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PSICODAMA BREVE E LUTO

MARISOL FILGUEIRA BOUZA E JOSÉ ANTONIO ESPINA


BARRIO

A cultura ocidental está imersa na ideia da imortalidade. Os doentes são enviados aos
hospitais, onde seus órgãos doentes são tratados, e só voltam para casa quando estão
“magicamente” recuperados. É cada vez menos comum que a morte ocorra em casa.
Os hospitais e necrotérios substituem este rito de passagem de forma fria e asséptica.
Muitas vezes, a pessoa que está prestes a morrer não sabe que o fim está próximo, e
os parentes não têm autorização para expressar seus sentimentos de perda e solidão.

Os ritos de passagem assinalam as mudanças que ocorrem no continuum da vida e


constituem uma etapa importante no desenvolvimento da personalidade (Espina
Bario, 1992; Feinstein e Mayo, 1993). Para Eliade, os ritos de passagem comportam
dois passos: no primeiro, há o reconhecimento da “morte” do estágio anterior; no
segundo, a pessoa enlitada “renasce” para o novo estágio. Leach concorda com os
estágios definidos por Gennep (separação, crescimento autônomo e incorparoção),
afirmando que cada um deles necessita de uma série de rituais que, conjuntamente,
constituem o rito de passagem.

Entretanto, a pessoa que morre não é mais velada em casa, não existe “velório”. Suas
virtudes e defeitos não são proclamados, e a expressão de sentimentos que favorece o
processo de luto não é mais encorajada, salvo em comunidades isoladas. Não
surpreende que essa repressão de sentimentos opere na profundidade do organismo,
aparecendo depois na forma de úlcera psicossomática, estresse ou depressão.

O psicodrama antropológico procura recuperar os ritos antigos que emprestam maior


significado à vida e também incrementam nossas habilidades e recursos. Não se trata
de um ensaio fora do tempo e de lugar, mas de uma recriação. A associação Espanhola
de Psicodrama (AEP) vem trabalhando bastante com esse tipo de psicodrama Filgueira,
Varea e Gonzalez, 1996; Lamas e Filgueira, 1992 e 1993).

O psicodrama antropológico procura desbloquear o processo normal do luto. Depois


de um comentário verbal a respeito dos sentimentos, o protagonista é estimulado a
escolher a cena com a qual deseja começar. Em geral, ela abriga a pessoa que morreu.
Se ele escolher esse encontro, nosso primeiro objetivo será fazê-lo reconhecer a
separação entre ele e a pessoa amada. O psicodrama torna possível um encontro com
a pessoa morta, com o objetivo de dizer a ela que sentimos sua falta e aborda temos
em aberto. O sujeito pode inverter papéis com o morto, incorporar seus sentimentos e
compreender, a partir daí, a separação.

A técnica do espelho permite que cada um tome distância para observar sua situação
existencial, como se estivesse numa varanda.

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A inversão de papéis com parentes (o morto e a família) facilita a recuperação do meio
social do cliente e oferece a oportunidade de experimentar diferentes maneiras de
resolver o luto. A etapa de incorporação dos parentes exige o reconhecimento da
irreversibilidade, a expressão dos sentimentos de solidão e, finalmente, a
oportunidade de se despedir da pessoa que morreu. Mesmo que se possa utilizar a
palavra “adeus”, é melhor para o protagonista dizer à pessoa querida que qualidade
dela ele vai guardar consigo. Dessa forma, o protagonista mantém viva sua memória e
se enriquece com novas habilidades. Ao incorporar as qualidades de quem se foi, ele
aceita a morte e promove um processo de desenvolvimento pessoal.

O processo psicodramático é sempre o mesmo, mas a atitude do terapeuta difere,


dependendo do contexto. Nas oficinas de psicodrama para o luto, mais do que o
resultado dramático, o objetivo primordial é ajudar o protagonista, sem causar-lhe
dano. Como não há continuidade, é necessário levar em conta todos os participantes,
de tal forma que eles não se sintam deixados de lado. No caso da psicoterapia de
grupo, com sessões sucessivas, o propósito é ajudar o protagonista a chegar ao ponto
que ele deseja alcança, mas nunca além dele. Se o programa psicodramático não se
completa, haverá novas sessões. Deixamos uma margem para que o luto se processe
naturalmente e assim se estabeleçam novos objetivos. Temos trabalhado também em
diferentes contextos, tais como o individual e o familiar.

O PSICODRAMA BREVE COM FOCO NO LUTO

O processo psicodramático aplicado à psicoterapia breve centrada no problema


implica os seguintes passos:
1- Detectar-se uma situação de bloqueio emocional na evolução clínica ou na vida
do paciente.
2- Decide-se que é necessária uma intervenção psicodramática.
3- O psicodrama e a equipe terapêutica trabalham na mesma direção. Não é
obrigatório que a equipe tenha sido treinada em psicodrama, embora seja útil.
4- A primeira sessão exploratória é marcada, seja com o paciente sozinho, seja
com seus parentes. É possível estabelecer objetivos específicos a partir do que
já se sabe a respeito do paciente. Essas são as fases do aquecimento da sessão
de treinamento.
5- A cena pode ser sugerida pelo paciente ou trabalhada pela equipe terapêutica.
Neste último caso, ocorre quando o paciente não colabora ou quando há
interesse específico em trabalhar dada situação. O psicodramatista dirige a
cena. Os membros da equipe terapêutica e/ou os parentes do paciente,
quando presentes, tomam parte como egos-auxiliares, se necessário. Os ego-
auxiliares devem sempre seguir as orientações do psicodramatista e ajuda-lo.
Uma vez encerrada a cena, o paciente e/ou os parentes comentam o trabalho
feito, seus efeitos e prognóstico para o fechamento e compartilhamento.
Depois da discussão, a equipe pode prescrever tarefas para futuras sessões e
para acompanhamento do paciente e da família.
6- Em seguida, a equipe, sozinha, passa em revista o diagnóstico, discute a
intervenção, avalia os resultados e estabelece hipóteses a respeito de uma
possível evolução. O conteúdo da sessão é compartilhado e registrado.

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7- Na sessão seguinte, depois da intervenção, os resultados e as hipóteses são
verificados. Se a evolução foi boa (ou seja, se faram alcançados e mantidos os
efeitos esperados), não se fazem mais sessões de tratamento, mas o paciente
pode retornar à sua terapia para o tradicional acompanhamento. Se a evolução
não foi bem-sucedida, considera realizar novas sessões psicodramáticas ou
utilizar novas estratégias de intervenção, com diferentes orientações.

Em princípio, qualquer caso pode ser admitido para tratamento, mas somente se leva
adiante quando existe uma garantia mínima de progresso para o paciente.

O luto e a melancolia apresentam sintomas similares: um clima de profunda dor, falta


de interesse pelo mundo exterior, perda de capacidade de amar e inibição de todas as
funções. O melancólico sofre uma perda de autoestima, com um largo espectro de
autoculpabilização. Já o luto normal é um estado de sofrimento profundo devido a
perda de um ente querido, que o tempo vai aliviando gradativamente. O luto
patológico é uma reação a uma perda conhecida, mas não aceita. A melancolia é uma
resposta a uma perda inconsciente, desconhecida para o indivíduo. Todo o processo
de luto é lento: a realidade em geral acaba vencendo, mas demanda muito tempo e
energia.

O PROCESSO DO LUTO TEM DIVERSAS FASES:

1- Choque e entorpecimento: Caracterizada por uma reação de confusão,


sentimento de vazio e explosões emocionais, ou de muita calma, ao receber a
notícia. Dura entre algumas horas e uma semana.
2- Negação e isolamento: a pessoa não consegue acreditar no que aconteceu
(“Não é possível, não é verdade!”). ela se isola do ambiente.
3- Raiva: explosões de agressividade e acusações contra as pessoas próximas.
Começa duas ou três semanas depois da perda. O enlutado identifica razões em
quase tudo para se queixar e se irritar, mostrando uma tentativa de recuperar
o objeto perdido (“Por que isso foi acontecer comigo?”, “Por que ele/ela me
abandonou?”) e, às vezes, de autoacusação (“Por que eu não fiz mais alguma
coisa por ele/ela?”).
4- Pacto ou negociação: o desaparecimento começa a ser levado em conta, mas o
individuo busca uma forma de minimizar ou compensar a situação por meio de
uma barganha, promessa ou adiamento (“Só alguns meses mais”, “Leve-me
com ele/ela, “Se ele/ela voltar, eu prometo que ....”).
5- Depressão, desorganização e desesperança: é a fase de sofrimento mais
intenso. À medida que se dá conta da irreversibilidade da situação, o individuo
começa um choro desconsolado; surgem lembranças persistentes e um
sentimento de proximidade em relação à pessoa morta, que pode em alguns
casos evoluir para alucinações. Esse período pode ir de um mês após a parda
até vários meses depois.
6- Aceitação: consciência do óbvio, com maior serenidade.
7- Esmaecimento da cataxia, separação e resolução: diz-se adeus à pessoa
perdida, rompendo os vínculos com ela. O sujeito pode ainda ter alguma
esperança de recuperar aquela pessoa, mas constata que é impossível.

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8- Recuperação: volta progressiva à funcionalidade.
9- Reconexão com o meio e estabelecimento de novos vínculos com as pessoas.

TODAS ESSAS ETAPAS PODEM SER SINTETIZADAS EM TRÊS:

1- Não! Não é verdade, isso não aconteceu.


2- Sim, mas não. Aconteceu. Mas eu não consigo aceitar ou lidar com isso.
3- Sim, aconteceu, e eu preciso aceitar e lidar com isso.

A elaboração normal da perda implica a necessidade de passar por todas as fases, o


que dura em média um ano. Para que o processo ocorra sem maiores problemas, a
fase da raiva e da exteriorização é absolutamente necessária, da mesma forma que a
reconexão com a realidade.

Entre os sintomas do luto estão: ficar estacionado em alguma dessas fases, em geral
na de negação da perda e/ou uma exacerbação dos sintomas esperado de dor; e/ou o
aparecimento de formas alteradas de comportamento, que podem inclusive ser
perigosas para a saúde do paciente (descuido, tentativa de suicídio, e assim por
diante). A falta de consciência e de perspectiva de um adeus deixa um grande número
de temas em suspenso: tudo que o sujeito gostaria de ter feito, mas não fez com a
pessoa que morreu.

Os principais sintomas do luto patológico são a negação da perda e a repressão de


sentimentos. O tratamento tem quatro objetivos principais:

1- Prevenir a repressão: forçar o paciente relembrar e reviver os acontecimentos.


2- Apoio emocional: compensar o desamparo.
3- Assistência social: ajudar o paciente a enfrentar os fatos da vida e a
desenvolver habilidades para resolver problemas.
4- Reconstrução: auxiliá-lo a restabelecer novos vínculos.

O psicodrama coloca em cena aquele que morreu e todas as figuras-chave da pessoa


afetada. Esses papéis esses papéis são desempenhados por ego-auxiliares. A presença
de objetos significativos relacionados com a pessoa morta (roupas e objetos pessoais,
fotografias, cartas e assim por diante) facilita a expressão dos sentimentos. A
despedida e a abordagem de temas relevantes ajudam a trabalhar o relacionamento
com a pessoa morta e facilitam a reconexão com o meio.

O processo terapêutico também passa por várias etapas. Olhando para o passado,
ocorre primeiro um insight e um reconhecimento da morte (iminente ou acontecida).
Depois, vem uma resolução mental de problemas importantes. No presente, há um
ritual de despedida em que se expressam sentimentos contidos. Olhando para o
futuro, há finalmente uma busca de apoio no meio externo, que poderia potencial e
parcialmente substituir a pessoa perdida. Assim, há um retorno ao mundo “real” e
uma nova vinculação com pessoas que continuam vivas.

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Neste texto, apresentamos apenas os dados mais relevantes dos casos de luto. Todos
os casos tratados com psicodrama produziram resultados satisfatórios, mesmo os mais
graves. O risco de suicídio ou a presença de sintomatologia pseudopsicótica
costumam ser diagnosticados, equivocadamente, como depressão ou psicose.

ESTUDO DE CASO.

Mulher de 57 anos

Ela foi hospitalizada em estado de estupor e catatonia. Na sequência, apareceu uma


“calma paradoxal” devido ao “choque” causado pela morte da mãe. A paciente fez,
numa cena imaginária, um confronto com a mãe. Ela a chamou para se despedir, dois
minutos antes de morrer (a técnica do tempo-limite, destinada a provocar uma nova
situação numa circunstância extrema). Isso permitiu que a paciente expressasse o
rancor que sentia por ter sido abandonada. A expressão em si, implicou o
reconhecimento da perda. Uma vez desaparecida a negação da morte, o processo
normal de luto pôde acontecer, seguido por uma recuperação.

Homem de 60 anos

Hospitalizado depois de uma grave tentativa de suicídio, sofrendo de estresse e


ansiedade, ele desenvolveu um quadro maníaco com dores de cabeça, sensação de
formigamento e de desmaio. Seu diagnóstico foi de depressão grave. Tinha feito várias
tentativas de suicídio após a recente morte do filho, num acidente. Quando entrou no
hospital, estava desenganado, com perda intensa de funcionalidade. Apresentava
alucinações visuais liliputianas (via os amigos de seu filho como criaturas minúsculas
que apareciam no jardim quando ele cortava a grama, e precisava coloca-las de lado,
evitando assim feri-los). E auditivas (vozes de outros filhos seus, que haviam imigrado
para um país distante, dizendo que voltariam). Os médicos então diagnosticaram uma
psicose alucinatória aguda. Uma inversão de papéis entre o paciente e o filho morto
proporcionou um desbloqueio. No papel do filho, durante a inversão, pediu a ele
(paciente) que parasse de tentar recuperá-lo (filho) e seguisse sua vida, direcionando
seu afeto para os outros filhos e para o restante da família. Como esse pedido tinha
vindo de seu “filho favorito”, a quem ele (paciente) nada poderia recusar, ele
encontrou a energia necessária para fazer esse esforço e começar a reconexão.

Mulher de 18 anos

Foi tratada ambulatorialmente, tendo apresentado explosões emocionais


autoagressivas, tonturas, desmaios e perda de funcionalidade depois da morte da irmã
num acidente. Este ocorrera durante uma viagem que a própria paciente, e não a irmã,
deveria ter feito. Ela tentou se matar para se encontrar com a irmã e estava em estado
de “choque e negação”. Nós a forçamos a aceitar a morte, organizando visitas ao
cemitério, gravação da lápide, velas em memória da falecida. Propusemos uma
inversão de papel imaginária com seus pais, com os outros irmãos e amigos, para que
ela sentisse os efeitos de sua possível ausência (caso ela se matasse). Assim, ela

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encontrou uma razão para continuar vivendo. Reconectou-se e recuperou a
funcionalidade.

Homem de 59 anos
Foi tratado ambulatorialmente por luto. Sua mulher havia desaparecido e ele
suspeitava que ela tivesse cometido suicídio, atirando-se ao rio, porque ela tinha uma
longa história de depressão e tentara se matar anteriormente. Ele estava vivendo o
luto antes de saber da morte, uma vez que o corpo da esposa não havia sido
encontrado. Trabalhamos seus sentimentos de culpa (ele pensava que deveria tê-la
controlado melhor). Ele dramatizou também alguns temas importantes (o que ele não
tinha dito à esposa ou não tinha feito com ela). Finalmente, ele conseguiu despedir-se
de um neto desejado, ainda não nascido, e se reconectou com a filha, numa projeção
futura. Houve uma intensa explosão emocional, com uma consequente recuperação
plena da saúde e da funcionalidade. Ele não teve recaída, como se esperava, quando o
corpo de sua mulher foi encontrado no rio, um mês depois.

Conclusões

 O psicodrama é um instrumento útil para a recuperação de ritos perdidos.


 Ajuda a desbloquear situações de luto mal resolvido.
 Complementa outras terapias, tais como psicofarmacologia e a psicoterapia
individual.
 Pode ser implementado em momentos de crise, por exemplo, durante a
hospitalização psiquiátrica.
 Pode ser aplicado dentro da família ou em contextos grupais, com o mesmo
resultado.

A partir de nossa experiência, desenvolvemos uma estratégia simples para ajudar as


equipes de primeiros socorros a desbloquear situações de luto mal resolvido. Trata-se
de um programa preventivo, mais do que uma intervenção terapêutica propriamente
dita. Se não funcionar, deve-se utilizar o psicodrama.

Estratégia para trabalhar com o luto

1- Comentários a respeito de sentimentos de saudade da pessoa amada podem


ajudar o paciente a tomar consciência da morte e a expressar emoções
contidas.
2- Informar à pessoa morta o que aconteceu depois que ela se foi aumenta a
consciência da perda e sua aceitação, ajudando o parente a conectar-se com
seu meio social.
3- Reunir pertences da pessoa morta, ou fazer algumas coisas que ela teria feito,
pode ajudar ainda mais a internalizar a perda.

FILGUEIRA, D; MAYO, P, E. Sobre el vivir y el morir – Um programa de afirmación a la


muerte. Madri: Eaf, 1993.

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