássico ao relatar a experiência de Dines no JB.

3. LACERDA, “E DAÍ?” E A REVOLUÇÃO NA RUA DO LAVRADIO


Quando Carlos Lacerda, “o Corvo”, fundou a Tribuna da Imprensa, no final de 49, fez
inconscientemente uma revolução conceitual no jornalismo brasileiro — mesmo que
os repórteres do jornal da rua do Lavradio não seguissem necessariamente sua cartilha.

Lacerda criou o lide de sete perguntas, acrescentando o “e daí?” como sendo a última
e mais importante de todas. Com o “e daí?”, os jornalistas se preocupam não apenas
em relatar um fato, como na fórmula tradicional do lide, mas sua repercussão na vida
das pessoas. É claro que o conceito clássico de notícia também inclui a repercussão,
como no famoso exemplo do homem que morde o cachorro — e por isso é notícia.
Só que o lide de seis perguntas acabou se cristalizando na fórmula do jornalismo de
relato, que por sua vez se reduziu ao “jornalismo de taquígrafo”, em que o repórter
apenas se preocupa em relatar declarações das fontes. O jornalista Sérgio Souto, sub-
editor do Monitor Mercantil, do Rio de Janeiro, utiliza a expressão “jornalista
papagaio”, que fica repetindo o que os entrevistados dizem. E o professor Vitor
Gentilli acha os termos muito brandos: “eu chamo mesmo é de moleque de recados”.

O “e daí?” foi analisado no trabalho O jornalismo crítico de Hélio Fernandes,


apresentado no XVIII Intercom, em setembro de 1995, em Aracaju; e na dissertação
de Mestrado Hélio Fernandes: a gênese do jornalismo polêmico, defendida em junho
de 97, na Escola de Comunicação da UFRJ, sob orientação do professor Francisco
Antônio Dória.

Falar em Lacerda como criador do lide de sete perguntas pode estabelecer confusão. O
“derrubador de presidentes” era apaixonado pela política e seus textos deixavam
transparecer esta passionalidade violenta, que não media esforços quando se tratava de
humilhar adversários. Basta citar apelidos como “Centauro dos Pampas”, dado a
Batista Luzardo, que pode até parecer épico, mas significa “parte homem, parte
cavalo”. Ou nos trechos citados por Dulles, J. F. (1992), pag. 206 e 286-287:

“Jânio Quadros (...) egocêntrico infantil (...), paranóico (...), delirante virtuose da
felonia (...), que tinha o sorriso de uma grotesca Mona Lisa (...), charlatão, cuja moral
política era a de um comunista”. “Na presidência da república [JK], um cafajeste sem
escrúpulos. No Ministério da Guerra [Teixeira Lott], que o sustenta, um traidor cheio
de remorsos, que terá de trair várias vezes para ver se salva ao menos a face, já que
tudo o mais está perdido”.

A face do político vibrante, do tribuno, do panfletário, é conhecida, para o bem e para


o mal. Mas pensá-lo como comandante de jornal, que desenvolve uma filosofia
peculiar da técnica jornalística, é algo pouco estudado. Em parte, porque não há
registro escrito da influência de Lacerda no jornal. O manual de redação da Tribuna
não continha nenhuma novidade, como pode ser constatado no anexo de Hohenberg
(s.d.). Pompeu de Souza (1992), p. 25, afirmou que Carlos Lacerda pegou o style book
(manual de redação) do Diário Carioca, acrescentou umas piadas e fez o style book da
Tribuna da Imprensa.

Mesmo que se leve em consideração o fato do jornal da rua do Lavradio ter sido mais
opinativo do que interpretativo, a inclusão do “e daí?” por si só representa um grande
achado teórico. Nem Dines nem Hélio Fernandes criaram conceitos novos. O primeiro
criou um algo a mais, com a estrutura industrial da interpretação, enquanto Hélio
levou este tipo de jornalismo às últimas conseqüências. Mas nenhum questionou
diretamente o lide, pelo menos do ponto de vista teórico e conceitual, embora o
fizessem na prática.

4. HÉLIO FERNANDES E A REALIDADE VIRTUAL DO JORNALISMO


Hélio Fernandes, atual dono e editor-chefe da Tribuna da Imprensa, pratica de
maneira peculiar o jornalismo interpretativo. O critério adotado na seleção dos temas
em sua coluna diária, publicada há mais de 40 anos, obedece ao princípio da
atualidade. Ao contrário dos artigos que escreve na página 3, onde o “gancho” pode
ser a discussão conceitual de algum tema, na coluna o ponto de partida são os fatos.

Devido ao horário de fechamento, a coluna costuma apresentar comentários dos


assuntos ocorridos na antevéspera ou na véspera, pela manhã. A maior parte do
noticiário é composta de ponderações e análises de fatos já divulgados na imprensa,
rádio e TV. O objetivo de H.F. é mostrar o “outro lado da notícia”, algo que a
concorrência (grande imprensa) não publica.

Este trabalho de interpretação funciona da mesma maneira que o “e daí?” de Carlos


Lacerda. Em vez de destacar um fato novo, uma notícia, pura e simples, Hélio centra
seus esforços na contextualização das informações. Ele gosta muito da palavra análise
para caracterizar seus textos. Inclusive, por mais que ele elogie Lacerda, considera a
maior deficiência do fundador do jornal a péssima capacidade analítica, em muito
suplantada pelo estilo furacão na política e o dom da oratória.

De vez em quando, Hélio até publica algum furo espetacular, graças a fontes de
informações quentíssimas. Foi o que ocorreu com a Candidatura da Rio 2004. H.F.
contou, dois meses antes da escolha das cinco cidades finalistas, que um amigo ouviu
em Miami a conversa de dois integrantes do COI falando sobre a eliminação do Rio.
O membro do COI afirmou também que já estava tudo decidido para que a sede das
olimpíadas fosse em Atenas, que a Coca-cola “comprara” o evento. Isto para se
redimir das Olimpíadas de Atlanta, matriz da empresa que comemorava o centenário
naquele ano. Só que as Olimpíadas modernas também faziam 100 anos, mas o lobby
falou mais alto.

Mas em outros casos, não existe nenhuma fonte explícita. Trata-se apenas de dedução
lógica, de análises feitas pelo jornalista. Houve uma história famosa, durante o
governo Sarney, que rendeu uma série de notas e comentários na Tribuna. Roberto
Marinho pegou o avião e foi para Brasília, direto para o Palácio do Planalto.
Chegando lá, sem marcar hora, foi entrando para falar com José Sarney.

O dono das Organizações Globo acusou o presidente de estar tramando às escondidas


a candidatura de Sílvio Santos à presidência. Disse que se Sarney não parasse com a
promoção do “camelô aventureiro”, iria sofrer as conseqüências. O presidente
continuou as manipulações nos bastidores e a Globo, além de começar a criticar o
governo, inventou Fernando Collor de Mello. Moral da história: como é que o
jornalista teve acesso a esta informação? Quem poderia ter contado para ele, em
detalhes, como foi o encontro do homem mais poderoso do país com o chefe de
Estado?

Como se diz no popular, segredo é aquilo que só uma pessoa sabe. Como, no caso,
foram duas, devem ter comentado com assessores de confiança, que comentaram com
outros assessores de confiança e assim por diante. Mesmo que este processo funcione
como um telefone sem fio, em que de uma ponta alguém diga “laranja” e do outro se
escute “abacaxi”, algumas informações residuais vão acabar passando. O trabalho que
Hélio faz é colar estes fragmentos isolados e, através da dedução lógica, unificá-los e
construir uma realidade virtual.

Em vez de se limitar a interpretar (analisar) simplesmente os fatos, Hélio constrói uma


realidade possível, mesmo que não tenha tido acesso empírico, direto ou indireto, a
ela. Ele não precisou estar fisicamente na reunião de Sarney e Roberto Marinho para
saber como ocorreu — ou mesmo ouvir de alguém a transcrição ipsis literis do
diálogo.

Em entrevista a Joel Silveira, na Revista Status, em 1981, Hélio respondeu ao repórter


que perguntou se determinada interpretação era apenas uma hipótese: “Todo mundo
sabe que a maioria das minhas ‘hipóteses’ acaba se transformando em fatos”.

A idéia de realidade virtual do jornalismo é um passo adiante dos conceitos clássicos


de notícia e interpretação. Enquanto, no primeiro caso, se trata de uma construção do
real, no segundo é feita a análise deste real. A realidade virtual vai além, funciona na
forma de reconstrução da realidade. Ela tem maior poder, seja de repercussão ou de
credibilidade — desde que esteja correta, é claro —, na medida em que dá acesso ao
fato gerador, ao real empírico. Isto explica porque as análises e interpretações de Hélio
Fernandes chegam ao ponto de revelar o que uma pessoa acha ou pensa, mesmo que
ela não deixe isto explícito no discurso ou nas ações.

É claro que este modelo de jornalismo tem seus riscos. O maior deles é o da
credibilidade. É preciso “ter peito” para colocar o pescoço na forca, na medida em que
quaisquer erros podem minar a credibilidade e o trabalho jornalístico. Quem utiliza as
técnicas de realidade virtual em jornalismo precisa estar bem ancorado e ter boa
capacidade de abstração para não ser derrubado. O único aliado é o tempo, que vai
revelar as conseqüências das afirmações através dos atos das pessoas.

Como dizem os economistas e administradores financeiros, o risco é proporcional ao


retorno. Se eu invisto em poupança, tenho riscos sob controle. Se for para o dólar ou
ações, os riscos aumentam. Se ganhar, ganharei muito; se perder, perco quase tudo. O
mesmo vale para este conceito: a qualidade das informações e a repercussão do texto
são maiores do que os do jornalismo “feijão-com-arroz”, mas quando dá errado, o
mínimo que pode ocorrer é um processo na justiça.

5. E DAÍ?: ALGUMAS CONCLUSÕES PARA O JORNALISMO DE HOJE


O estudo do jornalismo interpretativo permite chegar a várias conclusões com
aplicações práticas para a imprensa brasileira. A primeira é o questionamento dos
métodos de apuração de matérias. Atualmente, a maior praga que infesta as redações é
a “releasemania” — termo clássico cunhado por Gerson Moreira Lima (1985) —,
ponta do iceberg de um mal maior: o excessivo poder dos divulgadores. Nem é
adequado falar em assessor de imprensa, pois pressupõe alguma formação jornalística.
O termo é mesmo divulgador, aquele sujeito cuja função é empurrar uma nota ou
matéria — em geral escrita pelo próprio assessor — para o jornalista.

A constatação de que os repórteres apuram cada vez menos são óbvias para quem
tenha um mínimo de inteligência e dignidade, e circule por alguns dias em uma
redação. Existe até uma rotina que revela a progressiva “terceirização perversa” do
trabalho da redação dos jornais: em primeiro lugar o repórter troca a rua pelo telefone;
depois, deixa de procurar pessoas para as matérias, recebendo ligações dos
personagens indicados pelos divulgadores; até finalmente, em um processo de atrofia
cerebral e moral, receber o texto pronto das fontes.

O problema é que a constatação da falta de apuração leva muitos profissionais a


defenderem a “volta às ruas” como saída para a pasteurização da reportagem. Creio
que a experiência das ruas é importante, principalmente na formação dos focas que
estão iniciando na profissão, ainda com a imagem romântica proveniente dos cursos
de Comunicação.

Mas a análise do caso Hélio Fernandes, com o referencial teórico criado por Carlos
Lacerda, permite apontar para outra solução. O dono da Tribuna da Imprensa
praticamente não sai de casa na hora de apurar as notícias. Lê todos os jornais —
mesmo assim, despreza fontes de informação como a “Sujíssima Veja”, revista que
ele afirma publicamente que não lê —, assiste aos telejornais, alguns programas de
entrevistas e muitas transmissões esportivas; fica no telefone grande parte do dia, e
costuma sair pouco para jantares e atividades sociais para garimpar informações; a
maioria das vezes em que H.F. vai a debates e a outros eventos se deve à participação
política, como manifestos contra a privatização da Vale, reuniões na ABI e no Clube
Militar e lançamentos de livros de amigos. (Analisar as atividades do dia-a-dia de
Hélio Fernandes é facílimo: tudo que ele assiste, escuta, lê ou participa gera algum
registro, por menor que seja, em sua coluna).

As notícias que ele apresenta em primeira mão são muito mais produto de análises e
interpretações pela lógica (realidade virtual) do que propriamente fatos empíricos
novos. Mesmo dentro das redações dos grandes jornais, a quantidade de informação
apurada é muito grande, por mais superficial, distorcida, equivocada ou cortada pelo
gatekeeping (decisão sobre o que é publicado ou não) que a maioria delas seja.

O grande problema para o jornalismo contemporâneo está muito mais no


processamento das informação dentro das redações, em como contextualizar, dissecar,
explorar os “por quês” dos assuntos, do que conseguir novas informações. Falta o “e
daí?” da associação de causas e conseqüências dos fatos apurados.

A experiência de Hélio mostra que o local de trabalho em si não determina a


qualidade final das matérias. Não faltam repórteres de rua que se limitam a usar a
pauta como “um formulário a ser preenchido”, na definição de José Silveira, citado
por Almir Muniz (1992). Silveira também cunhou uma frase definitiva para os
jornalistas que se preocupam, exclusivamente, em obter “boas fontes”:

“’Fonte jorra água, não faz declarações’”, ele [José Silveira] costuma dizer. A fonte
jornalística ajuda a apuração da notícia, não a substitui. Para Silveira, a alma da
apuração — e do jornalismo, por extensão — é o repórter VER, não ouvir.
Contrariada esta norma, os jornais tornam-se um mero bate-boca entre fontes
declarantes. E haja desmentido, nesse disse-que-disse. Costuma acontecer, então a
atitude maliciosa dos editores, de negar ao desmentido o mesmo destaque com que foi
dada a primeira versão” [grifos nossos]

Em algumas áreas, o resultado é irritante. Colunas de economia nos jornais brasileiros,


com as exceções de praxe, são quase todas um amontoado de notas do Banco Central,
a principal “fonte” jorradora de notícias.
Se é verdade que o jornalismo de rua — em oposição ao jornalismo de notinhas (o uso
do diminutivo não é acidental) — está em baixa em algumas editorias, o jornalismo
bem feito “de gabinete” também está. Só que ainda há muitos defensores da rua e suas
variações, como reportagem investigativa (tenho lido diversas monografias de final de
curso de jovens interessados no assunto), enquanto há poucos profissionais, docentes,
pesquisadores e alunos preocupados com o que é feito dos fatos quando chegam à
redação.

Para isso, nada melhor do que o exemplo de Dines. Não se pode cair na miopia de
achar que soluções individuais vão resolver algum problema. Difícil mesmo é
conseguir implantar uma estrutura industrial a partir da realidade virtual do e do lide
de sete perguntas, da mesma forma que o autor de O papel do jornal reformou o
Jornal do Brasil nos anos 60, mostrando que é possível se pensar em inteligência a
partir de uma indústria de produção de jornalismo.

6. BIBLIOGRAFIA
1) CEPEDOC — Dicionário histórico-biográfico brasileiro: 1930-1983. Org. Israel
Beloch e Alzira Alves de Abreu (Rio de Janeiro: Forense
Universitária/FGV/CEPEDOC)
2) DINES, A. — O papel do jornal: uma releitura (São Paulo: Summus, 1986, 5a
edição) 160 pp.
3) DÓRIA, P. — “O homem bala: entrevista com Hélio Fernandes” In: Interview, no
183, abril/95, pp. 60 e seguintes
4) DULLES, J. W. F. — Carlos Lacerda: a vida de um lutador — Vol. 1, 1914-1960
(Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992), 516 pp.
5) GONÇALVES DE SÁ, F. — Concorrência e diferenciação: as estratégias do
jornalismo impresso diante da mídia eletrônica. Projeto Experimental de Graduação,
or. Paulo Roberto Pires (Rio de Janeiro: ECO/UFRJ, 1996)
6) HOHENBERG, J. — Manual de jornalismo (Rio de Janeiro: Fundo de Cultural,
s.d.)
7) LAGE, N. — A estrutura da notícia (São Paulo: Ática, 1987), 64 pp. (Série
Princípios).
8) LIMA, G. — Releasemania: uma contribuição para o estudo do press-release no
Brasil (São Paulo: Summus, 1985), 116 pp.
9) MARRA, A. B. — Cadernos de Jornalismo do Jornal do Brasil, ano II, n. 7, pp. 5-
9
10)MUNIZ, A. — “O senhor secretário” In: Revista de Comunicação, número 30,
novembro de 1992
11)REFKALEFSKY, E. — A investigação jornalística nos cadernos de negócios dos
jornais. Anais do II Congresso Internacional de Jornalismo de Língua Portuguesa, Rio
de Janeiro, dezembro/94
12)___________________ Hélio Fernandes: a gênese do jornalismo polêmico.
Dissertação-tese de Mestrado em Comunicação e Cultura, defendida em junho de 97,
na Escola de Comunicação da UFRJ. Orientação, professor Francisco Antônio Dória.
13)___________________ O jornalismo crítico de Hélio Fernandes. Anais do XVIII
Intercom/Congresso Brasileiro de Pesquisadores de Comunicação. Aracaju, setembro
de 1995.
14)___________________ “Os cadernos de negócios dos jornais brasileiros” In:
Intercom: Revista Brasileira de Comunicação; São Paulo Vol. XVIII, no 1,
Janeiro/Junho/1995, pp. 170-174
15)SOUZA, P. — “A chegada do ‘lead’ no Brasil” In: Revista de Comunicação, n. 30
- 1992, pp. 24-27
16)TINHORÃO, J. R. — “O máximo de notícia no mínimo de espaço”. In: Revista de
Comunicação, n. 7 - 1986, p. 24
SOBRE O AUTOR
Eduardo Refkalefsky é jornalista, professor e Coordenador do Curso de
Jornalismo da Escola de Comunicação da UFRJ. É Mestre em Comunicação e Cultura
pela mesma Escola, onde defendeu, em junho de 97, a dissertação-tese Hélio
Fernandes: a gênese do jornalismo polêmico, orientada pelo professor Francisco
Antônio Dória.
Foi editor das revistas Tendências do Trabalho e Marketing e Negócios, além
de ter trabalhado em diversos veículos e assessorias de imprensa. É consultor editorial
da Coleção Administração e Negócios, da Editora Rocco. Atualmente, é o responsável
na ECO/UFRJ pelas disciplinas “Técnicas de Reportagem, Entrevista e Pesquisa I” e
“Jornal e Pesquisa”.

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