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c o l e ç ão c u lt u r a é o q u ê

vo l u m e i i

Cultura e Desenvolvimento
em um quadro de
desigualdades
Marta Porto
c o l e ç ão c u lt u r a é o qu ê ?
vo l u m e i i

Cultura e desenvolvimento
em um quadro de
desigualdades
?
Marta Porto
?

Secretar ia de Cultura do Estado da Bahia


Salvador, junho de 201 2
Governador do Estado da Bahia
copyright© : 2009, by Pavese Porto, Marta Jaques Wagner
Direitos desta edição cedidos à Secretaria de Cultura do Estado da Bahia. Secretário de Cultura
Antônio Albino Canelas Rubim
Marcio Meirelles (2007-2011)
Permitida a reprodução total ou parcial, para fins não comerciais, desde que Chefia de Gabinete
citada a fonte. Rômulo Cravo Almeida
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Diretoria Geral
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Rômulo Cravo Almeida (2007-2011)
Superintendente de Desenvolvimento
Territorial da Cultura
Taiane Fernandes
Adalberto Santos (2011-2012)
Ângela Maria Menezes de Andrade (2007-2010)
Superintendente de Promoção Cultural
Carlos Paiva
Diretor do Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural
Frederico Mendonça
Diretor do Instituto de Radiodifusão Educativa da Bahia
Póla Ribeiro
Diretora da Fundação Cultural do Estado da Bahia
P882 Porto, Marta Nehle Franke
Cultura e desenvolvimento em um quadro de desigualdades.
Gisele Nussbaumer (2007-2011)
Diretor da Fundação Pedro Calmon
/ Marta Porto. – Salvador : Secretaria de Cultura,
Ubiratan Castro
Fundação Pedro Calmon, 2009.

60 p. – (Coleção Cultura é o quê?, II)


Ficha Técnica
Coordenação Editorial: Ana Paula Vargas
ISBN: 978-85-61458-13-3
Articulação e Promoção Institucional: Sérgio Rivero
Edição e Revisão: Ana Maria Amorim, Wladimir Cazé, George Sami
1.Cultura. 2.Cultura - Desenvolvimento. I Título. II.Série. Diagramação: Taiane Oliveira
CDD 306
O desaf io de transformar
márcio meirelles
trajetos realizados, para uma escolha acertada de caminhos
é que vão depender, claramente, as ações para o futuro
desse imenso país.

A autora proporciona ao leitor uma abordagem histórica


que começa nas chamadas Leis de Mecenato (Rouanet,
Audiovisual e outras), instrumentos de fomento que
acabaram por instaurar um conceito de cultura alicerçado
Seguindo o objetivo central da coleção Cultura é o quê?, sobre a “ação preferencial de comunicação e marketing”,
que já traz em seu próprio título a intenção de cercar o tema ou seja, a “privatização” dos anseios da população sob
com muitos olhares possíveis, esse novo volume da série a constante e única “preocupação mercadológica com
apresenta um texto balizador que busca resgatar conceitos clientes, fornecedores e consumidores”. Tamanho equívoco
e situar a “cultura” no campo das experiências brasileiras. político, que quis transformar a gestão da cultura em
Se o texto de Marilena Chauí, no primeiro volume, produtora de eventos comercialmente viáveis, gerando
provocava o leitor com um conceito abrangente de cultura, uma cultura do privilégio em oposição ao justo desejo do
disponível no mundo para ser socializado, esse novo texto, espírito público, parece tomar novos rumos, a partir de
da jornalista Marta Porto, leva o leitor a refletir sobre a 2005, quando o foco político volta-se para a criação de um
necessidade de que, antes de tudo, torna-se imperativa Sistema Nacional de Cultura.
a “profunda mudança no imaginário coletivo nacional”,
para realizar uma “agenda de desenvolvimento”, que Surgem pressupostos fundamentais que passam a tratar a
já está em curso; o segundo passo, e mais delicado é, cultura, finalmente, como matéria de desenvolvimento, em
percebermos criticamente com que conceito de cultura profundo diálogo com outras áreas do setor público, mas
vamos lidando no lento processo de redemocratização com garantida autonomia para propor políticas a partir de
do país, que vem sendo realizado há mais de 20 anos. De suas próprias bases: diversidade cultural, acesso do indivíduo
uma conscientização inicial, construída sobre a análise de pelo diálogo das diferenças, cultura como capital social,

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provedor de formação humanística e desenvolvimento.
O texto de Marta Porto vem então propor o grande e
maior desafio que está na mudança de mentalidade em
relação a alguns aspectos que cercam o “termo” cultura:
a inclusão da cultura na pauta das políticas públicas, com
investimentos que possibilitem o efetivo exercício da gestão
cultural; a percepção dos programas culturais, não como
“ação social capaz de transformar indicadores históricos
de desigualdade”, mas como um direito assegurado pela
sociedade e, finalmente, a necessidade de repensar os
programas sociais que, utilizando para seus fins a formação
artística, promovem entre as populações carentes a ilusão
da ascensão pela fama na indústria de entretenimento.

A autora finaliza seu texto que, pleno de lucidez, traz por fim
a dimensão de uma sociedade que irá realizar justiça social Preâmbulo
ao garantir o acesso de seus bens públicos a todos os seus
cidadãos. A cultura, diverso e plural produto da expressão
humana e fator de desenvolvimento, talvez configure-se aí
como o mais importante conjunto de humanidades a ser
compartilhado por todos.

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Entramos no século XXI, com todas as possibilidades

Cultura e cidadania
científicas e tecnológicas de superação das nossas
condições de desigualdade econômica e social. Infelizmente

são temas que a realidade brasileira não confirma essa tese. Ocupamos o
segundo lugar em mortes por armas de fogo em todo o

começam a despontar mundo (Unesco, 2005), temos 25 milhões de miseráveis,


uma educação formal deficitária. A desnutrição, a morte
com força na agenda de adolescentes por gravidez precoce e abortos mal
assistidos, os assassinatos no campo permanentemente
política nacional em conflito são situações cotidianas em nosso país.

Nossas desigualdades históricas permanecem como


um desafio para todas as gerações. Um quadro
que se confronta com a opulência de nossas elites,
nossos hábitos de consumo primeiro-mundistas,
a modernidade de nossos ícones culturais e de
nossas metrópoles. Assim, aceitamos o inaceitável: a
invisibilidade de nossos pobres, de nossas carências, de

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nossas tristezas e de nossa imensa desigualdade. O luxo I
supera o odor incômodo do lixo. cultura e
desenvolvimento:
Como pensar a importância das políticas culturais para o uma difícil relação
desenvolvimento a partir de uma cultura de desigualdades
construída culturalmente ao longo da história brasileira?

A retomada de uma trajetória sustentável de


desenvolvimento é encarada por todos como a maior
prioridade para o Brasil.

Ao contrário do que tanto se diz nas páginas dos jornais,


no entanto, ela não depende de uma simples redução da
taxa de juros. Nem muito menos implica a reedição de um
modelo que já experimentamos no passado, que se esgotou
por seus próprios limites e que está na raiz de grande parte
dos problemas que enfrentamos hoje: a insuficiência e
a baixa qualidade de educação, a desigualdade, o caos
metropolitano, os desequilíbrios ambientais etc.

Uma agenda de desenvolvimento para o Brasil hoje passa,


antes de tudo, pelo aprofundamento e pelo aprimoramento
de processos que já estão em curso na sociedade brasileira:

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•A democratização política, econômica e social; estudos sobre este tema no país, o Instituto de Estudos do
•A consolidação da estabilidade macroeconômica; Trabalho e Sociedade - IETS, liderado por economistas e
• Uma ampla reforma de instituições que já fizeram seu estudiosos de peso no cenário nacional.
tempo, que não condizem com a sociedade aberta e de
mercado que se está construindo, e que impedem maiores A pauta correta, sob todos os pontos de vista, não exclui
ganhos de eficiência e uma maior equidade; por todo a dimensão cultural, certamente subentendida
• A redefinição do espaço público, de forma a consolidar em alguns dos itens acima, mas revela a forma indireta
a descentralização e a ampliar suas fronteiras para além da com que ela é tratada na totalidade dos documentos, e
esfera estatal; também nos debates públicos, sobre desenvolvimento
• O aumento dos investimentos em infra-estrutura, em que lideram a discussão no país. Certamente porque a
ciência e em tecnologia; cultura, antes de definir um caminho político próprio, com
• A reformatação de um amplo leque de políticas públicas, uma agenda clara, propositiva, de médio e longo prazos
visando obter uma maior transparência e, sobretudo, uma e de fácil compreensão para o cidadão comum, assume
maior eficácia do gasto público; uma postura dúbia ao tentar justificar a sua importância
• O redesenho da inserção do país no cenário econômico através de associações com outras agendas - a social e a
e político internacional. econômica, para ficar nas mais óbvias ¬que muitas vezes
roubam da cultura o que seria a sua maior contribuição: a
Trata-se, portanto, de uma agenda complexa - cuja formação de indivíduos com consciência crítica capazes
materialização requer o envolvimento de um amplo de propor mudanças em um modelo que raramente
leque de atores e uma profunda mudança no imaginário corresponde ao anseio humano por liberdade e justiça.
coletivo nacional.
Na área da cultura, o debate capaz de recuperar a sua
Os pressupostos acima foram retirados de um documento dimensão e importância política foi gradativamente
intitulado “Caminhos para o Desenvolvimento no Brasil”, substituído pela insuficiente discussão sobre os
elaborado por uma das principais entidades de pesquisa e mecanismos de financiamento à cultura, através da

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facilitação do acesso aos recursos privados. Substituímos sociedade fórmulas fáceis como as aplicadas nos editais
o essencial pelo acessório e em 20 anos colhemos o fruto de patrocínio, que exigem “contrapartidas sociais”
dessa escolha: a fragilização do sistema nacional de cultura, aos projetos financiados, ou o manejo, muitas vezes
com ausência de verbas públicas nos órgãos oficiais de inconseqüente, de termos padrões como “inclusão social”,
cultura, o desmonte de instituições de salvaguarda e “auto-estima” e tantos outros que, utilizados ad nauseam,
memória do patrimônio nacional, a má remuneração ou são esvaziados de sentido.
qualificação dos recursos humanos, mas, especialmente, a Neste texto, iremos, de forma introdutória, destacar
substituição da idéia de acesso amplo e universal a toda a
população brasileira, pela ação pautada em “público-alvo”.
Como em nenhuma
análises que colaborem para uma reflexão sobre este tema.

Cultura e desenvolvimento, cultura e fortalecimento da outra área, a cultura


do privilégio (...)
democracia, cultura e cidadania são temas que começam
a despontar com força na agenda política nacional, em
debates, seminários, apresentações de documentos
de secretarias e fundações culturais a partir dos anos esteve tão presente
2000. Um debate tardio, já que 20 anos nos separam da
implantação do Ministério da Cultura, em 1985, no bojo
como nas políticas
da redemocratização do país. culturais brasileiras
Mesmo tardio, o debate surge com força, em especial a
partir da Gestão Gilberto Gil, iniciada em 2003, quando
mudanças no desenho político incorporam novas
preocupações que começam a produzir resultados para o
desenho político da ação cultural. Ainda assim, é preciso
destacar a preocupação com o alinhamento sem reflexão
da política cultural com as políticas sociais, oferecendo à

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II Causas e conseqüências de uma política de incentivos
no reino do fiscais à cultura, adotada indiscriminadamente no
marketing:lideranças país desde 1985, pela qual empresas sem regulação
empresariais e o avesso adequada abatem um percentual do imposto devido ao
da cultura Tesouro Nacional, para estimular o ingresso de recursos
privados nas várias áreas da produção cultural. São as
leis de mecenato, que se implantam a partir de proposta
do Governo Federal com a Lei Sarney e, com ajustes
Alheia a boa parte dos avanços políticos que marcaram seqüenciais a partir de 1992, surgem nas figuras da Lei
nas duas últimas décadas as discussões em outros Rouanet, Lei do Audiovisual e, posteriormente, as leis
setores de atuação pública, a cultura caracterizou- estaduais e municipais, que incidem sobre impostos como
se, nos últimos anos, como uma área de disputa de ICMS, ISS e IPTU.
privilégios, personificados nos limites reivindicados para
a isenção fiscal dos diversos setores artísticos, pelo lobby Apesar da implantação do MINC em 1985, optou-se
de aprovação dos tetos permitidos nas comissões de por setorizar a discussão nos mecanismos financeiros
cultura e, naturalmente, pelas verbas publicitárias e de capazes de ampliar as verbas públicas a setores restritos
marketing das grandes empresas brasileiras, em especial da produção cultural, aqueles com maior capacidade de
e paradoxalmente das estatais. Assim, o campo teórico organização e pressão política. As leis de incentivo, nas três
por excelência das soluções coletivas, revela com crueza esferas do Estado, seus tetos de isenção e as estratégias
o traço mais contundente da elite nacional em relação às de preenchimento das planilhas disponibilizadas pelos
mazelas do povo: o prevalecimento dos interesses privados órgãos públicos deram a tônica da superficialidade política
e das soluções restritas a poucos sobre as necessidades que acometeu durante duas décadas o debate cultural no
de um corpo social diverso, a quem se nega o direito de país. Como em nenhuma outra área, a cultura do privilégio,
emancipação cultural e visibilidade pública. da ausência de preocupação com os movimentos sociais
e culturais de fora do que tradicionalmente se denomina

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“produção cultural” esteve tão presente como nas políticas
culturais brasileiras.

O que ocorre com essa política? Primeiro ela traz um novo


agente à cena política: os departamentos de marketing e
comunicação de empresas em um primeiro momento e,
a partir de 1995, as grandes fundações culturais privadas,
Acepções que muitas atreladas a entidades financeiras.

consideram a cultura Surge com esses novos atores a mentalidade distorcida de

de uma perspectiva
que o investimento em cultura se sustenta como “ação
preferencial de comunicação e marketing”, bem distante

de marketing e da idéia da cultura como via de desenvolvimento ou


instrumento para a democracia.

comunicação não Amparados pelo governo que incentiva essa visão,


podem mais ser instituindo oficialmente em 1997 a famosa cartilha

pagas com dinheiro


“Cultura é um bom negócio”, os diretores de marketing
acionam teorias de marketing cultural e privatizam os

do contribuinte critérios de escolha do que a população deve ou não


produzir, distribuir, fruir, onde e como, a partir de suas
preocupações mercadológicas com clientes, fornecedores
e consumidores.

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Uma pesquisa encomendada pelo Ministério da Cultura “A participação da cultura em ações de
em 1997 à Fundação João Pinheiro registra de forma comunicação e marketing, por empresas públicas e privadas,
contundente a ausência de espírito público e a falta de em 1997, ocupa o primeiro lugar, com 53% das preferências
visão crítica dos burocratas do governo (gestão Francisco das empresas entrevistadas pela Fundação João Pinheiro.
Weffort, 1995-2002) e também dos dirigentes de Essa revelação consagra o marketing cultural como o meio
empresas que assumiram esse discurso e essa prática, mais importante para as empresas para divulgarem a
que ainda permeia o debate e o desenho das políticas de sua marca”. A evolução do comportamento empresarial
cultura brasileiras: de investimento em cultura, nos últimos anos, após a
modernização cultural levada a efeito pelo governo FHC,
Preferência das empresas por áreas de ações de comunicações - 1997
foi influenciada pela política de parceria entre Estado, das
leis de incentivo à comunidade cultural, implementada pelos
11%
Cultural
Científica
governos federal, estaduais e municipais (...). A pesquisa
7% Assistencial
Saúde de economia da cultura revelou ainda que, a partir de
Meio Ambiente
Esportiva
Educacional
1992, há um crescimento contínuo de empresas brasileiras
9% que investem em cultura como ação de comunicação e
53% marketing”.
3%

Esse espírito público que deve orientar qualquer escolha


13% dos órgãos competentes do estado, preservando o direito
às diferenças e o acesso às fontes estatais em condições
4%
de igualdade, é excluído da mentalidade estampada na
O texto de apresentação da pesquisa, intitulado “O cartilha adotada pelo MINC em 1995, “Cultura é um
Investimento em Cultura por empresas públicas e bom negócio”. Privatizou-se o poder decisório e com ele o
privadas”1, chega a afirmar entusiasticamente: papel exigido de um Ministério e de uma política pública,
reduzindo-se a política cultural a uma ação casuística e de
pouco interesse público ou formador.
24 25
III
avanços recentes nesse modelo

Além da conquista da Medida Provisória que institui o tão


Contribuir para
desejado Plano Nacional de Cultura, com a realização da 1ª a formação de
agentes capazes de
Conferência Nacional de Cultura em novembro de 2005,
há todo o trabalho para implementar o Sistema Nacional de
Cultura e a profissionalização dos quadros, especialmente
nas áreas de gestão e planejamento. Estamos, é certo, participar da vida
longe de resultados concretos que dependem de tempo,
da insistência e da vontade política de retomar a cultura
pública de forma
como uma das bases públicas para o desenvolvimento consciente e ativa
(...) é uma das ações
do Brasil, mas avançamos aos poucos, apesar da reação
da classe artística mais emperdenida, que a qualquer
tentativa de redução dos seus privilégios ameaça com os
meios de comunicação e frases de efeito. mais desafiadoras das
O incentivo fiscal é um recurso temporal legítimo
políticas culturais
do Estado, desde que ele apresente suas estratégias
de desenvolvimento global do setor beneficiado e os

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benefícios conquistados pela população ao final de sua notas
vigência. A estratégia de identificar problemas e desafios
para a gestão pública, consensuados com outros atores
1. Fundação João Pinheiro, 1997, Disponível no site do Ministé-
da sociedade, indica a possibilidade de promovermos uma rio da cultura, www.cultura.gov.br.
parceria público-privada, com aplicação de incentivos
escalonados, para imprimir velocidade na resolução dessa
problemática. Podemos citar a área de infra-estrutura ou de
inclusão digital nas escolas e comunidades de baixa renda,
ou mesmo as que vêm sendo concedidas pelo Governo
na área editorial. Mas a transparência e a qualificação dos
gestores, mais a participação da população, devem ser
garantidas para preservar o sentido público de tal iniciativa.

O certo é que acepções que consideram a cultura de uma


perspectiva de marketing e comunicação não podem mais
ser pagas com dinheiro do contribuinte, mas financiadas
pelas vultosas verbas de publicidade e os lucros das
operações ou do mercado financeiro. Seria uma guinada
fundamental para eliminarmos a cultura do privilégio que
se instalou na área cultural no Brasil e reapropriarmos o
espírito público tão desejado.

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IV A eliminação de privações de liberdades substanciais,
uma cultura para a argumenta-se aqui, é constitutiva do desenvolvimento”
(SEN, 2000)2.
política cultural
O desenvolvimento preconizado por Sen parte da idéia
de que cada indivíduo é agente ativo de mudança, e
não receptor passivo de benefícios. Sendo assim, um
desenvolvimento visto como um processo de expansão
O que se defende afinal é uma política cultural baseada em das liberdades reais que as pessoas desfrutam é um
preceitos culturais, na observância de valores e parâmetros desenvolvimento que vai muito além “do crescimento
que contribuam efetivamente para trazer um mote singular do PNB ou das rendas pessoais, industrialização, avanço
à discussão e ao processo de desenvolvimento. Não é o tecnológico ou modernização social. (...) As liberdades
isolamento da cultura de outras esferas da ação pública, dependem também de outros determinantes como as
mas a possibilidade de formular uma agenda capaz de se disposições sociais e econômicas (serviços de educação
legitimar de forma independente na vida pública. Uma e saúde) e os direitos civis (a liberdade de participar de
agenda que colabore para um tipo de desenvolvimento discussões e averiguações públicas)”3.
defendido pelo Prêmio Nobel de Economia Amartya Sen,
que mostra que a qualidade de nossas vidas deve ser medida Contribuir para a formação de agentes capazes de
não só por nossa riqueza, mas por nossa liberdade. participar da vida pública de forma consciente e ativa, em
uma sociedade capaz de estabelecer fóruns de diálogo e
“A expansão da liberdade é vista como o principal fim e o participação cidadã, é uma das ações mais desafiadoras das
principal meio do desenvolvimento. O desenvolvimento políticas culturais.
consiste na eliminação de privações de liberdade que
limitam as escolhas e as oportunidades das pessoas Uma política cultural que não tem como principais
de exercer ponderadamente sua condição de agente. destinatários artistas e produtores, mas o povo. Não

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para entretê-lo, mas para criar oportunidades reais de
enriquecimento humano, de acesso ao conhecimento
produzido pela enorme diversidade cultural e ambiental
O reconhecimento do planeta, do reconhecimento da nossa e de outras
identidades culturais, de experiências culturais que
cultural passa a ser emocionem, que modifiquem a nossa maneira de ver e

político no momento estar no mundo. E que nos habilitem, se assim desejarmos,


a ser ativos participantes das escolhas sobre nosso

em que a sociedade presente e nosso futuro.

elege o que vale a Uma política cultural voltada para as pessoas, de braços
dados com a ética, que valoriza a vida, a justiça e o
pena ser preservado, reconhecimento da diversidade. Capaz de promover

estimulado,
públicos leitores, de estimular a curiosidade sobre si e sobre
os outros, de expandir as experiências culturais e com elas

incentivado e até a vontade de se relacionar com o diferente sem que ele


represente uma ameaça. Ou seja, uma política cultural

representado no voltada para a formação cultural das pessoas, de ampliação


dos imaginários e das sensibilidades, para tornar a vida
espaço simbólico aquilo que ela deveria ser por princípio: mais humana.

Uma política de cultura que ponha alma no processo de


desenvolvimento, que inspire as pessoas e as impulsione
de forma crítica e construtiva a enfrentar os desafios da
vida pessoal e coletiva. Que estimule protagonistas e

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não beneficiários de outras políticas. Uma política para a
liberdade. E como se faz isso?

notas
O simples
reconhecimento 2. SEN, Amartya. Desenvolvimento com Liberdade. São Paulo:
Cia das Letras, 2001.

da diversidade 3. Idem.

cultural não conduz


a percepção de que,
apesar das diferenças
culturais, todos
têm direitos iguais e
inalienáveis

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V Quais os pilares de uma política de cultura pensada a
partindo da noção de partir desses princípios? Abaixo citamos um conjunto de
cidadania elementos propostos em documentos internacionais que
participativa podem contribuir para o debate sobre os fundamentos de
uma política cultural.

1. A promoção da diversidade cultural como elemento


promotor de uma ética de convivência e de respeito
Quando falamos de política cultural estamos à dignidade humana. O simples reconhecimento da
essencialmente afirmando as possibilidades de garantir diversidade cultural não conduz a percepção de que,
que as nossas singularidades de pensar, produzir apesar das diferenças culturais, todos têm direitos iguais
e se manifestar artisticamente, intelectualmente, e inalienáveis perante um corpo social que supera as
economicamente e espiritualmente sejam relevantes para diferenças e luta por justiça e igualdade. Assim, essa
o espaço público e o desenvolvimento integral de nossa agenda de política cultural promotora da diversidade
sociedade. Nesse sentido, o espaço político da cultura deve “promover o diálogo de culturas em contextos
é o espaço do reconhecimento da importância dessas de poder”, o que significa ofertar bens e serviços
expressões do ser individual e coletivo singular, de sua com a mesma qualidade para o conjunto de cidadãos,
memória, de suas várias formas de sonhar e se manifestar. independentemente do local de moradia ou da sua origem
O reconhecimento cultural passa a ser político no social, estimular intercâmbios entre as várias expressões
momento em que a sociedade elege o que vale a pena ser culturais e tecnologias artísticas e garantir meios de
preservado, estimulado, incentivado e até representado acesso transparentes aos recursos e mecanismos de poder
no espaço simbólico. E passa a ser cultural quando as da gestão cultural.
assimetrias sociais e ou econômicas não são relevantes
para a compreensão da capacidade protagônica de cada 2. Recuperando a noção de acesso como via de mão dupla,
indivíduo de agir sobre a sua vida e suas escolhas. onde todos têm alguma coisa a aportar. Aos poucos a noção

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difusionista da cultura, como meio de melhorar o acesso fase adulta. Estímulos e incentivos proporcionados pela
da população à produção artístico-cultural vai sendo riqueza dos encontros culturais proporcionados ao longo
superada pela noção de diálogo e intercâmbio culturais, da vida, da nossa facilidade e curiosidade de apreendê-los
o que pressupõe que todos os atores sociais são capazes e transformá-los em dados importantes da experiência
de produzir cultura e estão em condições de igualdade humana. A cultura, tal qual ela é pensada no século XXI,
para trocar e experimentar novas práticas e experiências. é a experiência que marca a vida humana em busca do
Assim, a idéia de acesso passa a ser muito mais um desafio conhecimento, do alto aprimoramento, do sentido de
de estabelecer vias de diálogo, de encontro entre diferentes pertencimento e da capacidade de trocar simbolicamente.
num contexto de diversidades, do que de produzir linhas
programáticas baseadas na noção de entreter ou de levar “Um acesso desigual aos meios de expressão cultural, novos
a cultura ao povo. ou tradicionais, implica, não somente uma negação do
reconhecimento cultural, mas algo que afeta seriamente o
Acesso, então, é promover o diálogo de culturas em sentimento de pertencimento de indivíduos e comunidades à
contextos de igualdade e cooperação, disponibilizando sociedade do conhecimento, ou a sua exclusão dela. A cultura
a todos as mesmas condições para participar da vida possui laços múltiplos e complexos com o conhecimento. A
pública, imprimindo transparência à disputa por recursos, transformação da informação em conhecimento é um ato
garantindo bens e serviços culturais com a mesma qualidade cultural, como é o uso a que se destina todo o conhecimento.
em todos os espaços e a todos os setores da sociedade, Um mundo autenticamente rico em conhecimento há de ser um
independente de classe social ou local de moradia. mundo culturalmente diverso”. (Koichiro MATSUURA, 2002)

O acesso à cultura exige um ambiente comunitário e O valor que damos à cultura, a nossa ou a aprendida, é
político favorável à inserção cultural do indivíduo e dos aquele que aprendemos a dar. Assim a experiência cultural
grupos. A nossa disposição de aprender e dialogar com ocorre a partir do diálogo constante entre práticas criativas
universos diversos é fruto dos estímulos que recebemos próprias e o livre acesso aos acervos culturais tradicionais e
do ambiente vivenciado na infância, na adolescência, na contemporâneos. O tamanho da fissura no Brasil é grande,

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e imagino que em boa parte dos países latino-americanos.
“Os números são eloqüentes: somos hoje 186 milhões de
brasileiros. Isso corresponde a 20 vezes a população de Por-
tugal, 5,5 vezes a da Argentina e 3 vezes a da França e da
Alemanha. A educação - estudantes e professores nos níveis
fundamental, médio, superior e pós-graduação - envolve 55
milhões de brasileiros. Cotejar esses números com os da pro-
Acesso, então, dução cultural nacional é deparar-se com um outro país. A
tiragem média de um romance no Brasil é de 3 mil exem-
é promover o plares, a ocupação média dos teatros é de 18% dos ingressos

diálogo de culturas
oferecidos, e o público médio do filme brasileiro é de 600 mil
espectadores. Vê-se que nem mesmo os inscritos na escola

em contextos formal participam da produção artística. Como Educação e


Cultura são inseparáveis como irmãs siamesas, o país vive

de igualdade e uma fratura esquizofrênica: de um lado, uma educação


sem cultura, do outro uma produção cultural sem público”:
cooperação (ARAÚJO, 2005) 4

3. Estabelecendo um marco de atuação política que prio-


rize com força a formação ética e humanística do cidadão,
atributos que parecem esquecidos nos dias de hoje. Que
promova um amálgama com potencial para garantir que a
trajetória da vida de cada um, e de todos nós, seja mais do
que profissão, trabalho e renda.

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Quem cuidará do lado humano, espiritual, do imaginário 4. A cultura como capital social promotora de
e do sonho se a cultura quer apenas o econômico, o desenvolvimento.
entretenimento, a disputa pelas verbas sociais? Nada
contra as dimensões culturais promotoras desses setores, O que é capital social? Vamos usar um trecho do discurso
mas o principal parece esquecido: o que nos torna de Enrique Iglesias, presidente do Banco Interamericano de
humanos não é a função e sim a inspiração. Desenvolvimento para ilustrar essa noção:

Nesse ponto, uma gestão cultural atenta a prover a “Há múltiplos aspectos da cultura de cada povo que podem
educação do que ela parece ter perdido, o conhecimento favorecer seu desenvolvimento econômico e social. É preciso
humanístico e a autonomia crítica, é a âncora desse descobri-los, potencializá-los e apoiar-se neles, e fazer isto
desenho. Um processo educacional e educativo com seriedade significa rever a agenda de desenvolvimento
enriquecedor, que amplie a visão de mundo e as de um modo que resulte, posteriormente, mais eficaz, porque
perspectivas de cada um, parte de dentro e de fora dos tomará em conta potencialidades da realidade que são da
muros escolares. Ganha relevância nos conteúdos gerados essência e que, até agora, foram geralmente ignoradas”.
pelos veículos de comunicação na internet, nos celulares e (IGLESIAS, 1997)
ipods. Nos bancos escolares e nos centros de cultura, nos
teatros, nas ruas e praças das cidades onde os encontros se Outra noção interessante é a de Michael Porter
tornam possíveis, quando promovidos de forma criativa e desenvolvida em seu artigo “Atitudes, Valores, Crenças e a
sistemática. Onde se abra espaço para o experimental, Micro Economia da Prosperidade” :
para o comunitário, para o estranho, que dialogando
com o tradicional, o clássico, o de sempre, produzam “Um papel importante para a cultura na prosperidade
novos sentidos, aprendizados já preconizados pela econômica continuará existindo, mas poderá ser muito
antropofagia cultural de Oswald de Andrade. bem um papel mais positivo. Aqueles aspectos particulares
de uma sociedade que originam inusitadas necessidades,
habilidades, valores e modos de trabalho serão os aspectos

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característicos da cultura econômica. Os aspectos positivos
da cultura, como a paixão da Costa Rica pela ecologia, a
obsessão dos EUA com o conforto, a paixão do Japão por
jogos e desenhos animados serão fontes vitais de vantagem
competitiva difícil de imitar, resultando novos padrões
de especialização internacional, à medida que os países A experiência
cultural ocorre a
produzam cada vez mais os bens e os serviços nos quais sua
cultura Ihes dá vantagem única”. (PORTER, 2002) 6

Partindo dessas duas acepções, podemos considerar que partir do diálogo


a cultura pensada como capital social é aquela identificada
como um ativo originado em todos os pontos desse país onde
constante entre
se possa encontrar um traço singular do fazer produtivo - práticas criativas
próprias e o livre
artesanato, culinária, festas populares, patrimônio tangível
e intangível, memória e história - que podem ser tratados
como agentes de desenvolvimento social e econômico. O
termo ativo cultural foi cunhado por Joatan Vilela Berbel em acesso aos acervos
seu trabalho “Ativo Cultural: um outro paradigma para as
políticas públicas de cultural”, onde ele destaca a noção de
culturais tradicionais
cultura proposta pela UNESCO na Conferência do México,
em 1997, para avançar em termos de uma noção capaz de
e contemporâneos
supor movimento, ação. Afirma Berbel:

Para introduzir o conceito de ativo na dinâmica da


produção cultural, quero lembrar-Ihes a definição de cultura

44 45
consagrada pela UNESCO na Declaração do México, sobre as
Políticas Culturais, em 1997: “Em seu sentido mais amplo,
pode-se considerar a cultura como o conjunto dos traços
distintivos, espirituais e materiais, intelectuais e afetivos
que caracterizam uma sociedade ou um grupo social. Além
disso, ela engloba as artes e a literatura, os modos de vida, os
direitos fundamentais do ser humano, os sistemas de valores,
as tradições e as crenças”. Quando utilizo a palavra ativo,
quero me referir a sua definição como: “que exerce ação;
A cultura é legítima
que age, funciona, trabalha se move”, mas também como “a simplesmente
porque ela é a base da
totalidade dos bens de uma empresa, ou pessoa, inclusive os
direitos suscetíveis de avaliação”, e ao aproximar o conceito
de ativo da definição. 7
existência humana,
Poderia aqui defender as dimensões políticas, os pontos
e critérios que poderiam nos conduzir a uma boa política
é o valor que confere
cultural, já desenvolvido em outros textos autorais e dignidade e razão
de estarmos vivos e
melhor ainda por outros autores, mas quero apenas
defender a idéia de que a cultura é legítima simplesmente
porque ela é a base da existência humana, é o valor que
confere dignidade e razão de estarmos vivos e atuantes. atuantes
O desenvolvimento, esse feito com e para a liberdade, é
a possibilidade de encontrarmos em vida, e também de
cultivarmos. para as próximas gerações, condições que

46 47
além de suprir nossas necessidades, carreguem de sentido notas
a vida humana. Aqui a cultura ganha em dimensão e
relevância, oportunizando a todos sem distinção participar
4. ARAÚJO, Alcione. Educação e Cultura ao mesmo tempo
desse processo como protagonistas, alargando sua visão agora. Publicado no jornal Estado de Minas, 2005
de si e do mundo e por fim enriquecendo a nossa existência
5. IGLESIAS, Enrique. Cultura, educación y desarollo, Assem-
daquilo que é inadiável: a capacidade de imaginar essa vida bléia Geral da Unesco, Paris, 1997.
e de sonhar outras formas de viver mais solidárias, justas e
6. PORTER, Michel, in Harrison, Lawrence e Huntington,
por fim, alegres. Samuel. A Cultura Importa – Os Valors que Definem o Progresso
Humano. Editora Record, 2002.
7. BERBEL, Joatan Vilela. Ativo Cultural: um outro paradigma
para as políticas públicas de cultura, 2003.

48 49
VI b) Os movimentos comunitários, oportunidades e limites
tópicos de reflexão para o desenvolvimento local

Os projetos culturais, a partir da década de 90, se desta-


caram na conquista dos espaços públicos e na legitimação
dos direitos sociais dos movimentos comunitários e de
periferias dos grandes centros urbanos. Maria Virgínia de
Vamos pensar em tópicos essa questão: Freitas, da Ação Educativa, chama a atenção para a impor-
tância desse fenômeno:
a) Reforma do Estado, do modelo de gestão e dos alicerces
políticos “Se nos anos 60, eram os jovens de classe média, os
estudantes que traziam o novo, nos anos 80 e 90, a
Potencializar o capital social e cultural de um povo é uma efervescência do diferente começa a nascer em outros
tarefa complexa que exige o alargamento das possibilidades espaços sociais. Em cidades como São Paulo, é nas periferias
das políticas culturais de se integrarem ao esforço de que começamos a encontrar uma série de grupos de jovens
desenvolvimento do país. Isso, naturalmente, implica num que se organizam para fazer música, dançar, grafitar, fazer
esforço de potencializar as áreas de planejamento e gestão teatro, produzir fanzines, organizar ações solidárias etc.
de um segmento identificado pela aversão a essas áreas de (...) É, sobretudo em torno da dimensão cultural que esses
ação pública, com o investimento sistemático em formação grupos vão se articular para encontrar seus iguais e, por
de quadros públicos habilitados a operar com a gestão meio de diferentes linguagens, expressar suas questões, suas
cultural. Planejamento requer pesquisa, mapeamento, visões de mundo, suas condições de vida, suas revoltas, seus
diagnósticos continuados, avaliação e monitoramento, projetos de sociedade. Nós observávamos esta riqueza e nos
quadros públicos e não-públicos qualificados, desenho de inquietávamos com sua invisibilidade”.
programas estratégicos e menos táticos.

50 51
O poder destes movimentos culturais expressos em
inúmeros exemplos espalhados pelo país, sem dúvida
alguma, traz um dado novo para o conjunto das práticas
sociais e de ocupação do espaço público que ainda não
foram devidamente absorvidas. Em parte, pela ausência de
políticas culturais.

Talvez por isso, ou sobretudo por isso, a absorção dessas


práticas culturais provindas das periferias urbanas e
A cultura pensada
protagonizadas especialmente por jovens, tenha sido como capital social
é aquela identificada
erroneamente traduzida como ação social capaz de
transformar indicadores históricos de desigualdade
(saúde, educação, saneamento básico, nutrição etc.) de
forma mágica. Programas de música, dança, capoeira, como um ativo
que sempre deveriam estar ali, à mão dos moradores
mais ou menos próximos do universo cultural, como
originado em todos
um direito assegurado pela sociedade, passaram a ser os pontos desse
país onde se possa
financiados não como extensão desses direitos culturais
numa sociedade democrática, mas como remédio para a
ação social mais ingênua.
encontrar um traço
c) A lógica dos vencedores na absorção das práticas culturais
singular do fazer
Nunca no Brasil se falou tanto de projetos sociais que
promovem pela via artística meninos e meninas das
produtivo
52 53
grandes periferias urbanas ao panteão da fama da indústria garante os direitos universais, mas a que oferece concessões.
do entretenimento. Nada mal se pensarmos que talento e Nenhum projeto isolado, por melhor que seja, supera
garra não são privilégios de uma elite, não possuem marca ou substitui o necessário avanço nas políticas de caráter
de distinção nem social, nem étnica, nem religiosa. Mas universal, o debate político de como nossas instituições
surpreendente se avaliarmos a forma como a sociedade, devem se comportar e, no limite, sobre qual sociedade
em especial, os formadores de opinião, percebem suas queremos para os nossos filhos e netos. Se a desigualdade
potencialidades e resultados. A favela revigorada aos olhos é um problema, com todas as suas facetas e não só a
da elite por iniciativas dessa natureza permanece alheia econômica, precisamos combatê-la de forma eficaz. Se
aos avanços sociais concretos. Sujeitas ao medo imposto nossos jovens morrem na ignorância de uma bala perdida
pelo tráfico, pela alienação da falta de opção de emprego, ou em um ato de delinqüência, precisamos repensar
de educação, de lazer entendido como direito e não como nossos modelos sociais e simbólicos, a educação que
privilégio. Permanecem como territórios que entram oferecemos, o sistema penal e legal que desafia os direitos
pelas portas do fundo no “círculo reduzido da república humanos e resiste nas sombras de delegacias e nas
imperfeita”: através do talento com a música, com a dança chacinas sem solução.
ou com a bola. Nunca pela ação política e ordenada de uma
sociedade que luta por uma democracia que estenda a todos Prestar atenção nos limites de resultados possíveis de
o direito a educação, a saúde, a justiça e, claro, a cultura. serem obtidos por ações territorialmente e socialmente
restritas é fundamental para não cairmos no erro de,
Aos olhos dos afortunados, as frestas abertas nesse pe- semelhante aos prisioneiros das cavernas em Platão,
queno mundo de opulência aos mais talentosos e mais perceber a realidade que nos desafia através de projeções.
competitivos é a própria redenção social dos outros tantos Projeções hoje traduzidas pela insistência da mídia em
que não querem ou não podem, ou talvez nem consigam nos fornecer novos atores para um já conhecido círculo
se integrar a esses novos círculos de poder. Continuamos de privilégios.
a ser o país que reproduz de forma incessante a lógica dos
vencedores: a democracia que construímos não é aquela que

54 55
Como lembra o intelectual colombiano José Bernardo
Toro em seu livro “A Construção do Público: cidadania,
Os projetos culturais, democracia e participação” ,

a partir da década de “A justiça social está relacionada com a quantidade e

90, se destacaram disponibilidade dos bens públicos a que tenham acesso os


cidadãos. No público, tornam-se possíveis a equidade e a

na conquista dos participação. O público é construído tomando-se como


base a sociedade civil e se caracteriza pela capacidade de
espaços públicos uma sociedade de garantir as mesmas condições e a mesma
qualidade dos bens e serviços ofertados a todos sem distinção
e na legitimação (TORO, 2005)” 8

dos direitos sociais Finalizando, vamos destacar a fala da doutora em Direitos

dos movimentos Humanos brasileira Flávia Piovesan, em seminário


promovido pelo Escritório da Unesco no Rio de Janeiro e

comunitários e Sesc Rio em 2002, que parece dar um sentido maior a esse
pilar da política cultural:
de periferias dos “A proteção dos direitos humanos, em uma sociedade
grandes centros cultural, requer a observância dos direitos culturais,

urbanos enquanto direitos universalmente aceitos. Não há direitos


humanos, nem tampouco democracia, sem a justiça cultural,
sem a diversidade e o pluralismo cultural e, nem tampouco,

56 57
sem que se assegure o direito de existir, o direito à visibilidade, notas
o direito à diferença e à dignidade cultural”. (PIOVESAN,
2002). 9
8. TORO, J.Bernardo. A Construção do Público:cidadania, demo-
cracia e participação, Rio de Janeiro: Editora Senac Rio e X Brasil,
O desenvolvimento possível incluindo o cultural é uma ta- 2005.
refa contínua que exige reflexão e análise crítica. 9. PIOVESAN, Flávia. “Construindo a Democracia: prática cultu-
ral, direitos sociais e cidadania”, in Cultura, Política e Direitos, p.
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Plano Nacional de Cultura 2OO 1-2010 da Colômbia:
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tério da Cultura, 2001. Ensaísta e consultora, Marta Porto se graduou em
Plano Nacional de Cultura do México 2001-2006. la cultura em jornalismo. Já no início de sua carreira, decidiu
tus manos. Cidade do México, Plano Nacional de Desarollo 2001. trabalhar para tentar mudar a realidade, em vez de
reportá-la; nos diversos cargos públicos, privados e em
organismos internacionais que ocupou, esteve sempre
Convenio Andrés Bello www.cab.int.co à frente de projetos voltados para o campo social.
OEI www.oei.es A experiência na implementação de ações
www.minc.gov.br continuadas, em órgãos públicos e empresas,
a tornaram uma especialista em políticas de
www.unesco.org
comunicação e investimento social privado. Além
www.cepal.org.br disso, apontaram um caminho estratégico, que hoje
www.artecidadania.com.br se confunde com o que Marta enxerga como opção
viável de combate às desigualdades: ação escorada no
www.observatoriodefavelas.ogr.br pensamento, transformação de imaginários coletivos,
www. imagensdopovo.org. br formação de redes sociais.
www.xbrasil.net Autora de artigos e ensaios publicados na imprensa,
www.conaculta.gob.mx
em coletâneas de livros e revistas especializadas,
atualmente é diretora da (X)Brasil, escritório de
www.oas.org/udse/cic comunicação por causas.
www.aeroplanoeditora.com. br

62 63
Coleção Cultura é o quê?

Vol. I - Cultura e Democracia - 2009


marilena chauí

Vol. II - Cultura e desenvolvimento em um


quadro de desigualdades - 2009
Marta Porto

Vol. III - Cult ura e Municipalização- 2009


Cláudia Leitão

Vol. I V - Cult ura como R ecurso -2012


Heloísa Buarque de Hollanda

Vol. V - Linguagem, educação e cultura: leituras - 2012


Eliana Yunes

Vol. V I - Panorama das Polít icas Cult urais


no Brasil: Práticas e Análises - 2012
Antonio Albino Canelas Rubim

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O projeto gráfico dste livro foi composto no Estúdio
Quimera por Iansã & Inara Negrão para a Secretaria de
Cultura do Estado da Bahia, em Salvador. Sua impressão foi
feita pela Gráfica Esperança em papel reciclato, capa 120 g/
m2, e miolo 90 g/m2.

Possui o formato 11x15 cm. A fonte de texto é DTL


Documenta Sans. Os títulos e apoios foram compostos
em DTL Documenta, família tipográfica projetada por
Frank Blokland.
Linha editorial da Secretaria de
Cultura da Bahia voltada para
apoiar processos de capacitação
e disseminar idéias e conceitos
contemporâneas de cultura.

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