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Organizado por:

Ivan Carlo A. Oliveira

Matheus M. Silva

Rafael Senra Coelho

Macapá, 2020
A Linguagem dos Quadrinhos

ISBN:
1ª edição: 2020

Organizadores:
Ivan Carlo A. Oliveira | Matheus M. Silva | Rafael Senra Coelho

Editores:
Ivan Carlo A. Oliveira | Matheus M. Silva | Rafael Senra Coelho

Revisão:
Ivan Carlo A. Oliveira | Rafael Senra Coelho

Diagramação:
Marília Tiritan | Vinicius Posteraro

Capa:
Rafael Senra Coelho

Conselho Editorial:
Dr. Ivan Carlo Andrade de Oliveira (UNIFAP)
Dr. Henrique Magalhães (UFPB)
Dr. Matheus Moura Silva (UFG)
Dr. Rafael Senra Coelho (UNIFAP)
Ma. Dânia Soldera (PPGACV/UFG)
Me. Gustavo Henrique Ferreira (INHIS/UFU)

Contatos e pedidos:
profivancarlo@gmail.com

A Linguagem dos Quadrinhos é uma publicação independente realizada pelo


grupo editorial Cipó – até o momento sem fins lucrativos.

Proibida a reprodução sem prévio aviso, salvo para divulgação. Direitos re-
servados ao autor. As opiniões aqui expressas são de total responsabilidade
de quem as emite.
O 48
____________
Oliveira, Ivan Carlo Andrade de
A linguagem dos quadrinhos / organização de Ivan Carlo Andrade de Oliveira,
Matheus Moura Silva, Rafael Senna Coelho. – Porto Alegre: Avec, 2020. / Macapá:
Cipó, 2020.

Vários autores

ISBN: 978-65-86099-60-7

1. Histórias em quadrinhos 2. Congresso de Quadrinhos da Região Norte


I. Oliveira, Ivan Carlo Andrade de II. Silva, Matheus Moura III. Coelho,
Rafael Senna IV. Título

CDD 741.5

____________

Índice para catálogo sistemático:


1. Histórias em quadrinhos 741.5
SUMÁRIO

O PIONEIRISMO NA PESQUISA E DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA DOS


QUADRINHOS NA REGIÃO NORTE DO BRASIL ............................................8

O USO DA ELIPSE EM CAVALEIRO DAS TREVAS, DE FRANK MILLER.........14

SIMULACRO E HIPER-REALIDADE EM “OS CAÇADORES DE SONHOS”, DE


NEIL GAIMAN......................................................................................................40

REALIDADE E FICÇÃO EM RONIN DE FRANK MILLER...................................60

FEMINISMO NEGRO E ARTE SEQUENCIAL: A RESSIGNIFICAÇÃO DO PAPEL


DA MULHER NEGRA NAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS..............................88

A HIPERSEXUALIZAÇÃO DE PERSONAGENS FEMININAS ATRAVÉS DA


CONSTRUÇÃO DA HEROÍNA MAJESTOSA ...................................................112

VONTADE DE PODER NA JORNADA DO HERÓI: UMA LEITURA


NIETZSCHIANA DE FULLMETAL ALCHEMIST ...............................................138
O PIONEIRISMO NA PESQUISA E DIVULGAÇÃO
CIENTÍFICA DOS QUADRINHOS NA REGIÃO
NORTE DO BRASIL

Ciberpajé

Tive a sorte e a alegria de ser um dos associados


fundadores da ASPAS – Associação de Pesquisadores
em Arte Sequencial, sendo um dos presentes a assinar
a ata de sua primeira reunião no ano de 2013, na cidade
mineira de Leopoldina, sede da associação. A criação
da ASPAS, que se propõe a agregar de forma interdis-
ciplinar e transdisciplinar os pesquisadores brasileiros
das histórias em quadrinhos (HQs) nas mais diversas
áreas do conhecimento, é um marco fundamental para
a pesquisa das HQs no Brasil e denota a pujança atual
das investigações acadêmicas envolvendo a arte se-
quencial, com múltiplos eventos anuais acontecendo pelo
país e reunindo centenas de pesquisadores de todas as
regiões. A ASPAS tem crescido muito desde sua criação
e agregado associados de universidades de praticamente
todos os estados brasileiros e das mais diversas áreas do
conhecimento como artes, letras, comunicação, sociolo-
gia, filosofia, biologia, ciência da informação, ciências da
religião, e inúmeras outras.

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Desde 2013 a ASPAS realiza encontros anuais
agregando seus associados e outros interessados que
apresentam artigos inéditos em grupos de trabalho diver-
sos, inclusive em 2016 fui o organizador do III Fórum de
Pesquisadores em Arte Sequencial, em Goiânia, realizado
pela ASPAS em parceria com o Grupo de pesquisa que
coordeno, o Criação e Ciberarte (CRIA_CIBER FAV/UFG),
contando com o apoio do Programa de Pós Graduação
em Arte e Cultura Visual da Faculdade de Artes Visuais
da Universidade Federal de Goiás. o III FNPAS teve como
tema “A Arte dos Quadrinhos”, e contou com a participação
de mais de 50 pesquisadores. Na ocasião, integrava a
comissão organizadora do evento, Gian Danton, à época
meu orientando de doutorado no PPGACV/UFG, o idea-
lizador das duas edições do congresso ASPAS NORTE
que resultaram nesse livro que tenho a honra de prefaciar.

Gian Danton, pseudônimo do quadrinhista, pes-


quisador e Professor Adjunto Dr. Ivan Carlo Andrade de
Oliveira, da UNIFAP – Universidade Federal do Ama-
pá, em Macapá, foi o principal organizador do I ASPAS
NORTE – Congresso de Quadrinhos da Região Norte,
estabelecendo um importante marco histórico no Ama-
pá, ao realizar o primeiro evento acadêmico dedicado
aos quadrinhos naquele estado. Para tanto contou com

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o apoio irrestrito da ASPAS e de outro colega também
notório quadrinhista e pesquisador, o Prof. Adjunto Dr.
Rafael Senra Coelho, da UNIFAP. O I ASPAS NORTE
foi realizado pelo projeto de pesquisa em história em
quadrinhos em outubro de 2018 sendo exitoso em seus
propósitos, ajudando a fortalecer a regional Aspas Norte
que surgiu com o objetivo de congregar pesquisadores
da Nona Arte da região amazônica, abrindo mais um es-
paço de divulgação de pesquisas e compartilhamento de
experiências e publicações. Com o sucesso do I ASPAS
NORTE, em 2019 foi realizado em Macapá o II ASPAS
NORTE, também sendo exitoso em seus propósitos.

Esse livro é fruto direto da realização das duas


edições do ASPAS NORTE, e reúne sete instigantes
artigos completos selecionados entre as comunicações
apresentadas no congresso. Os temas dos textos mostram
a diversidade e densidade das pesquisas relacionando
quadrinhos e produções da cultura pop com assuntos
como linguagem de quadrinhos, hiper-realidade, hiper-
sexualização, vontade de potência, elipses narrativas,
feminismo pós-moderno, adaptações literárias e jornada
do herói.

Os pesquisadores selecionados no I ASPAS NORTE


foram: Rafael Senra Coelho, que trata de forma sagaz do

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notório caso de simulacro e hiper-realidade no livro Os
Caçadores de Sonhos, escrito por Neil Gaiman e ilustrado
por Yoshitaka Amano, tendo como fundamentação básica
o filósofo Jean Baudrillard; Rayanne Rodrigues dos Santos
e Marcos Paulo Torres Pereira, que abordam questões
de hipersexualização do corpo feminino, representado
através da figura da personagem Majestosa, utilizando
Bourdieu (2012) e Foucault (1979, 1988, 1996) como re-
ferências estruturais; Amorim Sidarta Araújo, que aborda
com propriedade a obra Fullmetal Alchemist a partir das
reflexões de Nietzsche sobre a vontade de potência; Ivan
Carlo Andrade de Oliveira, que trata com muita tenacidade
a questão vanguardista das elipses narrativas na obra
notória das HQs, Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller;
e Fernanda Rabelo de Souza, que aborda aspectos da
jornada da heroína no mangá Saintia Shô tendo como
base Joseph Campbell.

Já no II ASPAS NORTE os pesquisadores selecio-


nados foram: Débora Aymoré, que trata das conexões
entre realidade e ficção no contexto da obra Ronin, de
Frank Miller, com aportes teóricos de Byung-chul Han
(2014) e Donna Haraway (1985); e Susan Karolaine
Gonçalves Soares Barbosa, que investiga as relações
entre feminismo negro e arte sequencial, tendo como
objeto de pesquisa a personagem Riri Williams (Coração

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de Ferro), que teve sua primeira aparição em 2016 em
O Invencível Homem de Ferro (n.7) e utilizando como
arcabouço teórico de investigação autores como Claudio
Marcio do Carmo (2017) e Carla Akotirene (2018).

Aproveito essa apresentação para parabenizar os


organizadores do ASPAS NORTE pelo pioneirismo e
dedicação à causa da pesquisa dos quadrinhos, fazendo
história e inaugurando no estado do Amapá eventos aca-
dêmicos dedicados à arte sequencial, e pela publicação
desse livro que corrobora a seriedade e importância dos
eventos realizados.

Ciberpajé

É Edgar Franco, artista transmídia, pós-doutor em arte e


tecnociência pela UnB, doutor em artes pela USP, mestre
em multimeios pela Unicamp, arquiteto e urbanista pela
UnB e professor permanente do Programa de Pós-gradu-
ação – mestrado e doutorado – em Arte e Cultura Visual
da UFG, em Goiânia. Atualmente realizada pós-doutorado
no Instituto de Artes da Unesp, onde investiga as conexões
entre os processos criativos de quadrinhos e performance.

14
15
O USO DA ELIPSE EM CAVALEIRO DAS
TREVAS, DE FRANK MILLER

Ivan Carlo Andrade de Oliveira

1) Introdução

Batman - Cavaleiro das Trevas foi uma das obras


mais importantes dos quadrinhos americanos. Revolu-
cionária, essa minissérie ajudou a elevar os quadrinhos
à categoria de arte.

Mas, além dos aspectos da história (um Batman


cinquentão voltando à ativa em uma Gotham City extre-
mamente violenta), há os aspectos narrativos. Miller usa
com maestria os elementos da linguagem dos quadrinhos,
entre eles a elipse.

A elipse é um elemento essencial da narrativa qua-


drinística, em que parte da ação é suprimida e completada
pelo leitor. Mas Miller usa o recurso de maneira ainda
mais elaborada que a maioria dos quadrinistas, fazendo
com que aquilo que não é mostrado seja mais importante
que o que é mostrado.

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O artigo se debruça sobre a obra Cavaleiro das
Trevas, analisando como Frank Miller usou o recurso
da elipse de forma inovadora para construir sua obra
revolucionária.

2) A elipse

A elipse é elemento básico das histórias em quadri-


nhos. Segundo Gian Danton (2015, p. 46), “as histórias
em quadrinhos são a arte da elipse”.

Para entender a função e a importância da elipse


nos quadrinhos, é necessário entender como funciona
sua linguagem. Segundo Henrique Magalhães (2018),
(...) a História em Quadrinhos é a tentativa de representar
um movimento através de imagens estáticas. Mesmo quan-
do se usa uma única imagem pictórica, se esta imagem
procura representar uma ação se desenvolvendo no tem-
po, isto é uma História em Quadrinhos. Há vários recursos
usados na tentativa de representar o movimento através de
uma imagem estática, como a deformação de folhas e ga-
lhos de uma árvore sob ação do vento, a inclinação de um
corpo para indicar que está correndo, a alteração das do-
bras das roupas no sentido do deslocamento, etc. Nas HQs
caricaturais e semicaricaturais, principalmente, um recurso
muito usado é o das ‘linhas de ação’. Uma linha de ação é
um traço representado fisicamente no desenho indicando
a trajetória de um objeto. O espectador, conhecedor deste
código, sabe que a linha não tem existência física na paisa-
gem, apenas representa o movimento.

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Entretanto, embora seja possível representar alguns
movimentos com uma única imagem, na grande maioria
das vezes são necessárias várias imagens para a repre-
sentação de movimento. No cinema, isso é feito auto-
maticamente, através da captação de diversos registros
fotográficos que, passados em sequência, dão ao cérebro
a impressão de movimento. No cinema de animação, a
equipe de desenhistas produz uma sequência de imagens
que, passadas rapidamente, parecem fazer parte de um
único movimento. Os quadrinhos não têm esse recurso:
Na História em Quadrinhos, o autor decompõe uma cena
em um determinado número de imagens estáticas coloca-
das em sequência, mas não há um recurso tecnológico que
produza a ilusão de movimento. No entanto, o espectador,
sabendo desta limitação, aceita-a e tenta reconstituir men-
talmente o movimento sugerido pelas imagens disponíveis.
A codificação usada para este encadeamento de imagens é
a apresentação das imagens inequivocamente separadas,
normalmente dentro de quadros (GUIMARÃES, 2018).

Para Jordana Inácio De Almeida Prado (2018, p. 55)


Os quadrinhos são produzidos dentro de uma seleção de
imagens capazes de contar com eficiência uma história.
Estas figuras encadeadas possuem uma separação física
entre elas, conhecida como entrequadro ou sarjeta e uma
separação narrativa entre as cenas, comumente chamada
de corte. Ao definir uma sequência, o autor deixa de fora
uma série de outras imagens que existem naquele intervalo.

O desenhista de história em quadrinhos, portanto,


não apresenta todo o movimento, toda a ação, mas ins-

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tantes de ação. Há “pulos narrativos”, cortes, que são
completados pelo leitor.

Segundo Winfried Noth (2015, p. 97-98),


Apesar de cada painel representar um momento no tempo,
o que significa, por assim dizer, tempo congelado, o tempo
que decorre de painel para painel poder ser inferido a partir
das mudanças das posições das figuras de uma imagem
para a seguinte contra o seu plano de fundo.

O mesmo autor destaca que a sequência de imagens


pode inclusive simular o ritmo do movimento:
Apesar de cada painel ser, em princípio, imóvel, a mudança
de imagens de painel para painel transmite a impressão de
movimento, que pode ser lenta, “normal”, ou rápida, e na
medida em que o movimento torna o tempo visível, o tempo
se torna representado como movimento na sequência de
painéis. (NOTH, 2015, p. 99)

Para Will Eisner (1999, p. 26),


A habilidade de expressar tempo é decisiva para o sucesso
de uma narrativa visual. É essa dimensão da compreen-
são humana que nos torna capazes de reconhecer e com-
partilhar emocionalmente a surpresa, o humor, o terror e
todo o âmbito da experiência humana (...) No cerne do uso
sequencial de imagens com o intuito de expressar tempo
está a comunidade da sua percepção. Mas, para expressar
timing, que é o uso de elementos do tempo para a obtenção
de uma mensagem ou emoção específica, os quadrinhos
tornam-se elemento fundamental.

De acordo o autor, que também é quadrinista, en-


quanto no cinema quem assiste ao filme é um espectador,
nos quadrinhos, o leitor é um participante:

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O filme transcorre sem qualquer preocupação quanto à
capacidade ou habilidade de leitura de sua audiência, en-
quanto os quadrinhos precisam lidar com ambas. A menos
que os leitores de quadrinhos sejam capazes de reconhe-
cer as imagens e fornecer os eventos necessários que a
disposição das imagens propõe, nenhuma comunicação é
estabelecida. Por causa disso, o quadrinho é obrigado a
inventar imagens que se conectem à imaginação do leitor.
(EISNER, 2013, p. 76)

Esse processo mental de completar a ação que


ocorre entre um quadro e outro é chamada de elipse.
A elipse, na literatura, ocorre quando pulamos uma parte da
frase, deixando-a subentendida. Exemplo: “João gosta de
maçãs, Maria de laranjas”. A palavra “gostar” ficou suben-
tendida na segunda parte da frase. Isso, que é um recurso
ocasional na literatura, é a base da linguagem de quadri-
nhos”. (DANTON, 2015, p. 46)

Através da elipse e do uso inteligente da linguagem


dos quadrinhos é possível não só transmitir a ideia de
movimento, como imprimir um ritmo a esse movimento.
Sequências mais detalhadas, com mais quadros, dão a
impressão de um movimento mais lento, como uma câmera
lenta. Sequências mais abruptas, com cortes mais rápidos,
dão a impressão de algo que acontece repentinamente.

Segundo Eisner, o número e o tamanho dos quadros


influencia na visão de tempo do leitor. Assim, quadros
verticais e pequenos encurtam o tempo, enquanto quadros
horizontais alongam o tempo.

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Por exemplo, quando é necessário comprimir o tempo,
usa-se uma quantidade maior de quadrinhos. A ação en-
tão torna-se fragmentada, ao contrário da ação que ocorre
nos quadrinhos maiores, mais convencionais. Ao colocar os
quadrinhos mais próximos uns dos outros, lidamos com a
“marcha” do tempo no seu sentido mais estrito. Os forma-
tos dos quadrinhos também têm uma função. Numa página
onde é preciso transmitir uma regularidade de ação, dá-se
aos quadrinhos o formato de quadrados perfeitos. Onde
o toque do telefone requer tempo (e espaço) para evocar
suspense e ameaça, toda uma tira é ocupada pela ação
do toque, precedida por uma compreensão dos quadrinhos
menores (mais estreitos). (EISNER, 1999, p. 30)

Edgard Guimarães esclarece, no entanto, que a se-


quência dos quadrinhos, os cortes, têm não só a função
de transmitir a passagem do tempo:
Entre os elementos que compõem a Linguagem da História
em Quadrinhos, um dos mais ricos em possibilidades é o
Corte Narrativo, que permite ao autor manipular com criativi-
dade sua Narrativa. Existem três Cortes Narrativos básicos
já registrados pela literatura especializada, os Cortes Espa-
cial, Temporal e Temático. No entanto, existe um quarto tipo,
aqui denominado Corte Psicodélico, que introduz ou finaliza
uma Narrativa Psicodélica (GUIMARÃES, 2010, p. 44)

Jordana Inácio De Almeida Prado (2018, p. 55)


afirma que a leitura dos quadrinhos é uma leitura elíptica,
destacando a importância desse recurso na nona arte:
Nos quadrinhos, a estrutura narrativa elíptica dá-se pela
complementação intelectual do espectador dos espaços e
tempos omitidos que se fazem implícitos e latentes entre
uma vinheta e outra. Portanto, a impressão de continuidade
da história é permitida durante esta “leitura elíptica”.

21
Nobu Chinen (2011, p. 40) destaca que a elipse
contrapõe uma das principais críticas aos quadrinhos, a
de que o leitor não participa da leitura:
Há algumas décadas costumava-se dizer que os quadrinhos
eram leitura de gente preguiçosa, pois, diferentemente da li-
teratura, não exigiam que se imaginasse como seria o rosto
e o porte de um personagem ou o relevo de uma paisagem,
uma vez que tudo era mostrado nos desenhos. Esse tipo de
crítica, além de antiquada, era equivocada, pois uma das
riquezas dos gibis é justamente permitir que, entre um qua-
drinho e outro, a imaginação voe. Se numa vinheta vemos o
mocinho sair a galope e, na sequência, um outro quadrinho
o mostra prestes a desmontar o cavalo, todo o percurso, a
paisagem ensolarada, o ruído dos cascos do animal baten-
do no solo é criado pela mente do leitor (...) Se arte de con-
tar uma boa história em quadrinhos depende da habilidade
em selecionar as cenas certas, saber o que não mostrar
também é fundamental.

A elipse é, portanto, elemento essencial da lingua-


gem dos quadrinhos. O que não é mostrado, portanto,
acaba tendo tanto ou maior importância do que o que é
mostrado. No capítulo seguinte mostraremos como Frank
Miller usou esse recurso como um dos elementos mais
importantes da narrativa de Cavaleiro das Trevas.

3) Cavaleiro das Trevas

Batman - Cavaleiro das Trevas foi uma minissérie


em quatro capítulos publicada pela DC Comics em 1986
com o título original de The Dark Knight Returns.

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A publicação era resultado de um processo da editora
DC para roubar grandes estrelas da Marvel. A presidente
da editora, Jenette Kahn, queria a todo custo roubar Frank
Miller da concorrência. Para isso, ofereceu-lhe uma pro-
posta irrecusável: “Diga-me o que você realmente gostaria
de fazer. Não me importo se for algo fora do comum ou se
nunca foi feito antes. Seja lá o que for, tentaremos fazer
com que aconteça” (apud TUCKER, 2018, p. 156-157).

Miller propôs uma história que iria apresentar à


nova linha de graphic novels da Marvel, Ronin. A ideia
era apresentar algo muito diferente dos gibis americanos
mensais e descartáveis. A DC providenciou papel espe-
cial, impressão de cores pintadas, preço mais elevado e
o nome de Frank Miller na capa.

A resposta do público foi morna, mas Ronin abriu


caminho para que Miller fizesse Cavaleiro das Trevas.

A escolha do Batman era natural. Miller já havia se


mostrado exímio em histórias policiais na sua passagem
pelo personagem Demolidor. Mas Miller queria uma abor-
dagem totalmente revolucionária para a o personagem.
Miller, que tinha sido repetidamente assaltado em Nova
York, perguntou-se que tipo de mundo seria assustador o
bastante a ponto de obrigar alguém a se vestir com uma
roupa de morcego e lutar contra o crime. E então ele olhou
pela janela: “Se ele luta, é de uma forma que acaba com eles
a ponto de não conseguirem falar”. (TUCKER, 2018, p. 170)

23
A abordagem de Miller era inovadora não só pela
violência, mas também por mostrar o personagem velho,
cinquentão. Depois de anos sem atuar como herói, Bruce
Wayne volta às ruas motivado pela violência extrema que
tomou conta de Gotham.

Cavaleiro das Trevas era revolucionário também


pelo formato em que foi publicado, chamado prestige. A
DC apostava tanto na história que imprimiu 40% a mais
em relação aos pedidos antecipados. Em menos de 72
horas, a empresa foi obrigada a fazer uma reimpressão
para atender a demanda.

Segundo Luiz Santiago, a ambientação, que ecoava


o momento vivido pela humanidade na década de 1980,
foi fundamental para o sucesso da obra:
O Cavaleiro das Trevas, assim como a maravilhosa Watch-
men, representa claramente o tom social e político da Era
Reagan: o apocalipse nuclear, o medo do desconhecido e a
perspectiva constante de um ataque fatal. Gotham City vive
em um caos social que se assemelha muito a essa conjun-
tura histórica da época. A cidade é dominada pela Gangue
Mutante e passa por uma terrível onda de calor. Além disso,
vemos adicionado à história o elemento patriótico mais for-
te, o Superman, que age como emissário da Casa Branca e
já na reta final do quarto volume empreende uma luta “pelo
seu país” contra o Batman. (SANTIAGO, 2019)

JR Dib (2019) destaca os aspectos psicológicos


revolucionários da obra:

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Enquanto Watchmen de Alan Moore fala do lado humano de
cada um de nós e como a humanidade age em certas cir-
cunstâncias, o Cavaleiro das Trevas mostra o lado negro de
um herói que sempre foi o mais humano de todos. Ao mes-
mo tempo que adentramos a psiquê perturbada de Bruce
Wayne, percebemos a que ponto seus anos de treinamento
levaram seu corpo e mente, e como toda uma cidade pra-
ticamente se ajoelha perante esta quase lenda urbana que
patrulha as noites de Gotham.

Outro aspecto fundamental para o sucesso da obra


é a narrativa inovadora:
Tempo, espaço, ritmo e múltipla perspectiva narrativa.
Quando se fala da importância e soberania de O Cavaleiro
das Trevas frente a outras publicações do Batman, é pre-
ciso ter em mente esses quatro aspectos que estruturam
a obra. Os dois primeiros andam juntos, e formam a espi-
nha dorsal de toda a história: Bruce Wayne é um velho de
55 anos, amargurado e consumido por uma angústia que o
isola e o faz reviver tormentos do passado como a morte de
seus pais, por exemplo. (SANTIAGO, 2019)

Psicologia, ambientação e narrativa se uniram em


Cavaleiro das Trevas para compor uma das obras mais
importantes da história dos comics americanos.

4) A narrativa elíptica de Cavaleiro das Trevas

Em Cavaleiro das Trevas o que não é mostrado é


mais importante do que o que é mostrado. Essa que, é
como vimos, uma característica básica dos quadrinhos,
torna-se a pedra fundamental da obra de Frank Miller.
Para demonstrar isso, iremos analisar uma sequência

25
do primeiro capítulo da história: aquela que mostra Bruce
Wayne sucumbindo ao seu lado negro e deixando Batman
emergir. Para isso iremos usar a primeira edição da série,
publicada pela editora Abril em 1987.

A sequencia inicia na página 16, com Bruce Way-


ne assistindo televisão. O filme que está sendo exibido
é Zorro, estrelado por Tyrone Power. Isso o faz lembrar
da noite em que seus pais morreram. Os 16 quadros
alternam entre a sequência normal e a de flash back. Já
nessa primeira página é possível perceber a maestria
narrativa de Miller.

Os cinco primeiros quadros mostram Bruce Wayne


em close, olhando para a TV e bebendo vinho.

O sexto quadro mostra o garoto Wayne saindo do


cinema com seus pais.

O quadro seguinte volta para o Wayne atual, mas


sua expressão é assustada, como se tivesse visto um
fantasma. O texto diz: “Zorro, eu devia ter lido a programa-
ção... vou desligar imediatamente e... não. É só um filme.
Nada demais. Que mal há em ver um filme? Você gostou
tanto que pulava e dançava como um bobo, lembra-se?
Lembra daquela noite?”.

26
A cena da morte dos pais. Fonte: MILLER, 1987, p. 16.

27
O quadro com o flash back é mudo, fazendo com
que a expressão “lembra daquela noite” se encaixe no
quadro em que Bruce do presente parece assustado.
Assim, texto e desenho se complementam na impressão
que provocam no leitor. Os quadros seguintes mostram a
família andando pela rua: as imagens vão se aproximando
do garoto até o quadro em que ele olha para cima e vê
um morcego voando contra a luz da lua.

O quadro seguinte o mostra olhando no canto do


olho para uma mão, de seu pai, que pousa firme sobre
seu ombro. Ele se vira na direção da mão e só então olha
para a frente e percebe, do que o pai o está protegendo:
o último quadro é um plano detalhe de uma arma.

Na página seguinte vemos uma nova sequência de


16 quadros que mostram a mão largando o ombro do ga-
roto Wayne e se preparando para um soco. O assaltante
atira. O pai cai, o bandido atira na mãe e sua mão fica
presa no colar de pérolas, arrebentando-o.

O interessante aqui é o que não é mostrado. O leitor


nunca tem uma visão geral dos acontecimentos. Ele deve
decodificar as imagens para compreender que se trata
de um assalto que resulta na morte do pai e da mãe do
garoto. O pai, por exemplo, não é mostrado sendo morto:

28
A morte dos pais de Bruce Wayne não é mostrada. Fonte: MILLER, 1987,
p. 17.

29
o leitor decodifica isso ao visualizar sua mão, que inicial-
mente tenta se agarrar ao peito do filho e depois desaba.

Se por um lado Miller é inteligente o bastante para


não mostrar demais, deixando a interpretação para o leitor,
ele mostra muito quando necessário, detalhando alguns
acontecimentos. O tiro é dividido em vários quadros: o
bandido aponta a arma, um close de seu dedo no gatilho,
um plano ainda mais fechado do dedo apertando o gatilho.
A arma disparando, o cartucho saindo, a arma viajando
pelo espaço na direção do alvo. É uma sequência mos-
trada tão minunciosamente que dá a impressão de estar
acontecendo em câmera lenta. Esse tempo narrativo vai
se tornando cada vez mais lento até culminar na sequência
do colar de pérolas. Cada pérola vai se distanciando da
outra, como se fosse a vida a mãe se esvaindo do corpo.

Essa lentidão narrativa também aumenta a tensão,


exagerada ainda mais pelas sequências do presente, na
página 18, com o olhar assustado de Bruce Wayne e as
notícias em off, da TV: “As crianças foram vistas pela última
vez...” “Com dois jovens trajando o uniforme dos mutantes”.

Ainda na página 18, as imagens de Bruce Wayne


mexendo no controle, o olhar assustado ou rangendo os
dentes são entremeados por quadros apertados de apre-
sentadores relatando crimes brutais ocorridos na cidade.

30
Ao entremear a tragédia de Bruce Wayne com as
notícias sobre a violência em Gotham, Miller faz da tra-
gédia pessoal um reflexo da tragédia social.

Se, como diz Will Eisner, vinhetas largas alongam


o tempo, vinhetas pequenas e espremidas refletem um
tempo rápido. O uso das elipses aqui faz o que, no cine-
ma, seria feito por cortes rápidos.

Como resultado dessa montagem alucinante, Bat-


man emerge. Mas o leitor não vê isso. Mais uma vez,
Miller usa de uma grande habilidade narrativa ao esconder
mais que mostrar.

Na página 19, vemos Bruce Wayne tomando banho,


tentando fugir do fantasma do morcego, que insiste que
não há como detê-lo. A página termina com um quadro
silencioso, mostrando as pérolas separadas e o colar
prestes a arrebentar. É uma referência à morte da mãe,
mas também uma metáfora de algo está prestes a emergir.

Na página 20, Bruce Wayne sai do banho e ouve


recados na secretária eletrônica (De Harvey Dent – o
Duas caras, e Selina, a Mulher Gato). Esses quadros
são entremeados de quadros que mostram a janela e
um morcego se aproximando dela. Finalmente, no último

31
quadro, o morcego atravessa a janela, como se fosse o
próprio Homem-morcego vindo à luz.

O quadro é maior, ocupando praticamente um terço


da página. O objetivo aqui, é, não só estender o tempo,
mas, principalmente, criar impacto.

A página 21 começa com um quadro grande, de


ambientação, com uma onomatopeia em letras garrafais
de um trovão sobre a cidade escura. Em quadros televi-
sivos, um jornalista anuncia uma tempestade.

No quadro quatro vemos uma mulher caminhando


em meio à chuva e se lamentando por não ter levado
um guarda-chuva. Uma figura surge das sombras, um
membro da gangue mutante.

Na página 22 temos um exemplo do uso da elipse.


O primeiro quadro é apenas uma onomatopeia de vidro
se quebrando. No quadro seguinte, um plano fechado do
mutante, totalmente na sombra, sua mão armada com
a faca sendo puxada contra o vidro. Nova onomatopeia
de vidro quebrando. No terceiro quadro, uma mão puxa
o bandido. No quarto quadro, a senhora olha assustada,
enquanto, em primeiro plano vemos apenas os óculos
do bandido, parados no ar. No quadro seguinte, a mulher
olha para uma janela com o vidro quebrado.

32
Essa sequência exige uma participação ativa do
leitor para ser compreendida. Miller não mostra o Batman
ou suas ações, apenas o resultado delas. O autor utiliza
ainda as onomatopeias como forma de sugerir o que
aconteceu, sem mostrar.

O que o leitor decodifica: Batman quebrou a janela,


segurou a mão do mutante, impedindo que ele esfaqueas-
se a mulher e puxou-o para dentro da casa. A maior parte
dessas ações não são mostradas, mas apenas sugeridas.

Miller usa o recurso da elipse não apenas para levar


o leitor a participar da história, mas também para aumen-
tar o clima de mistério da mesma. Por toda a sequência,
paira a dúvida: quem está fazendo isso (embora o leitor
intua que se trata do Batman).

Na mesma página e na seguinte, temos uma se-


quência que se passa no interior de um taxi. Um cafetão
entra no carro com uma prostituta, mas não os vemos,
exceto pelo primeiro quadro, no qual eles estão nas som-
bras. Os quadros são focados no taxista, de modo que
tudo que está acontecendo precisa ser intuído pelo leitor
através do diálogo e de pistas visuais. Percebemos, por
exemplo, que o cafetão cortou o rosto da moça (“Agora
seu sorriso está mais largo, Joanne!”).

33
A cena do taxi. Fonte: MILLER, 1987, p. 23.

34
Na página 23 são observados 14 quadros pequenos,
mostrando pequenos momentos, como numa edição rápida.

No terceiro quadro dessa página, o taxista se sur-


preende com uma onomatopeia sobre sua cabeça e re-
clama com o cafetão do barulho, ao que o outro responde:
“Não fui eu, pô! A batida foi na capota!”.

No quadro seguinte, vemos apenas a sombra do


cafetão e sua mão do lado de fora da janela, apontando
para cima. O quadro seguinte é apenas uma onomatopeia
e, depois, o revólver caindo ao chão. Presume-se que,
de alguma forma, Batman arrancou a arma do cafetão,
mas isso é apenas intuído, nunca mostrado.

O mesmo ocorre nos quadros seguintes, com um pé


batendo a mão contra o vidro do carro, que se estilhaça
e o cafetão levando o que parece ser um soco ou chute
(vemos apenas sua mão em um esgar). Nos últimos
quadrinhos, sob o olhar assustado do taxista, uma mão
pega o dinheiro recebido do cafetão e o transforma em
picadinho. Não vemos quem fez isso, mas adivinhamos
que foi o Cavaleiro das Trevas.

Na página 24 inicia outra sequência. Carrie e uma


amiga (que viria a se tornar a Robin) entra numa loja de
jogos abandonada onde são atacadas por mutantes. A

35
página inicia com uma onomatopeia de trovão rasgada
por um relâmpago, que ocupa um terço da página. Ela
serve não só para dar o clima da situação de suspense
e perigo, mas como metáfora: o trovão, anunciando a
tempestade é como Batman, emergindo da escuridão.

Carrie tranquiliza a amiga, argumentando que está


muito claro para um ataque. Mais uma vez, Miller usa
o recurso de quadros pequenos, apertados, simulando
uma montagem rápida e comprimindo o tempo: as luzes
apagam. Carrie diz que voltaram, uma imagem nas trevas
responde: “Não! Foi um relâmpago! Chic, chic, chic!”.

Na página 25, o primeiro quadro mostra apenas uma


sombra contra a fachada da loja Arcade. Em seguida
uma mão, também na sombra, empunhando algo que
o leitor deduz serem batrangues (uma arma de arre-
messo no formato de morcego). Um dos mutantes tenta
esfaquear Carrie, mas para no meio do ato quando os
dardos fincam em seu braço. O ritmo rápido dos quadros
pequenos e apertados encontra eco nas onomatopeias:
“Thunk Thunk Thunk”

Nova sombra, enquanto a voz dos mutantes apare-


ce em off: ”Meu braço! Alguma coisa furou meu braço!”;
“Te esfria, meu! E tô maquinado! O que se mexer eu...

36
hã”. Segue-se um ângulo fechado, de mãos quebrando
o braço do mutante.

Depois a imagem pula para o letreiro árcade, pri-


meiro apagado e depois acendendo. Há aqui toda uma
série de imagens que não são mostradas: mal vemos os
mutantes, vemos sombras que se deduz serem o Bat-
man e não o vemos quebrando o braço do mutante (e,
na página seguinte, eletrocutando-o).

Mais uma vez, o que não é mostrado é mais impor-


tante que o que é visto.

Segue-se, nas páginas 26 e 27, uma sequência


rápida dos apresentadores de TV relatando aparições de
um uma figura misteriosa com aspecto de morcego. As
notícias são entremeadas de uma perseguição policial a
assaltantes de um banco.

Na página 28, temos um quadro amplo, mostrando


Batman em queda sobre os assaltantes. É uma imagem
grandiosa, vista em plano inferior, dando ao personagem
uma imagem de poder. Essa splah page é usada como
contraste ao que veio antes: se as páginas anteriores
mostravam quadros pequenos, a maioria na sombra, que
pouco revelavam, esse mostra o Batman pleno, totalmente
iluminado. Só a partir daí veremos de fato o cavaleiro das

37
Quando Batman finalmente é revelado, ele aparece em uma splash page.
Fonte: MILLER, 1987, p. 28.

38
trevas agindo. É o contraste entre a sequência anterior de
quadros pequenos elípticos, que pouco revelavam que
torna essa splash page tão marcante.

O texto, em primeira pessoa, reforça essa impres-


são: “Onde está a dor? Meus músculos deveriam estar
massacrados, exaustos... e eu, incapaz de me mover. Se
eu fosse mais velho, na certa estaria assim. Mas hoje eu
voltei a ter trina anos... não, vinte. A chuva em meu peito
é um batismo. Eu nasci outra vez”.

5) Conclusão

Em Cavaleiro das Trevas Frank Miller usa com


maestria o recurso da elipse, em especial na sequência
analisada. Ao esconder mais do que mostrar, o artista
cria um clima de suspense que desemboca na página
de splash page, na qual vemos finalmente o Cavaleiro
das Trevas surgindo.

Embora seja um elemento básico dos quadrinhos,


ainda são poucos os autores que abordam como esse
elemento é usado na prática. Dessa forma, o presente
artigo não só vem para contribuir nessa abordagem, mas
principalmente lançar novas luzes sobre o que vem a ser
a elipse nos quadrinhos.

39
Referências bibliográficas

DANTON, Gian. Como escrever quadrinhos. João


Pessoa: Marca de Fantasia, 2015.
EISNER, Will. Narrativas gráficas. São Paulo: Devir,
2013.
EISNER, Will. Quadrinhos e arte sequencial. São
Paulo: Martins Fontes, 1999.
GUIMARÃES, Edgard. Linguagem e metalinguagem na
história em quadrinhos http://www.portcom.intercom.
org.br/pdfs/837ee4a468b4e1f03fc058ea804eaec3.
pdf. Acesso em 18 out. 2018.
GUIMARÃES, Edgard. Estudos sobre História em
Quadrinhos.- João Pessoa: Marca de Fantasia,2010.
J.R. DIB. CAVALEIRO DAS TREVAS: A OBRA PRIMA
DE FRANK MILLER. Disponível em: https://ambrosia.
com.br/quadrinhos/cavaleiro-das-trevas-a-obra-prima-
-de-frank-miller/. Acesso em: 13 mar. 2019.
Miller, Frank. Batman - o cavaleiro das trevas. São
Paulo: Abril, 1987. 4 v.
NOTH, Winfred. Tempo corporificado como espaço em
narrativas gráficas: um estudo de semiótica peirceana
aplicada. In: VERGUEIRO, Waldomiro; SANTOS, Ro-
berto Elísio. A linguagem dos quadrinhos. São Pau-
lo: Criativo, 2015.
PRADO, Jordana Inácio de Almeida. HQtrônicas e
realidade aumentada (RA): novas potencialidades

40
narrativas. Dissertação (Mestrado) apresentada no
programa de Artes Visuais da Universidade Federal
de Goiás. Disponível em: https://repositorio.bc.ufg.br/
tede/bitstream/tde/2797/1/HQTRONICAS%20E%20
REALIDADE%20AUMENTADA%20parte%201.pdf.
Acesso em: 12 abr. 2019
SANTIAGO, Luiz. Crítica | Batman – O Cavaleiro das
Trevas. Disponível em: https://www.planocritico.com/
critica-batman-o-cavaleiro-das-trevas-2/. Acesso em:
13 mar. 2019.
TUCKER, Reed. Pancadaria: por dentro do épico con-
flito Marvel vs Dc. Rio de Janeiro: Fábrica 231, 2018.

Ivan Carlo Andrade de Oliveira

Doutor em Arte e Cultura Visual. Professor da Universidade


Federal do Amapá.

41
SIMULACRO E HIPER-REALIDADE EM “OS
CAÇADORES DE SONHOS”, DE NEIL GAIMAN

Rafael Senra Coelho

Resumo

O livro Os Caçadores de Sonhos, escrito por Neil Gaiman


e ilustrado por Yoshitaka Amano, foi alvo de certa polêmica
na ocasião de seu lançamento, devido a seu posfácio inu-
sitado. Ali, Gaiman mencionava a inspiração em um antigo
conto japonês, dado que gerou interesse por parte de pes-
quisadores e críticos, forçando o autor britânico a desmentir
posteriormente estas informações. O episódio é um claro
exemplo do que Baudrillard chama de hiper-realidade. Em
nosso estudo, pretendemos investigar essa história “den-
tro de outra história”, ou seja, a tentativa de simulacro que
Gaiman enxertou no posfácio de seu conto, bem como sua
repercussão e as implicações por trás desse acontecimento.

Palavras-chave: Hiper-realidade, Simulacro, Ficcionaliza-


ção.

O livro The Dream Hunters (publicado no Brasil


como Os Caçadores de Sonhos) nasceu de um convite
que Neil Gaiman recebeu da editora do selo Vertigo (per-
tencente à DC Comics), Karen Berger. Como a série The

42
Sandman, idealizada por Gaiman, alcançava a marca de
dez anos de existência, Berger sugeriu a possibilidade
de uma publicação comemorativa. O aceite do autor foi
interpretado pelo próprio como “um presente para Karen
Berger” (WAGNER, GOLDEN, BISSETTE, 2011, p. 205).

Entre a decisão de Gaiman de fazer a obra e o iní-


cio de sua execução, podemos elencar pelo menos dois
acontecimentos que influenciaram na forma e na concep-
ção de Os Caçadores de Sonhos. Um deles envolve a
versão em inglês da obra Princesa Mononoke, de Hayao
Miyazaki, cujos diálogos adaptados ficaram a cargo de
Gaiman. É possível considerarmos que o contato do autor
britânico com essa obra (que, por causa do esforço de
adaptação, foi muito além de uma mera leitura) pode ter
certo grau de responsabilidade na hora de iniciar a obra
comemorativa de The Sandman.

O outro acontecimento teve um caráter mais aci-


dental, apesar de dialogar diretamente com os esforços
de Gaiman em Princesa Mononoke (sobretudo por terem
acontecido em um período de tempo muito próximo da
adaptação da obra japonesa). Tem a ver com o momento
em que Gaiman se vê diante de uma representação de seu
personagem Morpheus, cuja abordagem era bem diferente
de qualquer coisa escrita nos dez anos de The Sandman.

43
Mas SANDMAN estava encerrada, e eu tinha outras histó-
rias para contar, e na época não pensei mais naquilo.

Vários meses depois, a editora Jenny Lee, da Vertigo, foi a


principal responsável por persuadir o renomado artista ja-
ponês Yoshitaka Amano a fazer uma pintura de Sonho dos
Perpétuos para dar início às festividades de comemoração
do Décimo Aniversário da primeira edição de SANDMAN.

Achei a pintura fascinante. Adorava a perspectiva do per-


sonagem: era Morpheus, mas um Morpheus que eu nunca
havia escrito.

Pouco depois de eu ver o pôster, Karen Berger, que na dé-


cada anterior fora minha minha editora em Sandman, telefo-
nou e perguntou se eu estaria disposto a escrever uma his-
tória do Sandman como projeto para o décimo aniversário.

Eu perguntei se ela estaria disposta a me deixar recon-


tar um antigo conto japonês a meu modo, e ela disse sim
(GAIMAN In: GAIMAN, AMANO, 2014, p. 130).

Da afirmação de Gaiman, depreende-se que a arte


de Yoshitaka Amano foi um fator responsável para sua
vontade de trabalhar com uma temática narrativa am-
bientada no universo japonês. Além disso, a presença
de Amano no projeto também influenciou o seu formato.
Todo o material de The Sandman publicado até então fora
formatado e pensado na mídia dos quadrinhos, o que não
aconteceria com Os Caçadores de Sonhos. “Pergunta-
mos ao Sr. Amano se ele teria interesse em desenhar
o projeto. Ele disse que sim, com apenas uma reserva:
embora ame quadrinhos, ele não os desenha. Ficaria
encantado, porém, em ilustrar” (GAIMAN In: GAIMAN,
AMANO, 2014, p. 130).

44
Para os fãs que acompanhavam muito de perto a
carreira de Neil Gaiman, certamente chamava a atenção
que aquela obra comemorativa fosse publicada em prosa
(na verdade, um conto longo que recebeu um tratamento
de romance). Antes de Os Caçadores de Sonhos, a única
obra de Gaiman em prosa tinha sido Neverwhere (no Bra-
sil, Lugar Nenhum) (GAIMAN 1997). É preciso considerar,
porém, que o próprio autor rejeita essa publicação como
uma obra sua, pelo fato de que a obra em livro envolve
uma adaptação da série televisiva homônima, roteirizada
também por Gaiman. Ou seja, Lugar Nenhum é encarada
por ele como uma espécie de adaptação. E foi apenas
em 2001 – quatro anos após Os Caçadores de Sonhos,
portanto – que o britânico publicaria American Gods (no
Brasil, Deuses Americanos) (GAIMAN, 2001), veiculada
por ele como seu primeiro romance de fato.

Assim, Os Caçadores de Sonhos não deixa de


assumir certo pioneirismo na carreira de um autor que,
mesmo prestigiado, tinha se enveredado até então quase
que exclusivamente no universo dos quadrinhos (e do jor-
nalismo, se considerarmos sua carreira prévia). O estopim
para esse formato, como discutimos, veio da recusa de
Amano em produzir algo na mídia em quadrinhos, sendo
que Gaiman não considerava elaborar essa obra sem as
ilustrações do artista japonês.

45
Foi depois de Deuses Americanos que Neil Gaiman
sedimentou seu nome como um autor marcante no campo
da literatura. Ou seja, Os Caçadores de Sonhos não se
beneficiou do prestígio posteriormente conquistado. E,
diferente de Lugar Nenhum, Os Caçadores de Sonhos
é uma obra vinculada a uma editora de quadrinhos (DC
Comics) e a uma franquia como The Sandman, que,
mesmo sendo bem sucedida, está, para o bem e para o
mal, inserida em um nicho de consumo de quadrinhos.

Não iremos nos aprofundar aqui nas discussões


que pretendem analisar a recepção crítica e acadêmica
dos quadrinhos em detrimento da literatura. Porém, ainda
que brevemente, parece pertinente mencionar que alguns
aspectos podem trazer maior prestígio à recepção de uma
obra em prosa. Afinal, o status do que é considerado ou
não como “literatura” ou “alta literatura” oscila bastante
ao longo do tempo.
Saiba, por exemplo, que um professor de literatura inglesa
contemporâneo de Shakespeare (1564-1616) ficaria espan-
tado se lhe dissessem que Shakespeare era literatura.

– Impossible! Never! Aquele sujeitinho que escreve peças


cheias de bêbados e desordeiros, e que é aplaudido por
plateias fedidas e barulhentas?

Alguém hoje duvida que Shakespeare seja literatura com


ele maiúsculo e tudo? Aprenda então o vivíssimo leitor que
ser ou não ser literatura é assunto que se altera ao longo do
tempo e desperta paixões! (LAJOLO, 2001, p. 13).

46
Assim como aconteceu dentro do campo literário,
em que diversos autores e gêneros viram seus status se
modificar ao longo de décadas, o gênero dos quadrinhos
já passou por períodos de demérito e de revalorização
por parte da crítica e da academia. Nesse sentido, Neil
Gaiman foi um dos autores fundamentais para o reco-
nhecimento do potencial artístico dos quadrinhos. Ele
adaptou Shakespeare dentro de sua série The Sand-
man, mais especificamente na edição de número 19,
com uma versão de A Midsummer Night’s Dream. Essa
específica história recebeu o World Fantasy Award em
1991, sendo a primeira e (até agora) única vez em que
uma história em quadrinhos venceu o referido prêmio
(DUNCAN, SMITH, 2013, p. 298).

A releitura de Shakespeare significou uma das pri-


meiras tentativas de Gaiman em trabalhar com um recurso
que se tornaria sua marca registrada autoral: a intertex-
tualidade. Nas teorias de autoras como Linda Hutcheon
e Julia Kristeva, entendemos a intertextualidade a partir
de diversas possibilidades que envolvem releituras, sub-
versões e até apropriações de textos. As formas mais
conhecidas de intertextualidade são as modalidades da
paródia, citação, paráfrase, pastiche, alusão, etc. Vale
mencionar que tais recursos são bem presentes nas
obras de autores situados no pós-modernismo, pois, como

47
afirma Tomás T. da Silva, “o pós-modernismo privilegia
o pastiche, a colagem, a paródia, a ironia (...), a mistura,
o hibridismo e a mestiçagem - de culturas, de estilos
e de modos de vida” (SILVA, 1999, p. 114). Importante
mencionar que Neil Gaiman é situado como um dos dez
maiores escritores pós-modernos vivos pelo Dictionary of
Literary Biography (uma publicação que já contabiliza mais
de 300 volumes, publicada e constantemente atualizada
pela editora americana Gale) (2016).

Com a adaptação de Shakespeare, Gaiman foi tra-


tado pela crítica (seja aquela especializada no nicho de
quadrinhos e cultura pop, ou mesmo por parte da crítica
literária) como um autor mais sofisticado dentro do campo
dos quadrinhos, justamente por conseguir trabalhar com
destreza a partir de referências literárias. A ironia por trás
dessa reviravolta é que, como constatamos na citação
de Lajolo reproduzida acima, Shakespeare era visto em
sua época como um autor popular – com toda a carga
pejorativa que isso implica.

No caso de Os Caçadores de Sonhos, ao se arriscar


no território da prosa, Gaiman adotou uma estratégia se-
melhante à da adaptação de Midsummer Night’s Dream:
alegar que a obra apresentada era uma releitura de material
antigo. A diferença é que, se Shakespeare é amplamente

48
conhecido como um dos pilares da literatura britânica e
até mesmo ocidental, já a inspiração para Os Caçadores
de Sonhos teria vindo de um obscuro conto oriental.

Pelo menos foi este o argumento apresentado pelo


autor no posfácio que ele apresentou na versão original
em prosa, quando alegou que a trama de Os Caçadores
de Sonhos era basicamente uma versão de um conto
japonês intitulado “A raposa, o monge e o mikado no so-
nhar das noites”. Ele teria encontrado este conto em uma
obra chamada Contos de Fada do Japão Antigo, supos-
tamente compilada por um tal Reverendo B.W. Ashton.
“Fiquei atônito com as semelhanças – sendo algumas
delas perturbadoras – entre o conto japonês e minha série
SANDMAN” (GAIMAN. In: GAIMAN, AMANO, 2014, p.130).

Longe de ser uma rápida e fugaz citação dentro do


posfácio, o fato narrado acima mereceu várias linhas de
Gaiman, que detalhou como o contato com o suposto
conto foi crucial para o desenvolvimento da história contida
na edição comemorativa de The Sandman:
Tentei ampliar, expandir e recontar a história da melhor for-
ma que me foi possível, tomando as mínimas liberdades
possíveis. A maioria dos elementos da antiga história ti-
nham tamanha proximidade de seus análogos em SAND-
MAN que eu não ousaria inseri-las caso já não estivessem
lá: o Itsumade (que gritou “até quando?” nos ramos de uma
árvore no Palácio Imperial) é praticamente um grifo (e qua-
se tornou-se propriamente grifo na maravilhosa ilustração
de Amano-san); enquanto os homens que o monge viu a

49
caminho da morada do Rei só podiam ser ninguém menos
que Cain e Abel; mas os folclorista terão que me perdoar
quando, com um meneio de minha caneta e do meu cora-
ção, transformei o pássaro Hototogisu de Ashton em corvo
(GAIMAN. In: GAIMAN, AMANO, 2014, p.130).

Na narrativa que Gaiman elaborou em seu posfá-


cio, ele não apenas apresenta claramente a intenção de
adaptar o conto japonês, mas também inclui os assistentes
do ilustrador Yoshitaka Amano como responsáveis por
pesquisar e encontrar versões mais obscuras deste conto
para Gaiman trabalhar:
Ao invés de recontar a história de “A Raposa, o Monge e o
Mikado do Sonhar das Noites” em quadrinhos, eu a recon-
taria prolongadamente em prosa.

Perguntei ao Sr. Amano e a seus excelsos tenentes, Ann


Yamamoto e Maya Shioya, se eles conseguiriam encontrar
outras versões desta história em tradução para o inglês.

A versão que encontraram para mim (em fotocópia) pro-


vém das coleções de contos japoneses de Y.T. Ozaki: uma
versão estranha, na qual o Rei dos Sonhos é uma figura
sombria, pouco mencionada, que aparenta ser uma espécie
de dragão, e no qual o personagem central é o Onmyoji, o
Mestre do Yin-Yang. (Tenho grande dívida com esta obra
principalmente em relação ao Capítulo Três e partes do
capítulo final.) Eles também localizaram um texto budista
que faz referência a este conto, no qual o velho na estrada
é identificado explicitamente como sendo Binzuru Harada
(GAIMAN. In: GAIMAN, AMANO, 2014, p.130).

Gaiman ilustra a história do posfácio com diversos


detalhes, que vão desde a menção de pessoas reais
(como os assistentes de Yoshitaka Amano, Ann Yama-
moto e Maya Shioya, citados nominalmente), passando

50
por descrições relativamente minuciosas de detalhes da
leitura (como quando ele afirma: “Tenho grande dívida
com esta obra principalmente em relação ao Capítulo
Três e partes do capítulo final” (GAIMAN. In: GAIMAN,
AMANO, 2014, p.130).

Chama a atenção também o fato de que, no suposto


conto japonês, há uma versão do próprio personagem
Morpheus/Sandman, que é o protagonista da franquia
The Sandman. A princípio, isso não seria absurdo se
considerarmos que Gaiman se inspirou na lenda do Ho-
mem de Areia, cujos primeiros registros seriam do século
XIX, encontrados mais precisamente em um conto do
dinamarquês Hans Christian Andersen e em outro do
alemão E. T. A. Hoffman (MORAIS, 2011, p. 2). A própria
nomenclatura do personagem varia justamente pelo fato
de que existem versões de Morpheus em diversas cultu-
ras e diversas épocas. Além do “Homem de Areia” dos
contos citados acima, ele é conhecido como Oneirante,
e há até uma versão brasileira do personagem, chamada
de João Pestana (HAYEK, 2015, p. 1). Além do conto já
citado de Andersen, chamado Ole-Luk-Oie, o personagem
Morfeus também faz parte da mitologia grega, sendo
citado, por exemplo, na obra Metamorfoses, de Ovídio
(HAYEK, 2015, p. 4).

51
Através da teoria dos arquétipos proposta pelo psi-
canalista suíço Carl Gustav Jung, podemos compreender
como é que diferentes culturas podem apresentar perso-
nagens tão semelhantes entre si em termos de forma ou
função narrativa. Para ele, os arquétipos seriam manifes-
tações de imagens simbólicas, que refletiriam instintos
e impulsos fisiológicos comuns aos seres humanos. As
diferenças mais superficiais entre estes personagens
se deveriam a detalhes das culturas nas quais eles se
manifestam, mas, por derivarem de instintos universais
da espécie humana, eles teriam funções e papéis seme-
lhantes em suas diferentes “encarnações”:
É preciso que eu esclareça, aqui, a relação entre instinto
e arquétipo. Chamamos instinto aos impulsos fisiológicos
percebidos pelos sentidos. Mas, ao mesmo tempo, estes
instintos podem também manifestar-se como fantasias
e revelar, muitas vezes, a sua presença apenas através
de imagens simbólicas. São a estas manifestações que
chamo arquétipos. A sua origem não é conhecida; e eles se
repetem em qualquer época e em qualquer lugar do mundo
— mesmo onde não é possível explicar a sua transmissão
por descendência direta ou por «fecundações cruzadas»
resultantes da migração (JUNG, 1983, p. 69).

Voltando ao posfácio, após comparar elementos de


Sandman com elementos presentes no conto original,
Gaiman continua a descrever com detalhes sua experiên-
cia com o antigo livro. Essa riqueza descritiva acaba por
alimentar ainda mais o simulacro gerado por sua versão
dos bastidores de criação de Os Caçadores de Sonhos:

52
Quanto ao restante, minha dívida está com o divino reve-
rendo. Escrevo neste momento com meu Contos de Fada
do Japão Antigo na mesa à frente. A encadernação em
couro está lascada e descolorida, as páginas têm rasgos,
manchas de água e outras. Senti uma estranha honra ao
perceber que, apesar das condições do livro, ainda assim
fui a primeira pessoa a lê-lo: muitas das páginas ainda esta-
vam sem o devido corte. De início eu as cortei com um abri-
dor de cartas, mas depois percebi que se separavam mais
facilmente se eu puxasse apenas com os dedos (GAIMAN.
In: GAIMAN, AMANO, 2014, p.130).

O detalhamento do processo de adaptação pros-


segue, com a menção de mais nomes de pessoas reais,
sobretudo de artistas e produtoras respeitadas na in-
dústria do entretenimento (como o Studio Ghibli e a Tem
Productions). Tudo isso reforçava ainda mais o caráter
de verossimilhança do relato:
Na minha tentativa de recontar a história cometi alguns er-
ros (e, em muitos casos, descobri que havia harmonizado
vários dos erros de Ashton). Steve Alpert, do Studio Ghib-
li, fez a gentileza de captar e corrigir alguns destes, assim
como o pessoal da Ten Productions. Outros erros com cer-
teza permanecem no texto, a serem descoberto pelo olhar
afiado (GAIMAN. In: GAIMAN, AMANO, 2014, p.130).

O fato é que estas informações não passaram incó-


lumes nem para os leitores e muito menos para os críticos
da obra de Gaiman. Na verdade, a recepção da obra foi,
de certa maneira, influenciada por tais declarações. Afi-
nal, a obra que ele apresentava não poderia ser acusada
de ser uma mera peça da chamada “cultura de massa”,
ou seja, uma história de consumo rápido e despreten-

53
sioso. O livro Os Caçadores de Sonhos passou a ser
encarado pelos leitores e críticos como uma adaptação
de uma obra literária perdida. O procedimento prometia
ser similar ao que Gaiman realizou quando apresentou
sua releitura de Shakespeare, apesar de algumas dife-
renças significativas: em primeiro lugar, Gaiman agora
se valia do formato do conto, adaptando literariamente
uma peça originalmente apresentada também no campo
literário. Outro fator importante era o fato de que o autor
provavelmente teria feito pesquisas profundas sobre nar-
rativas ancestrais do oriente, uma vez que nem mesmo
especialistas na literatura japonesa antiga conheciam o
referido conto que inspirara Gaiman.

Nos recentes fóruns de discussão da internet da


época, pesquisadores e leitores mais detalhistas discu-
tiam obsessivamente sobre Os Caçadores de Sonhos,
se esforçando para descobrir como encontrar a rara
obra Contos de Fada do Japão Antigo. Baseando-se
na credibilidade de Gaiman como um notável e elogiado
autor contemporâneo, os depoimentos de vários inter-
nautas mostram que eles se empenharam na tarefa de
“arqueologia literária”, ainda que nenhum deles tenha
conseguido encontrar pistas minimamente oportunas a
respeito de sua pesquisa.

54
Percebendo o imbróglio que se formara em torno
de sua obra, Gaiman acabou por desmentir a existência
do suposto conto japonês. Ele fez isso no prefácio de
uma versão em quadrinhos de Os Caçadores de Sonhos,
feita por seu antigo colaborador P. Craig Russell. Fazen-
do um mea culpa de sua atitude, Gaiman se retratou e
confessou a invenção por trás da história de uma “lenda
japonesa” que o teria inspirado:
Embora eu quisesse muitas coisas de Os Caçadores de So-
nhos, não era minha intenção deixar acadêmicos e amantes
da literatura aborrecidos, desconcertados nem confusos.

(...) Escrevi um posfácio, que deveria encher várias páginas,


com um relato perfeitamente espúrio da história do conto
que eu acabara de escrever. Não esperava que soasse con-
vincente: era uma história do Sandman, afinal de contas –
ninguém acreditaria que Caim e Abel, ou as Três Bruxas,
ou mesmo o próprio Mestre dos Sonhos, seriam descritos
numa história japonesa escrita centenas de anos atrás.

(...) O tempo passou. Sandman: Os Caçadores de Sonhos


foi publicada e eu descobri que se você coloca coisas em
letrinhas minúsculas no fim de um livro, as pessoas acredi-
tam, sem questionamento, pois a primeira de uma torrente
de indagações surgiu de pessoas e de universidade que se
diziam incapazes de achar os textos de referência nos quais
eu disse que havia me baseado. Expliquei a eles que tinha
inventado todos, e pedi desculpas (GAIMAN In: GAIMAN,
RUSSELL, 2011, p. 129).

Esse episódio da carreira de Neil Gaiman pode ser


perfeitamente enquadrado no que o filósofo Jean Bau-
drillard chamava de hyper-realité (ou hiper-realidade), em
que a modelização de um dado objeto passa a suplantar
o próprio objeto de certa maneira. O mundo passa a ser

55
representado por sua própria simulação, e até mesmo
por uma espécie de recriação deste mesmo mundo. Para
André Lemos, as novas tecnologias seriam um dos supor-
tes que permitiram até impulsionar esse tipo de recurso:
As novas formas de criação de imagens são, de agora em
diante, um meio mais eficaz de tomar o mundo e de fazê-lo
funcionar sobre a forma de um modelo (o simulacro) con-
cebido sob a forma numérica. O mundo torna-se, com as
imagens de síntese, um simulacro fabricado a partir de in-
formações binárias, transformadas e traduzidas por compu-
tadores. Com as imagens digitais, o referencial desaparece
por simulação matemática (...) As novas imagens (digitais)
não mais representam o mundo; elas digitalizam o real. (...)

Com a digitalização do mundo, a imagem age como um


modelo dinâmico de construção do conhecimento sobre o
real (e de construção de um novo “real”). Ela não é mais
um epifenômeno. É instrumento de compreensão e de mo-
delização do real. O modelo digital é assim, mais real que
o real, fazendo desse a vítima de um crime quase perfeito.
(LEMOS, 2000, p. 232).

De maneira despretensiosa e supostamente não-


-intencional, Gaiman fez circular uma versão ficcional
dos bastidores de sua obra, e, dado o detalhismo de seu
relato, acabou por tornar crível uma ideia que, no fim das
contas, revelou-se falsa. Ele alegara que sua finalidade
com a brincadeira do posfácio era a de apresentar uma
ironia que deveria ter sido detectada facilmente pelos
leitores como algo inverossímil – contudo, esta que seria
sua real intenção acabou sendo lograda, levando-o a ter
que se retratar para conter os efeitos de sua ação.

56
Podemos considerar que esse apelo do simulacro é
algo também presente na própria ficção de Neil Gaiman,
sendo um dos elementos que ele explora constantemen-
te para criar o aspecto fantástico de suas obras. Não é
incomum que o escritor apresente protagonistas que se
veem inseridos em um contexto aparentemente real (ou
seja, representado com elementos e símbolos muito fa-
miliares para o que a maioria dos leitores entende como
sendo “reais”), e que subitamente se encontram diante de
um outro mundo. Ou, melhor dizendo, de uma “realidade
expandida”, uma vez que elementos mágicos acabam
sendo apresentados como sendo também reais.
Louis Vax disse em um texto que o que marca o sobrenatu-
ral contemporâneo é a experiência de homens “como nós”,
que lidam com situações inexplicáveis. Mas já sabemos que
os seres de Gaiman são “como nós” apenas no início de
sua trajetória, logo descobrindo algo que os diferenciam,
seja por intermédio das próprias personagens (Shadow, Tim
Hunter), seja pela revelação de sua natureza desconheci-
da (Fat Charlie, Adam Young). Sendo assim, a “vacilação”
todoroviana já não é mais tão importante, pois o estranho/
maravilhoso aqui não exclui o real, sendo antes o centro
irradiador dele (SANTOS, 2016, p.16-17).

Esta constante da dualidade “real/maravilhoso” é


notada em várias de suas obras. Em Deuses America-
nos, por exemplo, Shadow é uma pessoa comum em um
mundo aparentemente ordinário, quando repentinamente
se vê diante de personagens de características divinas, e,
por fim, o próprio Shadow se percebe como pertencente

57
a essa linhagem de deuses. O mesmo acontece com Tim
Hunter em Os Livros da Magia, ou com Tristran Thorn
em Stardust, com Fat Charlie em Os Filhos de Anansi,
dentre outras obras do autor britânico.

Conclusão

A despeito de diversos aspectos envolvendo a


obra Os Caçadores de Sonhos em si, encontramos no
posfácio do autor Neil Gaiman diversos elementos que
permitem pensar no seu depoimento como um exemplar
do conceito de hiper-realidade, em que Gaiman delibe-
radamente difunde histórias que, longe de serem meras
curiosidades, acabaram por influenciar drasticamente na
recepção da obra em questão.

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Rafael Senra Coelho


Doutor em Letras – Professor Adjunto da Universidade
Federal do Amapá, Macapá, Brasil. Email: rararafaels@
yahoo.com.br.

60
61
REALIDADE E FICÇÃO EM RONIN DE FRANK
MILLER

Débora Aymoré

Publicada pela DC Comics entre 1983 e 1984, a obra “Ro-


nin”, escrita e desenhada por Frank Miller e colorida por
Lynn Varley, apresenta um roteiro complexo e cativante.
Nela, Billy Challas (o operador de Virgo, uma inteligência
artificial com estrutura biotecnológica) passa por proces-
so de autodefinição que nos deixa perplexos: será que ele
apenas fantasia em sua mente ou passa pelas experiências
narradas, textual e visualmente, com seu corpo? Billy con-
vence-se aos poucos de que, no passado, fora um samurai
que perdeu o seu senhor (lorde Osaki), caindo em desgra-
ça; e que, além disso, tem que perseguir e matar o demônio
Agat. Billy, na realidade futurística, possui limitações físicas,
pois nasceu sem os braços e as pernas. O estopim da mu-
dança parece ser o acesso, via sonho, fantasia ou por con-
tato com programas antigos, ao contexto do Japão. Nisto, o
limite entre ficção e realidade torna-se cada vez mais tênue,
ao ponto de que Billy se torna uma representação fidedigna
do ciborgue, definido por Donna Haraway pela fusão entre
o natural e o artificial (HARAWAY, 2016 [1985]). Hibridizan-
do a realidade e a ficção, o ciborgue é uma metáfora pos-
sível para o ser humano contemporâneo que interage cada
vez mais intensamente com a tecnologia. Outro ponto a ser
destacado é que, por suas limitações físicas, Billy seria re-
presentativo da ideia de um “ciborgue midiatizado” (LIMA,
2016), pois utiliza a tecnologia para constituir-se material e

62
simbolicamente. Desse modo, Billy desenvolve sua subje-
tividade e sua interação com os outros por intermédio da
máquina, processo este que culmina, no entanto, em sua
autodeterminação.

Palavras-chave: ciborgue midiatizado. Ronin. autodetermi-


nação.

Introdução

A distinção entre o estado de sono e de vigília nem


sempre é nítida. René Descartes (1596 - 1650), filósofo,
físico e matemático francês da passagem do século XVI
ao XVII, reflete sobre o engano que, em determinadas
situações, o levaram a supor-se acordado enquanto dor-
mia. A dúvida torna-se intensa, ao ponto de Descartes
se evadir da questão afirmando que “(...) não há indícios
conclusivos nem marcas suficientemente certas com base
nos quais se possa distinguir nitidamente a vigília do sono
que fico completamente pasmo com isso” (DESCARTES,
2016 [1641], p. 33). Na obra Meditações metafísicas,
Descartes busca o fundamento do conhecimento seguro
utilizando-se, para tanto, do método da dúvida. E, assim,
qualquer pensamento ou reflexão que suscite dúvidas,
não fornece a base do conhecimento buscada.

63
Porém, não só as meditações de Descartes nos
colocam dúvidas sobre a capacidade de distinção entre
momentos em que sonhamos e momentos em que esta-
mos despertos. Em nossa sociedade moderna ocidental
podemos nos questionar sobre a própria função do sonhar.
Supondo que a razão é considerada hierarquicamente
acima ou, ao menos, mais valorizada que a imaginação,
nossas sensações, nossas emoções e nossos sentimen-
tos estão encerrados nos estritos limites da subjetividade.
As reflexões de Descartes também contribuem para que
a razão seja destacada das demais funções da mente,
uma vez que, para ele:
Resulta que, após ter pensado bem sobre isso e ter exami-
nado cuidadosamente todas as coisas, é necessário, enfim,
concluir e sustentar, invariavelmente, que essa proposição,
nomeadamente: eu sou, eu existo, é necessariamente ver-
dadeira sempre que a pronuncio, ou que a concebo em meu
espírito (DESCARTES, 2016 [1641], p. 41).

Por um lado, podemos admitir que a subjetividade,


que integra a razão e outras atividades da mente, é parte
do ser humano, da sua psique. Por outro lado, gradual-
mente fomos ensinados a nos esquecermos dos sonhos
em função da realidade. A realidade nos desperta para
as necessidades do corpo1 (alimentação, filhos, mo-

1. “Eu me considerava, primeiramente, como possuindo um rosto, mãos, braços


e toda esta máquina composta de ossos e de carne, tal como aparece em um
cadáver, a qual designava pelo nome de corpo” (DESCARTES, 2012 [1649], p.
42).

64
radia), que nossos pais ou familiares procuram suprir
ao longo dos estágios iniciais de crescimento. Assim,
as potencialidades que advêm do sonho, ou seja, da
nossa imaginação (individual ou coletiva), talvez sejam
reduzidas à necessidade de sobrevivência em contex-
tos históricos e sociais que podem se mostrar mais ou
menos hostis à autopreservação.

Para além de nossa situação corpórea e biográfica


individual – que conjuga fatores tais como a condição
socioeconômica de cada família ou a cultura da qual
fazemos parte, sendo que os dois aspectos parecem
contribuir em alguma medida para o esquecimento do
sonho – podemos buscar justificativas históricas que
expressam esse movimento de redução da experiência
humana à sobrevivência do corpo, o que torna a concep-
ção de vida restrita ao mundo possível da experiência
material. No entanto, somos igualmente capazes de intuir,
a partir do cultivo da arte, da cultura e da literatura, que
o mundo da experiência cotidiana pode ser alargado ou
reinterpretado por nossos sonhos, entendidos, então,
como expressões da subjetividade.

No contexto moderno europeu, a partir do século


XIX, certas escolhas conduzidas no âmbito social influen-
ciam o modo como conduzimos a vida cotidiana. Segundo

65
Michel Foucault (1926 - 1984), filósofo francês do século
XX, a modernidade deu surgimento ao biopoder como par-
te das estratégias de poder disciplinar. Enquanto o poder
disciplinar se dirigia aos corpos individuais, disciplinados
para a formação de trabalhadores produtivos, a etapa
seguinte expressa a ampliação da estratégia, cujo foco
é dirigido às populações. Nesta etapa, a estatística, com
suas taxas de natalidade, de mortalidade, de longevidade,
permitiram o movimento de higienização e de salubrida-
de das cidades, originando a medicina social. Note-se,
assim, que a união entre o saber e o poder conduziu a
esta forma moderna de “biopolítica”, ou o governo sobre
a vida (cf. AYMORÉ & COELHO, 2019).

Em sua analítica do poder, Foucault nos mostra


que a imagem de poder que emana a partir de um centro
soberano é, no entanto, uma imagem pré-moderna de
poder. Pois, a partir da modernidade, reconhece-se que
o poder não se desenvolve apenas de cima para baixo,
ou seja, das instituições para os indivíduos, mas ele se
movimenta também de baixo para cima. Assim, nossas
ações individuais e coletivas auxiliam na manutenção das
estruturas de poder que, por sua vez, nos conformam.
Sumariamente: o poder está em tudo. Tanto nas relações
interpessoais, quanto nas relações sociais.

66
Nossa própria condição moderna, assim, nos re-
mete ao fato de que as relações sociais são conduzidas
segundo relações de poder. É claro que isso não significa
que o poder seja a única forma de estabelecer relações
com outros seres (humanos, animais, plantas etc.) e com
a natureza. Poderíamos pensar que Foucault realiza em
sua analítica do poder uma explicitação sobre um modo
específico de conduzir estas relações. O que nos leva à
primeira questão: e a nossa subjetividade, como ela se
expressa a partir das relações de poder?

Na sequência, levantaremos mais duas questões


além desta. A segunda questão tratará sobre como o
sonho é representado em nossas sociedades moder-
nas. Além disso, a terceira questão elabora a aparente
tensão entre as sucessivas representações de nossa
subjetividade e a perspectiva privilegiada que temos
em relação aos nossos estados subjetivos. Longe de
buscarmos uma base científica rigorosa para nossa re-
flexão, mostraremos uma possível inter-relação entre a
subjetividade e a vivência no mundo objetivo a partir da
análise do protagonista de Ronin de Frank Miller.

67
1) A subjetividade e a analítica do poder

Antes que “subjetividade” ganhe contornos amplos


demais, neste texto apresento uma concepção mínima:
entendo subjetividade como a expressão de nossa psi-
que, ou das nossas experiências subjetivas, experiên-
cias estas que estão disponíveis para cada indivíduo.2
Então, em termos cartesianos, o ser humano é formado
de corpo e mente (ou alma). Sem entrar em discussões
sobre a possibilidade ou não de sobrevivência da mente
para além da experiência em vida, sugiro que pensemos
assim: o corpo corresponde à nossa expressão mate-
rial, apresentando como característica a extensão e que
pode ser percebida pelos outros por via dos sentidos; e
a mente, no entanto, corresponderia à nossa expressão
imaterial, sem extensão e que, em princípio, não pode
ser percebida por outros indivíduos, a menos que nós ex-
pressemos as nossas experiências subjetivas. Descartes,
no entanto, nos deixa mais uma vez perplexos, diante da
possibilidade de distinguirmos ou não corpo e mente, ao
considerar diferentes atributos e concluir que o “pensar”
seria efetivamente o atributo da mente:

2. Outra definição, talvez mais lógica, seja comparar corpo e mente. Segundo
Descartes, “tudo o que experimentamos existir em nós, e que vemos existir tam-
bém nos corpos inteiramente inanimados, só deve ser atribuído a nosso corpo.
E, ao contrário, que tudo o que existe em nós e que não concebemos de alguma
maneira possa pertencer a um corpo, deve ser atribuído à alma” (DESCARTES,
2012 [1649], p. 32).

68
Os primeiros são alimentar-me e caminhar, mas se é verda-
de que não disponho de corpo, também é verdade que não
sou capaz de caminhar nem de me alimentar. Outro é sentir,
mas também não se pode sentir sem o corpo, a somar-se a
isso que pensei sentir outrora várias coisas durante o sono
que, ao despertar, reconheci não haver, efetivamente, sen-
tido. Outro é pensar, e descubro aqui que o pensamento é
um atributo que me pertence: unicamente ele não pode ser
destacado de mim (DESCARTES, 2016 [1641], p. 43 - 44).

Alimentar-se, caminhar, sentir, são atributos relacio-


nados ao fato de possuirmos um corpo. Pensar, no entanto,
parece não poder ser destacado da mente, representando
um aspecto relevante da subjetividade. Um exemplo pode
nos ajudar a compreender a diferença. Quanto doentes,
sentimos no corpo uma série de sintomas e dores. Caso
não as comuniquemos, dificilmente os que estão ao redor
perceberão tais experiências subjetivas. Objetivamente
podemos até fornecer indícios da condição subjetiva de
dor: cerrar o cenho no caso de uma forte dor de cabeça,
tocar com a mão a nossa testa ou na parte da cabeça
em que sentimos a dor com maior intensidade. A questão
não é tanto a possível indiferença das pessoas em rela-
ção à nossa dor de cabeça, mas é que elas dificilmente
saberão que experimentamos esta dor, ou mesmo que
sofremos de enxaqueca, a menos que comuniquemos
esta experiência subjetivamente experimentada.

Além disso, segundo esta distinção cartesiana,


certas características acompanham cada uma de nossas

69
partes constitutivas. Enquanto o corpo é regido pelas
mesmas leis dos outros objetos extensos (levando em
conta basicamente espaço, tempo e movimento), a men-
te não apresenta a mesma dinâmica3. Apesar disso, é
possível explicitar três características próprias da nossa
subjetividade: a mente sente (sensação), pensa (razão)
e lembra (memória).4

Por identificar estas três características é que Des-


cartes reconhece que os sonhos que temos são parte da
memória em relação às experiências que vivenciamos com
o corpo. Em termos simples: se em algum momento da vida
eu experimentei a sensação de queda, de dor, posso vir
a sonhar que estou caindo e despertar rapidamente pela
forte emoção que esta lembrança me causa por intermé-
dio do sonho. Pois, por causa da experiência objetiva que
tive com o corpo, considero que uma queda poderia ser
dolorosa ou mesmo causar um dano mais permanente.

Assim, devido à conjunção entre o corpo e a mente,


apresentamos capacidade de ter sensações, de raciocinar

3. O corpo, então, não possui em si mesmo o poder de mover-se; ele, ao con-


trário: “[...] pode ser movido de diversas maneiras, não por si mesmo, mas por
qualquer coisa estranha que o toque e da qual receba a impressão” (DESCAR-
TES, 2012 [1649], p. 43).
4. A mente ou alma que “[...] duvida, que concebe, que afirma, que nega, que
quer, que não quer, que também imagina, e que sente. Se todas essas coisas
pertencem à minha natureza, decerto isso não é pouco” (DESCARTES, 2012
[1649], p. 46).

70
e de lembrar, e é por isso que o sonho seria uma forma
reelaborada de memória em relação às experiências no
corpo, experiências estas realizadas no mundo objetivo.
Deste modo, as sensações, os raciocínios e as memó-
rias que desenvolvemos ao longo de nossas vidas e que
conformam a psique, mantêm algum grau de conexão
com a realidade. Não sendo, portanto, mero fruto de
devaneios ou da fantasia.

No entanto faltou explicitar outro elemento da sub-


jetividade humana: a criatividade. Ela se expressa na
reelaboração que fazemos das experiências passadas,
seja por meio do discurso ou por intermédio do sonho.
Nossa criatividade, ou seja, a capacidade de narrar di-
ferentes versões das experiências que vivenciamos no
mundo com o corpo, podem tornar a nossa psique mais
ou menos sensível ao ato de sonhar.

Assim, as experiências corporificadas que asso-


ciamos aos fatos reais da vida são reelaboradas pela
capacidade narrativa, a depender da criatividade de cada
pessoa. Deste modo, aquilo que chamamos de subjeti-
vidade não deve ser entendido de modo estanque. Pois,
ao contrário, o dinamismo é uma característica mais
próxima do fluxo de consciência que pode se projetar
ao passado (via memória), ao presente (via sensação)

71
ou ao futuro (via imaginação). Neste sentido, o que cha-
mamos de subjetividade, quando pensada em termos
individuais, é um ponto deste fluxo de reelaboração das
experiências no mundo. Então, o que aconteceu com a
subjetividade na modernidade?

A modernidade pode ser caracterizada a partir de


uma história de longa duração. Um marco histórico é a
Revolução Francesa (1789 – 1799), que elabora na cultura
a ideia de racionalidade autônoma, favorecendo também
a consumação da ciência moderna. Não por acaso a
Revolução Industrial (primeira fase entre 1760 e 1840),
inicialmente situada na Inglaterra, mas posteriormente
irradiando pela Europa e Estados Unidos, a transição da
manufatura para a produção industrial é influenciada pelo
desenvolvimento de máquinas a vapor, bem como o telé-
grafo, originando uma nova forma de produção econômica.

Essa rápida digressão histórica é capaz de incentivar


a reflexão sobre o ser humano, instigada pela emergência
de outra forma de vida, que incluía o deslocamento da
população rural para o espaço urbano, que eleva para
85% a proporção populacional urbana na Inglaterra em
1800 (cf. THOMAS, 2010, p. 345). Note-se, portanto, que
a ideia de que os seres humanos são capazes de pensar,
ao mesmo tempo em que nos possibilita a autoconsti-

72
tuição como indivíduos autônomos, independentes das
tradições religiosas, políticas etc., passa a operar também
como limite da capacidade criativa que se volta para a
constituição de subjetividades. Assim, é possível refletir
sobre a inter-relação entre o desenvolvimento histórico da
modernidade e o modo como formamos subjetividades.

A medicina social que nasce, segundo Foucault, a


partir do século XIX influenciada pelo processo de urba-
nização deslocando o centro produtivo e a população do
campo para a cidade, torna-nos, em termos históricos,
uma parte da engrenagem produtiva. Para que esta má-
quina produtiva funcione de modo eficiente, é preciso
estimular a formação de tipos específicos de pessoas,
entendidas como corpos dóceis e úteis. Apenas estes
corpos poderiam integrar a máquina produtiva do capi-
talismo industrial. Assim, poderíamos afirmar que nem
todas as subjetividades são requeridas. Por exemplo,
neste período da formação da medicina social, os loucos,
os doentes e os moribundos passam a ser isolados da
sociedade, nos manicômios e nos hospitais, pois eles
não são considerados corpos produtivos.

Assim, a subjetividade que interessa estimular é a


do trabalhador, que representa o corpo e a mente apta
e disciplinada para o trabalho. Não se trata tanto de

73
criticar esta mentalidade, mas de explicitar o modo de
produção incentivado na modernidade, e seu possível
impacto na subjetividade. Deste modo, cabe a elaboração
da segunda questão: como o sonho é representado nas
sociedades modernas?

2) O sonho e o estado de vigília

O sonho é relegado à nossa experiência subjetiva,


ou interior, para mantermos a oposição com o mundo ob-
jetivo e exterior. Assim, tal como a memória, a sensação
e a imaginação, o sonho é uma experiência humana que
geralmente relegamos à subjetividade. Deste modo, o so-
nho é banido dos âmbitos da educação, do convívio social
e do trabalho coletivo. Segundo a orientação biopolítica
que requer a formação de corpos produtivos e aptos ao
trabalho, sonhar talvez seja até mesmo perda de tempo.

Na realidade, quando travamos as nossas relações


com o mundo objetivo, estamos em estado de vigília e o
que se requer são as habilidades produtivas, isto é, o que
a nossa razão e o nosso corpo convertem em capacidade
de concretizar projetos e de produzir coisas. São essas
coisas, estes resultados materiais de nossas experiências
subjetivas que podem ser transformados em mercadorias,

74
que são estimuladas. Gerando, assim, o ciclo de reforço
mútuo entre economia e produção, própras do capitalismo.

Não cabe aqui criticar, mas reconhecer os con-


dicionantes histórico-culturais que influenciam nossa
experiência humana contemporânea. Aliás, em termos
contemporâneos há, inclusive, um filósofo coreano que
considera que mesmo a biopolítica foi superada no neo-
liberalismo em função de uma psicopolítica (cf. HAN,
2018 [2014], p. 30), o que demonstraria outros níveis de
interferência na constituição da subjetividade, adentrando
no estágio pré-reflexivo (cf. AYMORÉ, 2019).

Uma vez que começamos a falar de sonhos (ou


da sua possível ausência na vivência cotidiana da mo-
dernidade), podemos transitar das questões filosóficas e
históricas para a análise propriamente dita do quadrinho.
O sonho que nos interessa é o de Billy Challas, o prota-
gonista do quadrinho Ronin de Frank Miller. Ronin está
divido em seis livros. Então, nas referências que farei, vou
mencionar tanto o livro quanto a página do quadrinho.

75
3) Billy na realidade e na ficção

3.1. Billy em estado de vigília

Billy é um trabalhador. Mais especificamente ele


é o operador de uma máquina biotecnológica chamada
Virgo, descrita como “computador senciente que controla
todas as funções de Aquarius...” (MILLER, 2016, Livro
1, p. 19), formado por biocircuitos, por tecido vivo e com
hardware autorreparador (cf. MILLER, 2016, Livro 2, p.
2 - 3). O Billy real nasce sem braços e pernas, apresen-
tando um corpo que o desafia por suas dificuldades de
locomoção, ou ainda descrito como um “infeliz acidente
genético” (MILLER, 2016, Livro 1, p. 21). Apesar disso,
Billy possui habilidade ímpar como operador de Virgo,
tornando-o extremamente útil para a máquina produtiva.

Enquanto leitores, passamos a entender suas ha-


bilidades por intermédio da descoberta de outras perso-
nagens. Sr. Learnid afirma que “mesmo que não tenha
membros, consegue mover aqueles enormes braços
mecânicos... por comando mental” (MILLER, 2016, Livro
1, p. 21). E ainda Casey McKenna, chefe de segurança no
complexo Aquarius em uma Nova York distópica5, com-

5. No entanto, o demônio Agat, o rival do Ronin, ressalta ter encontrado seu


novo lar em New York: “Belicosa, desesperada, desesperançada... má até os
ossos” (MILLER, 2016, Livro 1, p. 46).

76
plexo este administrado e criado por Virgo. Casey define
a habilidade de Billy como telecinese (cf. MILLER, 2016,
Livro 3, p. 40 - 43), ou seja, como uma capacidade de
mover objetos à distância, sem necessidade de tocá-los
ou manipulá-los diretamente.

Assim, mesmo que o corpo de Billy o tenha colo-


cado desde o nascimento diante de limitações motoras,
de autogestão de suas necessidades fisiológicas e de
sobrevivência sem o auxílio de outros, ele parece ter de-
senvolvido a singular habilidade mental de mover objetos,
com a direção de sua vontade. No entanto, Billy, do ponto
de vista de sua relação com o computador Virgo, é uma
engrenagem. Talvez em outras circunstâncias sociais, Billy
não tivesse encontrado um trabalho que correspondesse
tão perfeitamente à sua habilidade de telecinese. Virgo
sustenta a singularidade da dos comandos mentais de
Billy deste modo: “Logo todos vão poder, Billy, sua mente
única está nos ensinando como fazer com que isso fun-
cione” (MILLER, 2016, Livro 1, p. 21).

A fusão com Virgo, assim, possibilita a Billy inte-


grar-se à máquina, o que o leva à capacidade de manter
relação com o mundo objetivo, e até mesmo de ampliar
a possibilidade de transformação deste. Configurando-o

77
como uma espécie de ciborgue, definido como um híbrido
de máquina e corpo biológico. Nas palavras de Donna
Haraway um ciborgue é “[...] um organismo cibernético, um
híbrido de máquina e organismo, uma criatura de realida-
de social e também uma criatura da ficção” (HARAWAY,
2016, p. 36). Além disso, Billy está midiatizado, pois, por
intermédio da tecnologia de informação, mantêm-se co-
nectado, possibilitando assim “simplificar atividades que
seriam trabalhosas, [de] fazer parte de contextos sociais e
culturais com os quais se identifica e, nesse sentido, [de]
estruturar meios de construir sua identidade, subjetivida-
de e cidadania” (LIMA, 2016, p. 95). Realidade e sonho,
assim, se fundem no imaginário ciborgue.

3.2. O sonho de Billy:

O sonho de Billy, no entanto, mantém pouca relação


com sua atividade profissional realizada no mundo obje-
tivo de Aquarius. Seu sonho é ser um samurai. Segundo
José Yamashiro é “sob a liderança dos samurais que as
características fundamentais da sociedade japonesa – que
tanto contrastam com a da China e outros povos orientais
– se desenvolvem e se consolidam” (YAMASHIRO, 2010,
p. 23). Embora nossa análise não aprofunde o conteúdo
histórico da formação da sociedade japonesa, é interes-

78
sante notar que, no quadrinho Ronin, a subjetividade de
Billy passará por um processo de transformação que o
aproxima de um forte sentido de lealdade em relação
ao lorde Ozaki, pois seria este o sentimento expresso
na seguinte fala: “Vivo pelo dia em que poderei morrer
servindo ao senhor” (MILLER, 2016, Livro 1, p. 1). Ou
ainda, quando falha ao proteger a vida de seu senhor:
Falhei, lorde Ozaki, e o senhor morreu. Minha vergonha
é profunda, minha escolha, simples. Vagar por essa terra,
sem honra, sem mestre... um RONIN... ou rogar a todos os
seus por perdão... oferecendo minha vida como pagamento
(MILLER, 2016, Livro 1, p. 11).

Na conclusão desta primeira sequência narrativa


que é ambientada no Japão, o Ronin é impedido de co-
meter suicídio. No entanto, seguindo a cadência em que
se desenvolve o enredo do quadrinho, a realidade de Billy
não é conhecida imediatamente. Ao contrário, no Livro
1 há uma sequência de acontecimentos ambientados
aparentemente no Japão.6 Tais acontecimentos são nar-
rados ao longo das 12 primeiras páginas do quadrinho, e
se conectam mais diretamente com o título Ronin do que
com a descrição futurística de seres humanos coman-
dando computadores por meio da fusão com a máquina
antes apresentada. Tais acontecimentos no Japão, a que

6. Provavelmente no período de constituição, entre os séculos XII e XIV, e de


dissolução da classe dos samurais no século XIX.

79
Billy tem acesso enquanto sonha, culminam com o nosso
primeiro encontro com os olhos de Billy arregalados.

É possível supor, então, que na sequência do Livro


1 somos apresentados a um aspecto da subjetividade de
Billy e depois a suas características objetivas. Os olhos
abertos de Billy, ilustrados no cabeçalho da página 13
do Livro 1, apresentam pelo menos dois significados:
primeiro, podem significar o seu despertar em relação à
própria subjetividade, representada pelo sonho de ser o
protagonista de uma história de samurais combatendo
demônios; e segundo significado é o despertar para o
mundo objetivo, para a realidade futurística e distópica,
que se apresenta no estado de vigília.

Note-se que este movimento narrativo inverte a


forma como em geral conhecemos as pessoas ao nosso
redor. Por experiência, podemos notar que não temos
acesso privilegiado à subjetividade das outras pessoas,
não sabemos quem o outro é, quais as características de
sua psique, a não ser que nos relacionemos com elas
na interação social ou discursivamente. A narrativa das
primeiras páginas do Livro 1 de Ronin nos dão acesso,
enquanto leitores, à subjetividade de Billy. Porém, em
nossa experiência, notamos que apenas cada pessoa
tem acesso à sua própria subjetividade.

80
Então, nas experiências cotidianas conhecemos
primeiramente certos dados corporais (por exemplo, rosto,
altura, modo de vestir), que nos chegam por meio dos
sentidos, e depois procuramos de algum modo reconstruir
a subjetividade dos outros a partir do que percebemos.
Podemos supor que, pelo rosto sorridente, aquela pessoa
é alegre e potencialmente uma boa companhia. Ou se a
pessoa se demonstra acanhada e silenciosa, podemos
supor que ela é tímida ou introspectiva. Em poucas pala-
vras: a interação social objetiva é uma forma de conhecer
indiretamente outras subjetividades.

Assim, o modo como inicia o Livro 1 inverte a ex-


pectativa lógica de conhecimento do outro, pois a nos-
sa expectativa (fundada na experiência) está centrada
primeiramente no reconhecimento de características
objetivas do outro (basicamente dos seus corpos), sendo
que apenas depois é que buscamos conhecer sua subje-
tividade (mente ou psique). Consequência da separação
entre o acesso privilegiado a nossos estados subjetivos
(pensamento, memória, sensação e imaginação) é que
em termos do autoconhecimento, cada indivíduo seria
mais habilitado a conhecer a sua própria subjetividade do
que conhecer o mundo objetivo e, de modo ainda mais
indireto, a subjetividade das outras pessoas. A terceira
questão, que emerge a partir do conhecimento privile-

81
giado da própria subjetividade é a seguinte: por que há
variação em nossas autorrepresentações?

3.3. Quem é Billy?

Uma possível resposta a questão é que, ao longo


de nossas vidas, passamos por diversas experiências
que repercutem em momentos sucessivos de autor-
representação. Além das mudanças do nosso próprio
corpo ao longo do tempo, percebemos uma variação
das expectativas sociais projetadas em relação a cada
idade, e, além disso, a própria narração da subjetividade
pode ser criativamente reelaborada. Billy é um persona-
gem interessante para que possamos pensar, inclusive,
na inter-relação de três elementos: corpo, expectativas
sociais e narração da subjetividade.

No mundo real, o corpo de Billy nasce com limita-


ções físicas para o exercício de sua liberdade. Conside-
rando que ele não possui braços e pernas, ele apresenta
dificuldades motoras, de autogestão fisiológica, o que pode
ser resumido em dificuldades adicionais de sobrevivência.
A dependência de Billy em relação aos outros é expressa
no cuidado que a sua mãe tem com ele. Algo a que só
temos acesso narrativo no Livro 5, páginas 31 a 35.

82
Neste momento observamos também o sonho
de Billy, que corresponde ao momento da infância em
que o bloqueio psicológico de parte de seus poderes
telecinéticos foi construído. Na página 31 vemos Billy
indefeso diante das provocações de Bart, que culmina
com a sua mãe retornando do supermercado e vendo
Bart ensanguentado após ter sido lançado contra a pa-
rede do quarto de Billy. Diante desta visão, a mãe chama
o próprio filho de monstro (cf. MILLER, 2016, Livro 5, p.
35). A culpa é, então, projetada na subjetividade de Billy
e, neste ponto, as acusações partem da pessoa que o
protegia, que cuidava dele, que supostamente o amava,
mas que também o rejeita.

Considerando a verossimilhança deste trauma vi-


venciado na infância, os limites que sobrecarregavam a
experiência corpórea de Billy fazem com que em vários
momentos ele projete em Virgo uma relação de mater-
nidade. Inicialmente, Billy é completamente submisso
a Virgo, pois a máquina o provê e o protege. E, além
disso, aquela máquina permite que Billy expanda seus
horizontes de experiência.

Essa relação maternal torna-se evidente na última


parte do Livro 1, quando o demônio Agat invade o com-
plexo Aquarius em busca do Ronin. Diante da ameaça

83
a sua sobrevivência, Billy libera parte de seus poderes
bloqueados pelo trauma, conseguindo, a partir dos cir-
cuitos de Virgo, produzir braços e pernas biocibernéticos.
A marca da fusão entre o sonho de Billy de se tornar
samurai e a liberação deste potencial de autorrepre-
sentação simbólica marca o seu corpo, pois, além dos
braços e pernas, surge em seu rosto a mesma cicatriz
produzida por Agat que corta o olho direito do Ronin (cf.
MILLER, 2016, Livro 1, p. 35).

Assim, o Ronin aparentemente renascido (real,


que apresenta membros formados de biocircuitos) é o
resultado da fusão da fantasia da subjetividade de Billy,
dos seus poderes telecinéticos e do maquinário biotec-
nológico de Virgo. A explosão que ocorre no complexo
Aquarius nas páginas 42 - 43 do Livro 1 é, na verdade, o
nascimento de um novo Billy, que é lançado nos esgotos
por Virgo em um paralelo com o parto.7 Billy renasce
a partir da mãe-máquina.8 Lançado pelos esgotos de
uma Manhattan sumamente hostil (cf. MILLER, 2016,
Livro 1, p. 48), o Ronin renasce 800 anos depois dos

7. A metáfora é sugerida pelo próprio demônio Agat, quando persegue Billy no


complexo Aquarius e o encontra afirmando: “Ronin! Você está aí... neste ventre!”
(MILLER, 2016, Livro 1, p. 39).
8. Algumas passagens interessantes que demonstram o cuidado maternal que
Virgo mantém em relação a Billy, inclusive estimulando-o a descansar e sonhar:
“Você está cansado, Billy, muito cansado. Por que não dorme?... dorme... e so-
nha?” (MILLER, 2016, Livro 1, p. 21). Ou ainda quando o demônio Agat encontra
Billy no complexo Aquarius, e Virgo afirma: “Billy... não vou deixar que morra”
(MILLER, 2016, Livro 1, p. 41).

84
acontecimentos iniciais sonhados no Japão, onde passa
a vivenciar uma série de desventuras, até reencontrar
a espada de Agat por acaso, em uma loja de penhores
(cf. MILLER, 2016, Livro 2, p. 39).

A partir do Livro 2, a narrativa passa a ser cen-


trada no Ronin, que nasce nesta era futurística que
desconhece, não mais protegido no “útero” de Virgo,
ou pelas instalações do complexo Aquarius. A primeira
palavra que pronuncia é “tachi” (MILLER, 2016, Livro 2,
p. 1). Ao apontar para o instrumento cortante que está
em sua mão, percebe-se que ele se refere à espada (cf.
MILLER, 2016, Livro 2, p. 40 - 41), referindo-se, então,
à espada demoníaca de Agat, único instrumento capaz
de destruir seu antagonista.

Note-se, então, que este samurai biotecnológico não


pode ser compreendido como a expressão da necessidade
de Billy por poder. A espada de Agat é, neste sentido, o
símbolo materializado da sua potencial capacidade de
autodeterminação Ronin. Fundindo o sonho e a realidade,
Billy desperta para o novo propósito de vida: sobrevivência
por meios próprios, ao cortar os fios de biocircuitos que
o conectavam ao útero da mãe-máquina.

85
Conclusão

A partir das três questões levantadas, – quais se-


jam, (1) sobre a emergência da subjetividade a partir das
relações de poder, (2) sobre a representação do sonho
nas sociedades modernas e (3) sobre a variação em
nas representações da subjetividade – podemos notar
que nosso objetivo era, justamente, o de refletir sobre a
interação entre a realidade (vivenciada no mundo objetivo)
e a subjetividade, vivenciada individualmente e por meio
de uma série de experiências, entre elas a memória, a
sensação e a imaginação. No entanto, nestes três casos,
o que finalmente nos reconecta ao mundo é o corpo.

O que o quadrinho Ronin nos apresenta é uma


espécie de experiência onírica que, ao invés de ser so-
nhada por nossa própria subjetividade, é sonhada por
Billy. Ao final do quadrinho, no entanto, parece restar
alguma dúvida do que Billy realmente experimentou no
seu corpo. De fato, todas as transformações que ele
vivencia por meio do sonho parecem apontar para uma
relação causal mais forte entre sonho e realidade.

Tal dúvida é sugerida, entre outros motivos, pelo


complicado processo de constituição da subjetividade, que
não é propriamente moldada, mas apenas determinada
pelos processos históricos de longa duração ou também

86
pela sociedade da qual fazemos parte. Ao contrário,
parece-nos que a subjetividade mantém relações de
reforço com o mundo que nos cerca e com as pessoas
com as quais convivemos, de tal modo que uma distinção
rigorosa entre autorrepresentação e representação da
subjetividade a partir do olhar ou da avaliação do outro
se torna, no mínimo, ponto de debate.

De qualquer forma, um modo de caracterização


do personagem Billy é pensar em três etapas de auto-
constituição da subjetividade, embora no enredo existam
momentos de regressão (sonhos, lembranças e trau-
ma) e momentos de progressão. A primeira etapa se
dá no nascimento biológico de Billy, quando se mantém
uma relação de dependência extrema em relação à sua
mãe biológica. A segunda etapa, quando ele se torna
operador do computador Virgo, mostra-se certo nível
de emancipação proporcionado por sua fusão com a
máquina, sem alterar, inicialmente, suas limitações bio-
lógicas. E, finalmente, a terceira etapa, que corresponde
ao “parto” biotecnológico de Billy, quando aprofunda-se
seu próprio sendo de autonomia. Afinal, na medida em
que seu corpo é reconstruído com braços e pernas ou
próteses altamente sofisticadas, Billy (ou Ronin) passa
a experimentar cada vez mais agência, definindo suas

87
ações e seu propósito, independentemente de sua filiação
biológica e de sua fusão tecnológica.

Dessa forma, ao final da narrativa Billy representa


sua subjetividade como Ronin, ou seja, um samurai sem
senhor, que busca recuperar sua honra pela destruição
do demônio Agat, seu antagonista. Independentemente
de esta imagem de si ser a lembrança de um passado
distante, vivenciado 800 anos antes de sua vida em Nova
York, ou apenas um devaneio estimulado pelo excesso
de imaginação, Billy se expressa por meio da experiência
corporal e dos ensaios subjetivos por meio de sonhos,
alcançando a maior liberdade que ele poderia experimen-
tar em sua autodeterminação.

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Débora Aymoré

Doutora em Filosofia – Professora substituta da UFPR, Curi-


tiba, Paraná, Brasil. E-mail: deboraaymore@gmail.com.

89
FEMINISMO NEGRO E ARTE SEQUENCIAL: A
RESSIGNIFICAÇÃO DO PAPEL DA MULHER
NEGRA NAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS

Susan Karolaine Gonçalves Soares Barbosa

Resumo

O discurso e práticas racistas utilizou de conhecimentos


científicos para legitimar, social e politicamente, a explora-
ção, preconceito e desumanização do negro ao tentar cor-
roborar a ideia de incapacidade intelectual, e até mesmo
uma impossibilidade de haver qualquer traço de civilidade,
sugerindo características animalescas em seus corpos. A
propagação dessa ideia, singularmente no século XX, ocor-
reu de forma variada no âmbito pedagógico, das institui-
ções científicas e em criações artísticas, como as histórias
em quadrinhos. Dessa forma, a mulher negra interpretada e
representada de forma caricata, ocupa também o papel do
corpo lascivo, aquele que induz aos prazeres carnais. Em
tempos recentes há uma mudança positiva no que tange
a representação da mulher negra dentro do universo das
histórias em quadrinhos, e a presente proposta de comu-
nicação, idealizada dentro do grupo de pesquisa Artemi –
arte, religião e memória, do Programa de Pós-Graduação
da Universidade do Estado do Pará, na linha de pesquisa
Religião e Quadrinhos: Estudos em Cultura Visual, possui
como finalidade analisar tal mudança que atinge a com-
preensão e representação da mulher negra de forma sig-
nificativa na nona arte. Tomou-se como objeto de pesquisa

90
a personagem Riri Williams (Coração de Ferro), que teve
sua primeira aparição em 2016 em O Invencível Homem de
Ferro (n.7). A importância da temática está situada na pos-
sibilidade exercida pelas histórias em quadrinhos na ressig-
nificação do papel da mulher negra dentro e fora das HQs,
em prol da relevância do discurso da interseccionalidade,
tal como proposto por Carla Akotirene, no movimento femi-
nista discutindo privilégios, estereótipos e representações.

Palavras-chave: Racismo; Arte Sequencial; Feminismo.

Introdução

O presente trabalho pretende compreender a mu-


dança de representação e interpretação que atinge a
mulher negra, tendo como objeto de pesquisa a perso-
nagem Riri Williams (Coração de Ferro). Para realizar
esse empreendimento foi necessário perpassar o ser
mulher no campo social dentro de uma sociedade pa-
triarcal que fora gerada no período colonial e as ondas do
feminismo que serviram para compreender e questionar
os papéis que eram imputados às mulheres, a primeira
onda com a participação de uma maioria de mulheres
brancas e de classe média, a segunda onda baseada
nos movimentos, manifestos e resistências ganha forte
teor político para descontruir o que foi estabelecido sobre
o que é ser mulher e a origem da condição feminina, a
terceira onda nos leva ao momento de adensamento de

91
questões mais particulares a grupos específicos dentro
do movimento feminista.

Essa especificidade pede que parte do trabalho se


destine somente para as mulheres negras no corpo social,
para melhor compreender, de onde parte as diferenças
que também aparecem nas suas representações dentro
das histórias em quadrinhos, mas para tratar das questões
que tangenciam as mulheres negras, primeiramente se
tornou necessário tratar das questões da população negra
em si, lembrando a trajetória de exploração que deixaram
marcas que ressoam até os dias atuais.

Posteriormente, o trabalho se inclina para a repre-


sentação feminina na arte sequencial, pensando tal arte
como localidade da representação do que temos no corpo
social, mas que não se confinam a essa realidade, fazendo
o papel também de questionador de sua realidade. Por
fim, o caminho se mostra pronto para tratar da persona-
gem que aqui tem papel de demonstrativo da mudança
supracitada, Riri Williams possui uma curta trajetória, mas
levanta grandes questões em torno de sua narrativa e
imagem, buscou-se discutir privilégios e estereotipação
a partir da personagem e para além da mesma, enxer-
gando na ferramenta de interseccionalidade instrumento
de ação junto à arte sequencial.

92
A mulher no corpo social

Torna-se de extrema importância trabalhar, inicial-


mente, o ser mulher no campo social. Afinal, ser mulher
por muito tempo significou ser amparada por verdades
universais construídas e impostas pelo patriarcado, tal
como inferido pela concepção do movimento feminista,
que o vê como uma “formação social em que os homens
detêm o poder, ou ainda, mais simplesmente, o poder
é dos homens” (DELPHY, 2009, p. 173). Dessa forma
entende-se que
na sociedade patriarcal, gerada no período colonial, o ho-
mem tinha o direito de controlar a vida da mulher como se
ela fosse sua propriedade, determinando os papéis a serem
desempenhados por ela, com rígidas diferenças em relação
ao gênero masculino. O homem tinha o dever de trabalhar
para dar sustento à sua família, enquanto a mulher tinha
diversas funções: de reprodutora, de dona-de-casa, de ad-
ministradora das tarefas dos escravos, de educadora dos
filhos do casal e de prestadora de serviços sexuais ao seu
marido (BORIS; CESÍDIO. 2007. p. 456).

Nos séculos 19 e 20 o campo social encontrava-se


envolvido não somente com a formação social do patriar-
cado, mas também com os ideais das correntes liberais,
é nesse momento que ganha corpo a primeira onda do
feminismo sob os interesses, majoritariamente, de mulhe-
res brancas e de classe média que pretendiam interpelar
acerca dos papéis que lhes eram imputados. Os ideais das
teorias feministas baseavam-se na ideia de igualdade entre

93
homens e mulheres e essa igualdade deveria abrir cami-
nhos para que iguais também fossem as oportunidades.

A segunda onda feminista, que é situada em meados


dos anos 50 até os anos 90, é firmada sob várias revolu-
ções, desde o movimento hippie dos anos 60, que surgiu
como resposta contra um sistema que produzia muita
miséria, o movimento também influenciou as mulheres a
rever os papéis que esse mesmo sistema as adequava,
elas foram então até as praças públicas para queimar su-
tiãs em protesto pela submissão e opressão que sofriam,
não escapa desse momento a revolução sexual e a luta
feminista pelo ato de tão somente poder sentir prazer.

Tal onda retorna a ideia de igualdade entre os se-


xos, mas com as influências de movimentos, manifestos
e resistências, tornou-se muito mais política e empenhou
o papel de descontruir o ideal de mulher desenvolvido
pelo corpo social através de questionamentos sobre a
origem da condição feminina.

A terceira onda se torna necessária com o adensar


das questões identitárias, observou-se como um fator
negativo que as autoras do movimento fossem brancas
e de classe média, grupos de mulheres negras passam
a questionar seus papéis dentro do próprio movimento e
entender suas pautas. Afinal, o que é ser mulher, negra

94
e pobre? tornou-se vital entender como esses fatores
interferem nas suas experiências.

A mulher negra no corpo social

Repensar as questões de ser uma mulher negra,


necessariamente, inclui que inicialmente sejam tratadas
questões da população negra em si. Relembrar como a
trajetória de um povo, envolvida em exploração e subal-
ternização, carrega até os dias atuais, mesmo que com
outras máscaras, as marcas da exclusão social. Quem
tornou isso possível?

O conhecimento científico munido pelo racismo


serviu para disfarçar a legitimação da animalização do
corpo negro, a partir disso, se tornou muito mais fácil a
propagação desses ideais, desde o âmbito pedagógico
até o âmbito artístico. O fim do processo escravista é
marcado não somente por uma falsa liberdade, mas
também pela determinação do tipo de existência desse
ser, uma vez que as condições a que submetem esses
corpos são degradantes. Falar nessa vida indigna traçada
pelo conhecimento científico é, portanto, tratar acerca
das teorias raciais estabelecidas que corroboram com a
imagem de inferioridade do negro e suas potencialidades.

95
Um dos estudiosos mais conhecidos dessa área é
o italiano Cesare Lombroso que, a partir de sua influência
Darwinista, chegou à conclusão acerca de uma conexão
entre os aspectos físicos e delinquência, excluindo todas
as possibilidades de influências externas em torno do
indivíduo, ele afirmava que a resposta estava na he-
reditariedade, assim “o autor determinou seis tipos de
criminosos: o nato, o louco moral, o epiléptico, o louco,
o ocasional e o passional. No entanto, as características
encontradas por Lombroso eram basicamente do negro,
imigrante na Itália.” (NAZARETH; RODRIGUES. 2014).
Sua teoria influenciou outros estudiosos, no Brasil um de
seus adeptos foi Raimundo Nina Rodrigues.
Raimundo Nina Rodrigues, médico baiano renomado es-
tudioso do negro e da criminalidade e grande adepto das
ideias do antropólogo criminal italiano Cesare Lombroso,
foi representante importante das teorias raciais no Brasil.
Lutou pela implantação da Medicina Legal nos currículos
das Faculdades de Medicina e defendeu a criação de dois
códigos penais brasileiros: um para brancos e outro para
negros, pois pressupunha que as diferenças raciais leva-
vam a diferenças comportamentais e morais tão grandes
que não se podia fazer as mesmas exigências para am-
bas as raças. Para ele, como para outros cientistas de sua
época, a igualdade de direitos e deveres era uma ilusão
(NUNES, 2006, p. 92).

Todo esse aparato científico, como já fora dito, in-


fluenciou os mais variados âmbitos da existência, o modo
de produção escravista declina, no entanto, isso não leva
a uma gradual integração da população negra ao corpo

96
social. Sem as bases teóricas investe-se no ideal de
democracia racial, permeada de um preconceito velado
em uma tentativa de normatização de inferioridade e
silenciamento, afinal, somos todos iguais.

Mesmo no movimento feminista, as mulheres negras


sofreram com esse silenciamento, resistindo desde a pri-
meira onda, lhes custou muito a tentativa de serem ouvidas
mesmo que por outras mulheres, o sexismo não era a
única demanda e a interseccionalidade já aparecia como
aparato para analisar o que era ser mulher negra dentro
do sistema. A branquitude que compunha o movimento
responsabilizou, e em parte ainda responsabiliza, o femi-
nismo negro enquanto quebra nos ideais do movimento,
nos obrigando a seguir de forma autônoma, e com isso
torna-se necessário voltar às raízes de nossa ancestra-
lidade como caminho de fortalecimento de nossas lutas.
Parte dessa mesma branquitude “ao mesmo tempo que
lutavam por direitos para si mesmas, algumas participa-
vam de grupos como o KKK.” (FRANCHINI, 2017, p. 2).

Ainda que a ideia de interseccionalidade já fosse


utilizada pelo movimento para analisar os resultados
das opressões do sexismo e do racismo, tal conceito
foi propriamente teorizado como ferramenta em 1989
por Kimberlé Williams Crenshaw, é a partir dele que

97
reconhecemos as diferentes opressões que seguem a
existência de cada mulher e torna possível problematizar
a homogeneização do que é ser mulher.

A representação feminina na arte sequencial

Compreende-se a arte sequencial como localidade


da representação do corpo social, dessa forma, inclina-
-se a expressar em sua narrativa os elementos que a
circundam, mas não se limitam a isso, para além de um
reflexo de seu contexto, mostrou-se também como pro-
blematizador do mesmo. No que tange à representação
do feminino nas histórias em quadrinhos, o patriarcalismo
interferiu sobremaneira uma vez que por um longo pe-
ríodo de tempo ficou evidente a idealização ou mesmo
a caricatura do ser mulher. Restou, portanto, para as
mulheres serem vítimas ou secundárias nas histórias em
que conseguiam aparecer, sempre envolvidas em um
papel de subalternização e passividade.
É possível observar esta “inferioridade” no
desenvolvimento da história em quadrinhos, onde
durante muito tempo as personagens femininas
tinham papéis menores do que os homens – elas
eram namoradas, eles os super-heróis (BARROS; RE-
CUERO. 2015, p. 5).

98
A impávida Lois Lane conseguiu ser várias super-
-heroínas como Elastic Lass, Rainha dos Insetos, uma
versão do Tornado Vermelho, e até mesmo a Superwo-
man, mas tornou-se apenas o suporte do Superman por
um longo período. No caso da Mulher-Gavião e a Bulle-
tgirl, elas foram representadas como versões femininas
de seus cônjuges, ainda que super-heroínas não tinham
voz própria e sempre precisavam de sua versão idêntica
masculina para serem salvas, entende-se também que
a própria Mulher Maravilha fora criada para ser a versão
feminina do Super-homem.

Em meio a tantas histórias é possível notar que du-


rante esse período não importou o quão a personagem
fosse inteligente ou destemida, como foi o caso de Janet,
a Vespa. Após o assassinato de seu pai a personagem
é auxiliada por Hank Pym, que lhe concedeu poderes, a
personagem então se tornou capaz de produzir ataques
bioelétricos com suas mãos, consegue voar com as asas
bio sintéticas, reduz seu tamanho e torna-se detentora de
uma força sobre-humana, Vespa também ocupa outros
papéis como Designer de moda e apresentadora de show
e chegou a participar da criação dos uniformes de vários
personagens incluindo Mulher-Hulk e Homem-Formiga.

99
O grupo de heróis denominado Vingadores foi idea-
lizado, fundado e comandado por Janet van Dyne, ainda
assim parte de sua história fora dedicada ao seu con-
turbado relacionamento com Hank Pym, em um desses
momentos a personagem engana Hank em meio a uma
crise mental para que assim pudesse se casar com ele.
O mesmo se dá com Susan Storm, a mulher invisível, que
por muito tempo tem seu arco de história preso ao seu
relacionamento com Reed Richards, ainda que integrante
do quarteto fantástico sua posição por muito tempo foi
desfavorável durante as missões do grupo.

Dessa forma, podemos concluir que a história inicial


do relacionamento entre as mulheres e as histórias em
quadrinhos não passaram da idealização do olhar mas-
culino quanto ao papel do feminino no corpo social que
fora transportado até o âmbito artístico, por isso, é muito
comum que essas personagens tenham suas histórias
contadas a partir de um teor cômico, estético, ou que sua
vida amorosa seja mais relevante que suas habilidades.

O movimento feminista tem papel importante na


virada representativa da mulher nos quadrinhos. A luta
por seus direitos envolve a produção de quadrinhos que
em um primeiro momento visa ainda a idealização da
mulher para seu público alvo: homens adultos. Tal condi-

100
ção, acaba por não satisfazer mulheres que querem ser
verdadeiramente representadas longe dos estereótipos
vinculados ao olhar masculino sobre os corpos femininos,
essa idealização segue o padrão de corpos extremamente
sensuais em roupas mínimas ou em trajes bem colados
ao corpo para evidenciar as curvas, características que
em nada agregam à capacidade de cada personagem, no
entanto, várias passaram pela mesma descaracterização
e o movimento feminista é um grande agente na luta por
uma representatividade mais digna do feminino.

A invisibilização e silenciamento do povo negro, no


que tange o corpo social, se refletiu diretamente na forma
como essa população fora interpretada e representada
nas histórias em quadrinhos. Os personagens de caracte-
rísticas exageradas e de papéis subalternos e de mínima
relevância para o enredo eram recepcionados na arte
sequencial da forma como eram vistos em sociedade
pelo poder dominante do homem branco, ou seja, torna
tal arte localidade de propagação e fortalecimento de
estereótipos. Como afirma Santos (2013, p. 27): “Tornam-
-se, assim, os quadrinhos um instrumento de dominação
e um espaço desfavorável à comunicabilidade, o que,
em grande medida, acaba por gerar uma bipolarização
representacional dos grupos – brancos e não-brancos”.

101
Essa força interpretativa sobre o outro garante ares
de superioridade e inferioridade que culmina por estabe-
lecer mais um âmbito de opressão a ser experienciada.
A mulher negra não escapa de ter sua beleza estereoti-
pada quando representadas, o papel de silenciamento e
subalternização é ainda mais evidente. Como exemplo,
temos a personagem cômico-infantil Lamparina
que muitos pensam ser do sexo masculino, é na realida-
de uma menina impúbere com cerca de dez anos, que vin-
da de uma ilha distante integra-se oficialmente ao elenco
de personagens d’ O Tico-Tico em 25 de abril de 1928. O
fato de ser confundida com um menino deve-se a reduzida
tanga amarela estampada com bolas pretas que lhe deixa
nu o busto ainda sem características femininas. O cabelo
curto encarapinhado, o corpinho magro e desengonçado
e seu temperamento irriquieto dão-lhe, no mínimo, um
aspecto andrógino. (CARDOSO, 2005, p. 10).

Lamparina, como se pode notar, reúne característi-


cas físicas e comportamentais que seguem o projeto de
estereotipação da população negra, é importante reforçar
que para além de seu temperamento a personagem é
exposta como desajuizada, indolente, desastrada, mas
“o maior pecado de Lamparina é a gula que a transforma
numa ladra compulsiva de mamões, pêssegos, carambo-
las, guabirobas e principalmente bananas dos pomares
vizinhos.” (CARDOSO, 2005, p. 14).

A personagem Maria-Fumaça, por sua vez, era uma


empregada que mantinha seu teor cômico no fato de não

102
conseguir alcançar a ideia e os desejos de sua patroa, sua
veia cômica, portanto, era conectada ao âmbito intelectual.
Conclui-se que “ambas, como podemos ver, mantinham
a representação pejorativa, seja no âmbito intelectual, de
subalternidade ou nos traços exagerados.”(BARBOSA,
2017, p. 7). Toda feminilidade proposta para as perso-
nagens femininas são, majoritariamente, retiradas da
mulher negra, a docilidade e fragilidade não fazem parte
de seu repertório, mantendo uma pirâmide de opressão
que nesse presente trabalho é classificada tão somente
como racial, entendendo como prioridade que as relei-
turas das opressões que existem no corpo social sejam
primeiramente tratadas em torno de questões raciais.

No entanto, no que envolve as representações da


mulher negra nas histórias em quadrinhos há que se
fazer a observação no fato de não haver igualdade entre
homem negro e mulher negra e suas representações,
pois além dos traços exagerados, da representação
pejorativa no que diz respeito à sua inteligência, à sua
beleza, e também da sua personalidade domesticada
pela subalternidade, a mulher negra sofre também com
o apelo sexual de sua imagem, não remetendo a uma
suposta feminilidade mas, sim um corpo lascivo. Tal
representação é resultado da ideia difundida da mulher

103
negra que possui um apetite sexual insaciável, e tem seu
corpo animalizado e hipersexualizado.

Portanto, ainda que tenham produzido personagens


negras complexas, a hipersexualização de sua imagem é
o que segura maior parte de sua narrativa perpetuando
uma dupla estereotipação no que tange a raça, ao ser
animalizada, e de gênero, com a ultrasexualização de
sua imagem. É o caso, por exemplo, da personagem
Tilda Johnson (Nightshade) que era uma garota pobre,
mas que possuía um incrível conhecimento científico,
no entanto, em sua narrativa utiliza seus conhecimentos
para atos criminosos, conseguindo desenvolver métodos
para modificar traços comportamentais de humanos,
utilizar robôs com fins de dominação e manipulação,
fabricação de soro para transformar homens em mu-
lheres. Mesmo com tanta bagagem de conhecimento e
narrativa a personagem é vista em trajes mínimos, uma
espécie de biquini, que deixa a maior parte de seu corpo
a mostra, sendo a bota estilo over the knee a maior peça
da composição de seu figurino.

Ororo Munroe, a Tempestade, também não escapa


dessa fetichização de sua imagem, é dona de grandes
habilidades como originar furacões, elevar e baixar tem-
peraturas, em proporções vultosas, do ambiente no qual

104
se encontra, criação de fenômenos atmosféricos elétricos,
mas sua imagem recai nos trajes supercolados e uma
mostra objetiva da idealização do corpo feminino.

Riri Williams e seu coração de ferro

Esse artigo propõe como objeto de pesquisa a


personagem Riri Williams, dessa forma, é necessário
alertar que o lugar da personagem assume um papel de
demonstrativo da mudança supracitada, no que tange a
ressignificação do papel da mulher negra dentro e fora
das histórias em quadrinhos. Portanto, não se teve a pre-
tensão de catalogar as formas atuais de representação,
mas apontar um forte demonstrativo e suas implicações.

A escolha por Riri se atribui ao fato de ser uma


personagem recente, e por trazer os contentamentos e
dissabores que a temática negros e histórias em qua-
drinhos levantam, se por um lado temos mais espaço
para abordar a importância da representatividade, por
outro há a banalização da discussão por parte da co-
munidade nerd, dita tradicional, que não acredita que a
personagem tenha o perfil ideal de uma heroína. Ainda
que a personagem seja produzida por homens brancos
(Brian Michael Bendis, Deodato Filho - Mike Deodato

105
Jr.) apontamos isso como passos que são inerentes às
mudanças que ocorrem em todos os âmbitos no que
tange a representatividade e do quanto é importante
para um povo de se reconhecer em traços dignos, não
só no que tange à imagem, bem como, em competências
comportamentais dentro de suas narrativas.

Riri Williams, também conhecida como Coração de


Ferro, é uma garota de 15 anos que nasceu em Chicago,
e aos 5 anos foi identificada como supergênio, isso lhe
rendeu uma entrada precoce, aos 11 anos de idade, em
uma das mais conceituadas faculdades de tecnologia. Sua
personagem surge para substituir Toniy Stark e a primeira
aparição foi na revista intitulada Invincible Iron Man (2015)
n° 7 que foi publicada no Brasil como Homem de Ferro 1°
Série - n° 4 em março de 2017, nesse primeiro momento
ela aparece construindo sua primeira armadura sozinha,
inspirada pela armadura do Homem de Ferro. Riri faz
parte do rol de personagens que surgem com o intuito de
expandir o público-alvo, a personagem é criada para trazer
voz à diferentes padrões, discutindo estereótipos, dando
margem ao público através de sua história para discutir
sobre a importância das vidas negras, sobre o problema
da violência em si, contudo, sua extrema inteligência é
um fato marcante para seu público uma vez que em ou-

106
tro momento no universo da nona arte, a representação
pejorativa se encontrava, também, no âmbito intelectual.

As capas variantes tornam possível uma maior ex-


ploração das possibilidades do personagem, no caso da
personagem Riri algumas questões foram levantadas a
partir do cartaz de divulgação da personagem em 2016,
e conduziu questões acerca da concretude da mudança
de representação ou da possibilidade de tudo isso ser
uma discussão passageira que culminaria na volta de
uma reafirmação da hipersexualização do corpo negro,
colocando um corpo adulto em uma garota de 15 anos.

O primeiro cartaz traz Toni Stark e Riri Williams,


ela em destaque encontra-se segurando o capacete da
armadura do homem de ferro, seu cabelo é representado
de forma cacheada e volumosa, quanto às vestimentas,
Riri aparece com uma calça e uma cropped que remete
a armadura e, que deixa parte de sua barriga exposta.
Segundo Carmo e Faria (2017, p. 380): “À época do
lançamento do cartaz de divulgação, a apresentação
de Riri provocou manifestações de preconceito racial.
O roteirista da série declarou ter recebido comentários
racistas e insatisfação de alguns dos leitores da série, em
reportagem do site Jovem Nerd (2016)”.

107
Em outubro de 2016 é lançada a capa da história
em quadrinho da personagem, na primeira capa já havia
uma exposição do corpo da personagem e nesse segundo
momento, a arte se aproxima ainda mais de uma hiperse-
xualização da personagem, se distanciando da imagem da
menina de 15 anos, Riri aparece com um corpo curvilíneo
e com uma blusa ainda menor do que anteriormente.
O ilustrador responsável pela nova capa, J. Scott Campbell,
argumentou no Twitter que a proposta era de que a perso-
nagem apresentasse uma imagem de adolescente atrevida,
que está amadurecendo [...] O público não compreendeu
da mesma forma que o ilustrador e lançou a campanha
no Twitter e Tumblr acompanhada pela hashtag #Teens-
ThatLookLikeTeens (“adolescentes que se parecem adoles-
centes”) (CARMO; FARIA. 2017. p. 381).

Isso resultou no surgimento de uma nova capa que


traz o mesmo desenho, dessa vez Riri aparece vestida
com a armadura, mas mantendo o corpo irreal para uma
adolescente de sua idade. Mais tarde o mesmo ilustra-
dor produziu uma nova capa variante, para a segunda
edição, em que abarca os desejos do público-alvo, que
seria mostrar de fato a construção de uma super-heroína
com a aparência de uma adolescente. Ainda que a per-
sonagem seja apontada como ponto de transformação,
ainda é necessário se atentar às formas de representação
não só no que tange a ultrasexualização da imagem da
personagem feminina negra, mas também para a volta
das velhas formas que por tanto tempo confinaram os

108
personagens negros, como é o caso da capa variante
feita por Skottie Youn em que o cabelo da personagem
aparece extremamente espetado, seus olhos e sorriso são
representados também de forma exagerada, evocando
uma possível insensatez ou um velho dispositivo para
provocar o riso a partir da imagem estereotipada.

Feminismo negro e arte sequencial

Para discutir privilégios, estereótipos e representa-


ções usei como base o discurso do feminismo negro e
sua ferramenta de interseccionalidade, como proposto
por Carla Akotirene, enquanto categoria teórica e críti-
co-política para articular o entendimento das opressões
que envolvem, concomitantemente raça, gênero e classe
em prol de uma melhor compreensão e interpretação de
quem somos. A intenção não foi usar a ferramenta da
interseccionalidade enquanto ferramenta para analisar a
trajetória da personagem, mas apontar para a construção
de um pensamento crítico dentro da nona arte que inclui o
povo negro ao corpo social, “não mais com a ilusão de que
somos todos iguais, mas com a pretensão de que nossas
diferenças sejam assistidas e representadas de forma
digna, e não tratadas como exóticas ou tenha a simples
finalidade de provocar o riso”. (BARBOSA, 2017, p. 13).

109
Essa ferramenta teórica-metodológica propõe a
demonstração da bagagem impostas às mulheres negras
quando se pensa e vive em um sistema racista-sexis-
ta-capitalista e a arte dentro desse sistema, antes que
possa ser ponte de transformação é espelho do ambiente
no qual é produzido, explicando assim a animalização e
subalternidade a que foram expostas as mulheres negras
na arte em geral e especificamente na nona arte. Essa
ferramenta não só demonstra, mas instrumentaliza para
a produção de uma nova realidade, não esquecendo da
importância de artistas negros em todos os processos
do acontecer da arte.

Considerações finais

O presente trabalho teve como pretensão expor o


percurso da representação da mulher negra do corpo so-
cial diretamente para o universo da nona arte, discutindo
as representações do feminino no geral e especificamente
no que tange as mulheres negras, percebendo a anima-
lização e exotização a que esses corpos foram expostos
enquanto as mulheres brancas, se serviam apenas da
subalternidade e dos papeis secundários, as mulheres
negras ainda passaram também por um exagerado apelo
sexual, tendo a si próprias como culpadas.

110
Tal percurso foi pensado para analisar a mudança
de tratamento em torno da imagem das mulheres negras
no universo da nona arte, acredita-se em uma mudança
positiva dessa representação através de pessoas negras
dentro do processo artístico, que possam assumir seu
lugar de fala e contribuir com a valorização da cultura ne-
gra, o uso da ideia da interseccionalidade é colocado para
melhor compreender o que é ser mulher negra dentro do
sistema que compõe o corpo social e como isso implica na
representação da mesma, adensando sempre o parecer
de que o ser mulher não é homogêneo, somos muitas,
somos diversas e a arte também deve garantir que cada
uma de nós seja representada de maneira respeitável.

Sendo assim, conclui-se, que feminismo negro


abastecendo e sendo abastecido pela arte sequencial,
sejamos nós personagens ou produtoras dessas histórias,
vem a contribuir com o combate e superação desses
estereótipos que nos marcaram por tempo demais, na
construção de nossa identidade e principalmente no
fortalecimento de nossa luta antirracista.

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111
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histórias em quadrinhos?. Salvador, 2014.

Susan Karolaine Gonçalves Soares Barbosa

Licenciada em Filosofia pela Universidade do Estado do


Pará – Pesquisadora do Grupo de pesquisa ARTEMI- arte,
religião e memória do Programa de Pós-Graduação em
Ciências da Religião da UEPA, investiga possibilidades
de análise hermenêutica das representações religiosas na
arte sequencial das histórias em quadrinhos, Pará, Brasil.
E-mail: karolaineuepa@gmail.com

113
A HIPERSEXUALIZAÇÃO DE PERSONAGENS
FEMININAS ATRAVÉS DA CONSTRUÇÃO DA
HEROÍNA MAJESTOSA

Rayanne Rodrigues dos Santos

Prof. Me. Marcos Paulo Torres Pereira

Resumo

Este artigo se desdobra nas questões de hipersexualiza-


ção do corpo feminino, representado através da figura da
personagem Majestosa. Através de conceitos elaborados
por Bourdieu (2012) e Foucault (1979, 1988, 1996), no que
concerne ao corpo feminino, à sexualidade e à dominação
masculina, desenvolveu-se a análise do episódio Majesto-
sa – Sociedade da Virtude, no qual se apresentou a per-
sonagem Majestosa numa contextualização que focaliza
questões sobre seu corpo, suas vestes e seu comporta-
mento sob um olhar masculino. Entre alguns resultados que
pudemos constatar, observou-se que os assédios sexuais
são apontados como consequências do olhar machista,
que reflete nos produtos da cultura de massa, entre eles
as histórias em quadrinhos, em que a indústria do entrete-
nimento passa a objetificar a figura feminina como modelo
para satisfação masculina.

Palavras-chave: Hipersexualização; Majestosa; Histórias


em Quadrinhos.

114
Abstract

This article unfolds in the questions of hypersexualization of


the female body, represented through the figure of the char-
acter Majestic. Through the concepts elaborated by Bour-
dieu (2012) and Foucault (1979, 1988, 1996), with regard to
the female body, sexuality and male domination, the analysis
of the episode Majestic - Society of Virtue was developed,
in which it was presented the Majestic character in a con-
textualization that focuses on questions about her body, her
robes and her behavior under a male gaze. Among some
of the results we have seen, sexual harassment is seen as
a consequence of the macho look, which is reflected in the
products of mass culture, among them comics, in which the
entertainment industry begins to objectify the female figure
as a model for male satisfaction.

Keywords: Hypersexualization; Majestic; Comics.

Introdução

Lançado em 2017 pelo diretor Ian Raul Samarão


Brandão Fernandes, mais conhecido como Ian SBF, e
por Thobias Daneluz (ilustrador), a Sociedade da Virtude
(Society of Virtue) é uma websérie de animação brasileira
no estilo comic-motion, que traz discussões acerca de
diversos temas (feminismo, racismo, apropriação cultural,
polarizações políticas, representatividade LGBT, etc.), me-
diante paródias a super-heróis, histórias em quadrinhos e
à ficção científica. Os vídeos são postados semanalmen-

115
te através dos canais no YouTube, tanto em português
quanto em inglês. O estilo desenvolvido na Sociedade da
Virtude emula os padrões das HQs e desenhos animados
de herói norte-americanos.

O grupo da Sociedade da Virtude é uma paródia


da Liga da Justiça, da DC Comics, e que também temos
a única heroína do grupo, Majestosa, que assim como a
sua contraparte da Liga da Justiça é a segunda mais forte
(Mulher Maravilha), num discurso que eclipsa o feminino
através de estereótipos de gênero como o tamanho da
roupa, por exemplo, e que mesmo com os atributos de
superforça, voo e velocidade, sua roupa colada e expos-
ta chama atenção dos vilões que praticam crimes para
serem “socados por ela”. Outros personagens que são
paródias são: Big Bang (Superman), Volt (Flash), Vigilante
Noturno (Batman), Arqueiro (Arqueiro Verde), Juan Marine
(Aquaman) e outros.

O episódio Majestosa – Sociedade da Virtude nos


apresenta a personagem e problematiza a questão da
imagem hipersexualizada das heroínas. A descrição do
episódio já nos introduz a temática:
Esse vídeo apresenta uma personagem com muita pouca
roupa. Um decote provocante e exagerado... o que muitos
comparariam com um Hentai. Mas qual é a razão disso?
Bom... nós gostamos de acreditar que esse é um conteúdo
crítico e relevante na discussão sobre a sexualização das

116
personagens femininas na indústria dos quadrinhos nas dé-
cadas passadas, e que a molecada que estiver procurando
por “peitos”, “bunda” e “gostosas” no YouTube, vai ter algo
mais interessante e mais educacional pra ver durante a sua
masturbação vespertina do que a Malhação. Se fosse na
época da Joana Balaguer... Eu nem falava nada. (SOCIE-
DADE DA VIRTUDE, 2017)

Neste trabalho, fazemos uma relação da sexuali-


zação com as histórias em quadrinhos porque é onde
se retrata mais o tipo de representação feminina, além
dos quadrinhos serem parte da cultura de massa que é
semelhante também a estética do que é apresentado na
personagem da Majestosa, fazendo assim uma relação
entre o que é idealizado e o que é realidade, como afirma
Melo e Ribeiro (2015, p.107), “as histórias em quadrinhos
se apresentam como uma construção da realidade da
existência do ser humano, onde estes procuram substituir
o mundo real por um fictício, um que faz parte de sua
imaginação. São carregadas de ideologias”.

Esta pesquisa visa discutir questões sobre o corpo


feminino retratado através de desenhos e histórias em
quadrinhos no padrão norte americano de super-heróis
e os discursos de poder de dominância do masculino
sobre o feminino em relação ao sexo, que convergem à
configuração imagética das super-heroínas nestes veículos
supracitados, em que mulheres que usam roupas ditas
provocantes são a um só tempo tanto objeto de desejo

117
e quanto uma manifestação representativa do profano,
porquanto culpabilizadas, diminuídas e silenciadas.

O corpo feminino, sexualização e as relações de


poder

Ao falar sobre representação feminina nos quadri-


nhos norte-americanos, vinculam-se também questões
estéticas que sexualizam a mulher através de roupas que
marcam as curvas, o aumento dos seios, pés pequenos,
todos os atributos de uma mulher que seria perfeita para
representar uma heroína ideal para satisfazer o desejo
masculino. Com essas representações sendo veiculadas
por meio digital, o discurso masculino de poder é propa-
gado na cultura de massa através de anúncios publicitá-
rios, revistas femininas, editoriais de moda, além, é claro,
daqueles que empregamos como corpus deste estudo,
nos quais se potencializa a submissão feminina.
As narrativas de quadrinhos, como outras formas de co-
municação, transmitem valores que variam de sociedade
para sociedade, em um processo de socialização que ul-
trapassa fronteiras físicas e alcança o mundo digital, por
meio da internet. São produtos da cultura de massa e, ao
mesmo tempo, por preservar alguns aspectos de sua ori-
gem artesanal, fazem fronteira com o campo da arte. (SI-
QUEIRA; VIEIRA, 2008, p. 181)

118
Por ser uma arte de domínio visual, os quadrinhos
possuem um modo influenciador de construção de ideais
em que os símbolos representativos colaboram para tal,
e o corpo é um desses símbolos. E então o leitor passa
se identificar com o que está sendo representado, como
afirma Bourdieu em A Dominação Masculina (2012,
p.46), que toda instrução e disciplina pode colaborar
com a formação e reafirmação de hábitos e costumes
incorporados e que, por aprendizado ao longo das gera-
ções, se apresentam como “naturais”. Esses hábitos e/ou
comportamentos trazem a visão de mundo do autor e,
por conseguinte, da cultura na qual se instruiu e formou
sua história de vida, no caso, as personagens femininas
sempre foram desenhadas e moldadas por um homem,
que traz consigo toda a sua cultura e reflete na constru-
ção de tais personagens.

O corpo feminino, quando passa por uma constru-


ção advinda da cultura de massa, adquire novos sentidos,
como um padrão de beleza e sensualidade. Segundo
Bourdieu (2012, p.131), esse corpo, dotado de sentidos
diversos e valores simbólicos, apresenta-se como um
objeto de trocas simbólicas, em que o sentido vem da so-
ciedade masculina e estes utilizam como um instrumento
de relação do homem com os elementos da cultura domi-
nadora masculina, e as histórias em quadrinhos “podem

119
possibilitar compreender a construção do discurso sobre
o corpo e as forças atuantes sobre ele” (MELO; RIBEIRO,
2015, p. 109-110). Através da cultura de massa, o corpo
feminino passa a ser um componente fundamental na
construção de uma cultura de objetificação em que os
indivíduos procuram disciplinar seus corpos.

O corpo, já em uma construção através do olhar


masculino, passa a fazer parte dos discursos que reve-
lam a “ligação com o desejo e o poder” (FOUCAULT,
1996, p.10), que relacionam diretamente à sexualidade
como algo a ser proibido através da existência de sa-
beres que questionam quem pode falar sobre o tema.
O sentimento de poder passar a apontar o que pode
ou não pode em relação à mulher, sendo sobre o seu
corpo, sua sexualidade ou sobre seu caráter, configura
um machismo que acaba se espalhando na sociedade
como algo correto e verdadeiro. Bourdieu (2012) trata,
ainda, do ser feminino como ser-percebido: seu corpo é
um corpo-para-o-outro, ou seja, “um corpo cuja imagem
de si é formulada com base na percepção dos outros”.
(SIQUEIRA; VIEIRA, 2008, p. 192)

A mulher passa a ser moldada a partir do que


ponderam sobre seu corpo, relacionando as suas práticas
e também a sua sexualidade. O corpo passa a “falar” a

120
partir da visão do outro, passa a ser discurso e se constitui
por experiências sociais e culturais, e participa também
do discurso da sociedade através de si mesma e do que
compõe a cultura de massa. O início a uma definição
social do que é masculino e feminino através do discurso
de poder sobre o corpo pode ser vista em representa-
ções e imagens de gênero que “constroem e esculpem
os corpos biológicos não só enquanto sexo genital, mas
igualmente moldando-os e as sujeitando-os a práticas
normativas que hoje se encontram disseminadas no Oci-
dente” (SWAIN, 2001, p. 13). o corpo feminino passa a ser
alvo de concentração de atributos sexuais e a ele podem
ser agregados outros elementos, como cabelo e os tipos
de roupas que vestem, que vem a ser moldado de acordo
com o modelo de beleza que a sociedade institui como
ideal. Assim, nas histórias em quadrinhos, a personagem
feminina tem seu corpo construído e reconstruído como
uma espécie de padrão para deleite masculino, já que
passam a unificar e fixar as representações identitárias
da mulher que são vigiadas e controladas em torno de
sua sexualidade sob o olhar dos homens.

De acordo com Bourdieu (2012, p.81), é na des-


proporção entre o corpo socialmente exigido e o corpo
legítimo que a menina estabelece, sob a imposição dos
olhares e das reações dos outros, a relação prática com

121
seu próprio corpo. Através da propagação de um ideal de
mulher curvilínea e perfeita sendo mostrada através das
mídias – assim como nos quadrinhos –, podem colaborar
para que se forme hábitos e costumes que oprimem, mas
que sejam consideradas normais. A mulher dos quadri-
nhos, mesmo quando não é retratada como uma donzela
em perigo, tem sobre elas o olhar e a mente masculina,
já que a maior parte dos autores são homens.
[...] as personagens de quadrinhos foram, em sua maioria,
idealizadas por homens e para homens, segundo o que eles
vêm e entendem do sexo feminino, e provavelmente atua-
ram como veículos da expressão sexual de seus autores
e do desejo de exibir o considerado imoral e proibido. (SI-
QUEIRA; VIEIRA, 2008, p. 189)

O poder masculino, tido como algo neutro e “natural”


(BOURDIEU, 2012, p.18), afirma a figura de macho viril,
enquanto a mulher se torna apenas passiva na socie-
dade, que tem objetivos de satisfazer as necessidades
masculinas e que não ousa reclamar da dominação do
homem, que por vezes essas mesmas mulheres reafirmam
a sua posição de eterna receptividade, sendo apagadas
e silenciadas nas esferas sociais.
O apagamento da condição humana do feminino, de sua
potência de escolha e de vontade mediante o discurso –
proferido pelo masculino – reducionista em presa, em ex-
plorado, fraco, constitui discurso de poder, pois a transfi-
guração da imagem em estereótipo é, por natureza, ação
política de instauração, preservação e manutenção do po-
der, ao impedir que o Outro possa exercer a chancela de
atuação social. O discurso da virilidade masculina elegeu

122
quais representações simbólicas determinariam o feminino,
quais os traços ou características que, além de o identifi-
carem, gerariam um artefato, um repositório, do que seria
para o homem a mulher, numa afirmação de si e exclusão
do outro. (PEREIRA, 2017, p.311)

Atualmente, nos quadrinhos de super-heróis, ainda


é comum retratar a mulher como um exemplar para a
satisfação, “corpos ‘esculpidos’, magros, atléticos e trei-
nados nas artes da luta e da guerra, como soldados em
um campo de batalha onde o espectador é um obser-
vador, cada vez mais distante de sua própria realidade”
(SIQUEIRA; VIEIRA, 2008, p. 194), que mesmo assim
trazem toda uma carga de representação que reflete no
comportamento, na construção de ideais de perfeição
e de sexualidade. Assim, a sociedade passa também
a vigiar, no mundo real, o que deve ser seguido dentro
dos padrões estipulados de moralidade, desde o ideal de
corpo até o que deve vestir.

A hipersexualização de Majestosa

Os personagens de histórias em quadrinhos mate-


rializam representações que remetem à reflexão sobre o
mundo, em que a cultura influencia a forma de perceber,
construir uma visão de mundo e ter as atitudes em relação
ao ambiente, em que “a figura da mulher nas histórias

123
em quadrinhos pode ser vista como uma construção
sociocultural, permeada em relações histórico-culturais.”
(MELO; RIBEIRO, 2015, p.107-108)

Majestosa é apresentada como uma mulher forte


e que usa roupas consideradas provocantes demais para
serem usadas no combate ao crime. A crítica utilizada é
justamente a representação de heroínas nos quadrinhos,
através de seus corpos hipersexualizados com o objetivo
da satisfazer o público masculino. Porém, o vídeo nos traz
várias temáticas sobre a visão machista da figura feminina,
principalmente a objetificação e diminuição da mulher.
A partir desse esboço, entendemos o que é ser mulher no
imaginário masculino, que a feminilidade está associada
à futilidade e vaidade, que a mulher, por mais que tenha
‘poderes’ e possua um cargo de grande responsabilidade,
ela vai ser sempre traída por ser mulher, por acreditarem
que sua aparência venha em primeiro lugar. O narrador
ajuda a entender esse imaginário, quando solta ‘e como
qualquer outra moça’, ou seja, ela é como qualquer outra
moça que não tenha essa responsabilidade de lutar contra
o crime, quando o discurso da aparência emerge. (MELO;
RIBEIRO, 2015, p.110-111)

Ainda falando sobre aparência, Bourdieu (2012,


p.118) afirma que, no “mercado de bens simbólicos”, exige-
-se mais da mulher do que do homem no que condiz seu
físico, aparência e roupas para se fazer uma linguagem
sedutora, e as mulheres passam a investir muito mais em
um trabalho de apresentação social.

124
O corpo erotizado é dotado de muitos atributos
sexuais, como a curva dos seios, da cintura, das ná-
degas combinadas no formato de ampulheta, que pas-
sam a representar o próprio sexo, a feminilidade em
seu mais puro aspecto para a satisfação masculina.
A partir dessa representação, o menino passa a ver
essas personagens com “olhares que vão aprender e
apreender, num mesmo movimento, formas e valores
socialmente construídos” (OLIVEIRA, 2002, p.33), ou
seja, passarão a idealizar e padronizar o ideal de ser
mulher e constituir uma visão machista que oprime as
mulheres reais. Bourdieu ainda diz que
Dado o fato de que é o princípio de visão social que constrói
a diferença anatômica e que é esta diferença socialmente
construída que se torna o fundamento e a caução aparen-
temente natural da visão social que a alicerça, caímos em
uma relação circular que encerra o pensamento na evidên-
cia de relações de dominação inscritas ao mesmo tempo na
objetividade, sob forma de divisões objetivas, e na subjetivi-
dade, sob forma de esquemas cognitivos que, organizados
segundo essas divisões, organizam a percepção das divi-
sões objetivas. (BOURDIEU, 2012, p.20)

A partir de então princípios de moralidade são


demonstrados a partir de uma visão masculina, já que o
estilo de roupas como o de Majestosa, que mostram partes
do corpo feminino – este sexualizado –, são considerados
como um instrumento de excitação masculina, o que tor-
na a mulher imoral. Bourdieu (2012) fala que a moral da
mulher é representada através da disciplina de seu corpo

125
através da coação sobre o que veste, sobre o penteado
e sua postura, como naturalização de uma ética.
Assim como a moral da honra masculina pode ser resumi-
da em uma palavra, cem vezes repetida pelos informantes,
qabel, enfrentar, olhar de frente e com a postura ereta (que
corresponde à de um militar perfilado entre nós), prova da
retidão que ela faz ver,43 do mesmo modo a submissão
feminina parece encontrar sua tradução natural no fato de
se inclinar, abaixar-se, curvar-se, de se submeter (o con-
trário de “pôrse acima de”), nas posturas curvas, flexíveis,
e na docilidade correlativa que se julga convir à mulher.
(BOURDIEU, 2012, p.38)

O corpo e a roupa de Majestosa, bastante evidencia-


do, é apontado como a causa do crescimento de vilões que
antes eram “cidadãos de bem”, e que agora desejam ser
“socados” pela Majestosa, como se fosse algo prazeroso.
Os nomes de alguns vilões como “Homem Lubrificante”,
“Terrível Masoquista”, evidenciam a sexualização da he-
roína por causa de sua roupa e seu corpo.

O termo “cidadãos de bem” é bastante conhecido


nas redes sociais por caracterizar pessoas que dizem
não se envolver com a criminalidade em seu estado mais
puro, o que envolve violência explícita ou que se denomi-
nam virtuosos e morais por seguirem padrões e leis da
sociedade que eles consideram como corretos. A crítica
do episódio é justamente que esses mesmos “cidadãos
de bem” fazem parte de uma cultura machista que asse-
dia as mulheres como se fosse algo normal, e que eles

126
detém o poder e a liberdade de fazer, sendo por vezes
coniventes com assédios e com a opressão de mulheres
por estas estarem, de alguma forma, ameaçando tomar
o lugar de privilegiados que eles têm na sociedade. Por
isso, Majestosa estava sendo diminuída e ao mesmo
tempo sexualizada, para que ela fosse dominada pelos
homens, como afirma Bourdieu (2012, p.30), “o assédio
sexual nem sempre tem por fim exclusivamente a posse
sexual que ele parece perseguir: o que acontece é que ele
visa, com a posse, a nada mais que a simples afirmação
da dominação em estado puro”.

Majestosa é julgada pelos homens por causa da


roupa que está vestindo, e traz à tona questões sobre as
vestes das mulheres que indicam sinais de caráter moral
ou não, na sociedade machista, em que a sexualidade
feminina passa a ser questionada e aprisionada, dando
aos homens liberdade para reafirmar o seu domínio sobre
as mulheres. Bourdieu (2012, p.39) afirma que a postura
submissa das mulheres se apresenta por causa da impo-
sição das condições de utilização do corpo, associadas
à atitude moral e à contenção, em que a feminilidade se
mede pela arte de “se fazer pequena”, como um confina-
mento simbólico assegurado pelas roupas, e isso pode
ser visto com a maneira de sentar sem as pernas abertas,
utilização de saltos altos, bolsas e saias que limitam algu-

127
mas atividades, enquanto os homens utilizam o espaço
maior com seu corpo, principalmente em lugares públicos.
Assim, tentam confinar Majestosa através de suas vestes
por ela estar indo contra os padrões estabelecidos de
feminilidade, assim como tentam subjugar uma mulher
por esta usar uma saia curta, pois demonstra que o poder
não está mais sobre as decisões do homem, já que as
mulheres estão indo contra o que é imposto.
Essas maneiras de usar o corpo, profundamente associa-
das à atitude moral e à contenção que convêm às mulhe-
res, continuam a lhes ser impostas, como que à sua revelia,
mesmo quando deixaram de lhes ser impostas pela roupa
(como o andar com passinhos rápidos de algumas jovens
de calças compridas e sapatos baixos). E as poses ou as
posturas mais relaxadas, como o fato de se balançarem na
cadeira, ou de porem os pés sobre a mesa, que são por
vezes vistas nos homens — do mais alto escalão — como
forma de demonstração de poder, ou, o que dá no mesmo,
de afirmação são, para sermos exatos, impensáveis para
uma mulher. (BOURDIEU, 2012, p.39-40)

A sexualidade feminina é controlada, segundo Fou-


cault (1988, p.96), por um dispositivo da sexualidade, que
possui uma função estratégica dominante, no qual o faz
de diversas formas, conforme o momento histórico. Ele
se reorganiza ao sofrer resistência, muda suas estratégias
e incorpora uma ou outra mudança para, em seguida,
inscrevê-la em seu conjunto de normas. As personagens
femininas nos quadrinhos passam a ser manuais de for-
mas e significações para serem lidos pelos homens, e

128
a forma feminina, representada por atributos erotizados,
sofre ação do dispositivo.
Através deste termo tento demarcar, em primeiro lugar, um
conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos,
instituições, organizações arquitetônicas, decisões regula-
mentares, leis, medidas administrativas, enunciados científi-
cos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma,
o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O disposi-
tivo é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos.

Em segundo lugar, gostaria de demarcar a natureza da re-


lação que pode existir entre estes elementos heterogêneos.
Sendo assim, tal discurso pode aparecer como programa de
uma instituição ou, ao contrário, como elemento que permi-
te justificar e mascarar uma prática que permanece muda;
pode ainda funcionar como reinterpretação desta prática,
dando−lhe acesso a um novo campo de racionalidade. Em
suma, entre estes elementos, discursivos ou não, existe um
tipo de jogo, ou seja, mudanças de posição, modificações
de funções, que também podem ser muito diferentes.

Em terceiro lugar, entendo dispositivo como um tipo de for-


mação que, em um determinado momento histórico, teve
como função principal responder a uma urgência. O dis-
positivo tem, portanto, uma função estratégica dominante.
(FOUCAULT, 1979, p. 138)

Majestosa passa a ser culpabilizada por estar atrain-


do os vilões por causa de seus atributos sexualizados, o
que caracteriza que a heroína está sofrendo assédio, e
mesmo assim a culpabilidade diante dos homens perma-
nece inexistente, já que até um dos heróis, que é homem,
fala que “pede desculpas por ele”, colocando-o na posi-
ção do homem que também faz parte dessa cultura que
assedia as mulheres, mas que não reconhece. Bourdieu
(2012, p.79) diz que “para fazer da experiência feminina

129
do corpo o limite da experiência universal do corpo-para-
-o-outro, incessantemente exposto à objetivação operada
pelo olhar e pelo discurso dos outros, fixam identidades
femininas e reafirmam valores masculinos”, ou seja, a
mulher continua sendo retratada como submissa, como
núcleo da imoralidade, enquanto os homens continuam a
perpetuar os valores de dominância que eles constituem
na sociedade como privilégios.

A mulher passa a ser culpada pelo próprio assédio, já


que é apontada como a provocadora de excitação sexual
masculina apenas por mostrar partes de seu corpo. Isso
provoca intimidação nas mulheres, que passam a se calar
e se submeter aos mais diversos tipos de humilhações,
inclusive serem vítimas de abusos e estupros.
No entanto, as várias formas de violência ainda estão pre-
sentes, enquanto mecanismos de controle e de reprodução
das desigualdades, constituindo-se em método para inti-
midar e subordinar as mulheres, mantendo o desequilíbrio
de poder nas relações e marcando a dominação mascu-
lina. Para conviver com essa realidade, elas “fingem” não
entender a “cantada” do chefe, ou do colega de trabalho,
para garantir o emprego e ainda sufocam no peito o grito de
suas dores, para não prejudicarem ou assustarem os filhos,
quando maltratadas pelos seus maridos ou companheiros
(MOREIRA, 2005, p. 40)

Muitas mulheres que são vítimas de abuso sexual


são acusadas por não se vestirem adequadamente ou
mostrar o corpo demais, como se o sinônimo de vestir
roupas curtas é pedir para ser abusada e estuprada, já

130
que o corpo feminino é visto como um lugar de tentações
e desejos. A mulher passa a ser a vítima duas vezes, do
abusador e da sociedade.
[...] realizações acabadas da visão ultraconservadora que
faz da família patriarcal o princípio e modelo da ordem so-
cial como ordem moral, fundamentada na preeminência ab-
soluta dos homens em relação às mulheres, dos adultos
sobre as crianças e na identificação da moralidade com a
força, da coragem com o domínio do corpo, lugar de tenta-
ções e de desejos (BOURDIEU, 2012, p.118)

Os vilões que estão sendo atraídos pelos atributos


sexuais de Majestosa não praticam crimes (como já dito,
eles eram considerados “cidadãos de bem”), eles só
querem aparecer na mídia e chamar atenção, e as vezes
pagam por isso. Isso caracteriza, no mundo real, vários
homens que afirmam que não são bandidos, assassinos
ou estupradores, mas acreditam que uma cantada na
rua e o assédio às mulheres como forma de diminuí-las
ou responder aos seus “instintos sexuais” são normais
e reafirmam sua masculinidade, e que passam a propa-
gar na cultura de massa esse tipo de pensamento, por
vezes até lucrando com essas “opiniões”. Parafraseando
Bourdieu (2007, p.65), “a virilidade tem que ser validada
pelos outros homens, em sua verdade de violência real
ou potencial, e atestada pelo reconhecimento de fazer
parte de um grupo de ‘verdadeiros homens’”.

131
A forma de lutar de Majestosa também é questio-
nada, e pedem pra ela não usar as artes marciais na luta
contra o crime, e sim utilizar arco e flecha, arremesso
de dardos e até uma vassoura, tudo para ela não ter
contato corporal com os vilões. Isso está diretamente
relacionado as formas da mulher se comportar e tra-
balhar, que é exigido dentro dos padrões estabeleci-
dos sobre a moralidade. A diminuição de seus atributos
heroicos de lutadora à utilização de objetos que são
simbolicamente considerados femininos e sutis (como
a vassoura, por exemplo) são sinais de que o homem
está sendo destituído de poder, e agora necessita tentar
diminuir a figura feminina para que não perca sua posição
de privilegiado na sociedade.
O mundo social funciona (em graus diferentes, segundo
as áreas) como um mercado de bens simbólicos domina-
do pela visão masculina: ser, quando se trata de mulhe-
res, é, como vimos, ser-percebido, e percebido pelo olhar
masculino, ou por um olhar marcado pelas categorias mas-
culinas — as que entram em ação, mesmo sem se con-
seguir enuncia-las explicitamente, quando se elogia uma
obra de mulher por ser “feminina”, ou, ao contrário, “não
ser em absoluto feminina”. Ser “feminina” é essencial-
mente evitar todas as propriedades e práticas que podem
funcionar como sinais de virilidade; e dizer de uma mulher
de poder que ela é “muito feminina” não é mais que um
modo particularmente sutil de negar-lhe qualquer direito a
este atributo caracteristicamente masculino que é o poder.
(BOURDIEU, 2012, p.118)

Existe, portanto, a construção de estereótipos de


gênero a partir da visão masculina do que é ser mulher,

132
do que é feminino, sensual e imoral, criando “paradigmas
físicos, morais, mentais cujas associações tendem a homo-
geneizar o ‘ser mulher’, desenhando em múltiplos registros
o perfil da ‘verdadeira mulher’”. (SWAIN, 2001, p. 12-13)

A sociedade passa a reafirmar os papéis sociais


que são determinados para as mulheres a partir dessa
construção de estereótipos, que fazem com que elas não
consigam ingressar em espaços que são majoritariamente
masculinos. Foucault (1988, p.99) nos diz que a mulher,
mas especificadamente o seu corpo, sendo saturado de
sexualidade, passa por um processo de histerização,
que perpassa desde o campo das práticas médicas para
assegurar fecundidade, a responsabilidade familiar com
os filhos e a imagem de mãe, que este último é o que
mais recai sobre as mulheres na sociedade atual no que
condiz a práticas morais.
À manutenção social, pelo olhar de dominância viril do macho,
o poder de decidir e de agir feminino seria uma ameaça ao
poder que detinham, daí a necessidade de manutenção de
uma simbologia discriminatória, geradora de uma imagem
alienada que nega a alteridade, pois a mulher seria sempre
o diferente, o inferior, que nunca poderia ser reconhecida
como igual por aquele que a domina... O sentimento de
posse gerado por esse discurso de dominação impede
que o dominante se iguale ao dominado, impede que se
instaurem identidades. (PEREIRA, 2017, p.312)

Swain (2001) ainda complementa quando diz sobre


as representações de valor que são sentidas nas relações

133
sociais, e que estas são responsáveis em definir o que é
masculino e feminino através do discurso e da matéria:
Assim, a sexualidade torna-se o eixo principal da identidade
e do ser no mundo, fundamentando-se em termos de valo-
res institucionais tais como procriação, casamento, família;
a hegemonia da heterossexualidade, prática sexual entre
outras, como atesta a multiplicidade de culturas, torna-se
naturalizada. (SWAIN, 2001, p. 18)

O homem vê a necessidade de reduzir a mulher


apenas a sua sexualidade, para não perder o status de
dominante, negando atributos heroicos, força ou inte-
ligência das mulheres, e objetificando seu corpo para
satisfazer o prazer masculino e impedindo que a “mulher
imoral” detenha o poder.

Assim, vemos que o moralismo que é atribuído


somente a figura da mulher passa a ser discutido nas
esferas sociais. Falar sobre sexo e questionar sobre os
padrões que são impostos são defendidos por Foucault
(1988), que chama de hipocrisia todo o moralismo que
rodeia a sexualidade.
O essencial não são todos esses escrúpulos, o “moralismo”
que revelam, ou a hipocrisia que neles podemos vislumbrar,
mas sim a necessidade reconhecida de que é preciso supe-
rá-los. Deve-se falar do sexo, e falar publicamente, de uma
maneira que não seja ordenada em função da demarcação
entre o lícito e o ilícito, mesmo se o locutor preservar para si
a distinção (é para mostrá-lo que servem essas declarações
solenes e liminares); cumpre falar do sexo como de uma
coisa que não se deve simplesmente condenar ou tolerar
mas gerir, inserir em sistemas de utilidade, regular para o
bem de todos, fazer funcionar segundo um padrão ótimo. O

134
sexo não se julga apenas, administra-se. Sobreleva-se ao
poder público; exige procedimentos de gestão; deve ser as-
sumido por discursos analíticos. (FOUCAULT, 1988, p.27)

Atualmente, com as diversas discussões sobre a


representação feminina na cultura de massa, algumas
mulheres já ocupam lugares de poder e protagonizam
suas falas, sem precisar dos apontamentos masculinos
para moldar o seu discurso.

Considerações finais

A objetificação da mulher na indústria do entreteni-


mento tem outros objetivos, e um dos principais é o lucro.
Sabendo que a sociedade é dominada por uma visão
masculina, a hipersexualização de heroínas é um ponto
chave para que se venda o que os homens identificam
como o ideal de mulher. O consumo desse tipo de mídia,
que reafirma os valores que se têm sobre a figura femi-
nina, passam a refletir nas ações no mundo real, como a
exploração sexual. Como diz Moreira (2005, p.38), “deve-
mos ressaltar ainda uma outra situação que caracteriza
a exploração feminina, que é a prostituição e o turismo
sexual, que atinge não só as mulheres como a sua prole,
através da exploração sexual infantil, de que é cliente a
classe executiva internacional”. A visão da figura feminina

135
apenas como objeto sexual faz com que aumente a pro-
cura por mulheres e meninas que se encaixem no ideal
estipulado pela sociedade para a satisfação masculina.

A figura de Majestosa é apresentado em um mo-


mento ideal para fazer refletir sobre a dominância da
mulher do seu próprio corpo, já que atualmente o acesso
a informações tem desencadeado várias discussões
acerca da sexualidade feminina em que as mulheres são
atuantes. A culpabilização da mulher sobre os seus com-
portamentos perante a sociedade ainda existe, porém,
as vozes das mulheres começam a ecoar nos espaços
que até então não tinham privilégios, brigando contra
preconceitos e tentando assumir seu lugar na história,
fazendo ascender ao papel de protagonistas e ganhar
maior visibilidade num veículo de comunicação de massa,
como as histórias em quadrinhos.

De fato, o discurso de igualdade entre homens e


mulheres ainda não consegue encobrir as imagens que
delimitam e definem as mulheres, em que a violência
direta e indireta que faz parte do cotidiano das mulheres
em agressões físicas, humilhações, palavras, gestos, é
apenas marco de imagens e representações que ins-
tauram um corpo definido e reduzido pela sexualidade.

136
Portanto, sabe-se que o mundo da comunicação
atual é um espaço em que circulam diversas represen-
tações sociais, e nelas ainda contém imagens estereo-
tipadas do feminino, trazendo a mulher como o ideal de
mãe, esposa, e como um instrumento de sedução. E com
as mulheres conquistando seus espaços aos poucos
em locais onde apenas os homens dominavam, essas
imagens passem a ser reformuladas para que se chegue
a igualdade de gênero.

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tas.ufpr.br/historia/article/download/2657/2194> Aces-
so em: 20/05/18

Rayanne Rodrigues dos Santos

Especialista em Linguística Aplicada e Ensino de Línguas


pela Universidade Federal do Amapá (UNIFAP). Membro
do Núcleo de Pesquisas Pós-coloniais – NePC da Univer-
sidade Federal do Amapá. Graduada em Letras com ha-
bilitação em Língua Inglesa pela Universidade Federal do
Amapá.

Marcos Paulo Torres Pereira

Professor Assistente de Literaturas em Língua Portuguesa


pela Universidade Federal do Amapá (UNIFAP). Doutoran-
do em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual
de Campinas. Pesquisador nas áreas de Literatura Brasi-
leira e Portuguesa do Núcleo de Pesquisas em Estudos Li-
terários – NUPEL e do Núcleo de Pesquisas Pós-coloniais
– NePC, ambos da Universidade Federal do Amapá.

139
VONTADE DE PODER NA JORNADA DO HERÓI:
UMA LEITURA NIETZSCHIANA DE FULLMETAL
ALCHEMIST

Amorim Sidarta Araújo

Resumo

Friedrich Nietzsche concebe o conjunto de ações possíveis


no mundo como vontade de poder. Seu intuito é, assim,
de promover a vida, considerando-as enquanto atividade
da força vital. Nietzsche proporciona a ressignificação dos
valores ao criticar os pressupostos religiosos. Partindo da
perspectiva criatividade intrínseca ao mundo, implicado
tanto nas ciências como nas artes, que, por sua vez, possi-
bilitam a compreensão da natureza do mundo, no seu pró-
prio interior, desconsiderando que o conhecimento do mes-
mo estaria expresso transcendentalmente. Partindo dessa
abordagem especulativa da importância destes elementos,
como o conceito de vontade de potência, e tranvalorização
compreendida como a possibilidade de recriação dos valo-
res humanos, a obra Fullmetal Alchemist, torna-se rica para
fundamentação de questões trágicas vinculada à heroici-
dade ao personificar a ciência na modernidade através do
pensamento livre dos valores morais.

Palavras-chave: Friedrich Nietzsche, vontade de poder, Fullme-


tal Alchemist, jornada do herói.

140
Introdução

A afirmação da vida para o filósofo Nietzsche está


ligada diretamente à moralidade, denunciando as ilusões
mundanas por conta das condições de verdade pré-es-
tabelecidas do conhecimento. Para o filósofo o isto é
adotado como coágulo cristalizador de ideias retrogradas.
Portanto, a certeza como conhecimento afixador isola e
inviabiliza a pluralidade dos valores enquanto saberes
distintos. Articulando de forma imanente a moral com co-
nhecimento, a crítica destes mescla os vários fenômenos
opositores, dando espaço para teorias sobre a forma de
vida, estilo de vida e critérios de avaliação da promoção
da vida. A realidade passa pelos princípios morais antes
de tornar-se tendenciosos a aparências, confundindo a
vontade de potência humana e limitando a vitalidade do
indivíduo por conta dos valores históricos, permeados em
campos como o da ciência e principalmente da religião.
As artes ao contrário, expressam uma atividade criadora
que explora as eventualidades de maneira mais eficaz,
enquanto compreensão dos fenômenos mundanos, dando
espaço onde a moral gregária tem um campo mais limitado,
testando as viabilidades por estímulos do novo, libertando
de valores já arregrados socialmente, dotando o sujeito de
uma consciência capaz de distinguir entre sujeito e objeto.

141
Fullmetal Alchemist de Hiromu Arakawa traz abor-
dagens dentro das temáticas da ciência e religião, e me-
diante a obra artística-literária abre um leque de conceitos
em consonância com as circunstâncias, associadas às
teses Nietzschianas contra a moral dos fracos. Durante
a narrativa é possível estabelecer comparações entre
literatura mangá e teoria filosófica. Mostrando o herói
trágico na luta para exercer suas potencialidades através
do conhecimento, que é justamente a personificação da
ciência aplicada à modernidade, provocando um gradual
afastamento com os valores dominantes religiosos. Enten-
dendo a limitações e os paradigmas durante a jornada para
encarar a realidade mundana, os heróis Edward Elric e
Alphonse Elric enfrentam e ultrapassam o natural em busca
de soluções para problemas existências, desenvolvendo
o pensamento livre pela verdade altruísta na busca de um
sentido para a atividade humana e a origem dos valores.

A partir do niilismo, Nietzsche proporciona a ressigni-


ficação dos valores ao criticar os pressupostos dominantes
religiosos. Partindo da perspectiva criatividade intrínseca
ao mundo, implicado nas ciências e artes como atividades
de potência, que, por sua vez, possibilitam a compreensão
da natureza do mundo, no seu próprio interior, desconsi-
derando que o conhecimento do mesmo estaria expresso
transcendentalmente. As artes expressariam, portanto, a

142
realidade dos processos na construção do mundo, es-
clarecendo a responsabilidade lógica da ação no campo
terreno, neste caso, pela ciência, mas também otimizado
pelas artes. Partindo dessa abordagem que considera a
importância da tramsvalorização, compreendida como a
possibilidade de recriação dos valores humanos. A obra
Fullmetal Alchemist, torna-se rica para fundamentação
de questões vinculada à heroicidade. Assim sendo, o
mangá de Hiromu, lançado no Japão em 2001, realiza
vínculos com a perspectiva nietzschiana sobre o mundo,
fazendo com que esta obra literária exemplifique a saga
do herói. Partindo desta perspectiva, a vida humana
busca o desenvolvimento do pensamento livre, através
das possibilidades vitais relacionadas à verdade altruísta
para confrontar os valores tradicionais religiosos e dar
viabilidade a uma nova visão de mundo.

O niilismo e o devir do herói moderno

Dentro do campo do saber, para seu tempo, o filóso-


fo alemão Friedrich Nietzsche causou muita desavença,
devido às suas polêmicas relacionadas tanto à cultura,
quanto aos valores aceitos ligados ao cristianismo. De-
fendendo o ponto de vista crítico em favor das artes e da
ciência, esclarece em suas obras filosóficas a redução

143
dos valores religiosos ao confrontar a moral cristã e seus
pressupostos de universalidade. Entendendo a huma-
nidade presa as impressões metafísicas com validade
transcendental, enquanto considerava a necessidade
de ação no mundo enquanto imanente, considerando
o desenvolvimento das responsabilidades humanistas,
porque não dizer existenciais de forma individual.

Por sua vez, Nietzsche não concorda com a per-


petuação dos valores históricos, e sim, transformados
em devir, isso o separa do platonismo metafisico que
considera o mundo uma reprodução do mundo perfeito e
idealista, do que existe apenas no plano das ideias. Para
o pensador moderno o homem é a própria criação, um ser
em constante transformação, resultado do agora, engen-
drando seus valores a cada momento por interpretações
do acaso. Os fatos para ele seriam análises do mundo e
por consequência nada teria valor em si, ou algo definido,
sendo a natureza humana sem valor preestabelecido.
Portanto a crítica dos valores é o principal agente contra
a prolongação de morais obsoletas a nível de força vital
humana, tendo como objetivo em reconhecer a moral
como imoral, pois a incompatibilidade entre moral e vida
proclama liberdade ao desvalorizar os princípios morais
definidos como condição de sapiência, afirma Machado
ao citar a genealogia da moral.

144
E, ao propor a questão das forças, ao considerar os valores
morais como vitais, se a genealogia é também uma inter-
pretação é uma interpretação que se reconhece “imoral”,
que afirma uma incompatibilidade entre moral e a vida e
proclama que é preciso destruir a moral para liberta a vida.
(MACHADO, 2017. p 86.)

Assim sendo, a interpretação do mundo como exis-


tência orgânica e seus mecanismos internos funcionando
em conformidade com leis naturais, estando de acordo
com a ideia de que o pensamento humano busca explicar
o propósito para o qual foi criado, considerando que esta
existência orgânica como criada e, no entanto, burlando o
limite explicativo que relaciona a gênese humana atribuída
ao divino, ou seja, à uma entidade transcendental. Talvez
este seja, inclusive, o significado de ir “além do bem e do
mal”, pois mesmo o mundo movendo a si mesmo sem
uma causa final pode ser concebido como condição de
significação da ação, enquanto vontade de se conhecer.

A partir da afirmação polêmica da morte de Deus,


apresenta-se a necessidade de explicações dos eventos
naturais, no qual o desenvolvimento da ciência instaura
como fator necessária a precedência humana. Portanto,
a ciência pode ser compreendida a partir de sua poten-
cialidade, primando pelo esforço de conhecimento de si
mesmo e também do mundo a sua volta. Esta vontade
que expressa esse impulso pelo conhecimento, favorece a
possibilidade de se alcançar a verdade benfeitora em prol

145
da vida. A medida que a visão cientifica é esclarecida como
proposta e complemento vital, a sustentabilidade de mundo
desta tarefa acaba por se torna responsabilidade social.

E isto nos recai sobre umas das questões funda-


mentais, o niilismo, uma vez que cogita a sustentação
da redução desses valores regrados. Por conseguinte,
o afastamento metafísico torna-se bem fundamentada
e perfeitamente aceitável, surgindo problemáticas em
relação as crenças, pois pensar o mundo sem uma ordem
divina é perde o caráter moral de qualquer civilização.
Contudo, Nietzsche esclarece ser essa transição o re-
começo do sentido humano no mundo, necessário para
corresponder ao objeto da realidade física, na medida em
que elas se relacionam com o sujeito de forma imanente,
acabando por se torna promessa de vida, dando espaço
para as ciências modernas, que opera como “vontade
de verdade”. Se este é caso, então seria as ciências
modernas a morte de Deus, e isso diz respeito também
a moral, liberdade e até a noção de suprassensível do
mundo em questão, pois a ciências modernas acabam
por se torna niilistas conclui Ullrich.
Vimos antes, nos casos do idealismo e do realismo, que
eles aparecem como opostos, quando considerados a partir
do nível da história, eles aparecem como dois fenômenos
independentes. Veremos aqui, mais uma vez, poderíamos
estar pensando que a ciência surge de sua contradição em
relação ao cristianismo, enquanto vista em concreção, a
ciência aparece como sombra do Deus morto, como resto

146
do cristianismo após a morte de Deus. até que tenhamos
entendido que a questão da morte Deus erode as funda-
mentações de nosso mundo científico, não teremos com-
preendido nada. Nietzsche quer, então tratar a ciência sob
a rubrica de “sombra de Deus”, que temos que subjugar
também. (ULLRICH, 2011. p 97.)

Desta forma a questão da “suprema esperança”


torna-se trágica, ao perceber que somente o homem é
responsável por suas ações e seu próprio destino, estando
sozinho para construir seus valores enquanto agente de
suas potencialidades no mundo. Contudo, essa concep-
ção trágica, não se configura um problema limitado ao
desalento, mas uma oportunidade para a percepção da
pluralidade, no sentido explorar o “espirito livre”. Os indiví-
duos não estarão mais limitados a apenas a “conservação
da espécie” pois ao segregar esse “instinto de rebanho” o
sujeito molda um caráter individual convalescente numa
noção mais nociva, porém mais útil, e isso monta com
mais consciência a participação daquilo que é comum,
porém Nietzsche alerta:
[...]não sei mais se você, caro próximo e semelhante, é ca-
paz de viver em detrimento da espécie, ou seja, de forma
“irracional” e “má”; o que poderia ser nocivo a espécie já se
extinguiu talvez a milênios e está entre as coisas que nem
Deus pode mais conceber. Siga os seus melhores ou seus
piores desejos e, sobretudo, pereça! Em ambos os casos
você provavelmente ainda, é de algum modo, fomentador
e benfeitor da humanidade, e por isso tem direito a seus
apologistas[...].(NIETZSCHE, 2016. p 50.)

147
O herói nietzschiano surge nesse contexto de luta,
para afirmar seus valores humanos sobre os valores natu-
rais utópicos, tornando-se os “gênios da verdade” e estes
são os mais loucos e degradáveis possível, pois colocam
sua tarefa, sua voluntária rudeza afim de grandes feitos,
muitas vezes tornando-se má consciência do seu tempo
por conta dessa ambição de proclamar a cada pessoa
a verdadeira liberdade ao transvalorizar a sabedoria em
força motriz da existência, onde o tempo das tragédias
é coincidentemente o das morais religiosas, pois já não
imperam os “mestres da finalidade” e nem os “mestres
da existência” como tutores da razão ética-ordinária.
Desta forma, toda vez que o herói entra em cena, algo
novo é alcançado, compensando viver o novo, o agora,
bem como Sísifo vivencia com um sorriso no rosto o seu
destino trágico, pois, “a breve tragédia sempre passou a
retroceder afinal à eterna comédia do existir” (Nietzsche,
2001, p 52.). Isso o teórico Nietzsche denomina como
“inatual”, quer dizer está sempre em discordância com
o tempo presente, exigindo um modo de pensamento
aristocrático, no sentido de considerar os tipos de de-
pendências, um requisito de culturas elevadas, com o
pensamento sem escrúpulos.

Já tratando da questão o nascimento da tragédia é


pensado, por exemplo, como combatente do romantismo,

148
dando retorno a época clássica, onde a arte na tragédia
em especial Apolo e Dionísio dão alicerces para as con-
cepções nietzschianas de devir como criação artística.
A época clássica dos gregos, berço da cultura europeia,
recorria a religião para transformar as divindades em
potência artísticas, pois segundo Nietzsche, os gregos
viam a vida como arte, na medida que se olha como
possível, e olhar para o mundo dos gregos também é
olhar como início da ciência. Esse movimento histórico
passa para nossa época como uma ciência distante do
reflexivo interno emanado a princípio como essência
artística, não produzindo algo de novo no que se refere
a posicionamento reflexivo. Somente no interior de seu
domínio é que seus objetos se relacionam. Esses fatos
relacionais aos objetos, ele vai denominar de morte, pois
já não correspondem à realidade presente, e a vida é um
fenômeno constante. Deste modo, deve-se olhar a ciência
de forma artística no sentido vital, pois “a ciência é uma
arte que esqueceu de ser arte”.
olhar para a ciência a partir da perspectiva de vida significa
vê-la como uma expressão de vontade, quer dizer, de seu
esforço. Vimos no ensaio da juventude Nietzsche que ele
tenta compreender a origem das ciências a partir da vonta-
de de verdade. (ULRICHE, 2011. p 100)

Nesse contexto o nascimento da tragédia é um tra-


balho de transvalorização, pois o fato de tematizar através
das críticas, os suspeito dos valores, abre espaço para

149
postulados contra a lógica dos valores ideais dando um
caráter mais social e histórico ao demostrar esses valo-
res superiores, desconstruindo fundamentos da noção
de verdade, bem como, beleza e entre outros, dotados
de privilégios de aplicabilidade por ter uma identidade
já determinada. Ao mostrar uma nova concepção de
verdade que não corresponde a lógica, Nietzsche revela
uma nova particularidade de potência oposta, notando o
grande problema da correspondência silogística.
A característica fundamental do projeto de transvaloriza-
ção é opor aos valores superiores, e mesmo à negação
desses valores, a vida como condição de valor, propondo
a criação de novos valores, que sejam os valores da vida,
ou melhor, propondo a criação de novas possibilidade de
vida. (MACHADO, 2017. pp 123)

A ideia não é erradicar ou transvalorizar todos os


valores, mas abrir espaço para as contradições existentes
na hierarquia social, mostrando que é necessário e até
desejável um posicionamento mais aberto em relação
aos valores subordinados, indicando na história valores
negados pelos dominantes instituídos pela moral.

Ao entender a concepção de bem e mal como


algo subjetivo, isso já não configura mais relação com
a história, e sim com a construção desses conceitos
no devir, a verdade mesmo sendo extremamente moral
pode ganhar outros sentidos ao desligar dos valores

150
prescritos. Com a ajuda da antropologia para refutar a
teologia, Nietzsche busca na filologia entender esses
léxicos morais, compreendendo que a correspondência
pode ser inclusive uma limitação. Ao vislumbrar as pos-
sibilidades e a plenitude da aplicação, entende que a
razão provém de um único órgão de utilidade ao passo
que os outros são deixados de lado, enquanto que os
sentidos emanam de todo o corpo, por isso devem ser
explorados na plenitude bem como o conhecimento que
chega a ele não deve se limitar apenas a fala.
Nossas emissões sonoras não aguardam que novas per-
cepções e experiências nos deem um conhecimento res-
peitável das coisas. Ao contrário, nossas emissões sonoras
ocorrem assim que sentimos estímulos. Assim, a sensação
não incorpora as coisas, mas apenas um traço delas e, se
é assim, a língua é retórica, porque ela transmite apenas
dóxa, não uma episteme.” (RIBEIRO, 2005 p 47.)

A moral permeia muitos campos, inconsciente-


mente o indivíduo é moldado no seu meio e ligado por
ordem de unidade a ideias limitadoras dos agentes dos
costumes, contudo, a vida é o elemento primordial como
valor supremo, quando posto em favor das morais sobe-
ranas, a vida passa por juízos de morais. Assim sendo,
o sujeito necessita compreender os vínculos de poder
aristocrata que emanam sobre os escravocratas, somente
dessa maneira compete a ele construir a relevância de
suas ações, principalmente de maneira individual.

151
Contexto mangá e Filosofia Nietzschiana

No volume I do mangá, a jornada dos pequenos


heróis se forma em torno da busca da pedra filosofal,
para resgatar o corpo de Alphonse e a perna e braço de
Ed, perdidos ao tentar fazer uma transmutação humana
malsucedida da mãe dos garotos. No processo Ed perde
a perna esquerda e Al o corpo, então para fixar a alma do
irmão mais novo numa armadura medieval, Ed sacrifica
seu próprio braço, pois, é preciso oferecer algo em troca,
algo de igual valor, esse é o princípio básico da alquimia a
troca equivalente, essa lei rege que nada pode ser obtido
sem uma espécie de sacrifício. Assim, o plano dos perso-
nagens é buscar essa pedra lendária, para tentar consertar
a quebra do tabu feito pelos dois. A princípio para que
seus objetivos possam se torna concretos, precisam de
uma forma de facilitar a busca por essa pedra, então, Ed
se dispõem a ser um “cão do exército” (alquimista federal).
Após a reconstrução de seu braço direito por uma próte-
se mecânica, usando das vantagens do governo, como
transporte e acesso a bibliotecas restritas.

Levantando em conta a discussão da criação literá-


ria FullmetalAlchemist, para engendrar a reflexão sobre
vontade de potência e a relação entre ciência e religião,
desenvolvida nas obras nietzschianas e abordadas no

152
enredo do mangá, a Filosofia ocupa-se de entender a
questão humana, desse modo, examinado as vias de
significado que atribui à existência na perspectiva de
ressignificação de valores, o que está diretamente retra-
tado pela jornada do protagonista Edward Elric, na busca
desse sentido enquanto vontade de poder.

Do ponto de vista de Nietzschiano há um enorme


equívoco ao afirmar Deus como sendo a base de tudo.
quando empregado o niilismo, a filosofia nietzschiana
entende que o ser humano não perde a sua essência,
ao contrário, ela estaria justamente na capacidade de
produzir significado. Pressupondo que o mundo perma-
nece o mesmo, ainda que sem a presença divina. Ou
seja, Deus não se torna necessário para a realização da
jornada do herói, caracterizando o homem como liberto
de suas amarras, aquele que contempla a realidade do
mundo apenas com seu entendimento.

No contexto do pensamento de Nietzsche, Ullrich


afirma que “pensar a morte de Deus é pensar além
do bem e do mal” (Ullrich, 2011, p. 97), pois, sendo a
ideia de verdade sempre terrena e vinculada ao mundo
objetivo, Nietzsche remete ao nascimento das ciências
modernas como uma solução possível para uma série
de conflitos, tais como: os conflitos morais e existenciais

153
do homem, entre valores religiosos e científicos, entre
alienação e a vontade de poder.

Em princípio, a Revolução científica tinha como foco


a tradição da filosofia natural, na qual muitos pensadores
e cientistas naturais eram considerados uma ameaça à
autoridade da Igreja, mesmo que alguns destes homens
tivessem as suas próprias rotinas de fé. Pouco a pouco,
estes estudiosos, ainda que de maneira clandestina,
segundo John Henry a filosofia natural, de certa forma,
“criou condições que tornaram possível a ciência moder-
na” (HARISON apud HENRY, 2010, p. 71). Nesse meio
onde “muito da produção intelectual científica e religiosa
no início do período moderno estava preocupado como o
declínio da religião, enquanto a ciência ascendia” (HENRY,
2010, p 81), suscitando os esforços dos filósofos naturais
ao estabelecer a existência de Deus, o que levou muitos
religiosos ao deísmo, ao tentar superar o ateísmo, enfra-
quecendo as estruturas da crença cristã.

Isto posto, o mangá FullmetalAlchemist é marcante,


ao fazer esse paralelo com a crença na ciência e por
retratar a jornada no herói, em sua busca de realização
do caminho do bem, no qual a heroicidade representada
pelo personagem Edward Elric se assemelharia ao mito
grego de Ícaro, pois, ao tentar se aproximar do Deus Sol,

154
acaba derretendo suas asas de cera e, por conta disso,
cai. É o que podemos notar no primeiro volume da história
do quadrinho japonês, quando os irmãos Elric realizam
uma transmutação alquímica malsucedida, que resulta
na perda do corpo de Alpholse e da perna e do braço de
Elric. A transmutação, assim, desrespeita a ética, o que
faz com que os irmãos sejam punidos.

Contudo, na medida em que o mangá está não está


especificamente ambientado no contexto grego, mas
fortemente influenciado pela tecnologia cyborg e pela
alquimia, o personagem Edward Elric investiga maneiras
de ultrapassar seus próprios limites, momento em que
quebra determinadas regras, dentre as quais a principal
está em respeitar os ciclos naturais de vida e morte.
Assim, mesmo a alquimia na qual a história ficcional
se baseia, apresenta regras e, sendo o homem capaz
de ultrapassar suas próprias fronteiras, ele, no entanto,
deve pagar um preço. A expectativa de vincular as ideias
filosóficas, sobre o homem como ser capaz de ultrapas-
sar seus limites existenciais em uma obra de ficção que
aborda exatamente essa temática, torna a investigação
extraordinariamente cabível e instigante, uma vez que esse
quadrinho japonês é capaz de levantar provocações em
seus leitores, facilitando, inclusive, o ensino e aprendizado
de certos conceitos filosóficos.

155
Podemos notar essa semelhança quando os alqui-
mistas prodígios na cidade de Letos depararam com os
ensinamentos de Letos, o deus sol, dando uma promes-
sa de falsa vida eterna, bem como a crítica a ideia de
transcendência, visível sobre a ótica Nietzschiana que
repudia esse tipo de moral escrava onde a personagem
Rose está alienada pelo “Letoismo”. A ciência defendida
pelos irmãos Elric e pela alquimia são a alternativa viável
para enfrentar essa força religiosa adeptas da cidade em
destaque, para isso enfrenta-se os perigos dos subordi-
nados até chegar ao representante maior, acabando por
desmascarar a face gananciosa do “pai Cornelo” que
usa uma falsa pedra para transmutar pequenos milagre.

Interessante ressaltar a instigação feita por Hiromu


através do personagem Edward ao falar: “nós explicamos
os fundamentos da criação de todas coisas do mundo e
procuramos a verdade” (mangá I, p 21.), pois isso também
recai sobre a ideia de vontade de verdade. A nível de
reflexão Nietzschiana a teoria do conhecimento afirma o
perspectivismo, ou seja, conhecer é interpretar e procurar
a verdade é algo constante durante a saga heroica dos
alquimistas, sendo a transmutação justamente a ação da
atividade de potência, quando comparada a gênese de
valor recriado como é o caso da transvalorização.

156
Outro elemento significante na obra Fullmetal é
aplicação dessa ciência, veja que existe duas questões
fundamentais colocadas em jogo, a primeira é questão da
aplicação da ciência de forma não reflexiva, pelo poder
bélico ao usá-lo para tirar vantagem dos concidadãos,
nos rementindo ao que Nietzsche chama de “posse da
verdade”, essa verdade é apenas aplicada por ordens
superiores. Ullrich explica que ciência e reflexão devem
andar juntas, para conciliar os fundamentos da vida hu-
mana no nosso mundo.
Uma decisão é, para Nietzsche totalmente absurda, uma
decisão entre lealdade inquestionada e ignorância. Em ou-
tras palavras, o problema da ciência é inevitável para nós
hoje em dia, e qualquer pensamento filosófico que o evita é,
por essa razão, desde o princípio, um pensamento fracas-
sado. A questão da ciência é então, dada não como afirma-
ção ou negação da ciência,mas como o horizonte inescapá-
vel do pensamento contemporâneo. (HAASE, pp 98.)

Semelhante modo podemos citar os limites que


ciência deve operar como são os casos da criação da
pedra filosofal, feita a parti de grandes quantidades de
humanos sacrificados, a transformação de pessoas em
quimera e o caso dos homúnculos, que são seres criados
pelos erros humanos e personificados por pecados como
gula, luxúria, ganância, etc. Talvez esse paralelo sirva
para mostrar que a falha humana produz consequência
lastimáveis, não propriamente ligado a ideia de pecado,

157
mas para demonstrar essas operações falhas dos sujei-
tos, quando isso geral um mal desumano ao semelhante.

O poder para torna-se o herói nesse enquadro entre


filosofia e mangá não está apenas na ciência, artes e nas
potencialidades presentes, mas na quebra com morais
arcaicas limitadoras do pensamento e da ação humana.
Quando o cativo se desprende desses vínculos, ele pode
colocar a humanidade acima das regras, portanto, a von-
tade de poder pode ser exercida de modo criativa, além
burlar as concepções de mal enquanto ação no mundo.

Considerações finais

A produção ficcional-literária do mangá de Horumi,


abre essa gama de ideias para delinear as propostas
nietzschianas e suas críticas relativos a civilização e
moral. Quando postas em consonância com a vontade
de poder, esclarece a responsabilidade humanitária, in-
dependente dos valores inventados, viabilizando por uma
nova ótica, da capacidade criadora, a oportunidade do
sujeito para tornasse o herói do seu presente de forma
imanente. Através de todos seus sentidos corpóreos ele
faz sua jornada para ultrapassar o comum, mesmo que
para isso ele sofra com essa inatualidade inventiva, e se

158
torne trágico a transvalorizar os conceitos primitivos dan-
do um novo significado para vida. Ao ser liberto dessas
amarras sociopsicológicas o herói trágico singularizado
nos personagens dos irmãos Elrc proclamam um novo
caminho para seguir de forma reflexiva, pois entende
que os valores escravos deslocam penhasco abaixo o
sublime dos diversos conhecimentos por uma massa
opressora. Por conta disso a limitação do pensamento
dentro da diretriz civilizatória recai sobre ação mundana
e isso aflige as pessoas de distintas maneiras, mesmo
tendo, o indivíduo, todas capacidade física e intelectual
para remediar os problemas vitais. Por isso o respeito
aos gregos e indiferença quando ao cristianismo, en-
quanto um viabiliza a criação como sonho possível o
outro mostra uma apatia ao novo.

A modernidade trafega no meio termo, ainda com


conflitos religiosos, éticos e morais, mas com todas as
competências para o florescimento de novas tecnologia
em vários setores. Com a globalização há muitos para-
digmas expostos que antes não conhecíamos, como é o
caso das guerras política-ideológica, catástrofes naturais
suscetíveis a determinadas regiões, bem como os impac-
tos socioeconômicos do nosso país, mas e a questão
da vida como é tratada? Os valores aristocráticos dos
mais fortes ainda são recriadores de morais genéricas?

159
Somente a tecnologia é necessária a ação humana? Ou
ficamos dependentes de novas morais e sem perspectiva
heroica de ruptura civilizatória? Bem então a arte de viver
acaba por se torna apenas crítica daqueles que produzem
valores de fato capitalizados no dia a dia, sem saber que
o mundo é existente enquanto atividade de potência, e
para isso, a jornada do herói precisa exerce-las da me-
lhor maneira possível, colocando o pensamento altruísta
reflexivo a favor dos valores humanos.

Referências bibliográficas

HENRY, John. A religião e a Revolução científica.


In: HERRISON, Peter (org.). Ciência e Religião. Tra-
dução Eduardo Rodrigues da Cruz. São Paulo. Ideias
& letras, 2014, p 59-82.
HAASE, Ullrich. Nietzsche. Tradução Edgar da Rocha
Marques. Porto Alegre: Artmed, 2011.
MACHADO, Roberto. Nietzsche e a verdade 3º ed.
Rio de Janeiro/ São Paulo: Paz e Terra, 2017.
NIETZSCHE, Friedrich.A gaia ciência. Tradução:
Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia de Bol-
so, 2012.
_____. Vontade de Potência. Editora Vozes. Tradu-
ção: Mário Ferreira Dos Santos. Rio de Janeiro 2017.

160
ARAKAWA, HIROMU. FullmetalAlchemist. Tradução:
Luís Octavio Kobayashi. São Paulo: JBC, 2016. Volu-
mes: I-VI.

Amorim Sidarta Araújo

Graduando em licenciatura em filosofia UEAP. Bolsista


do programa de iniciação científica e tecnológica da uni-
versidade do estado do amapá (PROBICT/UEAP). E-mail:
sidartaamorim@gmail.com. Lattes http://lattes.cnpq.
br/1276594984061150

161
Organizado pelo projeto de pesquisa em História
em quadrinhos, o I Aspas Norte aconteceu em outu-
bro de 2018 e reuniu diversas apresentações de
trabalhos acadêmicos sob o tema “Linguagem dos
Quadrinhos”. Em 2019 foi realizada a segunda
edição do evento, igualmente reunindo diversos
pesquisadores do Amapá e Pará.

Este livro é uma seleção de artigos apresentados


nas duas edições do Aspas Norte, trazendo uma
visão ampla sobre diversos aspectos do tema. O
escopo das pesquisas vai desde o uso revolucioná-
rio das elipses em Cavaleiros das Trevas, de Frank
Miller, passando pelo feminismo negro e a arte
sequencial, pela hiper-realidade em Caçadores de
Sonhos, de Neil Gaiman, ou pela distinção de ficção
e realidade em Ronin, de Frank Miller, além da
hipersexualização das personagens femininas de
quadrinhos, até chegar à jornada do herói em
Fullmetal Alchemist.

Por fim, acreditamos que essa publicação certamente


evidencia não apenas que a pesquisa sobre quadri-
nhos existe sim na região norte, mas que tem qualida-
de equivalente à trabalhos de pesquisa sobre arte
sequencial feitos em outras regiões do Brasil.

162

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