Você está na página 1de 17

ÂMBITO DE APLICAÇÃO MATERIAL DA LEI PENAL:

O CONCURSO DE NORMAS EM DIREITO PENAL

António da Costa Leão

Sumário: Introdução. 1. Distinção entre os chamados concurso (efectivo) de crimes, e concurso


(aparente) de crimes, ou concurso de normas. 2. O concurso (aparente) de crimes, ou concurso de
normas. 3. As regras do concurso de normas; 3.1. Relação de especialidade; 3.1.1. Tipos qualificados e
privilegiados; 3.1.2. Tipos compostos ou complexos; 3.1.3. Os crimes com elementos típicos de autor
qualificantes; 3.2. Relação de subsidiariedade; 3.2.1. Subsidiariedade expressa (ou formal); 3.2.2.
Subsidiariedade implícita (tácita, ou material); a. Os actos preparatórios tipificados como crimes
autónomos e os estádios evolutivos, antecipados ou intermédios, de um crime consumado; b. A relação
entre formas antecipadas de tutela e a verificação do dano; 3.3. Relação de consumpção; 3.4. O facto
posterior não punível, ou co-punido.
Bibliografia geral: TERESA PIZARRO BELEZA: Direito Penal, Vol. I, 2.ª ed., AAFDL, Lisboa, 1998, pp.
447-476; EDUARDO CORREIA: Direito Criminal, II, Reimpressão, Almedina, Coimbra, 2000, pp. 197-224;
JORGE DE FIGUEIREDO DIAS: Direito Penal. Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, Coimbra, pp. 992-1033,
1016-1018; MANUEL CAVALEIRO DE FERREIRA: Direito Penal, Universidade Católica, Lisboa, 1980; Direito
Penal Português. Parte Geral, I, Verbo, Lisboa, 1982; HANS-HEINRICH JESCHECK/THOMAS WEIGEND: Tratado
de Derecho Penal. Parte General, Ed. Comares, Granada, 2002, pp. 788-795; CLAUS ROXIN: Derecho Penal.
Parte General, Tomo II, Thomson Reuters-Civitas, Pamplona, 2014, pp. 997-1017.
Bibliografia específica: EDUARDO CORREIA: Unidade e Pluralidade de Infracções. Caso Julgado e
Poderes de Cognição do Juiz: a Teoria do Concurso em Direito Criminal (reimpress.), Almedina, Coimbra,
1996; LUÍS DUARTE D’ALMEIDA: O “Concurso de Normas” em Direito Penal, Almedina, Coimbra, 2004.
Conceitos relevantes: Unidade e pluralidade de crimes; concurso efectivo de crimes; concurso
real; concurso ideal; concurso ideal heterogéneo; concurso ideal homogéneo; concurso aparente de
crimes, concurso de normas; especialidade, subsidiariedade; subsidiariedade expressa ou formal;
subsidiariedade implícita ou material; actos preparatórios; tentativa; consumação; crimes de dano;
crimes de perigo concreto; crimes de perigo abstracto; consumpção; facto posterior co-punido.

1
Introdução

Há situações em que, a um concreto comportamento, pode ser, em abstracto, aplicável


uma pluralidade de normas incriminadoras. No entanto, dessa circunstância, nem sempre se
pode concluir estarmos perante um concurso efectivo de factos puníveis1.
Escrevia Eduardo Correia, que "o número de infracções" se determina "pelo número de
valorações que, no mundo jurídico-criminal, correspondem a uma certa actividade” 2 ,
consequentemente, entendia que quando a actividade do agente preenche diversos tipos legais
de crime, necessariamente se negam diversos valores jurídico-criminais e estamos, por
conseguinte, perante uma pluralidade de infracções”3. Para Eduardo Correia, é a "possibilidade
de subsunção de uma concreta relação da vida a um ou vários tipos legais de crimes" que nos
dá "a chave para determinar a unidade ou pluralidade de crimes em que tal relação se sintetiza
ou desdobra"4.
Contudo – prossegue –, "a violação de várias disposições pode só aparentemente indicar
o preenchimento de vários tipos e a correspondente existência de uma pluralidade de
infracções", e "muitas normas do direito criminal – como aliás as de outros ramos de direito –
estão umas para com as outras em relação de hierarquia, no sentido precisamente de que a
aplicação de algumas delas exclui, sob certas circunstâncias, a possibilidade de eficácia
cumulativa de outras". Consequentemente, "a pluralidade de tipos que se podem considerar
preenchidos quando se toma isoladamente cada uma das respectivas disposições penais" vem,
"no fim de contas" e "olhadas tais relações de mútua exclusão e subordinação", a "revelar-se

1
A obra de referência entre nós, sobre esta matéria, continua a ser a tese de doutoramento de Eduardo Correia,
Unidade e pluralidade de infracções, apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, em 1945, e
os posteriores desenvolvimentos do Autor sobre o tema. Como ponto de partida sobre o pensamento do Autor,
tomo como orientação a excelente síntese, de LUÍS DUARTE D’ALMEIDA (O “Concurso de Normas” em Direito Penal,
Almedina, Coimbra, 2004, pp. 9-15), que sigo quase textualmente.
2
EDUARDO CORREIA: Unidade e Pluralidade de Infracções. Caso Julgado e Poderes de Cognição do Juiz: a Teoria do
Concurso em Direito Criminal (reimpress.), Almedina, Coimbra, 1996, pp. 76, 84; Direito Criminal, II, Reimpressão,
Almedina, Coimbra, 2000, p. 200.
3
EDUARDO CORREIA: Unidade e Pluralidade de Infracções, p. 91; Direito Criminal, II, p. 200.
4
EDUARDO CORREIA: Unidade e Pluralidade de Infracções, p. 91; Direito Criminal, II, p. 201.

2
inexistente". Estar-se-á, neste tipo de casos, "perante um concurso legal ou aparente de
infracções"5. O que está em causa, agora, "mantendo a investigação no puro domínio da
interpretação", é "determinar as relações de hierarquia entre os preceitos penais”6.
Quanto à interpretação do então art.º 38.º do Código Penal de 1886, propunha Eduardo
Correia a seguinte interpretação: no corpo do referido artigo, estavam previstas as situações de
concurso de infracções, equiparando-se o “concurso ideal” ao “concurso real”7, no § Único do
mesmo artigo8, estariam abrangidas as diversas hipóteses de concurso aparente9. Apesar de
algumas teses discordantes na altura 10, foi esta a interpretação do referido art.º 38.º do CP/86
que prevaleceu na jurisprudência e na doutrina de então.
Doutrina que foi depois transposta para o Código Penal português de 1982, e que agora
nos aparece, de uma forma mais evidente, no novo art.º 43/1 do CP, sob a epígrafe, concurso
de crimes. Diz-nos o seu n.º 1, que “Há concurso de crimes quando o agente comete mais de
um crime na mesma ocasião, ou quando, tendo perpetrado um, comete outro antes de ter sido
condenado pelo anterior, por sentença transitada em julgado”. Diz-nos depois, o n.º 2 do
mesmo artigo, que “Quando o mesmo facto é previsto e punido em duas ou mais disposições
legais, como constituindo crimes diversos, não se dá concurso de crimes”.
Interessa, por isso, começar por distinguir duas realidades distintas: o concurso de
crimes – efectivo, puro, ou próprio; do concurso de crimes – aparente, impuro, ou impróprio,
em bom rigor, concurso de normas.
Vejamos o que está em causa nesta distinção.

1. Distinção entre os chamados concurso (efectivo) de crimes, e concurso (aparente) de


crimes, ou concurso de normas

5
EDUARDO CORREIA: Unidade e Pluralidade de Infracções, p. 124; Direito Criminal, II, p. 204.
6
EDUARDO CORREIA: Unidade e Pluralidade de Infracções, p. 127.
7
Era a seguinte a redacção do então art.º 38.º do Código Penal/86: “Dá-se a acumulação de crimes, quando o
agente comete mais de um crime na mesma ocasião, ou quando, tendo perpetrado um, comete outro antes de ter
sido condenado pelo anterior, por sentença passada em julgado”.
8
Que estabelecia: “§ único – Quando o mesmo facto é previsto e punido em duas ou mais disposições legais, como
constituindo crimes diversos, não se dá a acumulação de crimes".
9
EDUARDO CORREIA: Unidade e Pluralidade de Infracções, p. 100; Direito Criminal, II, p. 217.
10
Veja-se, por todos, MANUEL CAVALEIRO DE FERREIRA: Direito Penal, Universidade Católica, Lisboa, 1980, p. 205;
Direito Penal Português. Parte Geral, I, Verbo, Lisboa, 1982, p. 159

3
No concurso efectivo de crimes, o agente pratica várias infracções penais autónomas
(concurso real), ou com a sua acção viola vários preceitos legais (concurso ideal). No primeiro
caso, há uma pluralidade de actos, o chamado concurso real de crimes: o agente comete mais
de um crime mediante duas ou mais acções, v.g., hoje furta um veículo, e amanhã utiliza esse
veículo no assalto a um banco, ou mata uma pessoa, teríamos dois crimes; no segundo caso, o
agente, com uma (e a mesma) acção viola vários preceitos legais, situação em que se verifica
uma unidade de acto, o chamado concurso ideal de crimes, ou seja, com a mesma conduta
(pelo menos em sentido naturalístico), produz mais do que um evento, ou, por outras palavras,
mais precisas, lesa vários bens jurídicos (v.g., com um só tiro, mata ou fere uma pessoa, e
destrói uma montra) ou o mesmo bem diversas vezes (v.g., com um só tiro mata duas pessoas).
Os exemplos apontados mostram que o concurso ideal pode ser homogéneo ou
heterogéneo. É homogéneo quando uma acção provoca várias consequências idênticas (da
mesma espécie), ou seja, quando a mesma espécie de crime é perpetrado duas ou mais vezes
pela mesma conduta do agente. Dito de outra forma, quando os crimes cometidos lesam o
mesmo bem jurídico; é heterogéneo uma acção produziu várias consequências diferentes
(crimes de espécie diferente), ou seja, quando duas ou mais espécies de crime são
efectivamente cometidos com a mesma acção. Sob a perspectiva do bem jurídico afectado,
quando esses crimes lesam bens jurídicos distintos.
Ambos os casos referidos (concurso real e concurso ideal), se reconduzem ao regime do
concurso de crimes, previsto nos art.ºs 43/1 e 124 do CP.
Diferentemente, o que acontece no concurso de normas é que, várias previsões legais
são preenchidas, mas uma delas basta para esgotar o conteúdo ilícito do facto. Ou seja, o
concurso de normas pressupõe uma unidade do facto e uma pluralidade de normas
potencialmente aplicáveis, mas o facto constitui um só crime; por isso se diz que no concurso
de normas há apenas um concurso aparente de crimes.
O primeiro enquadra-se na Teoria Geral da Infracção, que será estudada, no próximo
semestre, em Direito Penal II; o segundo é ainda um problema de interpretação dos tipos

4
penais11, que deverá enquadrar-se na Teoria da Lei Penal. Por isso, só esse será aqui tratado
seguidamente.

2. O concurso (aparente) de crimes, ou concurso de normas

Da circunstância de a um concreto comportamento ser em abstracto aplicável uma


pluralidade de normas incriminadoras não pode concluir-se, sem mais, estarmos perante um
concurso de factos puníveis. Importa, antes de tudo, determinar se as normas abstractamente
aplicáveis se não encontram numa relação lógico-jurídica tal (numa relação, poderia dizer-se de
"lógica hierarquia")12 que, em verdade, apenas uma delas ou algumas delas são aplicáveis,
excluindo a aplicação desta ou destas normas (prevalecentes) a aplicação da ou das restantes
normas (preteridas); pela razão de que à luz da(s) norma(s) prevalecente(s) se pode já avaliar
de forma esgotante o conteúdo de ilícito (e de culpa) do comportamento global13.
Assim, se alguém pratica um roubo (art.º 279 do CP), realiza também, necessariamente,
um dos tipos de furto (art.ºs 270 e ss do CP) e de ofensas corporais (art.ºs 171 e ss) e/ou coação
(art.ºs 195 e 196 do CP), já que estes elementos conceptuais estão contidos no crime de roubo.
Em semelhante caso, o autor apenas será punido pelo crime de roubo do art.º 279 do CP,
porque o desvalor do furto, das agressões e ou da coação já foram tomados em consideração
no tipo de roubo. Então, os tipos “afastados” já não se manifestam, em absoluto.
É nisto que consiste o concurso (aparente) de crimes, ou, como prefiro designar, o
“concurso de normas”. Trata-se aqui “de uma operação de natureza lógico-conceitual”14, ou se
preferirmos, é essencialmente uma questão de interpretação, e aplicação ao caso concreto:
“apesar de o comportamento global ser subsumível a uma pluralidade de tipos legais con-
cretamente aplicáveis, todavia deve concluir-se pela unidade do sentido social de ilicitude do
facto punível”15.

11
EDUARDO CORREIA : Unidade e Pluralidade de Infracções, p. 127.
12
EDUARDO CORREIA : Direito Criminal, II, p. 204; CLAUS ROXIN: Derecho Penal. Parte General, Tomo II, Thomson
Reuters-Civitas, Pamplona, 2014, p. 997.
13
JORGE DE F IGUEIREDO DIAS: Direito Penal. Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, Coimbra, p., 992.
14
JORGE DE F IGUEIREDO DIAS: Direito Penal, p. 992.
15
JORGE DE F IGUEIREDO DIAS: Direito Penal, p. 993.

5
O concurso de normas apenas está regulado no CP em casos particulares, através das
chamadas “cláusulas de subsidiariedade”, v.g., “se pena mais grave não couber”. Assim, por
exemplo, segundo o n.º 1 do art.º 276 (furto de fluidos), “Quem, por qualquer meio, subtrair,
[…] sinal de telefone, rádio, televisão, internet, dados de voz, imagem, vídeo ou outros bens
imateriais com valor económico, é punido com pena de prisão até 1 ano, se pena mais grave
não couber”. Na prática, esta norma só é aplicável aos casos em que o valor do furto não
exceda 40 salários mínimos, porque nesse caso, já não é o tipo do art.º 276 que é aplicável, mas
sim o art.º 270 do CP.

3. As regras do concurso de normas

A doutrina dominante distingue três (por vezes quatro) tipos de relações entre normas
em concurso: (1) a da especialidade, (2) a da subsidiariedade e (3) e da consumpção; à qual
alguns autores acrescentam – autonomizando-a face à consumpção – (4) a do facto posterior
não punido, melhor, co-punido.
A diferença entre essas três primeiras manifestações pode ser caracterizada, grosso
modo, da seguinte maneira: na especialidade, o tipo que é afastado está conceptualmente
contido no tipo prevalecente, como vimos já no exemplo do roubo; na subsidiariedade, um tipo
opera como um tipo residual, caso a conduta do autor não preencha um tipo punido com uma
pena mais grave. Um exemplo disso pode ser o furto de fluidos acima mencionado, em relação
furto simples; finalmente, estamos perante uma situação de consumpção, quando o tipo de
crime prevalecente contém em si outro, não por necessidade conceptual, mas de um modo
típico (elemento decisivo é a análise dos bens jurídicos violados), ou seja, o tipo prevalecente
consome já a protecção que o tipo que é afastado visa16.
Vejamos o que está em causa em cada uma destas situações.

16
CLAUS ROXIN: Derecho Penal, II, p. 999.

6
3.1. Relação de especialidade

Diz-se que há uma relação de especialidade, “entre normas típicas abstractamente


aplicáveis a um facto sempre que um dos tipos legais (lex specialis) integra todos os elementos
de um outro tipo legal (lex generalis) e só dele se distingue porque contém um qualquer
elemento adicional”17, seja relativo à ilicitude, seja relativo à culpa. Ou seja, neste tipo de casos,
observamos que a norma especial contém todos os elementos da norma geral, e mais
“qualquer coisa”, relativamente à ilicitude ou à culpa.
De um ponto de vista da lógica conceptual, verifica-se uma"subordinação" da lei geral à
lei especial: "lex specialis derogat legi generali", ou seja, uma norma especial derroga, tem
prioridade, relativamente à norma geral. A especialidade é a forma mais simples e de aplicação
mais segura do concurso de normas18.
O seu campo de aplicação tem, essencialmente, a ver com a relação (1) entre os tipos
qualificados e privilegiados, face ao tipo base; (2) entre o tipo simples e o tipo complexo em
que aquele se integre; (3) entre os crimes com elementos de autor qualificantes e o tipo base,
ou comum.

3.1.1. Tipos qualificados e privilegiados

Existirá sempre uma relação de especialidade, entre qualquer tipo fundamental (lei
geral) e o respectivo tipo agravado ou privilegiado (lei especial). Exemplo: o homicídio agravado
(art.º 160 do CP) ou o homicídio privilegiado (art.º 161 do CP), acrescentam um elemento
adicional relativo à culpa – a “especial censura ou perversidade”, no primeiro caso, ou a
“compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou
moral”, no segundo – ao homicídio voluntário simples (art.º 159 do CP); o envenenamento
(art.º 162 do CP), acrescenta um elemento adicional relativo à ilicitude – o meio (insidioso)
empregue –, ao homicídio voluntário simples (art.º 159 do CP).

17
JORGE DE F IGUEIREDO DIAS: Direito Penal, p. 994.
18
CLAUS ROXIN: Derecho Penal, II, p. 1000; HANS-HEINRICH JESCHECK/THOMAS WEIGEND: Tratado de Derecho Penal. Parte
General, Ed. Comares, Granada, 2002, p. 790.

7
Outros exemplos de uma relação de especialidade podem verificar-se ainda, entre o tipo
de aborto (art.º 166 do CP) e o de aborto agravado (art.º 167 do CP); entre o tipo de ofensas
corporais simples (art.º 171 do CP) e os de ofensas corporais graves (art.ºs 172 e 173 do CP),
qualificadas (art.ºs 177, 178 e 179 do CP) e privilegiadas (art.º 175 do CP); entre o tipo de furto
simples e o agravado (art.ºs 270 e 273 do CP), etc..

3.1.2. Tipos compostos ou complexos

De especialidade também se poderá entender, a relação que intercede entre o tipo


simples e o tipo complexo em que aquele se integre, v. g., como já referi, entre o tipo de roubo
(art.º 279 do CP) e os tipos integrantes de furto (art.ºs 270 e ss do CP) e de ofensas corporais
(art.ºs 171 e ss) e/ou à liberdade pessoal (art.ºs 195 e 196 do CP)19. Isto porque o roubo é,
invariavelmente, um furto qualificado, pelo uso da violência, ou da ameaça, ou seja, não se
concebe um roubo sem furto20. Ou seja, o roubo, como lex specialis, afasta os outros tipos de
crime referidos21.

3.1.3. Os crimes com elementos típicos de autor qualificantes

Normalmente, qualquer pessoa pode, ser autor de um crime. Tratam-se, nestes casos,
de crimes gerais ou comuns. Por vezes, porém, o legislador exige também qualidades especiais
para a autoria, ou seja, há certos crimes que só podem ser cometidos por determinadas
pessoas, às quais pertence uma certa qualidade ou sobre as quais recai um dever especial. Fala-
se então de crimes específicos, e diz-se, a este respeito que são exigidos aqui elementos típicos
de autor.
No âmbito destes crimes específicos devemos ainda distinguir entre: (1) crimes
específicos próprios (ou puros) – referidos a determinadas pessoas investidas em certa

19
JORGE DE F IGUEIREDO DIAS: Direito Penal, p. 994.
20
Neste sentido, v. TERESA PIZARRO BELEZA: Direito Penal, I, pp. 466-472.
21
Embora outros autores tratem a relação entre o roubo e o furto no plano da consumpção. Voltarei a esta
questão.

8
qualidade ou relações especiais (v.g., os crimes de prevaricação, art.ºs 411 e 412 do CP); e (2)
crimes específicos impróprios (ou impuros) – nos casos em que existe um tipo comum para a
generalidade das pessoas, e um tipo específico para um determinado “tipo de autor”. É, por
exemplo, o caso dos crimes de peculato (art.º 434 do CP), e de concussão (art.º 419 do CP), ou
de entrada abusiva em casa alheia (art.º 418 do CP), que, quando praticados por um “servidor
público”22, afastam, respectivamente, os tipos de abuso de confiança (art.º 296 do CP),
extorsão (art.º 298 do CP), e de violação de domicílio (art.º 250 do CP) 23.
O primeiro tipo de situações (crimes específicos próprios, ou puros) não levanta,
naturalmente, quaisquer problemas de concurso. Os segundos constituem uma forma
particular de especialidade, são lex specialis, relativamente aos tipos gerais ou comuns
correspondentes.
Mas há outros casos. Constituem também elementos de autor ou de autoria
qualificantes os pressupostos de “direcção ou chefia de grupos, organizações ou associações
criminosas”, pelo que a norma do n.º 3 do art.º 348 do CP, afasta a do n.º 1 do mesmo artigo24.
Aplica-se, portanto, em todos estes casos acima tratados, o princípio de que lei especial
derroga lei geral, sob pena, de outra forma, de se violar os princípios do non bis in idem, e da
proporcionalidade.

3.2. Relação de subsidiariedade

Por sua vez, existe uma relação de subsidiariedade, “quando um tipo legal de crime deva
ser aplicado somente de forma auxiliar ou subsidiária, se não existir outro tipo legal, em

22
Sobre o conceito de servidor público” veja-se o n.º 1 do art.º 438 do CP: qualquer “pessoa que exerce mandato,
cargo, emprego ou função numa entidade pública, em virtude de eleição, de nomeação, de contratação ou de
qualquer outra forma de investidura ou vínculo, ainda que de modo transitório ou sem remuneração”. Equipara,
depois, a este conceito, o n.º 2 do mesmo artigo, os conceitos de: “funcionário, agente do Estado, empregado
público, agente municipal ou qualquer outro similar, que se utilize para referir à pessoa que cumpre funções em
entidade pública”.
23
Cfr. TERESA PIZARRO BELEZA : Direito Penal, II, pp. 108-110; EDUARDO CORREIA: Direito Criminal, I, p. 306; JORGE DE
FIGUEIREDO DIAS: Direito Penal, PG, I, pp. 287-288.
24
CLAUS ROXIN: Derecho Penal, II, p. 1003.

9
abstracto também aplicável, que comine pena mais grave”25. Dito de outra forma, quando um
crime se “apaga” perante outro, como forma menos intensa de agressão26. Diz-se, neste tipo de
casos, que “lex primaria derogat legi subsidiariae”, ou seja, a norma prioritária (primaria)
precede (derroga) a norma subsidiária; ou, se quisermos, a norma subsidiária retrocede face à
norma primária.
Aqui, neste ponto, há ainda que distinguir os casos de (1) subsidiariedade expressa (ou
formal) e os casos de (2) subsidiariedade implícita (ou material).

3.2.1. Subsidiariedade expressa (ou formal)

Existe subsidiariedade expressa quando o teor literal de um dos tipos legais restringe
expressamente a sua aplicação à inexistência de um outro tipo legal que comine pena mais
grave, em regra, sob cláusula de subsidiariedade expressa geral, por exemplo, quando consta
do estatuído no tipo a expressão: “se pena mais grave não couber”27.
Assim, existe uma relação de subsidiariedade expressa, por exemplo, entre o crime de
condução de veículo sob influência do álcool ou estupefacientes (art.º 230/1 do CP), um crime
doloso de perigo abstracto, e o crime de perigo concreto, de condução perigosa de meio de
transporte terrestre (art.º 231/2 do CP). Mas, olhando apenas para a Parte Geral do CP, são
muitos os casos de subsidiariedade expressa28.

3.2.2. Subsidiariedade implícita (tácita, ou material)

Existe, por sua vez, subsidiariedade implícita (tácita, ou material), naqueles casos em
que, apesar do silêncio da lei, o legislador entendeu criar, para alargamento ou reforço da

25
JORGE DE F IGUEIREDO DIAS: Direito Penal, p. 997; CLAUS ROXIN: Derecho Penal, II, p. 1003; HANS-HEINRICH
JESCHECK/THOMAS WEIGEND : Tratado de Derecho Penal, p. 791.
26
Não reconhecendo utilidade a esta classificação, Eduardo Correia, trata estes casos no âmbito da consumpção
(EC: II, 206).
27
JORGE DE F IGUEIREDO DIAS: Direito Penal, p. 997.
28
Neste plano, o legislador foi “generoso” em exemplos: vejam-se os art.ºs 165/1,170/2, 181/2, 182/1, 189, 194/1,
196/2, 204/1, 218/1, 221/1, 226/1, 227/2, 230/1, 236, 250/2, 276/1, 286, 334/2, 344/2, 345/1, 346/1, 349/1, 355,
359/1, 366/1, 368, 373, 384, 385/1, 387/2, 389, 393/3, 398/1, 412/2, 417, 419, 420, 428, 437, 447/1 do CP.

10
tutela, tipos legais abrangentes de factos que se representam ou como estádios evolutivos,
antecipados ou intermédios, de um crime consumado; ou como formas menos intensas de
agressão ao mesmo bem jurídico. Não se trata aqui desde logo, no entanto, de dois grupos
completamente distintos, pode em alguns casos haver sobreposição. Por outro lado, e
sobretudo, se não há objecção a que, em certos de tais casos, se aceite uma relação de
subsidiariedade, já outros casos configurarão uma hipótese de concorrência de normas e por-
tanto de concurso, em regra aparente ou impuro29.

a. Os actos preparatórios tipificados como crimes autónomos e os estádios evolutivos,


antecipados ou intermédios, de um crime consumado

O primeiro grupo de casos é constituído pelos actos preparatórios tipificados como


crimes autónomos e os estádios intermédios ou evolutivos para um crime de dano consumado.
Ou seja, os tipos legais que punem autonomamente os actos preparatórios (v.g., art.º 393/3 do
CP), relativamente aos que punem a tentativa ou a consumação dos crimes respectivos (cfr.,
art.º 393/1 do CP). Neste exemplo, o tipo legal de crime previsto no art.º 393/3 do CP, é
preterido na sua aplicabilidade se ao facto for aplicável a norma que prevê o crime, tentado ou
consumado, no caso em análise, o art.º 393/1 do CP. O mesmo devendo afirmar-se
relativamente à relação entre tentativa e consumação do mesmo crime30.

b. A relação entre formas antecipadas de tutela e a verificação do dano

O segundo grupo de hipóteses de subsidiariedade tácita (formas menos intensas de


agressão ao mesmo bem jurídico) pode ver-se integrado por casos como os das relações entre
os tipos legais que prevêem crimes de perigo e os que prevêem os crimes de dano corres-
pondentes, ou entre os que prevêem outras formas menos intensas relativamente a formas

29
JORGE DE F IGUEIREDO DIAS: Direito Penal, p. 999; CLAUS ROXIN: Derecho Penal, II, pp. 1006-1007
30
JORGE DE F IGUEIREDO DIAS: Direito Penal, pp. 999-1000; CLAUS ROXIN: Derecho Penal, II, pp. 1005-1006. Confirmar

11
mais intensas (e por isso mais gravemente puníveis) de lesão, desde que seja o mesmo, o bem
jurídico protegido31.

Impõe-se, neste ponto, antecipar uma matéria que será melhor estudada na cadeira de
Direito Penal II. Quanto ao tipo de actuação do agente sobre o bem jurídico, ou, noutros termos,
atendendo à forma como o bem jurídico é posto em causa pela actuação do agente, podemos
distinguir entre: (1) crimes de dano – que pressupõem a lesão efectiva do bem jurídico; e (2)
crimes de perigo – que pressupõem um mero perigo de lesão (v.g., a mera venda ou exposição
de substâncias venenosas ou abortivas, art.º 223 do CP); não é necessário que se verifique o
consumo e, consequentemente o resultado para o preenchimento do tipo.
Por vezes, a lei exige a verificação efectiva desse perigo, ou seja, o perigo faz parte do
tipo – crimes de perigo concreto (v.g., os art.ºs 218 e ss do CP, ou, ainda, o caso dos crimes de
perigo para o tráfico rodoviário, sempre que a integridade física ou a vida de outrem ou uma
coisa de valor significativo sejam postas em perigo, v.g., art.º 231/2 do CP). Diferentemente, nos
crimes de perigo abstracto, o perigo não é um elemento do tipo, mas tão só, motivação do
legislador32. Os delitos, assim configurados, abrem a possibilidade de que um comportamento
careça completamente de perigo, no caso concreto33, basta que se tenha realizado a conduta
proibida (v.g., art.ºs 230 e 231/1 do CP)34.

Assim, se existe uma relação de subsidiariedade expressa (como vimos já) entre os
crimes dolosos de perigo abstracto e os de perigo concreto de condução de veículo sob
influência do álcool ou estupefacientes, e de condução perigosa de meio de transporte
terrestre (art.ºs 230/1 e 231/2 do CP), uma relação da mesma natureza, se bem que agora
implícita, existirá para a generalidade do relacionamento entre tipos legais de perigo abstracto
e de perigo concreto.
Relação que existirá igualmente entre os tipos legais de perigo (abstracto, concreto,
abstracto-concreto) e os tipos de dano correspondentes, v.g., o tipo legal de condução perigosa
de veículo terrestre (art.º 231 do CP) é subsidiário relativamente aos tipos legais dolosos de
lesão da vida (art.ºs 159 e ss), da integridade física grave (art.ºs 172 e ss) ou, eventualmente, de
dano agravado (art.º 311 do CP); bem como o tipo legal da exposição ou abandono de menor

31
JORGE DE F IGUEIREDO DIAS: Direito Penal, p. 999-1000; CLAUS ROXIN : Derecho Penal, II, pp. 1005-1006.
32
JOSÉ F RANCISCO DE F ARIA COSTA: O Perigo em Direito Penal, pp. 620-621.
33
URS KONRAD KINDHÄUSER: Acerca de la legitimidad de los delitos de peligro abstracto, p. 451.
34
EDUARDO CORREIA : Direito Criminal, I, p. 287-288; JORGE DE FIGUEIREDO DIAS: Direito Penal, PG, I, pp. 291-294.

12
(art.º 226 do CP) deve ter-se por subsidiário relativamente aos mesmos tipos legais de crime
dolosos de ofensa à integridade física grave ou de homicídio.
Nesta vertente da subsidiariedade implícita podemos ainda incluir a relação entre as
normas relativas à autoria e à cumplicidade. Vejamos a seguinte hipótese: A… pede a B… que
mate um terceiro, C…, pagando-lhe uma determinada quantia; para além disso empresta-lhe
uma arma para a prática do crime. Ou seja, A… determina B… à prática do facto (instigação,
alínea c) do art.º 24 do CP); para além disso, presta-lhe auxílio material para a prática desse
facto (cumplicidade, art.º 25/1 do CP). Prevalece como título de participação a instigação que é
punida nos mesmos termos da autoria. Admita-se agora que, por qualquer motivo, por
exemplo, porque B… “tremeu”, A… acaba, ele próprio, por executar o crime (cfr. alínea a) do
art.º 24 do CP); ou a, juntamente com B…, tomar parte directa na sua execução (cfr. alínea b)
do art.º 24 do CP). Naturalmente que o titulo de participação que agora subsiste é a sua
participação como autor, ou, no caso, como co-autor35.
O mesmo se diga, por fim, à relação entre a violação de um dever de garante (art.º 10/2
do CP), e violação do geral dever de auxílio (art.º 221/2 do CP), entre a norma que prevê um
crime doloso e a que prevê o crime negligente correspondente36. Em qualquer destes casos a
relação lógica intercedente entre os tipos legais não é a de inclusão, mas a de interferência.

3.3. Relação de consumpção

Existe, depois, uma relação de consumpção, “quando o conteúdo de um ilícito-típico


inclui em regra o de outro facto, de tal modo que, em perspectiva jurídico-normativa, a
condenação pelo ilícito-típico mais grave exprime já de forma bastante o desvalor de todo o
comportamento: lex consumens derogat legi consuntae” (a lei que consome, ou seja, que
“absorve”, derroga ou prevalece sobre a consumida)37. Dito de outra forma, quando um crime
contém em si outro, não por necessidade conceptual, mas de um modo típico (elemento

35
TERESA PIZARRO BELEZA : Direito Penal, I, pp. 460-461, Dias, 1000; CLAUS ROXIN : Derecho Penal, II, pp. 1010-1011.
36
CLAUS ROXIN: Derecho Penal, II, p. 1010.
37
JORGE DE F IGUEIREDO DIAS: Direito Penal, pp. 1000-1001; CLAUS ROXIN : Derecho Penal, II, p. 1011.

13
decisivo é a análise dos bens jurídicos violados)38. O que se passa nestes casos, é que uma
dessas normas não contém necessariamente, na sua previsão, todos os elementos da outra,
mas de uma forma frequente ou característica, a maneira de praticar o crime previsto nesta
segunda norma abrange os elementos de uma outra norma dizendo-se que, neste caso, uma
norma consome já a protecção que a outra visa.
A doutrina, diria, dominante, trata neste tipo de relações entre normas, essencialmente,
dois tipos de situações: os crimes tipicamente [normalmente] concomitantes, ou
acompanhantes do tipo prevalecente; e os “factos posteriores não punidos”, melhor, os “factos
posteriores co-punidos” (v.g., quando a um crime de apropriação se siga a destruição da coisa
apropriada). Entendo que, sobretudo por questões didácticas, este tipo de situações deverão
ser autonomizadas. É o que farei no ponto seguinte (3.4.).
A diferença fundamental relativamente às categorias anteriormente analisadas, reside
em que aqui se tomam em consideração os factos nas suas conexões típicas, e se assume que o
legislador teria já levado implicitamente em conta esta circunstância, ao editar as molduras
penais respectivas. Deste ponto de vista – o de uma consumpção em sentido estrito –,
integrariam a categoria da consumpção “os factos tipicamente acompanhantes”, v. g ., ao tipo
legal do furto com escalamento, previsto na circunstância 5.ª do art.º 273 do CP), está
tipicamente, mas não necessariamente, ligado o de violação do domicílio do art.º 250 do CP;
como ao de aborto do art.º 166 do CP, nas mesmas condições, o de ofensa à integridade física
do art.º 171 do CP.
Concretamente – agora na distinção ente consumpção e subsidiariedade – a questão
não reside já, numa determinada relação lógica a que se encontram sujeitos os distintos tipos
penais, mas antes numa relação, essencialmente criminologica, que o legislador, também terá
levado em consideração no estabelecimento das respectivas molduras penais dos tipos de
crime implicados39.
Os exemplos tradicionais de consumpção, em sentido estrito, podem ser: (1) o roubo
(art.º 279 do CP), em relação ao furto (art.º 270 do CP), ou em relação ao crime de ofensas
corporais (art.º 170 do CP), ou de ameaça (art.º 174 do CP) – ainda que aqui se possa defender,
38
Também aqui tem fundamento, o princípio ne bis in idem.
39
HANS-HEINRICH JESCHECK/THOMAS WEIGEND: Tratado de Derecho Penal, pp. 792-793.

14
como deixei defendido acima – que o que aqui existe é uma relação de especialidade, porque o
roubo é, invariavelmente, um furto qualificado, pelo uso da violência, ou da ameaça, ou seja,
que não se concebe um roubo sem furto; (2) o furto com arrombamento, escalamento ou
chaves falsas, em casa não habitada nem destinada a habitação (circunstância 5.ª do art.º art.º
273 do CP), ou o roubo por arrombamento (art.º 279/2 do CP)40, em relação ao crime a eles
ligado, o crime de violação de domicílio (art.º 250 do CP); ou (3) o crime de sequestro (art.º 198
do CP), em relação ao crime de ameaça (art.º 195 do CP); etc.
(…)

3.4. O facto posterior não punível, ou co-punido

O “facto posterior não punível” ou, melhor, o “facto posterior co-punido”41, pode ser
considerado como uma quarta forma de manifestação autónoma do concurso de normas, já
que não se trata de nenhum facto tipicamente concomitante, mas antes, de um facto posterior,
de uma acção autónoma, poder-se-á dizer, um caso de “concurso real impróprio”42. Em todo o
caso, como um evento "posterior" concomitante, ele é tão semelhante ao fato "simultâneo"
tipicamente concomitante referido acima, que justifica para uma parte significativa da doutrina
agrupar ambos os casos sob o conceito de consumpção43. Sem rejeitar a razoabilidade de
agrupar ambos os casos sob esse mesmo conceito de consumpção, optei por questões
essencialmente didácticas, por tratar esta questão autonomamente.
O que é que está em causa? Qualquer pessoa que pratica um crime, pratica de seguida,
em regra, actos de encobrimento. E portanto, o que está em causa são situações em que a
acção típica que se segue ao crime tem unicamente em vista assegurar, aproveitar ou garantir a
vantagem ilícita conseguida com o primeiro facto, sendo por isso consumida pelo primeiro
evento, pelo que, noutros termos, não requer uma punição autónoma. Para que isto aconteça,
é necessário: (1) que esse facto posterior não viole qualquer outro bem jurídico; (2) e que não

40
Sobre os conceitos legais de arrombamento, escalamento e chaves falsas, v. art.º 283 do CP.
41
JORGE DE FIGUEIREDO DIAS: Direito Penal, p. 1017; HANS-HEINRICH JESCHECK/THOMAS WEIGEND: Tratado de Derecho
Penal, p. 793; CLAUS ROXIN : Derecho Penal, II, p. 1013.
42
CLAUS ROXIN: Derecho Penal, II, p. 1013.
43
CLAUS ROXIN: Derecho Penal, II, p. 1014.

15
suponha uma ampliação quantitativa da medida dos danos já ocasionados, ou seja, que não
produza um “novo dano”44. Alguns autores acrescentam um terceiro requisito: que não haja
lesão de um novo titular de bens jurídicos, ou seja, a vítima tem de ser a mesma, e não pessoa
diferente45. Porque em tais casos já não poderá legitimamente falar-se nem de unidade do
acontecimento ilícito nem, consequentemente, de unidade de sentido desvalioso do ilícito
típico total: estes casos serão então de concurso efectivo46.
Neste caso, a relação típica entre a infracção primária e o acto posterior que com ela
concorre consiste em que, regra geral, o agente tem que realizar também a acção posterior
caso pretenda que o facto principal tenha para si algum sentido. Por isso, a apropriação da
coisa furtada por parte do ladrão não constitui uma apropriação indevida (abuso de confiança)
que deva ser vista autonomamente. Com esta solução pretende-se evitar que o mesmo ilícito
seja sancionado duas vezes.
Aceite geralmente como acto posterior co-punido é a destruição de coisa móvel a seguir
ao furto, no intuito de ocultar a coisa, v.g., se alguém furta uma bicicleta e mais tarde, para
afastar de si as suspeitas de furto, a deita ao rio, fazendo com que aí desapareça, não se poderá
falar de um concurso efectivo de crime de furto e de dano: o prejuízo objectivamente causado
não aumenta para além do já ocasionado pelo furto e o conteúdo criminal do dano acha-se já
consumido pela punição do furto. Da mesma forma, se o ladrão queima a coisa que furtou,
quando chega à conclusão de que afinal não lhe serve para o que pretendia, o dano não tem
autonomia em relação ao furto, o agente apenas deverá ser incriminado pelo crime de furto47.
Naturalmente que, já não podemos falar de facto posterior co-punido nos casos em que
o ladrão aliena a mercadoria furtada (ou roubada) e terceiro de boa fé. Porque a burla que aí se
verifica, com a entrada da coisa no património do adquirente, lesa um novo bem jurídico (o
património do adquirente), completamente distinto relativamente ao do proprietário48. Neste
caso temos um furto (art.º 270 do CP), seguido de uma burla (art.º 287 do CP), em concurso

44
JORGE DE FIGUEIREDO DIAS: Direito Penal, p. 1017; HANS-HEINRICH JESCHECK/THOMAS WEIGEND: Tratado de Derecho
Penal, p. 793; CLAUS ROXIN : Derecho Penal, II, p. 1014
45
Veja-se a discussão deste terceiro requisito em CLAUS ROXIN : Derecho Penal, II, p. 1014.
46
JORGE DE F IGUEIREDO DIAS: Direito Penal, p. 1017.
47
EDUARDO CORREIA (…); contra, TERESA PIZARRO BELEZA : Direito Penal, I, pp. 475-476.
48
HANS-HEINRICH JESCHECK/THOMAS WEIGEND: Tratado de Derecho Penal, p. 793.

16
real de infracções, porque o agente “fingindo-se ser senhor” da coisa, a vende a um terceiro de
boa fé. Segundo Eduardo Correia há aqui dois diferentes bens jurídicos e titulares: no primeiro
o direito de propriedade do titular da coisa; no segundo caso, a boa-fé e o património de
terceiros, na medida em que a venda de coisa alheia é nula, nos termos do Código Civil.
Se o pensamento exposto, encontra o seu campo de eleição nos chamados delitos de
apropriação e nos correspectivos crimes de encobrimento ou de asseguramento, não deixa de
ter também aplicação relativamente a outros tipos de crime de índole completamente
diferente. Circunstâncias como, v.g., a de se utilizar uma arma proibida (art.º 226 do CP), ou a
de, para encobrir o facto principal, esconder o cadáver, jogando-o num poço ou num rio, ou
mesmo de o desmembrar ou desfigurar (art.º 186 do CP) – desde que não seja pessoa diferente
do homicida – constituem condutas que concorrem com a de homicídio, em princípio, sob a
forma do concurso aparente. É também neste contexto – porventura de uma forma ainda mais
clara – que deve decidir-se a questão do dano provocado na roupa da vítima de um crime de
homicídio a tiro ou à facada. Não importa aqui, em si mesmo, o maior ou menor valor
económico do dano, importa, sim, que a conduta danificadora faz parte em regra, segundo o
seu sentido, como facto prévio co-punído, do sentido absolutamente preponderante de ilícito
da conduta principal e deve por isso conduzir a um concurso aparente. Só assim não sendo,
uma vez mais, se o dano ultrapassar a esfera jurídica da vítima, v.g., se se trata de uma
manequim que enverga um vestido de notável valor numa passagem de modelos, ou da
destruição à bomba de um automóvel ou de uma avioneta ocupados apenas pela vítima, ainda
que esta seja o proprietário: circunstâncias como estas, não deixando de participar do
acontecimento ilícito global-final, produzem efeitos em outras esferas jurídicas. de terceiros ou
da comunidade, devendo conduzir à afirmação de um concurso efectivo49.

49
JORGE DE F IGUEIREDO DIAS: Direito Penal, pp. 1017-1018. Tem razão Rodriguez Devesa quando escreve: “Nunca vi
nenhuma sentença que condenasse por homicídio e ao mesmo tempo pelos danos causados na roupa pelo disparo
que provocou a morte ou pela facada que provocou feridas mortais na vítima. A pena do homicídio já engloba o
desvalor da utilização dos meios escolhidos para dar a morte”.

17

Você também pode gostar