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João de Mancelos

As fadas
não usam batom
Índice

página

Ficha técnica.............................................................................3

Dedicatória ............................................................................5

Agradecimentos ........................................................................6

Revisitar as fadas: breve nota do autor ..................................7

Prefácio .................................................................................11

As fadas não usam batom ......................................................16

Até para o ano, em Jerusalém ..............................................33

Avé, mar ..............................................................................46

Ver e dizer ...............................................................................56

A história que eu não devia contar ........................................77

Mudam-se os tempos, mudam-se as verdades .....................87

Sobre o autor .........................................................................100


Ficha Técnica

Título: As Fadas não Usam Batom

© Copyright João de Mancelos

1ª edição: Coimbra, A Mar Arte Editora, Setembro de 1998

2ª edição, revista e reformulada, em formato electrónico

Todos os direitos reservados

Edições Vercial, Setembro de 2003


URL: www.ipn.pt/literatura
E-mail: vercial@iol.pt
João de Mancelos

As fadas
não usam batom
Contos
Aos meus pais e familiares,
que através dos contos de fadas
me levaram à escrita
Agradecimentos

Eu e fadas devemos uma palavra de gratidão a


Elsa Ligeiro, pela edição em papel, e a José Machado,
por ter acolhido a obra em formato de e-book no
Projecto Vercial. Obrigado à Sara Augusto, Rosa Lídia
Coimbra, Isabel Cristina Pires, Maria José Veiga e
Vasco Branco, que se debruçaram criticamente sobre
a obra e a apresentaram em diversos lugares e
momentos, aqui e além do oceano. Finalmente, um
abraço aos escritores Baptista-Bastos e Pedro Paixão,
pelo incentivo e comentário à primeira edição de As
Fadas Não Usam Baton, e ao jornalista cultural Carlos
Pinto-Coelho, que levou as fadas à televisão.
Revisitar as fadas:
breve nota do autor
As fadas não usam batom
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Em 1998, apresentei à editora A Mar Arte, de Coimbra,


o original de As Fadas Não Usam Baton (a grafia que, então,
utilizei para esse termo). Senti algum desconforto ao submeter
ao conselho de leitura aquele conjunto de contos, porque não
os escrevera com o intuito de os reunir em livro. Eram trabalhos
propositadamente elaborados para entrarem em concursos
literários regionais e nacionais.
Após uma leitura cuidada, apercebi-me de linhas comuns
às histórias que escrevera entre 1995 e 1998: um cenário
predominante (o litoral português), um símbolo recorrente (a
água), a faixa etária da maioria das personagens (a
adolescência), o mesmo tom (o maravilhoso), e um estilo
unificador (a prosa poética). Essas coincidências – fruto do
subconsciente, mas também de opções artísticas – levaram-
me a propor a publicação dos contos, num pequeno livro que
viria a lume ainda em 1998.
As Fadas Não Usam Baton foi bem acolhido pela crítica,
embora não tenha sido um êxito comercial. Vasco Branco
definiu esta obra como «um pequeno grande livro [que nos]
deixa siderados pela mestria e desenvoltura com que aborda
motivos à partida tidos como insólitos» (semanário Litoral).
Sara Augusto recomendou-o como «Um livro muito bem
escrito, entre o insólito e o fantástico. Contos que recuperam
lendas e medos, motivos fechados, abordados pelo autor da
forma que lhe é tão peculiar». Isabel Pires nota o tom de lenda,
e afirma: «Há muito de tragédia grega, talvez, em todos estes
contos. Não apenas pelos temas: amor, incesto, sexo, maldição,
até pela presença omnipresente da água, mas sobretudo pela
inelutabilidade do destino dos personagens. A condenação à

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As fadas não usam batom
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melancolia desta jovem é um privilégio do seu criador, João


de Mancelos, mas também uma força obscura que nos
interroga, neste fim-de-século pseudo-hedónico». Por seu
turno, num simpático postal que me enviou, Baptista-Bastos
qualifica-o como um «belíssimo livro». Na última semana do
ano de 2003, As Fadas Não Usam Baton foi seleccionado para
vídeo-livro no programa televisivo Acontece.
A obra originou também diversos estudos universitários,
da autoria de Rosa Lídia Coimbra e de Maria José Veiga, que
apresentou a comunicação «A isotopia da água em ‘Avé Mar’
de João de Mancelos», no XXIII Symposium on Portuguese
Traditions (Europe, America, Africa, Ásia), na Universidade
da Califórnia. Como, na altura, eu disse a alguns amigos, «As
Fadas voaram até Los Angeles».
Mas, mea culpa, As Fadas não envelheceram tão bem
quanto eu gostaria. À medida que o meu estilo se foi
desenvolvendo, e depois de criar a necessária distanciação
temporal, afectiva e artística relativamente ao livro, comecei
a notar determinadas falhas, não no conteúdo, mas sim na
forma. A linguagem da primeira edição de As Fadas Não Usam
Baton é predominantemente poética, o que por vezes submergia
o carácter narrativo do conto, e desviava a atenção do enredo.
Por outro lado, o estilo de prosa poética apresentava metáforas
e símbolos obscuros, que talvez agradassem ao público gótico
da obra, mas que não deixavam o texto respirar.
Com isto em mente, dispus-me a fazer um face-lift às
fadas. A princípio, uma revisão cuidada parecia-me suficiente
para atingir a clareza desejada. Contudo, acabei por reescrever
o texto, ao longo de vários meses, ao constatar que
determinadas situações e diálogos careciam de
desenvolvimento. Mudei a ordem das histórias, criando uma

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sequência cronológica, à qual só escapa o conto titular; alterei


o nome da protagonista de «Vidente» – agora é a Marta – para
a distinguir da outra Maria, a de «Avé, Mar»; rebaptizei os
contos «Vidente» («Ver e dizer»), e «Irmão, Irmã» (agora
intitula-se «A história que eu não devia contar»); acrescentei
um texto inédito («Mudam-se os tempos, mudam-se as
verdades»), datado de 1999, e que não destoa dos temas da
obra.
A possibilidade de disponibilizar As Fadas Não Usam
Batom em forma de livro electrónico, descarregável
gratuitamente da Internet, surgiu pouco tempo depois, graças
à generosidade do amigo e escritor José Machado que, tanto
no Projecto Vercial como no Letras & Letras Online, tem
encetado um trabalho inovador na divulgação e crítica das
letras portuguesas.
Espero que a magia deste livro não se tenha perdido nos
meandros das alterações efectuadas, e que as fadas continuem
a tocar-vos com a sua varinha de condão, página a página.

João de Mancelos

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Prefácio
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É difícil esconder um poeta, um bom poeta. Mesmo com


uma boa narrativa. O insólito e o rigor, a claridade e a beleza
das formas constituem o se texto lírico. Por que razão os seus
contos haviam de ser diferentes? Contudo, agora, em forma
narrativa, os mesmos conceitos ampliam-se, e ganham novos
sentidos. Mas partem da mesma relação conflituosa e
profundamente humana com o mundo, transfigurada em cada
situação e em cada uma das personagens.
As angústias de Alice, personagem do conto que dá o
nome ao livro, são o ponto de partida de todas as outras
histórias:

«Ser e não ser. Em vinte anos, conheci os mistérios do amor,


distingui os amantes pelo beijo, li-lhes a alma, debaixo da floresta escura
dos peitos. Roubei-lhes as esposas e os medos, entre as folhas de um
poema ou de um lençol. Pisei, descalça, palcos de cristal, em Londres,
Nova Iorque, Paris, Rússia, e conheci actores que eram deuses disfarçados
de humanos. Aprendi também como é difícil crescer de olhos enxutos.
Depus moedas sobre os olhos dos amigos que partiam para lá do Letes.
Morriam no sucesso e na pobreza, na fama e na lama. Ano após ano, fui
chamando a morte pelo nome, e dei-lhe de comer à boca. Como o Pequeno
Príncipe, cativei as raposas deste mundo e ensinei-me a parábola do
escorpião, da cinza e do cordeiro.»

É a história de Alice, da descoberta de um destino de


eleição, o de ser todos os outros, mas também do seu castigo,
a fragmentação da alma. Alice é uma fada e nem precisa de
uma varinha de condão para ser Inês, Antígona ou Julieta. É

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fada, mas «usa batom e tempera de suor os palcos e tem


memórias inefáveis». Multiplica-se, como que por magia, mas
em cada transfiguração se multiplica também o viver doloroso
dos outros e ainda, sempre, o seu.
A mesma descoberta irremediável marcou o destino de
Leah, a pequena judia, e de Luís, narrador do segundo conto.
Se tiveram medo? Das diferenças, dos outros? É possível, mas
nem o pressentimento do castigo impediu aquele beijo, exposto
à vida e ao mundo. Não houve morte, não houve opção, outros
Romeu e Julieta não foram. Alguém decidiu o destino de tão
jovens amores. Ficou o embaraço e a recordação daquela
chama, muito mais tarde, do outro lado do oceano.
Os outros contos, mantendo a mesma intensidade na
relação com os outros e com o mundo, tomam rotas mais
determinantes, entre o insólito e o fantástico. Recuperam lendas
e medos, motivos fechados, raramente expostos, e abordados
pelo autor da forma que lhe é peculiar.
O nascimento bizarro da pequena sereia, o incesto dos
irmãos e a maldição de Marta transfiguram-se. Não são apenas
factos estranhos. São destinos inelutáveis e desesperados de
dor e vida. Narrados de forma encantatória, invocando as forças
antigas e poderosas do mar, embala-os um ritmo harmonioso
e sensualmente lírico. A morte e a perda aquietam-se: o
pescador chora, enfim, a filha-sereia que perdeu, e Marta
desmaia sobre as pedras, confundindo-as com o sossego das
ondas.
Todas as personagens tendem para a quietude, para a
resolução. Mesmo no caso dos gémeos, mesmo à custa de
sangue e morte, de pactos sem retorno. Também eles
descobriram a sua harmonia, simbiose de corpo e água. Porém,
como situação insustentável no contacto com o mundo, só a

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sua anulação poderá manter o equilíbrio, já de si tão instável


em todas as narrativas deste livro.
Além das «estórias», das personagens, fica o espanto:
que a vida também pode ser assim, estranha e insustentável.
Aliás, verdadeiramente o é. Cada uma das nossas vidas tem
um grau de estranheza que, razoavelmente não reconhecemos,
tão ocupados em viver. Cada um vive as suas parábolas do
escorpião, da cinza e do cordeiro. Que o autor contou, como
um mestre.
Resta acrescentar que o livro está muito bem escrito,
pronto a ser lido e relido, e que não é com uma única leitura
que se dá conta de todas as suas possibilidades. Pouco a pouco,
se descobre a força e o impacto de cada imagem, a presença
de outros universos e de outras histórias que, ao serem
adivinhados, estremecem e sorriem. Os textos configuram um
leitor. Mas, seja qual for a leitura, que as há melhores que
outras, confiem que será sempre agradável. E isso, para além
de tudo, também é importante.

Sara Augusto

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When I consider everthing that grows
Holds in perfection but a little moment,
That this huge stage presenteth naught but shows
Whereon the stars in secret influence comment.

William Shakespeare, Soneto XV


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Não me esqueci de nada, pai.


Tinha seis anos e seguia-te ao longo do areal, a caminho
de Buracos. Cambaleante, tentava fazer coincidir as minhas
pegadas com as tuas. Era difícil, porque a minha passada era
curta, e a tua, larga e rápida. A meio da jornada, parávamos
para recuperar o fôlego e lançar seixos ao oceano.
– Ó pai, ensina-me a atirar mais longe!
– Tens de escolher uma pedra aplainada, nem muito
grande, nem muito pequena.
Assim fazia.
– Esta serve?
– Perfeitamente. Depois, seguras na pedra assim –
mostravas –, só com o indicador e o polegar. Ganhas balanço,
um, dois, três! E atiras!
O teu seixo saltitava sobre a água, três ou quatro vezes,
até desaparecer. A minha pedra era mais desastrada e afundava-
se ao segundo pulo.
Continuávamos o passeio, entre os despojos da maré, à
cata de garrafas vazias, lançadas borda fora pelos barcos.
Desenterrava-as da areia, observava-as contra o sol e agitava-
as. No entanto, estas nunca traziam mensagens de ilhéus
náufragos, como nos livros do Robert Stevenson.
– Outra que está vazia, pai...
– Continua à procura – encorajavas-me. – Um dia ainda
encontras um mapa do tesouro.
Agosto era o meu mês favorito. Um enxame de turistas
descia à praia e erguiam-se paliçadas de toldos para os receber.
Com eles, chegavam os bonequeiros e os robertos. Levantavam
a tendinha, feita do mesmo pano das barracas, puído pelo

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calcorrear de tanto litoral. O director da companhia de


marionetas agitava uma pandeireta e gritava:
– Venham ver, meninos e meninas! O maior circo de
robertos do mundo!
A criançada arrastava os papás e as mamãs, pela mão.
Sentavam-se todos na areia, em frente à tendinha, e
aguardavam, com um brilho de excitação nos olhos.
– Ainda falta muito para começar, pai?
– Não, olha já estão a puxar as cortinas!
Os robertos apareciam no janeluco da tendinha, como
se brotassem de uma cave onde nós sabíamos – mas fingíamos
ignorar – que os bonequeiros se afadigavam a insuflar-lhes
vida. O espectáculo era sempre o mesmo: cenas de faca e
alguidar, de amor e traição, de malvadez e justiça. No final, o
herói pegava numa colher de pau e dispensava ao vilão um
enxerto. Era a apoteose da garotada, já se vê, os risos rasgados,
confundidos com o lastro sonoro das gaivotas.
– Bate palmas, Alice, bate! – dizias-me.
Depois, a mulher do director passeava entre os
espectadores, com um chapéu de palha estendido, onde
deixavas um troco e um sorriso.
Terminávamos a passeata já em Buarcos, exaustos. A
pele a sabia-me a sal, os cabelos colados pelo vento, a minha
mão pequena dentro da tua.
– Olha a bolachinha! – gritava o vendedor, com o enorme
cilindro branco às costas. – É para o menino e para a menina!
Chorem, que os papás pagam!
– Tenho fome, pai!
Como estava na hora do lanche, chamavas o homem da
bolacha americana e por uma moeda vias como eu me debatia
com aquele enorme quarto de lua, as migalhas caindo

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desperdiçadas sobre a areia.


Lembro-me tão bem de tudo isso, pai...
Passaram-se alguns Verões, e um dia, acordei diferente.
Tinha quase treze anos. A maré entrara dentro de mim, e
descobrira o que desde o cordão umbilical me havia sido
confiado. Trazia um aroma novo e ácido no corpo, semelhante
ao da piscina do Grande Hotel, em cujas águas azuis me
contemplava, compondo uma alça do fato de banho. Falava-
me agora uma voz muito antiga. A mesma que ensinara a minha
mãe, a avó, e a avó antes dela.
Para trás, ficaram as passeatas a dois, as garrafas sem
mapas de tesouro e os bonequeiros. Guardei os peluches no
sótão, faltava ao beijo devoto de cada noite, e esquecia-me de
te pedir a bênção.
Agora, nas tardes longas, estudava as formas do meu
corpo, em frente ao espelho, e experimentava o batom e o
rouge. Em vez de te confidenciar tudo, escondia os segredos e
os dramas da adolescência num diário. Forrei as paredes do
quarto com posters de ídolos picotados das revistas de moda
– os Beatles e os Stones. Quando dormia em casa das amigas,
conversava sobre sexo entre cigarros clandestinos e risinhos.
Dava os primeiros beijos, atrás do ginásio, frescos como o
sabor da chuva.
– É assim – explicava a Lara. – Aproximas a tua cara da
dele, poisas-lhe uma mão no pescoço, fechas os olhos,
entreabres os lábios, e metes a língua na boca dele. Depois...
Na areia, os meus passos já não caminhavam ao lado
dos teus. Comecei a visitar a praia sozinha, em Outubro, num
tempo em que só se vislumbrava um vagabundo ou um poeta,
uma gaivota ou um par de cães enamorados. Às vezes, corria
junto à orla, numa gincana por entre as algas e os seixos. Foi

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assim que dei com a troupe. Um punhado de jovens na casa


dos vinte, magros, vestidos de negro, com marcas de sal na
bainha das calças.
Um deles, Claude, impressionou-me pelo azul pálido dos
olhos, e a pronúncia de um Português afrancesado:
– «Comment est-ce que tu t´appeles, jeune-fille»?
O meu francês, aprendido na escola e entre alguns
turistas, no verão, era pouco mais do que o suficiente para
compreender:
– Alice, chamo-me Alice.
– Ah, Alice... – murmurou e repetiu para os outros.
– «Moi, je suis Claude». Os meus amigos: Marc, Pierre,
Jean, Louis et Loïc, os gémeos. És destes lados?
– Sim, sou da Figueira da Foz – respondi.
– Sabes de algum sítio onde se possa comer?
O resto do grupo rodeou-me, interessado. Acenei que
sim:
– Não é caro, nem longe daqui.
Coisa simples, onde se podiam abancar diante de um
prato de sardinhas, ou de uma caldeirada, se preferissem.
Eles entreolhavam-se e procuravam decifrar nos meus
lábios o significado das palavras mal apanhadas. Claude
pontuava as minhas frases com um sorriso. Cofiou a barba e
pediu-me:
– Se nos pudesses levar lá...
Guiei-os pela praia, com Claude alto e silencioso, a meu
lado.:
– Somos um grupo de estudantes além-Pirinéus – disse.
– Andarilhamos pela Europa, à custa das bagatelas que vamos
recebendo pelo trabalho.
Representavam um pouco por todo o litoral: nas praças

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e jardins, nas casas dos povo, nos armazéns de bacalhau –


onde quer que um palanque pudesse ser erguido e uma peça
levada à cena. Lembrei-me dos bonequeiros da minha infância,
e devolvi-lhe um sorriso.
Receava ser vista e queria ser vista. Antecipava a inveja
das colegas, no liceu. Eu e os famosos actores franceses! Ou
na minha cabeça tonta eu assim os fazia. Aquele meu jeito,
pai, para transformar meninos remendados em deuses...
Subimos à estrada, e deixo-os numa casa de pasto.
– «Merci bien, jeune fille! Au revoir!»
Por cima do ombro, espreito Claude uma última vez,
procurando captar-lhe o azul dos olhos. E sigo caminho, com
um travo de paixão. Contei tudo às amigas. Nas tardes
seguintes, eu e a Lara passeámos pela baía, em busca deles,
como sacerdotisas à espera de uma epifania.
No regresso a casa, a Lara puxa-me a manga e grita:
– Olha!
O cartaz anunciava: Les Âmes Damnées, no Cara
Direitas, uma sessão apenas.
Perdi o fôlego:
– Lara, achas que os pais me deixam?
Encolheu os ombros.
– Podes sempre tentar. Não há limite de idade.
Mas era à noite e eu só tinha catorze anos. Ao serão,
aproximei-me de ti, com as falas bem estudadas.

(Alice vem à boca de cena. Silêncio total.)

ALICE: Pai, amanhã vai haver uma peça de teatro no


Caras Direitas. É para todos. A Lara disse que iria comigo, se
eu quisesse...

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(O pai ergue os olhos do jornal. Semi-obscuridade sobre


a filha, luz intensa sobre ele. O rosto pressente o nervosismo
de Alice.)

PAI: Uma peça de teatro? A que horas é, Alice?

(Alice gagueja, numa enxurrada de argumentos.)

ALICE: Às nove e meia, pai. Mas é uma peça breve, de


certeza. Acaba cedo e a Lara vem-me trazer a casa, ela
prometeu, e depois, há tanto tempo que não vou a lado nenhum
e é uma maneira de eu treinar o meu francês, porque os
actores...

(O pai dobra o jornal. Levanta-se e atravessa o palco.


Esmaga um cigarro, no búzio que faz as vezes de cinzeiro.)

PAI: Nove e meia... é tarde... E na segunda-feira tens


aulas de manhã.

(Escuro em todo o palco. Apenas um círculo de luz sobre


Alice. Encarando o pai, puxa-lhe pela camisola de pescador.
A voz é suplicante.)

ALICE: Vá lá, pai... Uma vez não são vezes. Já sou


crescidinha.

(Uma pausa. Ouve-se a voz do pai, impaciente.)

PAI: Não, já disse que não: é muito tarde. Não sejas

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maçadora...

(Alice recua, o rosto fita as tábuas, e volta à marcação


inicial, junto da porta da sala. Hesita ainda, por um instante.
Sai de cena.)

Pai, não podias enxotar a vida para longe de mim.


Imagina um peixe no cardume. Supõe que o peixe erra, por
uma contracção involuntária da barbatana, que perde o norte
e segue o caminho contrário ao dos seus pares. Descontrola-
se, embate no dorso dos outros peixes, mas continua sempre,
sempre no caminho oposto. O peixe nunca o soube, mas talvez
não pudesse ser de outra forma.
No Domingo seguinte, joguei o destino dos meus dias, e
fui à peça. Às vezes, o rocambolesco da situação ainda me faz
rir. O serão foi curto e deitei-me mais cedo. Por volta das nove
horas, abri a janela do quarto e saltei para a rua, os joelhos a
tremerem. A Lara foi cúmplice. Aguardava-me, tão excitada
quanto eu, recortada contra a luz de um candeeiro.
– Já compraste os bilhetes, Lara?
Ela esboça-me um sorriso meliante e exibe um par de
entradas.
– Embora!
Pareceríamos duas patetas, a correr de mãos dadas, ao
longo da marginal. No outro extremo da baía, a silhueta da
Figueira da Foz lembrava o traço de um electrocardiograma.
Ao chegar ao Caras Direitas, aguardámos, impacientes.
Receávamos que alguém nos reconhecesse. Fingimos
interessar-nos pelos cartazes dos westerns a exibir – o
inevitável Bud Spencer e o Omar Shariff, pontificando.
– Olha-me para isto! – exclama a Lara.

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Trocámos olhares ao ler o aviso sob o título de uma


película francesa:
– «Dada a natureza eventualmente chocante das cenas
deste filme, não se exibem fotografias» – digo. – Este filme
deve ser fresco, deve...
Por fim, o funcionário abriu a porta, cortou o canhoto
aos bilhetes, e deixou-nos entrar. Sentadas na plateia, o tempo
passava a conta-gotas. Pouco a pouco, o público foi chegando.
Olho outra vez para o relógio.
– Nunca mais começa – suspira a Lara.
De súbito, o homem do reóstato baixa as luzes. Ao som
de uma toada de flauta, levanta-se o pano e a peça principia.
Reconheço Louis e Loïc:
– São os gémeos!
Cabriolam pelo palco, entre uma floresta de árvores de
contraplacado, vestidos de faunos mais ou menos pudicos.
E depois, entra Claude.
– É ele, Lara! – quase grito. Da fila de traz fazem-me
chiu!
– É um pêssego, Alice!
– Tenho bom gosto, não tenho? – e pisco-lhe o olho.
A voz de Claude enche o espaço, viril, enquanto recita
alguns versos num português arrastado. Imagino-o a fitar-me
– apenas a mim – consagrando-me a actuação.
Vibro no volume da música, os tamborins ressoam no
meu estômago; fico tonta com o voltear dos faunos; rejubilo
com a batalha entre Jean e Claude, que brandem espadas de
madeira cobertas a folha de prata, e disputam um Pierre
travestido.
Rimo-nos de todo aquele jogo de fingimento. Foi ali,
pai, que a minha primeira página se escreveu. Soube-o quando

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a peça acabou e a Lara me trouxe até à janela da minha fuga.


Faz mais de vinte anos.
– Sabes, Lara? Já me decidi! Quero ser como o Claude,
quero ser actriz.
– Tu estás tola? – bichanou-me ela. – A tua mãe nunca te
deixará!
– Ora, porquê?
– Ser actriz é coisa de galdérias. Ouvi dizer que nos
bastidores é uma pouca-vergonha, perde-se a decência, as
mulheres maquilham-se e usam batom.
Calei-a com um beijo. Naquela noite, eu mordera o fruto
do teatro.
Recordo-me das discussões que tive contigo, pai. De
ouvir os mesmos argumentos prevenidos da Lara. Do dia em
que a camioneta me levou para longe da praia, numa nuvem
de pó, os olhos a procurarem-te entre os que ficavam no cais,
para que tudo o que nunca conseguimos dizer pudesse ser,
finalmente, desatado.
Porém, não te despediste.
Parti rumo ao sul, com um bilhete de ida na mão, alguns
contos no bolso, e um beijo que a minha mãe me deu à pressa.
E cá estamos, pai, vinte anos depois, frente a frente, numa
mesa de café. Um daqueles em que as moscas são pontualmente
electrocutadas; os homens jogam ao dominó ou encostam o
rádio ao ouvido para escutarem o Porto – Benfica; e um cão
amarelo adormece até ao último raio de sol.
– Emagreceste, Alice – dizes-me, com lentidão.
Apetece-me confessar que nunca te vi tão quebrado.
Hesito entre abraçar-te e te corroer de cinismo. Mas ainda há
ternura na tua voz e a alma é um animal tímido...
– Soube que o pai estava doente. Vim vê-lo.

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– Fico contente. Passaram-se muitos anos.


Tens os olhos líquidos, como os dos profetas. Um par de
lagos onde já nada bule, senão a resignada espera pela morte.
– Talvez demasiados, pai.
Encolhes os ombros e tacteias a camisola de pescador,
em busca do inchaço onde estará o maço de cigarros. Por um
instante, equivoco-me: talvez procurasses o coração, para mo
dares, pai.
– Procurei contactar-te, Alice. Queria falar contigo.
– Bem sei, pai... Mas andava sempre longe... – meras
desculpas, ambos o sabíamos.
– O cancro está a roer-me – dizes.
– Lamento muito, pai. Desconhecia...
– Há redes sem conserto, Alice.
Apeteceu-me segurar na tua mão, levar-te em busca dos
bonequeiros, ver se as minhas pegadas ainda poderiam cair
sobre as tuas, no areal. Mas o tempo é uma serpente que se
mastiga a si própria, a boca ingerindo a cauda, cada vez mais
curta, até restar apenas um nó.
– Agora és uma actriz famosa – dizes, mudando de
conversa. – Às vezes, leio nos jornais. És alguém na vida!
Rio-me.
– Quem sou eu pai? Diz-me: quem?
Esta noite, uma Antígona à beira de um ataque de nervos;
amanhã, a Mãe Coragem. Às vezes, Shakespeare; noutra
temporada, um dramaturgo ainda com acne. Atrás do pano,
sem licença, vou de prostituta a rainha. Num passe de
maquilhagem, num trocar de roupas. Ser e não ser, pai.
Os hindus chamam mandala a esse círculo de óbitos e
ressurreições que o mortal sofre, ao longo de milénios, até ao
final da ascese. Porém, não é a perfeição que busco, pai, quando

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subo ao palco e mudo de alma. Procuro na diferença de


personagens, aquilo que nos une – o mesmo ADN, o sermos
capazes de rir e de chorar.
Se me tivesses visto, lá no sul, pai... Comover-te-ia.
Aquela cena, sabes...? Aquela, sim, em que fazia de Julieta,
vestidinha numa túnica da primeira comunhão, e suspirava à
janela. E o Romeu (que na vida real era empregado na
Barbearia Moderna), lá em baixo, de joelhos, amaldiçoando
os Capuletos. Tudo sob os olhares cor-de-rosa das donzelas
da vila, às sextas à noite, no salão dos bombeiros. A partir do
instante em que pisávamos às tábuas, as nossas existências de
bolso faziam sentido, e a sombra era maior do que nós.
O José da Mercearia, o ponto, bichanava as deixas pelo
janeluco da caixa de sabão. E o coronel, o director da
companhia, enviava rosas às meninas, no bastidor improvisado
(os lavabos, por tradição). O velho tonto, sempre a sussurrar:
– Parta uma perna...
O que queria era vislumbrar pela porta entreaberta uma
nesga de carne jovem e rija, a vestir-se para a cena seguinte.
– Depressa, sobe o pano! Sobe, ó Daniel, estás a dormir,
moço?
Bastidores. Sempre me inquietaram, esses quartos de
metamorfose. Sentia-me Alice, empurrada para o outro lado
do espelho. Entrava eu e saía Maria Parda, pronta a prantear.
Largava a pele, como os répteis. Na cruzeta, ficava o vestido
com que no dia seguinte havia de servir bicas, no Café da
Praça. Ficava lá pendurada, também, a minha personalidade,
às vezes, o sexo, até. Hoje, mulher, amanhã, travesti, depois,
uma cadeira, como na peça do Pirandello. Todos os géneros:
feminino, masculino, neutro.
Nos bastidores, há entre as actrizes, a sensualidade das

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As fadas não usam batom
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irmãs. Um arranjo na fita de cabelo da Nela, uma poalha de


rouge. Sobe-se o decote da Adelaide, que esta noite se estreia,
e pouco sabe da geografia anatómica onde os olhares dos
homens se concentram.
– Cuidado, Adelaide – dizemos para uma das actrizes
estreantes – não abuses do charme, ou o prior velho dedica-te
a homilia, passado amanhã.
Adelaide engole em seco e contempla-se, ao espelho.
– Talvez um pouco menos de batom...
Em segredo, deseja que um encenador da capital passe
pelo povoado e a descubra – para lhe dar a luminosidade das
estrelas, como nos filmes românticos. Anseia conhecer a fama
nas tábuas do Maria Matos ou do Coliseu, que jamais pisou.
Às vezes acontece. Quando fazia de Quixote, o Pedro
esbarrou com um encenador de desejos desviados, hispânico,
hirsuto, a rebentar de bravado, o vozeirão duas oitavas abaixo
da grossura. O homem apaixonou-se pelo Pedrito – e não é
que o rapaz parte com ele, amantes proibidíssimos? O
escândalo que foi na vila...
Ou naquela ocasião, em que o Mané do Engraxador beija
a Julieta, isto é, a sonsinha da Isaura, catorze aninhos bem
medidos e torneados, a saltarem vestido fora. Lábios nos lábios,
à francesa, calcula, com direito a carícia por todas as curvas,
amén. Aí, o pai de Isaura, homem de cepa, salta da plateia e
irrompe no palco para fincar um par de estalos no Mané. Tudo
num relance.
Cá em baixo, o pobre do ponto, encolhia-se, não fosse
sobrar surra para ele, que namoriscava mais as meninas do
que o próprio coronel. Cumprida a catarse, mal o progenitor
regressa à plateia, a peça prossegue. «The show must go on».
O Mané do Engraxador, continua, agora mais comedido na

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As fadas não usam batom
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sua actuação, e com uma nova lição a juntar aos ossos do ofício.
E Adelaide ria-se, perante esta iniciação de historietas
contadas com gargalhadinhas pelo meio.
Depois da peça, regresso aos bastidores, ao som dos
aplausos, na glória do teatro de província. Espera-me uma rosa
admirada do coronel. Acabada a prova, volto à realidade e a
mim. Acho-me, então, a meditar: quem sou eu, a migrar assim,
de alma em alma, gerando-me aqui e além, sempre com deixas
e rostos diferentes?
Pai, houve um tempo em que sabias tudo das luas e das
marés. Mas hoje, diz-me, pai, quem sou eu?
«– Romeiro, romeiro, Quem és tu?
– Ninguém!»
O coronel costumava dizer que aquela cauda do Frei
Luís de Sousa era a mais difícil de interpretar do teatro lusitano.
Que o ninguém! podia ter muitos cambiantes – desde a
amargura, passando pela indiferença, até ao ódio. É assim o
caleidoscópio do drama.
Um dos meus encenadores falava-me do fascínio de não
nos conhecermos:
– O teatro é um espelho. Se nos contemplamos em
demasia, transformamo-nos nas personagens. Escolhe a
máscara que entenderes, Alice. Há-de haver uma que se te
cole à pele, mais do que te colas a ti.
Na semana seguinte, de novo as pancadinhas de Molière.
Tum. Tum. Tum. Sobe o pano. A tensão escala. A pulsação a
trote. Entro em cena.
Como é? Como dizia a didascália? Três passos para a
boca, e as luzes da ribalta fitam-me. E vejo-me naquela solidão,
metro e meio de mulher a vacilar, emprestando-me a ser outra.
Foram tempos árduos, lá no sul, pai. Depois de seis horas

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As fadas não usam batom
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luciferinas atrás do balcão, aceitava o texto dramático,


distribuído pelo coronel, em folhas policopiadas. Calhava-me
uma personagem secundaríssima, mas era melhor do que ser
figurante, pensava.
Com frequência, esquecia-me das deixas. O coronel bem
que avisara:
– Alice, estuda-me essas falas, rapariga! E veja lá, Maria
José, mais alma, para a próxima. A tua irmã bem me avisou
que eras madraça! E nada de atrasos, ouviram? Quem não
comparece ao ensaio, não merece o espectáculo!
Não era só o medo da representação. Apoquentavam-
me também as superstições – convém conhecê-las a todas,
pai. Pavão sobre o palco e a peça é um falhanço garantido. E
nada de assobiar! Soube mais tarde, em Londres, quando
encenávamos a Morte de um Caixeiro Viajante, que a única
solução para tal descuido é cantarolar qualquer coisa da
Broadway.
Recordo-me dos meus primeiros tempos de estrelato.
Eu, com vinte anos, na capital europeia dos palcos! Eu,
pasmada diante de Sir Olivier, muda e queda ao visitar a casa
de Shakespeare, em Stratford-Upon-Avon, a rir-me às
gargalhadas de A Importância de se Chamar Ernesto, em cena
no Aldwich Theatre.
E as casas de espectáculo, pai! O Criterion, o Haymarket,
o Warehouse, o Octagon, o Drill Hall, o Shaw, o Riverside, o
Royal Court, o Mermaid, onde o Peter me levou a ver a Alice
do Outro Lado do Espelho, adaptada a drama...
Ah, sim, e aquele barquinho-teatro, no canal de Little
Venice, onde «artistas rotos» – assim o Peter, o meu namorado
irlandês, lhes chamava – davam alma a marionetas.
Recordaram-me os bonequeiros de Buarcos, pai. Por isso, no

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As fadas não usam batom
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final, fui cumprimentá-los.


– Por que te dás ao trabalho? – perguntara o Peter. – A
peça pouco jeito tem.
– Peter, eles são eu! – repliquei. – Buarcos em Londres!
«Do you get it?»
Por uns tempos, naquele Outono, eu já não era Alice do
outro lado do espelho, mas no país das maravilhas. Peter colhia
folhas ruivas para mim, no Hyde Park, e declamava-me «Street
Magic», de Edward Storer, para me recordar que há sempre
um palco quente, a polvilhar de magia uma rua gélida:

«One night I saw a theatre,


Faint with foamy sweet,
And crinkled loveliness
Warm in the street’s cold side.»

O Peter era belo, pai, como um deus antigo. Aquele olhar


celta, como o de Claude, a ternura com que me afastava das
poças de água e se ria da minha tendência de olhar sempre
para o lado errado, nas passadeiras. Chamava-me «my little
Portuguese brunette» e prometia-me o mundo, mesmo que o
mundo só fosse um palco.
Uma noite, o Peter levou-me a beber cidra num pub
irlandês, em Kentish Town. Falámos do jeito fácil com que eu
escrevia as cartas para Adelaide, mais orais que da lapiseira.
Lia-lhas, traduzindo, antes de as meter no marco de correio.
– O diário epistolar de Alice – e sorria, com ternura.
– Coisas de raparigas explicadas aos meninos!
Era inevitável, pai: acabei no seu leito, numa casa
geminada, em tijolo, com um quintal e um telhado cheio de
ninhos, em Holborn. Amámo-nos durante toda a noite. Quando
tudo terminou, na tristeza animal que os latinos contam, o Peter

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As fadas não usam batom
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pediu-me:
– Fala-me de ti, «my little Portuguese brunette». Porque
nunca me falas de ti?
Virei-me para o outro lado. Não lhe soube responder.
Faltava-me o guião. Amanhecia. Através do estore, seccionava-
se a obscuridade rósea do céu londrino. Parecia-me que o pano
descia muito lento. No pequeno quarto, o aroma ácido de amor.
O mesmo que um dia a Adelaide experimentara sob o recorte
do pomar, finalmente oferecida ao Mané do Engraxador, que
já esquecera a Isaurinha – ou se recordava bem de mais
daquelas bofetadas que levara naquele dia.
– Alice, por que nunca me falas de ti?
Ser e não ser. Em vinte anos, conheci os mistérios do
amor, distingui os amantes pelo beijo, li-lhes a alma, debaixo
da floresta escura dos peitos. Roubei-lhes as esposas e os
medos, entre as folhas de um poema ou de um lençol. Pisei,
descalça, palcos de cristal, em Londres, Nova Iorque, Paris,
Rússia, e conheci actores que eram deuses disfarçados de
humanos. Aprendi também como é difícil crescer de olhos
enxutos. Depus moedas sobre os olhos dos amigos que partiam
para lá do Letes. Morriam no sucesso e na pobreza, na fama e
na lama. Ano após ano, fui chamando a morte pelo nome, e
dei-lhe de comer à boca. Como o Pequeno Príncipe, cativei as
raposas deste mundo e ensinei-lhes a parábola do escorpião,
da cinza e do cordeiro.
Não, não me esqueci de nada, pai.
Quis dizer-te tudo isto, à mesa daquele café rasca, numa
ruela de Buarcos. Dizer-te que as fadas usam batom e temperam
de suor os palcos e têm memórias inefáveis. Mas não pude,
pai. Éramos massa do mesmo pão.
Paguei a minha bica e o teu bagaço. À saída, cerrei os
olhos. Da praia vinha uma luz dolorosa – e o vento tudo varria.

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Até para o ano, em Jerusalém
As fadas não usam batom
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Recordo-me de Leah, a judiazinha que acolheramos em


Tondela. Lembro-me do seu vestido branco, e de branco ser
também o muro, a descascar caliça. Leah encavalitava-se nele,
uma madeixa inquieta rente aos olhos escuros, e mordiscava
o caule de uma espiga.
Corria o ano seco de 1941. Abraham e Leah Levin, pai e
filha, tinham chegado na Páscoa – eles chamavam-lhe pessah
–, num Oldsmobile com matrícula berlinense. Mal senti o
restolhar da viatura sobre o cascalho do pátio, corri a espreitar
à janela:
– São eles, avó!
A avó interrompeu o tricô e ordenou:
– Prepara-te, Luís.
Ajeitou-me o colarinho incómodo do fato domingueiro.
Na véspera ouvira o sermão, que já era um homenzinho, que
na ausência de meu pai, engenheiro na via férrea angolana,
me cabia desempenhar as funções de anfitrião e tratar bem os
hóspedes, gente fina, foragida do braço hirto e cada vez mais
longo do Führer.
Enquanto a avó se dirigia ao andar térreo, olhei através
da janela. Um homem de sobretudo despropositado no calor
daquele verão saiu do automóvel. Cumprimentou a minha avó
com uma pequena vénia, e pronunciou algumas palavras num
Português contorcido. Depois, saiu Leah, bocejando. Era uma
adolescente morena, esguia para a idade, com cabelo escuro,
apanhado por uma fita de tule.
«Como uma noiva», veio-me à ideia.
Leah contemplou a fachada da casa e o seu olhar cruzou-
se com o meu. Agachei-me, rapidamente, surpreendido no

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As fadas não usam batom
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pecadilho de curiosidade. Ela vira-me – e eu devia tê-la


cumprimentado. As orelhas ardiam-me de vergonha. Meu
Deus, mal chegavam e já eu fazia figuras tristes!
No serão da véspera, arreliara a minha avó, com uma
enxurrada de perguntas:
– Ó avó, como são eles?
Encolheu os ombros:
– Não sei, Luís, nunca lhes meti a vista em cima. Amigos
do papá, gente de boas famílias, lá da Alemanha. Devemos
tratá-los bem.
– É mesmo verdade que fugiram? Cometeram algum
crime?
Já os imaginava como os espiões dos filmes que vira na
capital: perigosos, rematados de cicatrizes, com um revólver
escondido debaixo de um lenço.
– São judeus, e por isso Hitler não gosta deles. Fugiram
primeiro para a Noruega; agora, para cá.
– Por que só chegam o pai e a filha?
– Não há mais ninguém – suspirou a avó. – A mãe da
menina morreu no início da guerra.
– Ó avó, e vão ficar por cá muito tempo?
– Até a guerra acabar, Luís.
– Ó avó, e a guerra vai demorar ainda muito tempo?
– Que linguareiro maçador! Espera e verás! Amanhã cá
os teremos, se Deus quiser.
Nessa noite, custara-me a adormecer com a expectativa.
Agora que finalmente conhecia os nossos hóspedes, constatava
que não correspondiam ao que imaginara. Leah e Abraham
eram duas figuras espantadiças, cosidas por um medo siamês,
a implorarem exílio na nossa casa.
A rotina familiar modificou-se, inevitavelmente. A minha

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As fadas não usam batom
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avó – católica, apostólica, romana – tolerava os gestos de culto


dos recém-chegados e condescendia a Abraham algumas visitas
de outros judeus. Lembro-me de encostar a orelha à porta e
escutar, nos dias em que ele acolhia o rabino de Belmonte, um
homem encarquilhado, de barbas espiraladas.
Todas as noites, Abraham escutava as emissões da
B.B.C., na telefonia, as mãos em triângulo, os olhos fechados
com a concentração de um crente.
Traduzia para nós:
– Hitler continua a bombardear a Inglaterra. O que
preocupa os londrinos não é o ruído das bombas a cair. É
quando deixam de ouvir o silvo! Porque isso significa que
estão mesmo debaixo delas!
Entreolhámo-nos, impressionados com a coragem
britânica.
– Continue – pedia a minha avó.
– No deserto, o marechal Rommel, que comanda as
forças alemãs e italianas, forçou os britânicos a recuarem para
as fronteiras egípcias.
– Mais, senhor engenheiro – implorava eu.
– Por hoje é tudo... Que Iavé proteja os aliados.
E a minha avó, anglófila de gema, fazia coro, à sua
maneira:
– Deus esteja com eles.
Eu e a Leah também não éramos indiferentes às batalhas
que se desenhavam nos céus longínquos. Muitas vezes, íamos
à estante buscar o Grande Atlas Mundial do meu pai, um
calhamaço enorme, que a Guerra desactualizara por completo.
Deitávamo-nos sobre a cama e abríamo-lo. Leah passeava com
os dedos sobre os territórios conquistados pelo Führer:
– Primeiro a Polónia – dizia a rapariga –, depois a

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As fadas não usam batom
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Holanda, a Bélgica e uma parte da França.


– Espera só até Roosevelt mandar os norte-americanos
entrarem na guerra... – interrompia eu.
– Quem achas que vai vencer a Guerra, Luís?
– Hitler não é, de certeza!
– Odeio aquele homenzinho de bigode ridículo! – dizia
Leah, franzindo o sobrolho.
Fiz voar um avião de lata sobre o atlas, e imitei o silvo
das bombas a caírem. Leah pegou num soldadinho de chumbo,
fingiu que era Hitler, e fê-lo escapulir-se comicamente para lá
dos Urais.
Em Tondela, toda a gente sabia que tínhamos dois judeus
fugidos da Alemanha hospedados em casa. A minha avó não
podia ir às compras, sem ser abordada por algum local, com
perguntas sobre o aspecto, fé e costumes dos recém-chegados.
Na escola, também eu não escapava à curiosidade da rapaziada:
– Ouve lá, ó Luís – perguntava o colega de carteira,
enquanto o mestre rebuscava na pasta os ditados –, é verdade
que eles não comem carne de porco?
Que sim.
– E ela, a alemazita, é rapariga jeitosa?
– De truz, Zé, já a vi nua!
– Não acredito!
– A sério. Espreitei pelo buraco da fechadura do quarto
de banho, quando a Leah saiu da banheira.
– E que tal?
Mimei-lhe as formas desabrochantes do corpo
adolescente de Leah. O Zé rematou com um assobio sensual.
– Quem foi?! – indagou o mestre, de régua numa mão e
ditados na outra.
E ali mesmo o paleio acabou.

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As fadas não usam batom
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Com o tempo, os «nossos judeus» – assim a minha avó


os crismara – tornavam-se mais comunicativos, e o seu
Português ganhou os contornos arredondados da Beira. À
medida que se tornava óbvio que a guerra não tinha pressas,
retomavam hábitos antigos. Abraham ensinava a Leah os
mistérios da Torah e os preceitos do Talmude. O judeu apontava
as linhas com um indicador prateado, e recitava, baixinho, os
versículos em iídiche, curvando a cabeça, diante dos mistérios
de Iavé, Aquele Que Existe.
Leah bocejava perante essas lições. Do que ela gostava
era dos livros de ciência do meu avô, que frequentemente
folheava, e de passear comigo pela quinta, para me ajudar nas
diversas tarefas. A rapariga crescia, em sabedoria e corpo, agora
com quase catorze anos, antepostos aos meus treze.
Namoriscar era inevitável. Primeiro, trocávamos olhares
de uma margem à outra da mesa; depois, envolvíamo-nos em
brigas amigáveis, meras desculpas para nos tocarmos. Contudo,
a paixão só veio com as primeiras luzes de Maio e o regresso
das andorinhas. Espreitávamos o trote dos cavalos,
deleitávamo-nos com as primícias da terra, corríamos pelos
sulcos do vinhedo. Exaustos, acabávamos deitados sobre o
feno da cavalariça.
Foi aí que pela primeira vez a beijei. O ar tinha o aroma
forte das maçãs dentro do barril e da transpiração das montadas.
Da janela, víamos a luz do poente a alastrar no horizonte.
Toquei-lhe a mão. O seu indicador percorreu-me a palma, num
arrepio agradável.
– Vou ler-te a sina – anunciou.
Uma cigana de saias negras percorrera o vale de Tondela,
na semana anterior, vendendo oiros – despojos da guerra civil
franquista – e ditando destinos.

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As fadas não usam batom
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– Vê lá o que dizes – recomendei-lhe, supersticioso.


Reclinei-me contra uma das barras de carvalho que
sustentavam a cavalariça e estendi-lhe a mão.
– A linha da tua vida é longa e sem de sobressaltos, Luís.
– Muito bem. Mais!
– A da inteligência é funda...
– Certo! E a do amor, Leah?
A rapariga olhou-me longamente. Depois, acariciou-me
o pescoço e presenteou-me com um beijo esquivo, sobre os
lábios. Perante a minha cara de espanto, soltou uma
gargalhadinha, e correu porta fora.
– Volta, Leah!
– Não – gritou. – Tens de me apanhar!
Contudo, não a segui. Fiquei ali, hipnotizado, até a voz
da avó me chamar, da varanda, para o jantar.
Nesse serão, poucas palavras trocámos. Primeiro, o
mesmo jantar taciturno, onde as crianças não tinham permissão
para abrir a boca. Depois, recolhidos os pratos de pudim de
amora, passava-se à biblioteca. Abraham elogiava as águas
sulfurosas, vindas da Lajeosa e discutia assuntos banais – nunca
religião. Logo que a avó cabeceava sobre as agulhas de tricô,
era altura do «boa-noite» formal.
Já tinha recolhido ao quarto, quando ouvi pancadinhas
na porta. Seria a Leah? Abri. Surgiu o nosso único criado, de
candeeiro a petróleo na mão – a quinta da avó só depois da
guerra teve luz eléctrica –, e disse:
– O senhor engenheiro Abraham chama o menino.
Apressei-me a abotoar o colete. A ideia imediata foi a
de que o judeu, por qualquer arte mágica, soubera da cena da
cavalariça e me aprontava agora o castigo adequado ao
atrevimento. Engoli em seco e bati à porta do escritório, que a

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As fadas não usam batom
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avó transformara nos aposentos de Abraham.


– Entra, entra, meu rapaz – ordenou.
– Boa-noite, senhor engenheiro – balbuciei.
Indicou-me uma cadeira.
– Sabes que data é hoje? É purim, o dia em que a rainha
Ester salvou o povo judaico. Ora, é hábito dar-se um presente
às crianças – remexeu no bolso e tirou de lá um embrulhinho
em papel pardo. – É para ti.
Sorri, de alívio e gaguejei:
– Muito obrigado, senhor engenheiro. É muito gentil da
sua parte. Mas não necessitava de se ter dado ao incómodo...
Cofiou as barbas e dirigiu-me um sorriso:
– Ora essa! Então, não abres...?
Desembrulhei e emudeci. Era um relógio de bolso, com
corrente a ouro de lei, e um pontual tiquetaque suíço:
– Senhor engenheiro! É de mais!
Ora olhava o mostrador, cristalino, ora media o ar
deleitoso do judeu.
– Qual quê?! Estás um homem feito! Um cavalheiro
necessita de saber dividir o tempo entre o estudo e a diversão.
Agradeci-lhe inúmeras vezes, hesitante entre o que mais
dizer e a vontade de sair do escritório, acordar a avó e dar-lhe
a novidade.
Senti-me crescer, nesse serão. Talvez por isso, uma
quinzena depois, escanhoasse o rosto, pela primeira vez – à
custa de alguns golpes, que a navalha tinha o fio de um sabre
samurai. A avó lá me remediou a alergia, com panos mornos:
– Estás tal e qual o teu pai! – disse-me, sorrindo.
Leah, que assistira a toda a operação passou-me a mão
pelo rosto e murmurou um desencorajante:
– Mmm... Com o tempo lá hás-de ganhar prática.

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Mas sentia-me outro, quando aos Domingos íamos à


missa, no Oldsmobile de Abraham. Este aguardava dentro da
viatura que o serviço religioso dos católicos terminasse, para
nos levar de volta à quinta.
E foi nesse fim-de-semana que Leah me deixou um
bilhetinho, por baixo da porta do quarto: uma folha pautada,
de linha dupla, daquelas onde as crianças aprendem a desenhar
os caracteres. Dizia «Amote» – tal e qual, sem hífen. Nada era
que não soubesse já, mas era tudo o que queria ler.
Começámos a namorar, às escondidas. Estávamos
sempre juntos: se alguém quisesse saber de um, era procurar o
outro. Nunca a avó ou o engenheiro Abraham comentaram o
namoro, convencidos talvez da efemeridade das paixonetas
adolescentes, ou da impossibilidade de judaísmo e catolicismo
combinarem. Na opinião de ambos, estas religiões estavam
uma para a outra como vinagre para azeite. No entanto,
sabíamos que, um dia, o óbvio, iria ser exposto. E tínhamos
medo.
O piquenique foi no Dia de Corpo de Deus, feriado de
Tondela. Memorizei-o como o quadro de Manet, Le Déjeuner
sur L´Herbe: Abraham apoiado no cotovelo, com o bastão
sobre a relva; ao fundo. a avó, na margem do Rio Dinha, a
colher flores; eu, ao lado de Leah, nadando de costas. Na
moldura, em segundo plano, um barco. No canto inferior
esquerdo, o cesto do piquenique, esventrado sobre os panos
de linho, com maçãs e vinho branco.
– A água está fria! – queixou-se Leah.
– Crianças, cautela! Não se afastem muito! – recomendou
o engenheiro.
– Não se preocupe – retorquia-lhe. – São só algumas
braçadas.

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As fadas não usam batom
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Olhei para o céu. A atmosfera estava cinzenta, saturada


de chuva.
– Julho está feio! – comentei.
Em resposta às minhas palavras, começou a chover. A
princípio, foram só uns pingos, mas depois, transformaram-se
numa bátega escura.
– Meninos – gritou o engenheiro –, saiam da água!
Vamos!
Obedecemos-lhe. Na margem, a avó esperava-nos com
os agasalhos.
– Sequem-se bem! – o engenheiro deitou mão ao cesto
do piquenique e às mantas onde nos refasteláramos.
E foi então que aconteceu. Terá sido um impulso? Um
desejo finalmente libertado? Ou o feitiço da roupa molhada,
colada à silhueta espigadota de Leah, revelando o ventre liso
e as coxas apetecíveis? Impulso, desejo ou feitiço – chamem-
lhe o que quiserem. Olhei para a rapariga. Depois, segurei-lhe
no braço e beijei-a com todo o ímpeto possível. Leah não
resistiu. A sua boca era quente e a língua dela foi cúmplice da
minha. Durante alguns instantes, o mundo esfumou-se à nossa
volta. Só existíamos nós, o beijo e a chuva.
As reacções ao beijo escandaloso não se fizeram esperar.
Senti um braço arredar-me de Leah, e, logo a seguir, um ardor
de bofetada na face.
– Larga-a! – gritou Abraham, furioso.
Depois, virou-se para a filha e esbofeteou-a também,
murmurando um impropério em Alemão – uma língua que me
parece particularmente apropriada para insultar pessoas. Leah
levou a mão ao rosto que, segundos antes, eu acariciara. Foi
tudo tão rápido! Senti o coração a bater, agitado, e um clarão
de fúria cegou-me. Um segundo depois, socava o engenheiro,

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As fadas não usam batom
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duas vezes, no estômago. O velho agarrou-se a um arbusto,


desesperado, para não cair na água. Depois, subitamente alerta,
atirou-se a mim, aos pontapés.
– Parem, meu Deus, parem! – a avó tentava separar-nos.
– Luís, tem vergonha! Senhor engenheiro, que vem a ser isto?!
Pôs a mão sobre o ombro de Leah, que começava a
soluçar. Seguimos todos para o carro, envergonhados e
coléricos.
O ambiente toldou-se por completo. A minha avó e
Abraham deixaram de se falar, após uma longa reunião no
escritório. Uma semana depois, pai e filha antecipavam os
planos, e partiam para Lisboa. A intenção era apanharem um
barco português para Massachusetts, nos Estados Unidos, onde
os aguardavam alguns parentes distantes, solidários para com
os judeus perseguidos.
Durante os dias que antecederam a despedida, os adultos
mantiveram-me a mim e a Leah incomunicáveis. Todos os
passeios pela quinta foram cancelados e até as refeições eram
tomadas em alturas diferentes, para que não nos
encontrássemos. Agora, o exilado era eu, na minha própria
casa.
Só vi Leah uma vez, de relance, à entrada da biblioteca,
onde ela fora buscar um livro de biologia.
– Leah... – sussurrei.
A rapariga devolveu-me um olhar longo e triste, antes
de baixar a cabeça e desaparecer no corredor, na direcção do
quarto, sem uma palavra.
Na última noite de permanência dos judeus em Tondela,
dirigi-me ao escritório. Havia uma réstia de luz sob a porta.
Bati duas vezes, a medo.
– Entre – disse Abraham.

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As fadas não usam batom
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O homem que tinha esmagado o meu amor, e se


preparava para levar Leah para lá do oceano, franziu o sobrolho
ao ver-me. Sem uma palavra, deixei o relógio de bolso em
cima da secretária, e retirei-me.
— Por que fizeste isso? – pergunta-me Leah.
Procuro encontrar no rosto enrugado dela traços da
menina de catorze anos. Talvez a curva do nariz ou o formato
dos lábios sejam ainda os mesmos. Os olhos continuam, sem
dúvida, brilhantes e meigos.
– Não sei, Leah. A cinquenta anos de distância... –
encolho os ombros, e medito no absurdo da situação. Foi
preciso atravessar e Atlântico; trabalhar como imigrante numa
escola para portugueses, em Newark; procurar Leah por meio
de um anúncio de jornal; marcar encontro com ela, no outro
lado do rio Hudson.
Estamos num restaurante da Quinta Avenida. Lá fora, o
vento dedica-se a virar do avesso os guarda-chuvas dos
transeuntes. Vemo-los aconchegarem-se nas estradas das lojas
ou chamarem os táxis amarelos. Conversamos em Inglês:
– Casaste... – aponta para o anel no meu dedo. – Tens
filhos?
Puxo da carteira, e mostro as fotografias. Enuncio os
nomes e descrevo os atributos:
– Este é o Peter, trabalha na publicidade.
– Parece-se contigo! – exclama Leah.
– Dizem que sim. Mas é mais alto, muito mais! Esta a
Suzanne, já me deu dois netinhos, está agora a viver em
Hartford.
– É bonita! – dizes, segurando nos bordos da fotografia,
com cuidado.
– E aqui, a última, a caçulinha. Vinte e seis anos. A minha

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As fadas não usam batom
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princesa.
– A mais bela de todos! Como se chama? – perguntas.
Remexo-me na cadeira, embaraçado:
– Leah. Chama-se Leah.
– É uma boa escolha, Luís – olhas-me demoradamente.
– Já lhe contaste a nossa história?
– Muitas vezes. Era uma das suas favoritas, em pequena.
Sorrimos. Já não sabemos quem somos. Passou-se
demasiado tempo. Contudo, os passeios pela quinta de Tondela,
os Verões infinitos, o beijo no rio – tudo volta a existir ali,
num restaurantezinho de Nova Iorque.
Brinco ainda algum tempo com o guardanapo, manchado
do batom de Leah. Depois, pago, dou-lhe o braço e saímos.
São cinco horas da tarde e parou de chover. As luzes da Big
Apple acendem-se em glória. Por entre a dentadura de arranha-
céus, arrasta-se uma cauda de névoa.
Ao chegar à esquina, Leah despede-se de mim. Confirma
que trocámos endereços, e que nos escreveremos:
– Meio século a pôr em dia, não é, Luís?
Afasta-se, por entre a enxurrada de retardatários.
– Até para o ano, em Jerusalém! – digo-lhe ainda.
Leah acena-me que sim.
Vejo-a atravessar a rua, debaixo de chuva. Um andar
elegante, mesmo aos sessenta.

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Avé, mar
As fadas não usam batom
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Há uma mãe escura e da idade do tempo. Chama-se


oceano e contemplo-o da minha janela. Cíclico, desova sobre
as praias, ao ritmo das marés. Grávido, o seu ventre incha
quando a lua surge no zénite. Nele se cruzam sereias e
corsários, ninfas e poetas, e todo o bestiário marinho se
multiplica em bacanais salgadas. Dessa fertilidade, também
nós, os humanos, descendemos. No entanto, o tempo baniu-
nos para terra firme, e agora vivemos de mergulhar as redes
nas ondas, e de charruar com as quilhas dos nossos barcos a
placenta outrora sagrada.
Mas não será assim para sempre. Um dia, regressaremos
ao mar. Faremos dos braços barbatanas, crescerão guelras onde
antes se abriam as narinas, cobrir-nos-emos de escamas
platinadas e cortejaremos as ninfas mais belas. E, de novo,
seremos deuses invulneráveis ao rodar das luas – como a sereia
de Buarcos, de que te vou falar.
Sou Maria, descendente de Eva que gerou Nereida; e de
Nereida que criou as ondas; e das ondas que conceberam
Vénus; e de Vénus que deu à luz a minha avó e a avó antes
dela. Sou a noiva descalça do mar, a mesma que encontras em
qualquer costa. Talvez na Sardenha, à sombra do bote,
remendando as velas. Talvez aqui, em Buarcos, vendendo
peixe.
Sempre vivi junto à água. Aqui contemplei Jesus
caminhando sobre as águas do lago Tiberíades, e vi-o
multiplicar num gesto o pescado. Aqui, esperei que o entardecer
devolvesse Ulisses a um reino sem rei. Destas areias, vi-te
partir para lá dos bordos da carta de marear. A tua peregrinação
levou-te de praia em praia, teu sémen florescendo em mulheres

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As fadas não usam batom
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nunca dantes navegadas – negras, asiáticas, índias – o cheiro


do amor confundido com o do incenso. O oceano foi a terra
prometida, mas também a distância que te separou de mim.
Partiste, demasiadas vezes e, demasiadas vezes, morreste,
deixando-me de coração náufrago.
Esta é a estação certa para contar a minha história. Tenho
sessenta anos, e oiço já os rios subterrâneos marulhando contra
a barca de Caronte. Encaro estes meus últimos dias sem
amargura, apenas como quem adormece junto ao labor das
marés. Encosta o teu ouvido ao búzio e escuta-me.
Era uma vez eu, uma varina adolescente igual a tantas
outras. Dia a dia, carregava o pescado na canastra, mão à
cintura, andar gingado, por entre um cardume de crianças:
– É o peixe freeeeeesco, ó freguês! Quem compra?
– Ó varina, a como é o carapau?
– Um vintém, freguesa!
– Muito caro!
– Mas é o melhor deste mar! Olhe-me só as escamas de
prata!
E era assim, todas as tardes.
As semanas fizeram-se meses, e os meses
transformaram-se em equinócios, e os equinócios em anos.
Por fim, a folhagem do meu sexo despontou no cheiro deixado
pelas marés. O corpo ganhou a docilidade curvilínea das dunas.
A pele tornou-se mais morena, misturada numa paleta de
mouras, gregas e fenícias. E a varina-menina das areias
transformou-se em mulher.
Foi então que o Zé Delfim, teu pai se enamorou de mim.
Via-o muitas vezes sentado à sombra de um bote, consertando
as redes, o torso forte e moreno, com a tatuagem azul de uma
sereia no braço.

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As fadas não usam batom
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O Zé sorria-me:
– Onde vais, varina? Tem cuidado!
– Porquê, Zé?
– Não vá Neptuno apaixonar-se por ti e roubar-te à terra!
– Melhores deusas tem ele no mar...
– Mas nenhuma caminha como tu – e piscava-me o olho,
o malandro.
E eu ia à minha vida, com a imagem dele na cabeça.
Contudo, um dia, abrandei o passo. O Zé reparou e pediu:
– Não te vás, varina. Conversa um pouco comigo.
– Não tenho tempo para namorar.
– Vá lá, Maria... Só mais um bocadinho. Quero contar-
te a mais verdadeira das histórias.
– E qual é, pode saber-se? O conto do pescador atrevido?
Riu-se.
– Não, Maria. Essa já tu conheces bem.
– Então?
– É a lenda da sereia de Buarcos.
Aproximei-me, curiosa:
– Não conheço.
– Vou contar-ta então. Senta-te na areia, ao pé de mim.
Assim fiz.
– Não tinha mais do que a altura de um arpão, quando o
meu pai me levou para a safra do bacalhau, ao largo dos fjords
escandinavos. Aí, nas noites de luar, durante os equinócios, vi
as minhas primeiras sereias. São criaturinhas de cabelos verdes,
com corpo de mulher e uma ou duas caudas de peixe, cobertas
de escamas azuis. Avistei-as a saltarem por entre as vagas,
roçando-se contra o casco do navio, ou contemplando-se no
gelo icebergues.
– E não tiveste medo?

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As fadas não usam batom
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– É claro que tive, Maria! Como os meus companheiros,


também eu me benzi, e tracei no peito a estrela de São Salomão.
Os escandinavos chamam a estas criaturas havfine – meio peixe
–, e alertam os navegantes para o seu feitio. As sereias traem
os pescadores com um cântico, fazem-nos perder o norte e
naufragar. Durante a safra, muitos foram os dóris que ficaram
com os cascos estraçalhados pelos bancos de gelo.
– Bem sei – disse. – Também perdi um primo ao largo
da Noruega.
– Nesse tempo, o meu avô vivia numa casa junto à praia,
ornamentada por uma única roseira, numa ruela de Buarcos.
– A casa que tem a sereia desenhada no muro...
– Essa mesmo. Há setenta e cinco anos, dezenas de
golfinhos encalharam nas areias desta mesma baía. Era noite
de tempestade e a nortada batia os pinheiros, desde a serra até
ao cabo. O avô acordou estremunhado. Abriu a janela do quarto
e apurou o ouvido. Na distância, distinguia os silvos dos
golfinhos. Curioso, desceu ao areal e avistou os corpos deles,
que asfixiavam. Observou-os, um por um. E foi então que viu
um vulto esquisito, metade humano, metade peixe, enrodilhado
numa rede.
– Era uma sereia?
– Sim, Maria. Qualquer marinheiro desviaria a cara e
fugiria a sete pés, para evitar a maldição. Mas o avô ficou,
porque a sereia era tão graciosa, que ficou enfeitiçado.
Aproximou-se e viu que estava ferida. Delicadamente,
desemaranhou-a dos fios e das bóias. Logo que se achou livre,
a sereia arrastou-se na direcção do mar. Mas não conseguiu
fugir, porque os braços eram curtos, e estavam magoados pelas
malhas das redes.
– E o avô, que fez?

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As fadas não usam batom
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– O avô pegou na sereia, e sem olhar para ela, caminhou


através das ondas, a água já pela cintura, e largou-a. A sereia
virou-se e revirou-se, com golpes de cauda. Depois, mudou
de curso e regressou até ao meu avô. Abraçou-o, beijou-o e
desapareceu no mar. De imediato, a tempestade amainou. As
sereias sabem mudar o tempo – e até as marés. A maré baixa
pode tornar-se alta numa questão de minutos, e o contrário
também é verdade. O feito do salvamento da sereia correu na
boca das gentes de Buarcos. Por isso, passaram a chamar
Delfim ao avô.
– O teu apelido! – exclamei.
O Zé prosseguiu:
– Desde que vira a sereia, o avô nunca mais sossegara.
Nas noites de lua cheia descia à praia, para a tentar ver entre
as ondas. Até que, uma ocasião... – o Zé acendeu um cigarro e
inalou, sem pressas. – ...três vultos apareceram na espuma e
aproximaram-se de terra firme. Surpreendido, o avô viu que
eram sereias. Arrastaram-se para o areal e despiram a pele de
escamas. Em vez de cauda, tinham duas pernas, deformadas e
longas. Espantado, o homem viu as três criaturas darem as
mãos, fazerem uma roda e dançarem ao som de uma canção
estranha. Aproximou-se, a coberto dos barcos, e conseguiu
roubar uma das peles.
– Para quê?
– Para a capturar – dizem os noruegueses que é a única
maneira. Quando o bailado terminou, as sereias vestiram de
novo as escamas. Ao verem que a companheira não encontrava
a sua cauda, ajudaram-na a procurá-la, aflitas. Foi em vão,
claro está, porque era o avô quem a tinha. Então, este mostrou-
se-lhes. Amedrontadas, as sereias regressaram ao oceano. Só
a terceira mulher do mar ficou para trás, porque não podia

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As fadas não usam batom
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voltar nua ao seu reino. O avô reconheceu-a. Era a mesma


sereia que ele tinha visto meses antes. Mas desta vez não a
deixou partir. Levou-a para casa, onde a escondeu, durante
alguns dias. Debalde tentou ensiná-la a falar. A sereiazinha
era assustadiça e não abria a boca.
– Ninguém descobriu?
O Zé riu-se.
– Sim, descobriram. É difícil esconder alguém numa casa
tão pequena. Mas o avô não lhes disse que era uma sereia.
Para que a vizinhança não desconfiasse, sentou-a numa cadeira
de rodas e cobriu-lhe as pernas com uma manta. Passeava-a
pelas ruas de Buarcos, e dizia que era a noiva, imagina! Que
se encontrava doente e, portanto, não podia andar sem a
cadeira. Quando lhe perguntavam de onde vinha, explicava:
– É estrangeira. Conhecia-a na Noruega.
– É muda?
– Não! A minha mulher tem uma voz de encantar. Mas,
como ainda não sabe falar Português, prefere calar-se –
respondia, manhoso.
O Zé fez mais uma pausa, e enterrou o cigarro na areia.
– As pessoas gostavam dela, Maria. A sereia sorria, e
tinha a finura de uma princesa. Em breve, o avô casou-se com
ela, naquela capelinha além – apontou. – Desse matrimónio
saíram sete filhas, todas nascidas mortas, à excepção da última:
a minha mãe.
— E que aconteceu à sereia?
– Uma noite, desapareceu. Talvez que as companheiras
a tivessem resgatado. Ou que a sereia tenha encontrado a pele
da cauda – o avô já não se lembrava onde a tinha escondido –
e aproveitasse para fugir. Nunca mais ninguém lhe pôs a vista
em cima.

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As fadas não usam batom
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Fiquei uns instantes em silêncio, a apreciar o conto, e a


imaginar as maravilhas que tinham acontecido ali, naquele
areal:
– Gosto da tua história – murmurei.
– Sei mais do que muitas. Contá-las-ei quando quiseres.
– Sim. Quero ouvi-las.
A pretexto de tirar alguns grãos de areia, passei-lhe a
mão pelos caracóis – mais escuros, agora que o sol se punha.
O Zé abandonou-se ao meu afago. Agradava-me a sua pele
cor de canela e a largura viril dos ombros.
– Há que ir – disse-me.
Caminhámos ainda um pouco, lado a lado, as pegadas
derretidas pelas ondas e a canastra esquecida lá atrás. A
fronteira espumosa avançava e retrocedia, sobre a praia. Uma
réstia de sol naufragava para outro hemisfério.
– Adeus. Vou estar ausente durante algumas semanas.
Mas voltarei para ti, Maria, quando a lua se deitar no céu, e
chegarem as primeiras chuvas.
– Esperarei. Vai com cuidado.
Tudo isto foi há muito tempo, quando a madrugada tinha
um travo a juventude, e tu não existias ainda. Se tivesses
sobrevivido, minha filha, e um dia me perguntasses:
– Como conheceste o pai?
– Era uma vez uma Sereia de Buarcos... – e contar-te-ia
a história.
Quando o Zé voltou da safra, em Abril, tornei-me na sua
noiva.
Foi na noite de núpcias, que te gerámos. A lua derramava-
se sobre a baía de Buarcos e a força dos equinócios perpetuava
o trabalho das ondas. Amámo-nos com as janelas do quarto
abertas, para deixar entrar a brisa.

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As fadas não usam batom
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– As ondas vão ser nossas testemunhas. O meu filho ou


filha há-de ser filho ou filha do mar, mesmo antes de nos
pertencer – disse.
O lençol cobria-o apenas até aos joelhos, o branco
contrastando com a pele morena. Dir-se-ia uma estátua
helénica, dessas em que as vestes apenas servem para despertar
ainda mais o sentido da nudez. Aceitei a força dos seus braços,
e os olhos, escuros de desejo, como os de um fauno.
– Desde o início do mundo que te estou destinada, Zé.
– E eu a ti.
O meu sexo era uma anémona aberta em tons de rosa e
tentáculos capilares negros. Depois, foi um espasmo, a lava
libertou-se, e os olhos rolaram, aliviados. Exalámos. Tínhamos
morrido um dentro do outro. E em mim, batia o teu primeiro
instante. Alguns dias depois, descobri que estava grávida.
Trocámos ideias para o teu nome.
– Piedade? Rosário? Maria? – perguntou o Zé.
– Serena é o melhor nome – decidi.
– Porquê?
– Em memória das sereias que há quase um século deram
à costa.
– Escolheste bem, Maria. Serena será.
Imaginávamos que serias uma criança bela, e que terias
os olhos da tua bisavó, a sereia fugitiva.
– Ou talvez o rosto – disse o pai.
– Maria, como será o rosto de uma sereia? E o sorriso?
E a voz?
Sete meses depois, nasceu a menina mais estranha de
que Buarcos se recordava. Tinhas as pernas fundidas, numa
cauda escamosa, e os olhos lembravam duas bolhas de água
azul. Prematuras, as tuas feições eram esguias e inumanas.

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As fadas não usam batom
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Durante os três dias e três noites em que viveste, não


abandonámos o berço.
– Achas que sobreviverá? – perguntei ao teu pai.
Abanou a cabeça:
– É a bisneta de uma sereia. Já não pode viver nem na
terra dos homens, nem no mar das mulheres-peixe.
Por fim, a tua alma desprendeu-se do corpo anfíbio.
Então, o pai pegou em ti e saiu para a noite encoberta. Segui-
o à distância, cabisbaixa, sem uma palavra. Avançou pelas
ondas até a água lhe chegar à cintura. Depois, largou-te.
– Avé, mar. Eis a tua filha.
O vulto pequeno e pálido flutuou um instante antes de
desaparecer. O oceano absorveu-te e regressaste ao útero
antigo.
Durante muitos anos, o pai nunca falou de ti. Fingimos
que nunca exististe, e que o nosso bizarro rito diante do mar
fora picotado de uma lenda qualquer. Porém, ontem à noite,
quando a tempestade estava no seu pior, o Zé abriu as janelas
da sala e contemplou o mar:
– Consegues ouvi-la, Maria?
– Sim, Zé. São tantas noites em que a escuto...
– Também eu.
Então, poisou-me o rosto no ombro e chorou. Não ousei
perguntar-lhe mais nada. Enraivecido, o mar fulminava as
areias. E a música do vento preenchia toda a história da sereia
de Buarcos.

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Ver e dizer
As fadas não usam batom
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Vila do Conde, na década de quarenta.


Marta esconde o rosto, a gargalhada morrendo num
soluço, e pede:
– Conta outra vez...
E o Manuel desfia com gozo a história de como a proa
mal lançada contra a vaga encharcou os desastrados aprendizes
da faina. Marta meneia a cabeça.
– Gosto da maneira como sorris – confessa Manuel.
Marta encolhe os ombros e morde o lábio inferior,
naquele trejeito que lembra a garota a habitar ainda na
adolescente.
– É verdade, Manel? – fita-o, desafiadora. – É verdade
que gostas do meu sorriso?
Ele assente, com um olhar longo. Uma pausa desce sobre
a tarde. A maré sobe, trazendo um hálito de algas e um céu
polvilhado de gaivotas.
– Lua nova... – sussurra a Marta.
– ...marinheiro em pé – completa o Manuel, erguendo-
se. – Há que ir...
– Ajudas-me?
Manuel oferece-lhe os dedos calejados. Marta levanta-
se e ergue um pouco a saia, com pudor, para sacudir a aspereza
das areias.
Manuel rodeia com o braço os ombros da Marta. Esta
encolhe-se, nervosa, mas consente no gesto. Andam mais
depressa. Na distância, as luzes dos larotes e das catraias
arrastam o resto do dia. A noite vem a coberto das nuvens,
com alguns lençóis de vento.

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As fadas não usam batom
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– Vais ao baile, logo à noite? – pergunta Marta,


compondo o xaile.
– Não posso. Tenho faina. A Senhora do Alívio larga
hoje para os baixios – e uma pergunta arde doida na cabeça: –
Marta, sei que não é da minha conta, mas, com quem vais?
Marta percebe o ciúme e agrada-lhe. Responde de jacto:
– Vou com o meu mano.
Manuel sente um alívio. Sabe que é agora ou nunca, que
a cornucópia da paixão alterna os momentos de generosidade
com os de secura, e arrisca:
– As romarias de Santa Eufémia estão próximas. Decerto
que haverá bailarico.
– Há sempre...
– Nessa altura, queres ir comigo?
– Combinado! – responde a rapariga. – Está na hora de
voltar para casa, Manel. A minha mãe deve estar raladíssima...
Manuel remexe as mãos nos bolsos, esquecido de dizer
nem ele sabe o quê. Despede-se com uma carícia frouxa no
rosto de Marta. Ela fecha os olhos. Talvez o gesto, talvez a
revoada de areia.
– Cuida de ti, Manel – e roça-lhe o peito. – Tenho tido
sonhos...
– Sonhos...? Que sonhos?
– Coisas más... – balbucia ela.
– Ora, acredito lá em sonhos! – diz o Manuel. Mostra-
lhe o pulso: – Vê, desenhei na pele a estrela de Sanselimão.
– Mesmo assim... – Marta contempla-o. E se lhe
contasse? E se lhe dissesse das vezes inúmeras em que o sono
lhe traz uma visão, a imagem de uma proa romba metendo
água, ou de redes sem dono, à flor do mar?

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As fadas não usam batom
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Muitas foram as ocasiões em que, depois de Marta ter


estes sonhos premonitórios, os desastres aconteceram. Teria
catorze anos quando imaginou um cadáver inchado pela maré,
embalado contra a costa. E não foi preciso mais de um dia
para que toda a tripulação do Mar Verde desaparecesse, três
milhas ao largo, entre um nevoeiro espesso.
Em confissão, contara ao padre da capelinha de Sant’Ana
a profecia que tivera e que se cumprira. Este respondera
secamente:
– Às vezes, minha filha, os caminhos de Deus e os do
Homem são mais cruzados do que paralelos...
– Mas já aconteceu antes, padre... Vejo as coisas e elas
acontecem.
Do outro lado da tábua perfurada, o padre soltou um
suspiro:
– Acasos. Não ligues, Marta.
– Mas, e se fui escolhida como adivinha...?
– Marta, lembra-te: o que não vem de Deus, vem do
Demónio.
O padre findou a confissão, pedindo o acto de
arrependimento e recomendando um rosário generoso. A
adolescente deixou a Igreja com o peso do mundo e do céu
sobre os ombros.
Por esses dias, uma inquietação percorria Marta. Seria
ela uma bruxa? – indagava-se. Pertenceria ao círculo das
mulheres que fazem defumadouros de sal e alecrim, lá para os
lados da Cova do Purgatório? E lembrou-se das rezas que a Ti
Constança fizera, aquando da sua pneumonia:
– Assim como Nossa Senhora defumou o seu bendito
amado Filho, assim te defumo, para te sarar. E te benzo

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As fadas não usam batom
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também, em louvor do Santíssimo Sacramento, que bote os


males lá para fora, e os bens para dentro.
Estas narrativas estimulavam-lhe a imaginação. Viria dali
a vocação de bruxa de Marta? A estes pensamentos, Marta
cerrou os olhos com força. Teve medo e pediu a Deus que a
livrasse do dom de bruxa.
No entanto, as visões não se suspenderam. Normalmente,
eram imagens nebulosas, entrecortadas por frases sem sentido,
e por vozes de gente desconhecida.
Uma noite de Inverno, na véspera do seu décimo quinto
aniversário, Marta deitou-se, indisposta. Por entre os ladrilhos
da janela, atrás da cortina de renda, a lua leitosa preenchia
todo o céu. Custou-lhe a adormecer. Quando sossegou, teve
uma estranha visão. Primeiro, viu um mar de águas turvas.
Depois, escutou o tinir das sinetas de sinalização de um
bacalhoeiro.
Alguns marinheiros conversavam:
– Lança o dóris, que metemos água!
– Mas Capitão, o nevoeiro é cerrado! Não se enxerga
ponta!
– Pelo Senhor dos Navegantes, bota-te na direcção do
vento e não cuides – ordenou o capitão.
– Mas o dóris não aguenta ondas destas! – teimou o
marujo, aflito.
– Desce o dóris, moço, pelas almas! Não vês que nos
alagamos?
Marta apercebeu-se de que se tratava de um naufrágio
eminente. Aflitos, os marinheiros tentavam abandonar o navio,
sem pé para ficar no tombadilho, e sem coragem para descer
os dóris aos vagalhões ameaçadores.

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As fadas não usam batom
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Então, uma enorme massa branca aproximou-se, na noite.


Marta reconheceu-a como um icebergue, desses que andam à
deriva na Terra Nova, irrompem do escuro e esfolam os cascos.
Tremeu ao escutar o dobrar do aço e o som da madeira
estilhaçando-se.
– Senhor dos Navegantes! – ouviu-se ainda uma voz
horrorizada.
Depois, só o silêncio.
Marta acordou com uma ponta de febre. Sentou-se na
cama, arrepiada, nem ela sabia se da amargura do pesadelo, se
da indisposição que lhe roía o estômago. Acabara de ver um
naufrágio, como se estivesse lá, a flutuar sobre o navio. Limpou
a testa e murmurou uma prece. O sono só regressou muito
tarde e vazio de sonhos.
Na madrugada seguinte, quando desceu as escadas para
a cozinha, encontrou a mãe pranteando:
– Mãe! Que se passa? Que aconteceu? – correu para ela.
Em cima da mesa, um telegrama:
«O cônsul de Portugal no Canadá lamenta informar V.
Ex.cia do naufrágio do bacalhoeiro Deus nos Traga, ontem,
pelas 20:00 horas, TMG, quinze milhas ao largo. Apesar das
buscas, não foram encontrados sobreviventes, mas apenas os
cadáveres dos marinheiros».
E a lista incluía, à cabeça, o tio Alberto.
Foi com as mãos a tremer que Marta amarrotou o
telegrama. Entre o abraço que deu à mãe e a confissão da
profecia, transcorreram duas semanas. Só depois dos funerais,
as campas construídas junto aos muros do cemitério, é que a
mãe se atreveu a falar do caso com alguém. Fê-lo a medo,
como quem reparte um naco de pão, sem ter a certeza se o
outro o aceitará:

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As fadas não usam batom
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– Ti Preciosa...
A velha ergueu os olhos da costura. A mãe não a fitou,
enquanto amanhava as sardinhas:
– ... aquilo da morte do meu irmão, que Deus o tenha no
céu, não foi obra do acaso.
– Que queres dizer?
– A Marta teve um pesadelo nessa mesma noite. Disse
que viu o naufrágio.
A Ti Preciosa, pouco dada a mistérios, mas devota de
presságios e crenças, como é usual nas gentes da costa,
arregalou os olhos e persignou-se:
– Então, foi obra do destino. O Senhor quis o Deus nos
Traga – sentenciou.
A mãe assentiu, movendo devagar a cabeça. E
acrescentou:
– Não é a primeira vez que a Marta tem estas
premonições...
A velha Preciosa olhou-a com inquietação. Mas a mãe
não ergueu os olhos, estripando as sardinhas com método,
como se receasse ler as reacções no rosto da interlocutora.
Preciosa trouxera muitas vezes a Marta ao colo, ou agarrada
às saias, pelas sendas da lota. Nunca achara na criança nem
virtude de bruxa adivinha, nem sinal algum do demo. Apenas
uma garota franzina, os olhos escuros como os seixos da praia,
que gostava de ouvir histórias de bruxas, à mistura com lendas
de santas.
– Tens a certeza do que dizes, mulher? – perguntou a Ti
Preciosa.
– Jurou-me pelas Chagas.
E assim concluiu a conversa, sem mais detalhes.

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As fadas não usam batom
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No entanto, é sabido como a palavra viaja célere nas


aldeias piscatórias, sobretudo quando se trata de segredos. Se
Marta atravessava a praia, as beatas detinham-se a olhá-la,
indecisas entre verem nela marca de santa ou pinta de bruxa.
Não tardou para que o António Grego, descendente desse povo
mediterrânico que largou âncoras por todas as costas, viesse
um dia à procura da Marta.
Aos sessenta anos, já armara e perdera dois navios na
pesca do bacalhau: um de Aveiro, outro de Vila do Conde. A
safra era tarefa para homens de barba rija. Partiam em Abril
ou Maio e passavam seis meses na Groenlândia – ou
«Gronelândia», no linguajar do povo. Era meia centena de
pescadores, longe de casa, à mercê do oceano. Se algum
adoecia, restava-lhe o vapor-hospital Gil Eanes, que os
pescadores aqui chamam, distorcidamente, de Julianas. No
entanto, era rara a expedição que trazia vivos todos os homens.
Os naufrágios, a doença ou a inexperiência podiam matar.
Muitas vezes, no mar de espumas geladas do Árctico, a
neblina encurralava os dóris largados do navio-mãe. Apesar
das sinetas, a forma confusa como a sonoridade se propagava
sobre as águas levava a que nem sempre todos os botes
regressassem ao navio. Alguns chocavam entre si, outros
sumiam-se na espessura da chuva.
A própria faina, mesmo com tempo a calhar, era perigosa
e alongava-se durante a maior parte do dia – apenas as águas
oceânicas por companhia e a ração feita de peixe fito, um naco
de boroa e uma garrafa de água. Não que houvesse tempo
para meditar sobre a solidão. A safra exige um rigor e uma
força constantes. Quando a ondulação se espessava, as zagaias
feriam as mãos. Restava aos marinheiros urinar para as palmas,
cicatrizando a ferida e evitando assim infecções. No final do

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As fadas não usam batom
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dia, o navio-mãe soava o sino ou o fagone. Com os músculos


a arderem de frio, os pescadores regressavam da safra.
António Grego, o armador de bacalhoeiros, bolinou pela
rua até encontrar Marta fazendo renda de bilros, à porta de
uma dessas casas da Cachina, pintadas de cores berrantes por
fora, caiadas de branco por dentro. Aproximou-se,
cambaleando. Devido às descompressões apressadas – fora
mergulhador –, acabara por apanhar o «mal das profundidades»
e passara a caminhar como um bêbedo. A criançada chamava-
lhe «o pirata», fazia dele alvo de chacota, imaginava que
aqueles passos desastrados eram mais resultado do vinho que
da doença.
Um facto é que o António Grego era senhor de uma figura
impressionante. Tinha dois palmos de tromba de assustar,
braços roliços, músculos de martelo, e uma peitaça que
lembrava um emaranhado de algas escuras.
Acenou a Marta. Ela levantou-se:
– A sua bênção, Ti Grego...
– Deus te abençoe, minha filha.
– Que ventos o trazem?
António Grego sentou-se no degrauzinho, junto a ela, e
rosnou:
– Talvez não sejam os melhores...
– Aconteceu alguma coisa, Ti Grego?
– Ainda não, Marta.
– Ainda? Não compreendo.
– Tenho dois barcos aparelhados para seguirem rumo à
Terra Nova: o Destemido e o Asa Azul. Uma centena de homens
rijos, recrutados por toda a costa. Mas tu sabes como as coisas
são: frio de gelar a alma, vagas do tamanho de casas, enfim,
tudo pode correr de má feição...

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As fadas não usam batom
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– Deus os proteja – murmurou Marta.


– Assim seja. Já lá se perderam muitas quilhas– retirou
o cachimbo, encheu-o de tabaco americano e premiu bem a
mistura com o polegar: – Quando calha ao Diabo ser tendeiro...
– Compreendo, Ti Grego. Também lá perdi o meu tio
Alberto.
Por um instante, António Grego não disse nada.
– É por isso que estou aqui, Marta – engoliu em seco. –
Diz-me: é verdade que viste, em sonhos, o naufrágio?
Marta desviou os olhos do velho. Suspirou fundo. Sabia
que, mais tarde ou mais cedo, teria de prestar contas ao mundo.
Escolheu as palavras com vagar:
– É verdade, vi um naufrágio. Se foi ou não o do Deus
nos Traga, não sei.
– Essas visões já te aconteceram mais vezes?
– Não disse que eram visões, Ti Grego. Mas já me calhou
sonhar com coisas que depois acontecem...
Durante um longo minuto, Ti Grego nada disse. Depois,
atirou:
– Tiveste algum sonho com os meus barcos?
A rapariga abanou a cabeça:
– Não, não tive.
António mirou-a durante alguns segundos, como que a
ler-lhe na alma a verdade do dito. Depois, ergueu-se e arqueou
as costas, dorido. Contemplou o mar e disse:
– Está bem. Mas olha que se Deus te enviar alguma
mensagem, quero saber.
– Sim, senhor.
Depois, o Ti Grego foi-se com as suas passadas incertas
de marinheiro embriagado por oceano a mais. A conversa ficou
a fluir e refluir na mente da rapariga. E se ela fosse mesmo

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As fadas não usam batom
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uma sibila? Que faria com aquele poder? Seria, como dizia o
padre, coisa do Demónio? Ou antes, nas palavras do Ti Grego,
uma bênção divina?
Marta pensa e pensa.
Ao longe, as luzes da Cachina instalam-se na fieira de
casas caiadas – como a gaivota que poisa sobre o nervo de
uma amarra. Há muitas verdades fora das páginas sagradas,
coisas de deuses velhos, ensinamentos passados de mulher a
mulher, confissões do sobrenatural.
O dia seguinte abre calmo. A luz poisa nas casas, coagula-
se no céu e sobre a espuma. Marta levanta-se, veste a saia, o
saiote, a blusa com o colete e o xaile. Ao pescoço, a voltinha
com a figa, sobre os cabelos, o lenço.
Já é tarde. Apressa-se e sai à rua, com o fito de ir à missa
da capelinha de Sant’Ana. Aspira o ar cálido da madrugada.
Agrada-lhe o caminho pelas ruas serpenteantes, sempre a subir.
Por hoje, nenhuma quilha irá charruar as areias, aos gritos de
al’arriba. Fartos de redes, os pescadores dormem. Só as
mulheres madrugam.
À medida que se afasta, Marta vai tendo uma visão
alargada do bairro da Cachina – afinal, apenas uma viela
comprida, quase cerzida ao mar. Normalmente, haveria um
rol de cachopas pontilhando as portas das casas, quase todas
elas pescadeiras ou rendilheiras, trocando os bilros com a
mestria que um pianista usa para interpretar uma sonata. Ou
ver-se-iam adolescentes correndo de pés descalços, com os
cestos de milho amarelo ou feijão à cabeça.
– Marta!
A rapariga volta-se. É a Clara, a irmã do Manuel Novo,
quem a chama. Tem o mesmo cabelo de carvão, mas usa-o
caído em madeixas longas, contrastando com a brancura

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As fadas não usam batom
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certinha dos dentes. À semelhança de Manuel Novo, também


os olhos são verde-mar, como uma marca de oceano que, de
avatar em avatar, arrastara aquela família para o sal.
– Vem com Deus, Clara.
– Bons-dias, Marta. Vais à missa?
Que sim.
– E o teu irmão, Clara?
Clara encolhe os ombros:
– Foi à missa vespertina, ontem.
– Ah... – Marta abranda o passo. Entristece-a a
perspectiva de não partilhar uns momentos com Manuel –
mesmo que fosse apenas um olhar durante a homília, ou um
sorriso trocado por alturas comunhão. Insiste:
– Tem afazeres, hoje?
Clara finge descontracção ao dar a má nova:
– Mais ou menos. Foi passear para os lados do Mindelo
com a Ana, a filha do Ti Piloto.
Marta mal contém a surpresa:
– Com a Ana?
De novo, Clara finge casualidade, mas tem a notícia em
turbilhão e precisa de a dar:
– Sim. Sabes, Marta, eles têm namoriscado.
Marta sente um nó na garganta.
Ana, de origem portuguesa, viera do Canadá com os pais.
É «bela e fidalga», como por aqui se diz, mais alta que o
costumeiro, as mãos sedosas que nunca trocaram bilros ou
amanharam o peixe, e um arzinho de superioridade. Quando
desce da Vila, em passos dançantes, aprecia os olhares dos
cachopos e o respeitoso erguer de boina dos pescadores, que a
tratam por miss, mas a reverenciam como Dona.

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As fadas não usam batom
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Marta sente que acaba de perder Manuel; tem aquela


certeza feminina, meia premonitória, metade acaso. A vontade
de chorar é enorme. Só por vergonha – ou será orgulho? – não
o faz. Caiu na artimanha de Clara, vaidosa pelas companhias
finas do irmão. Marta finge reparar numa ou noutra casa,
esquece-se de cumprimentar a Ti Amélia, mal dá por si e está
na missa.
Contudo, não se concentra na prática do padre. Não pode
mais. Recusa-se a acreditar na traição do Manuel. Ama-o e
odeia-o a um tempo: e se tudo mais não fosse que uma mentira
encenada por Clara? E se a Ana apenas fosse amiga do
pescador? Marta passa a missa em branco.
– «Ite missa est» – anuncia o padre.
A assembleia benze-se e dispersa. Marta espera até que
toda a gente saia. Depois, quando se vê só, ajoelha-se em frente
ao oratório velho. Ao cimo, anjinhos de rosto rubicundo
contemplam com indiferença o vulto ajoelhado. Ao centro,
um Cristo liquefaz-se em sangue, o olhar fito numa nuvem
pintada a azul mar. À direita, a sua Mãe segura voltas de prata
e ex-votos. Ao fundo, São Jorge continua, há já cinquenta anos,
a empalar um dragão de balsa – que o povo transformou em
serpente marinha.
A Virgem concorre com outras representações suas,
rodeada por uma multiplicidade heteronímica: a Senhora da
Guia, a Senhora dos Navegantes, a Senhora da Bonança, a
Senhora do Alívio... Tudo à mistura com representações de
sereias e outros seres fabulosos. Em baixo erguem-se velas da
altura do pescador que fizera a promessa, e navegam miniaturas
de barcos.
Respira-se incenso, à mistura com o bafio das roupas
bordadas dos santos e santas. E todo o silêncio do mundo

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As fadas não usam batom
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desagua na capelinha. Marta concentra-se para sibilar uma


prece. Pouco a pouco, começa a sentir o êxtase que antecede
as visões. Tem medo, mas não as recusa.
Entreabre os olhos. Para seu espanto, o oratório ficou
vivo: a Virgem tem agora o rosto dócil de Marta; em baixo, a
sereia aparece com a face sabida da Ana do Ti Piloto; entre
ambas as mulheres, uma miniatura do barco de Manuel agita-
se. A sereia que é a Ana chama Manuel para o fundo revolto
das águas pintadas que são a sério. E o vulto da Virgem que é
Marta estende-lhe as mãos aflitas, para o roubar à tentação.
Mas o barco de Manuel soçobra e a sereia de seio descoberto
sorri-lhe, lasciva, à medida que o bote rodopia e desce. Marta
foge da capelinha, assustada.
Até segunda-feira à tarde, não descansou. O sol põe-se,
está na hora de dar o assejo. As companhas empurram os barcos
pelo areal abaixo, entre os votos das mulheres e das mães:
– O Senhor vos traga o salvamento.
E o bando de crianças grita, ao ver a proa fazer-se ao
mar, carregada com as redes. Mais ao longe, outra embarcação
levanta a âncora dos fundos arenosos e ruma a terra. Os homens
e as mulheres acorrem com os paus de varar e berram:
– Ala! Ala! Al´arriba!
Os ombros rangem contra a madeira, a transpiração
escorre, e com o sal greta e curte a pele. O bojo pesado da
catraia sulca a praia, cheio de sardinha, chicharro, pilado e
faneca. Mal os pescadores e a companha põem a barca a seco,
e já as pescadeiras preparam o amanho da rede para leiloar os
despojos de Neptuno.
Marta avança, acotovela-se por entre os compradores.
Assinalam as suas ofertas com um piscar de olho, coçar do

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As fadas não usam batom
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nariz, ou outro gesto. Marta ignora-os. Quer falar com o


Manuel.
– Está além ao fundo. Preparam-se para largar – informa-
a o Ti Viana.
Marta corre pelo areal, na direcção do Senhora do Alívio.
O Manuel está junto do Mestre Zé, a carregar os apetrechos
para o barco: o ferro, o vertedouro, o lampião...
Marta aproxima-se com timidez e chama:
– Manel, Manel Novo!
Este volta-se:
– Vem com Deus, Marta. Não te tenho posto a vista em
cima!
– Queria falar contigo.
– Estamos prestes a dar o assejo... – Manuel aponta o
barco:
– É coisa breve – puxa-lhe pelo braço e afasta-o do resto
da companha:
– Que se passa, catraia? Estás com cara de caso...
– Manel, pela Senhora dos Navegantes, não mintas. Estás
de amores com a Ana?
– Eu...? Com a filha do Ti Piloto? Enganas-te, Marta –
Manuel cora um pouco: – Quem te botou esses mexericos?
Marta finca as mãos nas ancas e respinga:
– Disse-mo a tua irmã.
Manuel vira o rosto, e pergunta:
– E se andar de amores com ela...? Que tens tu?
– Que tenho eu? – Marta sente a voz quebrar. – Pensei
que gostasses de mim! E agora dizes-me que andas com essa
descomposta?
– Descomposta? – riu Manuel. – E que és tu, Marta?
Vales muito, se calhar!

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As fadas não usam batom
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Marta espeta-lhe duas bofetadas. Os homens da


companha riem-se. O Mestre Zé Agonia zomba:
– Coisas de namorados...
Manuel olha-a com raiva. Vai para ripostar, porém
desiste. Volta-se e caminha para o grupo de pescadores.
Ao fundo, irada, Marta lembra a visão e berra-lhe:
– Se vais, o mar que te engula!
As palavras tombam como uma maldição. Por um
instante, faz-se um silêncio lambido apenas pelo oceano vivo.
Manuel Novo estaca e volta-se. Com ele, todos os rostos da
companha fitam a catraia:
– Que dizes...? – balbucia o Manuel.
Marta aponta ainda o dedo para ele, crivando-o com
aquela praga, longo tempo depois de o vento ter varrido as
palavras. Manuel abana a cabeça. Junta-se aos parceiros e
continuam os preparos para dar o assejo. Estão mudos, tentando
ignorar o peso daquela maldição que os angustia.
Marta apercebe-se da sua insensatez e bate com a mão
no peito. Só quis avisá-lo da profecia. São coisas que saem da
boca para fora, como o alcaboz se esgueira da rocha. E porém,
o tom de voz fora de tal forma carregado de maldade que
nenhuma das almas que assistia à partida do barco duvidava
de que ela lançava mau-olhado à companha.
– Por Deus, Mestre Agonia! Onde vais, que o mar está
às bergas?! - adverte uma velha que passa.
– O marinheiro não espera pelo mar, nem o mar pelo
marinheiro – responde o Mestre.
E lançam o barco às ondas. Marta e a garotada vêm-no
afastar-se da costa.

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Porém, pouco a pouco, o oceano encapela-se, com aquele


rumor cavo de fera que os pescadores conhecem. Por detrás
dos que ficam na praia, aproxima-se o Ti Grego. Olha o céu:
– Isto é poveiro que se aproxima...
Marta treme. Pressente que algo está para acontecer,
coisa nefasta. As gaivotas começam a vir para terra.
«Mau sinal!» – medita Ti Grego.
E como que a responder-lhe, a trovoada vem. Um clarão
seguido de um eco ribombante. Marta ajoelha-se nas areias e
reza:
– Santa Bárbara pequenina
Se vestiu e se calçou
Seu caminho caminhou,
Um anjo no céu encontrou
Que lhe perguntou:
Onde vais, Santa Bárbara?
Vou abrandar a trovoada
Para o monte romaninho
Onde não haja nem pé de vinho,
Nem bafinho de menino.
A tormenta ignora a prece e aperta. A morrinha
transforma-se em bátega. Ajunta-se um poder de gente.
Uma velha implora:
– Santa Marta os guie!
Os velhos cofiam a barba com dedos nervosos. O barco
de Manuel Novo empina-se sobre as ondas. Só se nota o vulto
do Mestre, iluminado pelo lampião, manobrando o leme pelos
vales de água. Os outros pescadores tinham-se deitado no bojo
do batel, tentando servir de lastro. A tempestade não amaina.
Pelo contrário, os vagalhões engrossam. Uma parede de água
abate-se a bombordo. O Mestre desaparece, lambido pelo golpe

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As fadas não usam batom
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traiçoeiro. Uma velha grita de dor. Marta cerra os olhos com


força. Um outro pescador substitui prontamente o Mestre na
proa.
Então, uma raiz de lume fende os céus.
– É o tridente do Demo! – grita Ti Grego.
Os sinos começam a tocar a rebate. Da Cachina e do
Mindelo, vem gente e gente. Gente de xaile sobre os rostos
contraídos; gente de mãos calejadas pelas redes; gente de alma
esfarrapada pela dor; gente de olhos colados no baloiçar do
batel.
O barco desce o dorso de uma onda. Fica
momentaneamente oculto pela vertente da água. Os velhos
esperam ansiosos. Porém, quando o mar reflui, a silhueta
desaparecera já.
– Senhor dos Navegantes, tende piedade!
– Senhora da Guia, guardai o meu marido!
Mas nenhum milagre se opera. Na praia, a multidão
escrutina o sopé dos vagalhões, sem nada encontrar. A
esperança a rende-se às lágrimas.
Como um coro de tragédia, Ti Grego sentencia:
– Fartou-se de vidas, o cão.
A tempestade arreda-se, o mar ainda bamboleando
quadris de fera saciada.
– Foi coisa que aquela bruxa lhes lançou! – uiva uma
velha.
Os rostos olham a catraia com severidade.
– Mataste-me o filho!
– Deste o meu irmão ao mar! – grita Clara.
E o círculo fecha-se. Marta é o totem de uma dança
grotesca, as velhas e velhos e catraias e cachopos são
andorinhas negras ao redor da presa.

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As fadas não usam batom
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– Bruxa!
– És das da Cova do Purgatório!
Marta defende-se:
– Mas que dizem vocês? Isso é mentira!
– Arreda-te de mim, bruxa!
Marta recua. Porém para onde? Está já sitiada pelo bando
de xailes e pelos vultos dos pescadores. O Ti Grego berra:
– Já foi ela que mandou ao fundo o barco do tio!
– Pedra nela!
– Não! – implora Marta. – Não lancei maldição nenhuma!
Juro! Foi só um sonho!
– Pedra na bruxa! – grita outra velha.
Um seixo acerta-lhe na testa, logo seguido de outro e
outro. Marta grita e cai ao chão. Apenas sente a dor das pedras
atiradas por quem acabara de perder um dos seus.
Chora. Geme. Cala-se.
Quando acabaram, os pescadores e as pescadeiras
partem. Marta fica sobre a areia, encolhida como um feto. Ao
longe, já só algumas figurinhas iluminadas por archotes
percorrem o litoral, em busca de algum náufrago ou salvado.
Os sinos da capelinha há muito que se calaram, exaustos. Se
calha haver ainda algum tinir melancólico, é obra do vento.
Marta desperta, os joelhos à boca, o cabelo empastado
em sangue. Lamuria em surdina. No sonho acordado, imagina
que o Manuel a abraça. Fantasia que ele caminhou sobre as
águas, como o Jesus Nazareno. Que São Pedro pescou os
náufragos do perigo. Mas tudo não passa de imaginação sua,
da crença, das histórias com que lhe enxamearam os ouvidos,
enquanto nova – e, claro, da língua do povo que logo a vira
como bruxa, prestando-se a confundir avisos com pragas.

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As fadas não usam batom
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Na distância, o oceano acalma a sua respiração escura.


Agora, as vagas estiram-se, fartas, sobre as areias. Pouco a
pouco, o breu cede. Uma ponta de neblina poisa sobre a praia.
E as estrelas afogam-se, uma a uma, no dia que vai nascer.

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As fadas não usam batom
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Alguns termos regionais utilizados neste conto

Larote: tipo de embarcação com oito palmos de quilha;


Estrela de Sanselimão ou de São Salomão: amuleto
protector;
Zagaia: instrumento para pescar bacalhau à linha;
Fagone: buzina para chamar os pescadores de regresso
ao bacalhoeiro;
Dar o assejo: lançar o barco ao mar;
Mar às bergas: mar tempestuoso.

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A história que eu
não devia contar
As fadas não usam batom
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A minha irmã sorria, o rosto iluminado pelas treze velas,


em paliçada, ao redor do bolo de aniversário.
– Sopra!
Seguia-se de um coro de vozes desafinado que
cantarolava o «parabéns a você». Exactamente sete minutos
depois, a minha mãe acendia de novo as velas.
– Agora é a tua vez, mano!
– Três, dois, um... – e eu soprava com toda a força,
enquanto os convivas bisavam os parabéns.
A Catarina e eu somos gémeos, partilhámos durante nove
meses o mesmo útero, e nascemos apenas intervalados por
alguns minutos. Herdámos aquela telepatia inerente aos
gémeos: se um de nós se corta ao descascar uma maçã, logo o
outro faz um lanho também; se regresso da escola angustiado,
a Catarina sente uma irreprimível vontade de chorar.
– Vocês são pão da mesma fornada! – diz-nos a mãe.
Um ano antes, tinha-nos proibido de tomar banho juntos.
Fosse a puberdade pressentida, fosse a desconfiança de que
existia entre mim e Catarina um afecto proibido desde o início
dos tempos, o certo é que pouco a pouco eu e a mana víamos
o nosso amor ameaçado. A mãe jamais percebera que nós
éramos yin e yian, e que nada nos deveria separar.
Consequentemente, dissimulámos a nossa paixão, e só
namorávamos durante a noite. Cada qual saía do seu quarto,
pé ante pé e encontrávamo-nos no consultório médico do pai,
no andar térreo da casa. Depressa o olhar se adaptava à semi-
obscuridade, e percebia os posters que forravam as paredes:
diagramas médicos, o mapa da circulação e uma imagem do
aparelho genital feminino – pintado em tons de laranja e rosa.

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As fadas não usam batom
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O nosso ritual obedecia a uma sequência precisa. A


Catarina acendia uma vela com cheiro de alfazema; eu sentava-
me à secretária do pai, pegava numa caneta e fingia tomar
notas num boletim clínico. De quando em quando, observava
com um olhar terapeuta a mana, que retirava as suas roupas na
minha frente, peça a peça. Primeiro, a camisa de noite tombava
a seus pés; depois, despia a roupa interior. Uma penugem fina
cobria o seu corpo iluminado pelo halo da vela. A um canto,
um esqueleto de riso especado olhava-nos como um voyeur.
A mana deitava-se sobre o divã, e fingia ser tímida.
Levantava-me da cadeira, pendurava o estetoscópio ao pescoço
e examinava-a, os olhos ora fitos no corpo que a adolescência
torneava, ora na porta por onde o pai podia irromper a qualquer
instante. Mais do que o acto de amor, o que nos excitava era
aquela mistura de perigo e prazer.
No fim, a Catarina vestia-se, sem pressas, e colocava a
questão habitual:
– Que tenho doutor?
–Uma infecção na alma.
– Tem cura?
Eu meneava a cabeça:
– Prognóstico reservado – e passava-lhe uma receita
invisível.
Depois de brincarmos aos médicos, beijávamo-nos uma
última vez, antes de regressarmos aos quartos, muito sérios,
numa pose que nos parecia ser a dos adultos.
Tínhamos medo e sabíamos que o nosso comportamento
estava errado. A mana contou-me que todas as noites rezava
para afastar de nós a perversidade. Pela minha parte, tentava
compensar as nossas más acções fazendo toda a espécie de

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As fadas não usam batom
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recados que a mãe ou o pai pediam. Mas isso não me fazia


sentir melhor.
Um dia jurámos:
– Vamos parar de fazer estas coisas, mana.
– Só mais uma vez, Alberto. Está bem?
– Combinado.
Porém, nunca era a última. Cedíamos sempre aos desejos
da carne, porque nos víamo-nos como hemisférios de um
mesmo globo: um não podia existir sem o outro. Para tanto,
cada um tinha rituais íntimos e particulares. A Catarina, por
exemplo, gostava de se contemplar ao espelho, de esconder o
cabelo atrás da curva do pescoço, numa trança, de se imaginar
como o rapaz que eu era. Eu dava comigo a escanhoar a barba
tão rente que o meu rosto – mais anguloso do que o da Catarina
– acabava por se assemelhar ao dela.
Esta identificação estendia-se a todos os actos do nosso
quotidiano: vestíamo-nos sempre de igual, cultivávamos as
mesmas amizades, ajustávamos os hábitos com a precisão de
agulha apontada ao norte, copiávamos aquilo que a genética
não tinha assemelhado em nós.
– O nosso segredo, mano. Nunca o contaremos
– Nunca – assentia.
No entanto, com o tempo, em vez de brincarmos às
escondidas, começámos a revelar alguns sinais da nossa paixão.
Começámos com pequenos gestos: caminhávamos de mãos
dadas, ou trocávamos afagos muito breves – coisas aceitáveis
entre irmãos, nada de escandaloso. Só uma década depois
percebi que essa necessidade se fundamentava no desejo de
reconhecimento do nosso pecado.

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As fadas não usam batom
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Porém, uma tarde, fomos mais longe. A Catarina pediu


à Elisabete e à Sónia para se encontrarem connosco, atrás do
ginásio. À hora marcada, as raparigas compareceram, curiosas.
– Vou mostrar-vos como eu e o mano brincamos um com
o outro... – anunciou a Catarina.
E para surpresa das raparigas, beijámo-nos. Primeiro, a
língua dela traçou os meus lábios. Depois, tocou-me os dentes.
Finalmente, penetrou na minha boca.
As raparigas coraram, mas notava-se também a excitação
no rosto de ambas. Riram, nervosas, indecisas entre um pudico
embaraço e a lascívia. Terminadas estas transgressões,
sentámo-nos em círculo sobre a erva.
– Que acham disto? – perguntou a mana, muito séria.
A Sónia encolheu os ombros:
– É esquisito...
– Isto não é proibido, ou coisa assim? – perguntou a
Elisabete, corando.
– Sim – murmurei-lhe.
– Mas porquê?
Não me recordo de que boca viera a pergunta. E também
não me lembro de resposta alguma.
O certo é que a culpa era cada vez mais insuportável. Eu
e a Catarina desejávamos ser descobertos, expostos à
humilhação e, por fim, punidos. Ao mesmo tempo, tínhamos
medo, porque não sabíamos qual seria o castigo, e porque isso
significaria o final do nosso amor. Vivíamos neste dilema:
– Não podemos continuar assim – dizia-lhe.
– Pois não, é errado, amor.
– Mas não consigo parar, mana!
– Nem eu. É como se estivesse possessa.
– Achas que nos descobrirão?

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As fadas não usam batom
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– Talvez – suspirou. – Oxalá.


– Só eles nos podem parar – dizia, enquanto lhe segurava
na mão.
Conscientemente, tornámo-nos mais descuidados.
Deixávamos a porta do consultório aberta; acendíamos a luz
do pequeno candeeiro; não abafávamos os gemidos durante o
amor; e quase implorávamos pelos passos do nosso pai
castigante, descendo as escadas para o rés-do-chão.
Nos meus pesadelos, ele espancava a Catarina, sobre o
divã, no consultório. Ao fundo, a mãe assistia a tudo, sem ousar
intervir. Por fim, a mãe levava a Catarina pela mão, enquanto
o pai me conduzia a mim, para me aplicar o mesmo castigo.
Ambos deixávamos um rasto de sangue pelo chão.
Fartos de segredos e cheios de culpa, a mana e eu
estabelecíamos metas cada vez mais ousadas para o nosso
amor. No último dia de aulas, a seguir à natação, sugeri à mana
um plano ousado:
– Vamos para a piscina, depois de todos saírem, e
nadamos nus.
– É perigoso, mano! Vamos ser apanhados, é quase
certo...
– Por isso mesmo, Catarina. Tem de ser a piscina, amor.
Para acabar com isto.
A partir da sala da caldeira, entrámos sub-repticiamente
no balneário das meninas. Existia ali um aroma íntimo a cloro,
sangue e hormonas. Uma essência mantida nas gotículas de
vapor condensado que escorriam pelas paredes de azulejo.
– Podia-se fazer perfume disto – comentei, segurando
uma gota no indicador.
– Isto é perfume, mano.
– Diz-me: a nudez tem aroma?

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As fadas não usam batom
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– Claro. O medo, por exemplo, cheira a leite azedo. A


pureza, a hortelã. O desejo cheira a terra depois da chuva.
Ocultámo-nos numa das cabinas de chuveiro e puxámos
o cortinado de plástico. No nosso esconderijo, ouvíamos uma
melopeia de ecos: gritos de miúdos, as bóias carambolando, o
chapão de um mergulhador. Depois, estas frases sonoras foram-
se tornando mais raras e de uma sintaxe desconexa.
Alguns minutos depois, as alunas da natação invadiram
os balneários. Afastando um pouco a cortina, víamos as
raparigas do oitavo ano despirem o fato de banho, entrarem
nos outros duches, ensaboarem-se, regressarem aos bancos
de madeira, limparem-se e vestirem-se sem pressas. Tanto eu
como a Catarina nos sentíamos excitados, ao sermos voyeurs
desta dança de nudez.
Mais sons: risos, despedidas, cacifos de metal a serem
fechados, passos a afastarem-se, o pingar dos chuveiros. O
último som a dissolver-se no silêncio foi o do enorme
interruptor apagando as luzes principais.
– Vem, mana. Está na hora.
– Tens a certeza de que já saíram todos?
– Penso que sim. Mas não interessa pois não? Só temos
a ganhar se nos descobrirem.
De mãos dadas, saímos do balneário, cerzidos às
sombras. Não se via vivalma. Fui ao quadro geral e acendi as
lâmpadas submarinas, que iluminavam intervaladamente a
piscina.
A Catarina experimentou a água com o pé.
– Mmm. Está morna...
– Mas não é do aquecimento, Catarina.
– Pois não. Eles desligaram-no.

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As fadas não usam batom
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Ambos sabíamos que inúmeros corpos, ao longo do dia,


tinham temperado aquela tepidez.
Despimo-nos completamente. Empilhámos as roupas de
ambos num único monte, na margem da piscina. Depois, fomos
até à prancha de salto e mergulhámos. Decorreu apenas um
minuto até nos habituarmos à temperatura pouco mais fria do
que a do ar. Durante meia hora, nadámos em círculos, roçando
ocasionalmente o corpo um no outro. Nadámos abaixo da
superfície, onde as luzes azuis revelavam partículas em
turbilhão. Imaginei-as como a matéria placentária, mas sabia
que mais não eram do que migalhas de cloro, e restos da pele
dos nadadores.
– Sinto-me como um feto – disse-lhe.
Mergulhámos de novo. Imaginei-me no interior de uma
bolsa materna, junto ao vulto translúcido de Catarina: uma
massa dobrada sobre si, um corpo embrionário com uma cabeça
enorme. Dir-se-ia uma sereia, ou qualquer besta mítica –
metade gente, metade peixe. O corpo dela ia mudando e o
meu também, como se fossemos um reflexo um do outro. Em
seguida, um túnel escuro devolveu-me à terra. Recordo-me
da luz do dia me ferir a vista. Lembro-me das primeiras vozes.
Do ventre da nossa mãe lá em baixo. Do médico me levantar.
Do choro puro da Catarina que nascera sete minutos antes.
Emergimos, suplicando do oxigénio. Doía-me a caixa
torácica e o ar cada vez mais frio da piscina ardia na garganta:
– Dois minutos! Aposto que estivemos todo esse tempo
debaixo de água, mana.
– Não. Três! Foram três! – gritou a Catarina.
O eco intensificou o grito. Imitei-a.
– Ca-ta-ri-na! – gritei.
– Al-ber-to! – berrou.

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As fadas não usam batom
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Outra e outra vez, até as reverberações sonoras se


confundirem. Ca-al-ta-ber-ri-to-na. Aproximámo-nos e
abraçámo-nos, como se nos quiséssemos fundir. Os dois corpos
feitos um afundaram-se. Consumimos, pouco a pouco, o ar
que nos restava nos pulmões. Depois, agitámos os pés e
subimos. Quando emergimos, as luzes do tecto da piscina
estavam ligadas.
Na margem, o guarda-nocturno, um velhote, olhava-nos,
incrédulo.
– Catarina? Alberto? Que se passa aqui? – deu alguns
passos na nossa direcção. – Mas vocês estão nus!
A partir daqui, o fio que conduz ao fim da história é
emaranhado. Uma sucessão de acontecimentos que o
inconsciente deliberadamente confunde para poupar a razão
à dor. O polícia fez queixa ao director; o director ameaçou-
nos de expulsão e chamou os nossos pais; os pais coraram de
vergonha e levaram-nos ao psiquiatra escolar; o psiquiatra não
compreendeu as nossas razões e quebrou o sigilo ao contar
tudo à esposa, professora de inglês; a professora não conseguiu
evitar que a história transpirasse para os nossos colegas; os
colegas passaram a evitar-nos. Uma história sem fim de
recriminações. Ninguém nos percebia. Tratavam-nos como
se fossemos duas pessoas diferentes, em vez de partes do
mesmo indivíduo. Ca-al-ta-ber-ri-to-na. Dissera o eco.
Já passou um mês desde o incidente na piscina. É noite
de lua nova, e eu e a mana encontramo-nos em segredo no
rés-do-chão da nossa casa. Tudo foi planificado com o maior
cuidado durante a tarde de hoje.
– É agora ou nunca mais. Se um de nós fraquejar, o
outro tem de lhe dar força, entendes, mana?

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As fadas não usam batom
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– Sim. Não te preocupes, não me vou abaixo – disse-


me, com olhar firme.
Os degraus rangem sob os nossos passos, apesar de todas
cautelas – e desta vez, não queremos ser descobertos. Subimos
as escadas, devagar. Quando chegamos ao primeiro andar,
encaminhamo-nos para o quarto dos pais. Como o chão do
corredor é atapetado, podemos mover-nos silenciosamente.
Abrimos a porta do quarto, muito devagar, e espreitamos.
Os vultos dos pais estão adormecidos no enorme leito de
carvalho que já tinha pertencido aos avós. Lembro-me de,
quando éramos pequenos, aguardarmos pacientemente que os
pais se levantassem, para ocuparmos as suas posições ainda
mornas na cama.
Pé ante pé, separamo-nos e ocupamos os nossos postos:
a Catarina ajoelha-se junto da mãe; eu debruço-me ao pé do
pai. Durante alguns instantes, rezamos por coragem.
– Estás pronta? – sussurro.
– Sim.
– Vamos a isto.
Com o menor ruído, puxamos dos facalhões da cozinha,
previamente afiados. Erguemo-los. Aproximamo-los dos
pescoços dos pais. Cortámo-los, num gesto rápido. O sangue
esguicha. Eles estrebucham, como peixes na rede. Tentam
gritar, mas é impossível, a garganta alagada de sangue.
Demoram algum tempo a morrer. A Catarina vira o rosto;
eu, não. Os olhos da minha mãe, esbugalhados, incrédulos,
fixam-me no derradeiro instante. Depois, todo o movimento
cessa.
Arrastamos os corpos para fora do aposento: primeiro o
pai, depois a mãe, deixando um rasto de sangue nos tapetes. Despi-
mo-nos. E é naquela cama antiga, empapada de sangue, que eu e
a minha irmã nos amamos para o mundo pela última vez.

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Mudam-se os corpos,
mudam-se as verdades
Foi no Inverno de 1997. Partilhávamos a cidade
dissolvida no nevoeiro, as mesas dos cafés vazios, e uma ou
outra réstia de sol. A praia estava deserta, à excepção de alguns
cães que ladravam às nuvens e às gaivotas. Dantes, sabíamos
de cor as dunas onde o amor era possível; transformávamos o
sexo numa absolvição urbi et orbi, capaz de redimir todas as
brigas. Ocasionalmente, deixava-te ficar nos bolsos missivas
de amor ou avivava-te os dias com uma rosa.
– És tão tolo! – dizias-me, deliciada com a surpresa.
E julgávamos que iria durar para sempre. Porém, cinco
anos depois já estavas cansada da lua-de-mel. Acusavas-me
de te asfixiar, de as palavrinhas de amor, as rosas e as minhas
patetices românticas te fazerem sentir mal. Afastámo-nos: eu
viajava a pretexto de adquirir bibliografia no estrangeiro para
o meu doutoramento; tu ias a congressos médicos.
Naquele fim-de-semana de Inverno, fizemos a sangria
de acusações:
– É fácil de ver: o nosso casamento foi um erro – disse-
lhe. Deixámo-nos influenciar por aquilo que todos diziam ser
a escolha certa. Fomos empurrados para o namoro pela amizade
antiga entre os nossos pais, pelos amigos que nos achavam
um «par giro», pelas tolices da nossa adolescência.
Levaste um cigarro aos lábios e soltaste uma baforada
lenta:
– Nesse aspecto, estamos de acordo. Tentámos
demasiado fazer com que as coisas corressem bem. Mas
sabíamos que era impossível polir as mentiras. Mais tarde ou
mais cedo, um de nós acabaria por trair o outro, não é?
As fadas não usam batom
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Há muito que a paixão deixara de se deitar entre nós.


Restava apenas um conforto de lugares-comuns: o jantar fora,
num ou outro Domingo; a partilha de páginas do semanário –
eu lia o desporto, tu consultavas o suplemento de moda; algum
sexo despido de amor; recordações ressequidas, como rosas
secas dentro de um frasco.
– Passou a fase da descoberta mútua e do «que giro é
estar casado», Inês – suspiro.
– Perdi o norte, tu perdeste o sul… Nem demos por isso.
Ou encolhemos os ombros, à espera que passasse.
– Vai dar ao mesmo. Sempre julguei que as coisas
mudassem. Mas o tédio…
Sim, o tédio. A última estação ditara outros rumos. Fomos
infiéis, incapazes de suportar mais o bafio que nos oprimia.
Partilhei um bilhete para Nova Iorque com a Ana; tu foste
possuída pelo Jorge, no gabinete de arquitecto, sobre o
estirador.
Estrategicamente, não fazias perguntas acerca do batom
no meu colarinho, nem sobre certos telefonemas em voz baixa;
eu não indagava o porquê da tua silhueta rejuvenescida,
apertada nuns jeans estimulantes, ou o ror de fragrâncias que
compravas. Mudam-se os corpos, mudam-se as vontades.
– Paradoxalmente, foram as infidelidades que
prolongaram o nosso casamento – digo, olhando a praia através
da montra do café.
– Para além do limite, Afonso.
De acordo: atingimos o ponto de ruptura. As fracturas
começaram a serpentear pelo nosso quotidiano conjugal. Todas
as noites, fazíamos das trivialidades o tema de conversa, até
ao alívio de uma chamada telefónica que nos interrompesse,

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As fadas não usam batom
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ou à visita de um amigo. Dia a dia, sedimentava-se entre nós


um enorme cansaço e tornámo-nos cada vez mais distantes.
– Diz-me, Inês: algum dia pensaste em largar o Jorge?
Soltaste um suspiro fundo:
– É claro que sim, Afonso… Vezes sem conta. Mas temia
que tu não deixasses a Ana. Que me vencesses, compreendes?
Ana, a amante, não se coagia de criticar a minha esposa,
e pressionava-me a abandonar o casamento naufragado. No
leito de adultério, enquanto me rodeava o umbigo com a polpa
do dedo, húmida de saliva, assumia-se como a redenção para
todos os meus males.
Por seu turno, o Jorge era a tua paixão da juventude,
Inês, desde que te amara numa praia do Minho. Nessa altura,
eras ainda uma jovem recém-saída de uma infantilidade
exposta a todos os mimos; ele apresentava-se como um
estudante de arquitectura, com ares de Clark Gable e os
auspícios de uma carreira brilhante. Agora, transcorridas cerca
de três décadas, na mente de Jorge, tu encarnavas a juventude
perdida. Ele desejava-te; ele tinha-te.
– Eu precisava do apoio de Ana. Como um desenjoo de
ti, Inês.
– E de mim como um desenjoo dela?
A que destino rumava nos braços de Ana, a minha
amante? Pediatra da Rita, sua filha única, usava as doenças da
criança como álibi para os nossos encontros. Uma ponta de
febre, uma ameaça de virose, qualquer desconfiança oculta
numa tosse mais acesa, e logo a visitava-a. Tomava entre os
dedos o pulso da garotinha, enquanto entrecortava as
posologias com olhares passionais dirigidos à mãe. Para Ana,
este jogo não era difícil. Viúva precoce, não tinha ninguém a
quem enganar. Perguntei-lhe, em tempos, se isso não lhe

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As fadas não usam batom
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assombrava o prazer, sabido como quão estimulante pode ser


o risco. Respondeu-me que não.
– Perdi-te a ti, Inês. E perdi-a a ela.
– Pois – ris, ironicamente. – Jogaste a rainha contra a
rainha, mas não te livraste do xeque-mate.
O mar parece cada vez mais bravo, e está prestes a
chover.
– Algum dia dormiste com ele por vingança, Inês?
– Apenas pretendia fazer-te sofrer um pouco. Mas era
uma vingança por recesso: sacrificava mais do que ganhava.
Tudo porque ainda te tinha algum amor, respeito ou o que lhe
desejes chamar.
Por um qualquer sexto sentido, sabias quando uma
mulher estranha poisara o corpo nos nossos lençóis. E eu
adivinhava quando te entregaras ao arquitecto. Como se tivesse
surgido entre nós um magnetismo, feito de suspeitas, líamos
agora, com facilidade, os estados de espírito um do outro. Na
perspicácia vencias-me, admito-o. Porém, não sem ironia, foste
a primeira a ir-se abaixo.
Acordaste-me, às três da manhã e mostraste-me os
pulsos. Recordo-me de ter notado um detalhe: cortaras as veias
na direcção correcta, isto é, verticalmente, ao longo do braço
– e não na horizontal, como é frequente entre os suicidas.
Lembro-me ainda do teu desespero, enquanto entrosavas
soluços com um débil «ajuda-me». Em pânico, levei-te ao
hospital; insisti com um amigo interno para que o caso
merecesse a maior discrição, e roguei a uma das enfermeiras
de serviço que me mantivesse ao corrente.
Por fim, desabei num choro convulso, num corredor
branco e silencioso. Tinhas ganho o primeiro round. Logo ali
me dispus a enxotar Ana da nossa intimidade, a persuadir-te a

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As fadas não usam batom
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pores cobro às investidas do arquitecto. Queria apagar tudo.


Regressar ao tempo do nosso primeiro encontro, Inês, revivê-
lo como se fosse neste preciso instante.
– Inês, este é o Afonso, o filho dos nossos amigos. Já te
tinha falado dele? – apresentou o teu pai, oito anos antes.
– Olá, Afonso! – cumprimentaste, com um sorriso.
Tens dezasseis anos e a tua silhueta, mais do que incerta,
é intermitente. Isto é, num segundo, o rosto juvenil, amparado
pelo cabelo curto, os olhos azuis através dos óculos de sol, os
seios à procura de direcção, as pernas esguias, desaparecendo
na água morna. No instante seguinte, um ar de mulher madura,
boa conversadora, e um tudo-nada irónica.
Quando sais da piscina, cheiras à frescura e ao cloro das
águas:
– Inês, comporta-te como uma senhorinha e faz as honras
à casa, enquanto converso com os pais do jovem.
– Sim, papá. Vem daí, Afonso.
Mostraste-me o teu quarto: santuário de transição entre
a puberdade e a idade adulta. Bonecas de braços hirtas num
eterno abraço convivem com os santos da tua devoção: Elvis
e James Dean. Conversámos durante horas; tocámos as mãos;
marcámos encontro. Um mês depois, fazíamos amor.
O Gonçalves irrompeu da enfermaria:
– Olha, Afonso, a Inês vai ficar bem. Daqui a quatro
dias já terá alta.
Suspirei de alívio, como se alguém me tivesse libertado
de uma gravata sufocante.
– E o relatório clínico? – perguntei-lhe. – Não convém
que isto transpire...

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As fadas não usam batom
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– Ora, quanto a isso não te rales, homem! Todos os dias


há extravios, aqui no hospital – e apertou-me o braço,
assegurando-me do segredo.
Confiei na sua discrição. Mesmo quando recebeste um
ramo de rosas, acompanhado por um cartão de rápidas
melhoras, assinado «Jorge», não culpei o Gonçalves. Estas
coisas sabem-se.
– Quando me envolvi com o Jorge, quando me tentei
suicidar, fi-lo por vingança, admito. Queria tornar a minha
morte no fardo sob o qual desabarias.
Assim, de chofre, deitaste-me os motivos do acto. Não
havia ali um caroço de angústia. Poderias ter dito: «vou até ao
café» ou «é o teu dia de lavar a loiça» ou «bom dia» com a
mesma inexpressividade:
– Podemos perfeitamente chegar a um divórcio amigável:
reconstruo a minha vida com o Jorge, és livre de fazer o que
quiseres com a Ana.
Senti um murro no estômago. Que te amava mais do
que à Ana, que talvez pudéssemos renunciar às nossas paixões.
Insisti:
– Que achas? Estamos ainda a tempo. Vingaste-te. Não
basta?
Deste-me uma trégua, para que me recompusesse e
desfechaste o golpe de misericórdia:
– O Jorge vem cá para a semana falar contigo. Depois
mudo-me durante uns tempos para casa da mãe. A ver se,
entretanto, apressamos o divórcio e –
Levaste as mãos ao rosto, e choraste. Compreendi a
coragem necessária para, de rojo, confessares a tua infidelidade
e propores o divórcio: um feito para quem há menos de setenta
e duas horas tivera os pulsos cosidos.

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As fadas não usam batom
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Levei a mão ao teu ombro. Repeliste-me.


– Sabes, Inês, saí do quarto de hospital carregando o
lastro dos males do mundo, um Job sem Deus, um cão
lambendo as feridas. A tua dose de vingança! Era isso que
querias?
– Não. Mas foi isso que tu quiseste.
Nessa noite, conduzi ao longo da marginal, sem destino
nenhum, apenas porque penso melhor ao volante, longe de
distracções. Pela mente passavam os rostos das grandes
meretrizes da história: de Salomé a Madalena, de Madalena a
Anaïs Nin. Agora, era só entre nós, um duelo de morte entre a
culpa, irmã do receio, e o arrependimento, gémeo da confissão.
Acabei o dia diante de um copo de aguardente, num bar dos
subúrbios. Sentia remorsos, um chumbo no estômago, sabia
que não te podia deixar partir assim. Tinha de afastar a Ana,
por ti.
Liguei o telemóvel.
– Ana, sou eu, o Afonso.
– Afonso? Aconteceu alguma coisa?
Reparo que é quase uma da manhã…
– Não. Ou por outra, sim. Preciso de falar contigo.
– Agora?
– Sim, é urgente.
Soltaste um suspiro enfastiado:
– É tarde! Ó, Afonso… De certeza que não pode esperar
por amanhã?
– Não, Ana, não pode. Estou aí em quinze minutos.
O dilema era saber como contar a Ana que o meu
relacionamento com ela terminara, magoando-a o menos
possível, e sendo sincero ao mesmo tempo. Poderia dizer
qualquer coisa como: «Tenho uma esposa. Amo-a. Talvez ame

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apenas a memória da adolescente que aos dezasseis anos – eu


tinha dezoito – fez amor comigo, e que depois desposei. Eu e
tu fomos apenas companheiros de cama. É tudo. Adeus.»
A Ana esperava-me já no jardim de casa. Acenei-lhe que
avançasse para o automóvel. Sondou-me o rosto, à espera de
esmiuçar fosse o que fosse daquele mistério.
– Que se passa, Afonso?
Não respondi. Entraste no carro e arranquei. Deves ter
sentido o meu hálito etilizado, pois logo perguntaste:
– Andaste a beber?
– Ana, desculpa ter-te feito levantar. Trata-se de um
assunto inadiável.
– Tanto mistério… Estás a assustar-me! Por favor,
Afonso, diz qualquer coisa!
– Vou ter de te magoar, Ana.
Disseste em voz sumida:
– Já sou uma menina crescida. Conta lá…
– Ana, quero acabar com a nossa relação.
Mordeste o lábio inferior, como uma garota fazendo
beicinho. Depois abanaste a cabeça e murmuraste:
– Não consinto, Afonso…
Ora! – pasmei. – Não te cabe a ti consentir! É uma
decisão minha. Só tens de a acatar.
– Não é tão simples assim, Afonso. Querido, estás
confundido, embriagado, não dizes coisa com coisa!
Senti-me, subitamente, exausto.
– Ana, a nossa relação acabou, ponto final. Sei que é
duro, mas –
– Não, Afonso, não sabes! Nem calculas! Nem queres
saber! – cortaste brusca –Compreendo até que sejas fiel à tua

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esposa, mas também me deves fidelidade a mim! Não me podes


pôr a andar com um pontapé, apenas por eu ser a outra!
– Vá lá! Podemos continuar como amigos, Ana.
– Amigos? Tretas!
– Olha, Ana, vou levar-te de volta, e amanhã,
conversamos.
– Não metas a cauda entre as pernas, Afonso! Já que
queres resolver isto agora, vamos resolver isto agora! A Inês
tentou chantagear-te quando cortou os pulsos. Conquistar-te
fazendo com que tivesses pena dela… Pena! E tu, parvo, estás
a cair na armadilha!
– Ana, sê razoável...
– Não quero ir para casa. Continua a conduzir.
– Como?
– Continua, não faças meia volta!
Forçou-me o volante. A viatura guinou, com violência:
– Estás doida! Larga-me!
Fizeste passar a perna sobre a caixa de mudanças e
forçaste o acelerador.
– Pára já com esta estupidez, Ana! Ainda vais provocar
um acidente!
Gritaste:
– Não traves, Afonso! Se queres acabar comigo, tens de
acabar connosco!
O prego a fundo, o carro precipitou-se por entre as
sombras, a luz dos faróis alumiando um asfalto quebradiço, o
som da ramagem a arranhar o veículo. A última imagem que
recordo foi a dos mecos sinalizadores perigosamente próximos,
um peão, o estrondo, o declive, a cabeça de Ana, um
emaranhado ensanguentado de cabelos contra o tablier.
Voltei o rosto. Perdi os sentidos.

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– Quando a transportaram para a ambulância, a mulher


tinha muitos ferimentos, mas vai-se safar – afirmou o polícia.
O GNR levou a mão aos óculos, ajeitando-os. O sol
reluzia contra os cromados da carrinha. Do asfalto subiam
miragens. Perto do que fora o automóvel, um jornalista retirava
o rolo da máquina, enquanto a namorada, lhe colocava o braço
na cintura. Ao longe, o inspector urinava contra a carcaça de
uma árvore.
– Ei, chefe! Não é assim que vai parar a seca! – atirou o
polícia.
Gargalhada geral. Nesse instante, o jornalista avançou
para mim, e disse:
– Olá, sou do Diário Urbano. Gostava de lhe colocar
algumas...
– Não quero falar, não tenho nada a dizer-lhe...
Cobri o rosto com as mãos, apertando os olhos com os
dedos. Um pouco mais e talvez chorasse. Antes isso. Era a
única coisa a espantar-me: não conseguir reagir
emocionalmente a todo o incidente. Concentrei-me nos
mirones e na patrulha de polícias funambulando pela estrada,
à cata de provas, com mapas de transpiração nos sovacos.
– Vá lá, um relatozinho do acidente para o Diário Urbano
e deixamo-lo em paz. – insistiu o jornalista. – Coisas destas
não acontecem todos os dias e muito menos por estes lados!
Comecemos por uma pergunta fácil: como se chama?
– Afonso Silva – digo, mecanicamente.
Ao lado dele, uma colega assenta, letra miudinha e
tremida, num bloco de notas.
– Há por aqui muita coisa por esclarecer. A polícia diz
que a senhora foi encontrada com o pé em cima do acelerador

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do carro. E, no entanto, não ia a conduzir. Por outro lado, o


doutor estava alcoolizado. Certo?
Aceno que sim. Custa-me a falar, a garganta feita cortiça.
Quando passo a mão pelo rosto, a barba fere-me, áspera. Dava
tudo por um copo de água. Ou por acordar e descobrir-me, por
fim, noutra realidade.
– E qual era o seu relacionamento com ela? – pergunta a
colega do jornalista.
Apetece-me juntar o que resta das forças, num vórtice
de energia, e esbofetear o jornalista. Mas estou exausto. O
jornalista apercebe-se do clarão nos meus olhos e enxota a
colega:
– Ó Susana, tomo conta disto. Tira as fotografias.
A Susana levanta as sobrancelhas. Dá-me uma palmada
na perna e afasta-se, gingando as ancas. O jornalista olha-a,
de soslaio.
– Peço desculpa pela minha colega. Mulheres... – e pisca
o olho, na camaradagem de quem assume a anuência
chauvinista.
Sinto vontade de chorar. E não consigo. O jornalista olha-
me, a ponta do lápis suspensa sobre o bloco. Tudo é turvo e o
sabor do sangue do lábio cortado, enche-me a boca. É doce,
reparo.
Ao longe, Inês estaciona o carro. Abre a porta, vê-me, e
desce a ribanceira, em trote miúdo. Os seus olhos aproximam-
se. Olha-me com desdém. Os seus olhos são enormes. Olha-
me com ódio. Aqueles olhos existem em toda a parte.
E eu rio! Rio-me porque, afinal, a vingança foi minha e
não tua, Inês. Porque a rainha comeu a rainha e o xeque-mate
nunca aconteceu. Porque à tua patética tentativa de suicídio,
respondi quase matando a tua rival.

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As fadas não usam batom
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– Que foi? Qual é a graça? – perguntou o jornalista.


Desato às gargalhadas. Os polícias interrompem a
conversa. Apesar de ignorarem a anedota, começam também
a rir. E a Susana junta-se-nos, no contágio do absurdo. E até o
jornalista novato sorriu. E o automóvel desfeito contra uma
árvore. E os teus olhos, amor, tão imensos, cheios de mágoa e
de ódio azul por mim.

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Sobre o autor
João de Mancelos nasceu em
Coimbra em 1968. É autor de
várias obras em prosa e poesia,
das quais se destacam O Labor
das Marés, As Fadas Não Usam
Batom (vídeo-livro da semana
do programa televisivo
Acontece), Foi Amanhã, e, mais
recentemente, Línguas de Fogo.

Algum do seu trabalho literário


surgiu em antologias bilingues
e foi publicado no Reino Unido.
Tem desenvolvido actividade
como declamador, crítico
literário e professor de escrita
criativa.

É doutorado em Literatura
Norte-Americana Contempo-
rânea e docente no Centro Re-
gional das Beiras da Universi-
dade Católica Portuguesa.

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