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Cultura importa?

– Por Marta Porto

É preciso reinventar os sonhos que moldam o mundo.

Isso significa atuar naquele substrato humano que soma uma ideia de racionalidade sobre como o mundo é
e deve funcionar e uma esperança de que a vida se realize próxima dos nossos desejos, esperanças,
necessidades e motivações. Isso significa também um retorno a um ideal aristotélico de “poética”, o lugar
onde se valoriza a potência da imaginação humana para criar mundos e realidades diferentes das que um
determinado tempo-espaço nos brinda. Tornar a linguagem um ato de fala, onde você cria ou propõe uma
realidade e não apenas a representa.

O que seria o espaço da cultura, das artes a cada tempo histórico, com suas equações, verdades,
postulados e crenças sobre sucesso e fracasso, se não esse? E como pensar a cultura e as artes como
este repositório de ideias, imagens, atos e pulsões que reunidos nas mais diversas linguagens, línguas,
visões e cosmovisões que formam um amálgama das crenças e sonhos da humanidade, para desenhar
políticas capazes de atuar concretamente em um mundo que pede, exige mudanças e transformações? Se
toda a ordem é imaginada, como nos lembra o historiador israelense Yuval Harari, é urgente, neste
momento de muitas sombras e pouca luz, que a nossa capacidade imaginativa seja orientada para
transformar a cultura que sustenta as crenças que definem o mundo, para reinventá-lo.  As políticas
culturais são a fonte natural e a mais potente para realizar esta epopeia de reimaginação do mundo, do
seus sistemas de ordem e progresso, das suas razões econômicas que fazem 8 homens brancos bilionários
reterem a mesma riqueza que 3 bilhões de pessoas (metade da população global), das fronteiras reais que
levam comunidades, famílias e indivíduos a viverem longe dos seus lares, das suas terras e privadas do
direito de mobilidade e de vida digna, e as imaginárias, que conduzem à intolerância, ao racismo, a
misoginia e, em muitos casos, a morte.

Há que se perguntar: em um mundo que se torna mais desigual a cada ano[1], como promover valores de
prosperidade compartilhada, de solidariedade, de cooperação e mobilidade? E como desenvolver e apoiar
usinas de inteligência que proponham soluções, ideias  e imagens cujo o propósito seja promover valores
culturais, inovações em processos de aprendizagem, conteúdos e linguagens para a comunicação de
massa (publicidade, entretenimento, notícias) e novas plataformas de mídia (aplicativos, jogos, internet das
coisas) que funcionem como um manifesto, uma declaração sistêmica que crie novas possibilidades de nos
conectarmos uns com os outros e estabelecermos noções e crenças diferentes das que nos regem hoje.
Isso não é uma utopia, e sim uma mera imitação de momentos-chave da história das civilizações onde
homens e mulheres se perguntaram se aquela ordem na qual estavam submetidas era a adequada frente
as mudanças em curso. São as rupturas necessárias para se seguir em frente.

E o que podem as políticas culturais? E como devem ser moldadas para colaborar com este enorme
desafio? Sigo 3 ideias, com algumas premissas:

Premissa 1: Arte é arte e não deve ser pensada como meio. Defender a premissa da importância das artes
per se nas políticas culturais é uma urgência. É devolver ao desenvolvimento e com isso, a ideia de vida
pessoal e coletiva, a sua dimensão espiritual, do espaço da não-função, da imaginação livre. É preciso
libertar as artes das pressões econômicas e sociais, valorizando-as pelo valor que os artistas têm para criar,
pensar e agir livremente;

Premissa 2: Nem toda a cultura deve ser preservada, sacralizada ou mantida. A cultura define os valores
que sustentam crenças, decisões e ordens de uma coletividade em um determinado tempo e espaço. O
arbítrio, a violência, a censura tem por base valores e visões culturais do mundo. É preciso atuar de forma
orientada e firme para que a cultura desenvolva valores benéficos que colaborem e não destruam formas de
vida, de produzir riqueza e de se relacionar com o sagrado;

Premissa 3: Não existe democracia política sem democracia cultural. Isso não é um exercício retórico, mas
uma construção social. Criar um ecossistema que garanta que estes valores continuem a existir e se
sobreponham a necessidade de criar muros, de destruir culturas e formas inteiras de existência é uma
prerrogativa ética;

Premissa 4: Em um mundo globalizado de avalanche informacional, toda mudança cultural, ou valorização


de culturas, tem um desafio de produzir comunicação. Os meios digitais e as tecnologias e plataformas que
dominam o espaço virtual, em si não cumprem com esta prerrogativa. Comunicar é mais do que fazer uso
de meios, é pesquisar a natureza da recepção, os novos códigos que promovem subjetividade, as
linguagens capazes de criar interações e colaborações virtuais ou não. Toda mudança cultural é um ato de
comunicação. De que comunicação estamos falando? Temos que descobrir.
Aí vamos para as três ideias que acredito podem redesenhar as políticas culturais em um mundo
globalizado:

Ideia 1: Criar um ecossistema que inclua espaços culturais, start ups, programas de curadoria e para
formação artística, pesquisas científicas e centros de ciências, que funcione como um laboratório e um
consórcio de ideias para pesquisar e desenvolver projetos, plataformas, arquiteturas, produtos editoriais e
audiovisuais cujo único propósito é criar novas declarações de mundo, que comunique valores que
sustentem imagens humanas de criação, inovação, empatia e solidariedade. Que proponham formas de
aprendizagens capazes de tornar as decisões futuras mais benéficas para os 99% que ainda esperam por
fazer valer a sua trajetória humana na Terra. Um programa que organize uma onda potente, uma cena
coesa pensada como um imagination lab, que atraia jovens, não tão jovens, velhos, líderes, pensadores,
artistas, cientistas, curadores e criadores de todos os tipos e que opere a partir dos pressupostos ditados
por Joseph Campbell em O Poder do Mito, uma nova mitologia para um tempo que ainda não existe, pois o
futuro é sempre uma escolha. Se é uma escolha há que se ter um caleidoscópio de inspirações, de ideias,
experiências, experimentos e imagens que funcione como um repositório de possibilidades. E que amplie de
maneira orientada os códigos que pessoas comuns contam para imaginar outras realidades possíveis,
culturais, sociais, econômicas. Um laboratório público onde ideias de invenção do mundo são testadas e
comunicadas, um programa de laboratório da imaginação preocupado em gerar novos imaginários sociais e
conectar pessoas e conhecimentos;

Ideia 2: Defender e apoiar a liberdade artística de forma incondicional, sua diversidade, suas formas
transgressoras e disruptivas de agir no mundo contra qualquer oposição, censura e auto-censura
institucional, popular ou religiosa. É preciso dar respostas firmes ao comodismo e a submissão que as artes
estão submetidas, em especial em países em desenvolvimento, mas não só. Apoiar artistas, poetas,
escritores, criadores perseguidos ou sem apoio institucional para desenvolver sua arte e suas criações.
Artistas novos, artistas estabelecidos, amadores ou profissionais a nível global. É urgente, institucionalizar a
liberdade das artes como um pilar da democracia política. As agências de fomento e de cooperação há
muito já deveriam ter se ocupado de criar programas de apoio com um grau de risco mais elevado,
seguindo as agências de fomento científico e tecnológico. Se arriscar em linguagens desconhecidas, em
curadorias degeneradas, em formatos de criação que provocam choque e resistência. Se há um clube de
investidores globais de risco em produtos e serviços que apostam em novas formas de consumo e de
relação do homem com seu meio, com finalidades econômicas, sociais, de saúde, colocando a inovação à
serviço do enriquecimento e da economia de consumo e do bem estar, é possível induzir uma filosofia de
maior risco nos investimentos voltados para as artes e as linguagens artísticas? Pergunto se é possível
investir em massa em criações estéticas livres, em pensamentos criativos que levantem novas ideias,
linguagens e propostas, com a única finalidade de perpetuar os significados da criação humana, para algo
sem função, a não ser, lembrando o poeta Paul Valery, garantir que a poesia permaneça viva como um
estatuto espiritual da passagem do homem pela Terra. E criar sistemas globais concretos para proteger
aqueles que são perseguidos ou vivem em áreas ou situações de risco;

Ideia 3: Organizar um novo estatuto para a diplomacia cultural entendendo as redes de cooperação como a
ferramenta mais potente para dar significado cultural aos alertas de cada geração, seus desafios , dores,
sofrimentos e oportunidades. As políticas culturais de cooperação devem deixar claro o seu compromisso
público com os anseios, necessidades e desejos dos jovens, mulheres e minorias que protestam nas ruas,
que reagem a um sistema global de ordenação socioeconômica que sentem que deixou de cumprir o seu
papel. Cabe a diplomacia cultural dar significado cultural a este tempo de mudanças, trabalhando por uma
nova governança global capaz de ampliar a confiança nos sistemas de representação social, buscando
fontes de pensamento, projetos e iniciativas que funcionem como uma bússola ética das mudanças culturais
desejáveis. Isso significa mudar o pólo da relevância cultural, criando uma arquitetura de cooperação que
coloque em relevo as potencialidades e potências que residem em cada lugar, a contribuição da cultura para
os direitos humanos, para a segurança, a diversidade e a equidade. Para a festa popular, para a riqueza e o
respeito ao sagrado dos povos tradicionais, para as economias culturais solidárias que verdadeiramente
compartilham prosperidade e não apenas aquelas, criativas ou não, que perpetuam desigualdades
históricas em moldes mais cool e fresh. A diplomacia cultural tem que assumir o compromisso de defender
uma ética global mais justa, dinâmica, próxima do tempo de mudanças que vivemos e trabalhar para
promover narrativas e cooperações que ajam contra a violência, a barbárie e o ceticismo propagados
insistentemente pelos meios de comunicação, pelas falas de lideres globais e pela figura de imagem
chamada de “o mercado”. A diplomacia deve ocupar um lugar dedo it, enfrentando os problemas do
presente, alargando a colaboração de atores os mais diversos, ampliando os intercâmbios culturais entre
artistas e pensadores de países diversos para criar um manifesto de ideias e soluções que evite a repetição
e a mesmice das fórmulas que estão hoje na mesa. O que proponho não é a utopia, mas estações de
conhecimento, desenhadas com a finalidade de agir no presente para criar outro futuro, passo a passo,
como linhas do metrô, não lineares, com hubs que concentrem ideias potentes e universalizáveis, mas com
alternativas que apontem para lugares onde a ideia de estar junto tenha significado humano, civilizatório, à
luz das conquistas sociais, culturais, científicas e tecnológicas que temos. Não basta mais nos guiarmos por
objetivos costurados como agenda de compromissos por órgãos como as Nações Unidas[2], sem que
atuemos para mudar o nosso sistema de crenças e valores. Sem que enxerguemos a possibilidade real de
construirmos um novo sistema de governança global -como nos foi possível em vários momentos da
história, como exemplo a própria criação das Nações Unidas- que salte da ideia de reparação ou redução
de danos para tratar das mutações que tornem nossas vidas em comunidade, local ou global, dignas, cheias
de significado e oportunidades para prosperar dentro de convicções diversas e liberdade autêntica para
cumpri-las. Diria que a diplomacia cultural pode ser uma via para criarmos um novo renascimento que
coloque o humanismo de novo no centro, pele, corpo, cor e movimento. A diplomacia cultural, como
sublinhei no início dessa ideia, deve financiar as condições para uma nova ética cultural global, de forma
explícita, com uma narrativa de comunicação convincente, intervenção nos principais fóruns globais de
decisão, nas agendas e prioridades que são costuradas ali, facilitando o livre comércio e o trânsito de bens,
produtos, pessoas e eventos culturais. Como a agenda ambiental foi capaz de criar um novo paradigma
para o desenvolvimento no final do século XX, a agenda cultural, guiada por princípios culturais, artísticos e
éticos, pode agir para estabelecer um novo paradigma de governança política que fale a partir das pessoas
e não só do meio que elas vivem, que defenda a indignação, a rebeldia e a revolta traduzidas na ideia de
levante: aquilo que tem potência para nos levar a um outro lugar. Não se faz isso sem se livrar das regras
do jogo atuais e nem rompê-las abertamente, mas criando fissuras, brechas, reorientando recursos e
fomentos, colaborando de forma decidida na reconfiguração das agendas compartilhadas globais. E
acionando o ecossistema de arte e cultura – museus, bibliotecas, galerias, centros culturais e comunitários,
escolas e programas de formação em arte e cultura, programas públicos e privados para operarem em
conjunto com este objetivo. Se toda a guerra tem raízes em crenças culturais é necessário um grande
volume de esforços, humanos e financeiros, para reinventá-las.

Meu resumo, ainda que não seja conclusivo, propõe pistas e caminhos no campo da experimentação, da
defesa da liberdade inerente ao trabalho artístico ameaçado hoje por todos os lados, e da cooperação
internacional como ferramenta ética para uma agenda de renascimento humano, aumentando a diferença e
a complexidade dos modelos de pensamento que regem as decisões postas hoje na mesa. E capaz de
incluir as pessoas, o público, a revolta como centro do processo de mudança.

[1] Oxfam, 2017. Uma economia para os 99%, Relatório Anual.

[2] Agenda 2030 da ONU, 17 Objetivos do Milênio.

Palestra proferida no dia 28 de Junho de 2018 na Biblioteca Municipal Galveias em Lisboa. Uma
organização Acesso Cultura | Artemrede.

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