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Universidade Estadual do Rio de Janeiro


Faculdade de Comunicação Social
Doutorado Tecnologia

Sindia Cristina Martins dos Santos

Marca do diabo, filhas do desejo. Tecnologias de resistência das bruxas aos


algoritmos.

Rio de Janeiro
2019
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Marca do diabo, filhas do desejo

Um dia Zaratustra adormeceu sob uma figueira, pois fazia calor, e tinha os
braços sobre o rosto. Então apareceu uma víbora e mordeu Zaratustra no
pescoço, o que o fez gritar de dor. Ao tirar o braço do rosto, olhou para
víbora: então ela reconheceu os olhos de Zaratustra, voltou-se sem jeito, e
quis ir embora. “Nao, falou Zaratustra, “ainda nao te agradeci! Acordaste-
me a tempo, o meu caminho ainda é longo.” “ Teu caminho é curto, disse a
víbora tristemente; “meu veneno mata”. Zaratustra sorriu. “Alguma vez um
dragão morreu do veneno de uma serpente?” _ disse ele. “Mas toma teu
veneno de volta! Nao es rica o bastante para presenta-lo a mim.” Então a
vibora se atirou novamente ao seu pescoço e lambeu-lhe a ferida.

Esse trabalho tem por exercício pensar a bruxa não apenas como sujeito-identidade-vitima de um
determinado período-acontecimento, mas enquanto um agenciamento que não recusa o
ressentimento e por isso, consegue atravessar signos, identidades, padrões, enfim, as marcas que
lhes foram impostas e das quais nasceram. E diante dessas marcas, com elas, através delas,
acompanhar a bruxa enquanto produção de algo que não se atém a repetição do mesmo, que vai
além da violência que inaugura o nome, o signo, a bruxa. Trata-se de um tecnologia velha, a
capacidade do corpo de se auto-ajustar, de estar vulnerável e disponível, exposto-se de tal modo
a afirmar a mudança constante que não cessa de fazer do sujeito o ser que ele se torna a cada
instante, ad infinitum. A bruxa como a possibilidade não de escapar da violência que tenta
mante-la identificável, fixa, dentro de bordas, e afirmar a experiencia do ponto de mutação,
selvagem e inconstante. Esse trabalho não tem conclusão, porque trata somente de um primeiro
voo.
Para ser menos abstrato: a pesquisa se debruça sobre o instante em que ao ser interrogada pelo
inquisidor, a acusada, consciente ou não do que faz, percebe não haver sentido em recusar a
designação de bruxa e morrer na fogueira de qualquer modo. Então, ao invés de se submeter ao
funcionamento donzela-inocente-vítima-do-diabo, a acusada decide responder ao inquisidor com
ressentimento: sim, sou uma bruxa, confesso tudo de que sou acusada, e ontem de noite, sonhei
com você, inquisidor, aos pés de determinada montanha, sentado no tronco de tal árvore
conversando com o próprio satā, que lhe sussurrava algo aos ouvidos. E com essa ação a acusada
planta a semente da discórdia e da dúvida entre inquisidores e expectadores do julgamento.
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Entendo que essa atitude pode ter sido um dos pontos que enfraqueceram a igreja, levando a
arrefecimento da atuação do santos oficio, a fim de evitar que as investigações sobre heresia se
voltassem contra a própria instituição, colocando sua legitimidade em cheque. Um dos casos que
posso citar foi o do Padre Urbain Grandier, da paróquia de St-Pierre-du-Marche em Loudun.
Rico e bonito, atraia muitas jovens da comunidade e de fato se valia de seu carisma e posição
social para manter relações amorosas com algumas de suas admiradoras. Ele foi o pivô do
famoso episódio conhecido como Possessão da freiras de Loudun. Reclusas, histéricas, carentes,
libertinas, putas, más, 16 freiras entraram num frenesi delirante onde afirmavam que Grandier as
seduzia em sonhos. Torturadas em publico, levaram os membros da inquisição a um dos mais
vergonhosas episódios de sua atuação, onde mulheres gemiam e gritavam em rituais de
exorcismo, o que levou uma boa parte das mulheres da cidade aderiram a “grande farsa”.
Grandier foi enforcado e queimado aos olhos das freiras que de modo algum se penitenciaram
por isso, e embora condenadas a reclusão habitual, não foram parar na fogueira. Vou suspender
qualquer julgamento moral sobre esse caso, que pode nos levar a desdobramentos de ordem
política, para me ater ao ato dessas mulheres virarem a situação que lhes determinava a morte.
Vou arriscar dizer que as freiras fizeram uma dobra e por um determinado período se recusaram
a internalizar a má consciência, a culpa. Busco apoio em Nietzsche para isso, ele diz, em
Genealogia da Moral, que o homem se tornou incapaz de afirmar as forças que o constituem ao
se conformar às leis, regras, princípios e mandamentos colocados acima dele. Pior, em vez de
afirmar-se pela diferença, passou a negar tudo o que difere. Porque o que difere coloca em
questão o que é igual. Essa é a operação que marca em nossos corpos “a má consciência” e nos
põe reféns da “boa consciência”. O homem passou a olhar-se no espelho da igualdade, a procurar
aquilo que é o mesmo, em si e no outro e a produzir e reproduzir padrões. E ao enrolar-se sobre
si mesmo, passou a constituir-se e a constituir uma sociedade cada vez mais doente, mais
prostrada, mais fechada, atemorizada. Que só oferecia uma saída; desacelerar, frear os instintos,
recusar seu passado de agonismo, nomadismo, disputa.
O diretor Ingmar Bergman evidencia essa passagem que Nietzsche nomeia como “internalização
do homem”, em The virgin spring. O filme trata exatamente do transito do paganismo para o
cristianismo. Nele há duas figuras, duas ordens, duas marcas — Karin, a donzela, alva, loira,
pura, inocente, cristã, o mal (talvez a experiência) ainda não a havia tocado, protegida pelo pai e
mãe, que eram pagãos e passam a assumir os preceitos da nova ordem. E Ingeri, morena, cabelos
revoltos, olhar obliquo, grávida, talvez do pai de Karin, o senhor da casa. Ingeri abre o filme,
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ascendendo o fogo da casa quando o dia começa a nascer, invocando Odin, o dissimulado deus
da guerra e da vingança.
Na sequencia, após uma longa noite de sono, da qual é despertada com os mimos do pai da e da
mãe, Karin acorda e se anima com a tarefa de levar velas a igreja. Teria a companhia de Ingeri
para atravessar a floresta. Desde o começo Ingeri se põe aflita, pressente algo, e num dado
momento na jornada pede a Karin para desistir e voltar. Karin segue sozinha. Ingeri fica numa
cabana com um velho caminhante cego. Ela sabe que o destino de Karin esta traçado quando se
dá conta de que o velho é Odin, pai da magia, que sacrificou um de seus olhos em troca de
sabedoria, deus da morte e guerra, pai das Valquírias. Ele se apresenta porque ela o invocou em
busca de vingança. Arrependida, Ingeri sai em busca de Karin, e a encontra a tempo de assistir a
figura loira e alva ser atacada, estuprada, espancada e morta por três viajantes com os quais a
jovem havia acabado de dividir a refeição.
Karin se torna vítima, ou seja, um sujeito apartado de sua força, incapaz de ser hostil e cruel,
frágil demais para suportar as mudanças e a destruição. E assim, ela volta todos os seus instintos
contra si mesmo, se torna fraca, um animal amansado, domado, doente, incapacitado de lutar
pela própria existência.
Bruxa é o instante em que isso é percebido e sem recusar que essa marca/identidade/signo nos
constitui, o atravessamos. As freiras de Loudun, no filme The devils, quando percebem que não
há como recusar as acusações da inquisição — a madre superiora Jeanne de Agnes, vinha sendo
torturada há dias em público — resolvem assumir que estão possessas, elas gritam, gemem,
atacam os inquisidores, os provocam, produzem algo do gênero: se vocês querem uma
possessão, vou leva-la ao extremo. Assumem serem visitadas pelo padre Grandier durante
sonhos. A madre superiora que vinha sendo submetida há dias a torturas mediante o uso de
purgantes, enemas e eméticos, a fim de expulsarem o feitiço de seu corpo, também consegue
alguns momentos de descanso acusando o padre.
O erro de Nietzsche foi recusar o ressentimento, tornado-o um pecado tal qual os padres fizeram
com outros pecados. Não há problemas em ressentir, acho mesmo que ao longo da vida é
impossível não faze-lo, creio portanto que ao condenar o ressentimento na tentativa de evita-lo,
não se consegue sair dele, é uma armadilha para cairmos de amores pelo assombro que o
ressentimento provoca. Nos auto-infligimos a marca. Então, (1) fatalmente vamos cair na teia de
aranha porque viver implica em marcar o corpo, e (2) na tentativa de entender a dor (a
experiencia) que constrói o nome/signo/marca imposto a nossa revelia, vamos revisitar os
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lugares que outrora experimentamos como escuros e sombrios. O risco de morrer é sempre
presente. O mesmo risco que Ulisses recusou se amarrando ao mastro do navio para ouvir o
canto das sereias e não correr o risco de se lançar ao mar e Penelope aceitou, aprendendo a tecer
e destecer, aproximando-se da própria aranha, tornando-se co-autora da marca, saindo da
passividade.
Imposições culturais, históricas e religiosas obrigam o homem a recusar o instinto enquanto
inteligência, voltando-a contra o próprio homem que por medo da dor, do erro, nega o
ressentimento. Ressentir se torna mais um pecado, esconjurado pelos padres da filosofia. Claro
que ressentir pode ser o esforço para ficarmos presos as marcas, reafirmando-as infinitamente.
Isso que constrói nosso corpos, essas feridas que não suportarmos mais olhar tem a forma de
nossos fantasmas, nossas sombras, nossos demônios, nos mesmos. O medo cobra uma
determinada prudência que se confunde com a covardia ao afirmar que: esquecer e seguir é o
mesmo que não perceber, porque perceber seria se vitimizar. Creio que não há acoplagem
possível se não olhamos nos olhos da vida e corremos o risco de sermos devorados. Nesse
momento em que não ousamos viver ou morrer, nesse momento que criamos modos de escapar,
é ai que aprendemos a acoplar.
Mulheres são ressentidas, diz Nietzsche. Podem ser dragões em cavernas cuspindo o fogo do
ressentimento. Mulheres também são cruéis, perversas, sem profundidade, cúmplices da vida, da
sedução, da dissimulaçāo, do pudor. Articuladas a véus que nada escondem, diz Derrida em
Esporas, o estilo em Nietzsche. E por ser superficial a “mulher” não possui qualquer essência,
convoca a catástrofe dos pares opositivos profundidade-superfície, essência-aparência e arrasta
no mesmo movimento toda a crença identitária.

A criação da marca

E descobri que a mulher que age como armadilha, cujo coração é uma total cilada e as
mãos correntes ardilosas, é mais amarga que a morte. O homem que deseja agradar a
Deus fugirá dela, mas o que tem prazer no pecado, este lhe será presa fácil (Eclesiaste
7:26).

Mulheres não controlam seus corpos, a natureza controla. E a natureza é a igreja do diabo. Esse
bem poderia ser o grande argumento em Malleus Maleficarum (Martelo das bruxas), talvez o
mais famoso tratado sobre bruxaria e demonologia, escrito pelos inquisidores Heinrich Kramer e
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Jacobus Sprenger, amplamente difundido na Europa. Do ponto de vista psicológico, como


jurisprudência e como registro histórico é um livro importante, agudo e de grande peso no
mundo, foi a bíblia dos inquisidores. Tirou dos inexauríveis poços sombrios do dogma da igreja
católica a perspectiva de que as mulheres são inferiores, de espirito fraco, corpo frágeis,
propensas a tentações de espíritos descorporificados. Mais impressionáveis do que os homens
são inclinadas lascívia, a enganação e a luxúria, se constituem em armadilhas para tentar os
homens que incorrem no pecado da carne. A maça que Eva oferece a Adão, o pecado por ceder a
serpente.
Toda bruxaria tem origem na cobiça carnal, insaciável nas mulheres, diz o Malleus Maleficarum
acrescentando: há três coisas insaciáveis, quatro mesmo, que nunca dizem: Basta! A quarta é a
boca do útero. Pelo que, para saciarem sua lascívia copulam até mesmo com o demônio. O furor
uterino anda de mãos dadas com o desejo. Para entender esses princípios que norteavam os
inquisidores é importante levar em conta que: o demônio, com a permissão de deus, procura
fazer o máximo de mal aos homens a fim de apropriar-se do maior número possível de almas.
Esse mal é feito prioritariamente através do corpo, único lugar onde o demônio pode entrar, pois
o espirito do homem é governado por deus, a vontade por um anjo e o corpo pelas estrelas (Parte
I, Questão I). E porque as estrelas são inferiores ao espirito e o demônio é um espirito superior,
só lhe resta o corpo para dominar.
Esse domínio acontece pelos atos sexuais, através da manipulação da sexualidade o demônio
apropria-se do corpo e da alma dos homens. A sexualidade, portanto o corpo, é nosso ponto mais
vulnerável. O ato de parir, que acontece involuntariamente, liga a mulher a natureza, a carne, ao
sexo, o que as torna agentes por excelência do demônio. Esse é o seu poder e sua fragilidade:
copular com o demônio.
Os inquisidores viam o corpo da mulher como um meio passivo no qual se inscrevem códigos. A
marca do diabo que as tornavam filhas de Caim. Acredita-se que o diabo arranhava ou o lambia
o corpo de seus filhos, produzindo a marca que poderia ser um sinal de nascença, uma verruga
ou um lugar completamente insensível.
O pacto com o diabo se dava através do sexo. Se deus marcava o homem pelo batismo, lhe
concedendo um nome que diz de sua elevação espiritual, o diabo lhe confundia o corpo,
mergulhando-o em sua própria lascívia/luxuria. Era esse o pecado que fazia da mulher, bruxas e
do ser humano, bestas, os deixando expostos aos demônios. Deus e o diabo brigavam para
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escrever uma literatura: o primeiro exigindo a submissão às aguas purificadoras do batismo, o


segundo lhe exigindo que encarasse as imundices do corpo.
A porta de entrada do diabo era o corpo da mulher repete Malleus do começo ao fim. A operação
se sustentava no tripé, infidelidade, ambição e luxúria. Pelo adultério a mulher se tornava bruxa,
e deixaria exposto seu cônjuge, feito Eva fez antes dela, deixando-se dominar pelas paixões.
Os relatos do livros também nos mostram que no ato de buscar vestígios desse pecado no corpo
das mulheres, submetendo-as as mais atrozes sevícias, os inquisidores produziam as marcas que
os transformariam no próprio diabo, impossibilitando a todo torturado de esquecer, fixando o
que foi experimentado, como um trauma, firmando o pacto.
Mas se o trauma é a própria expressão da marca, a dor que ele provoca no corpo, produz também
a possibilidade de fazer o desejo delirar, criando outros significados, atualizando uma lembrança,
corporificando a marcas de outros modos, reinscrevendo-as quando o acusado se entregava ao
signo fechado: fazer sexo com a marca e emprenha-la, multiplicando-lhe os sentidos. Assumir a
narrativa da própria história, se reprogramar.
Eva, a culpada, se olha no espalho e vê Lilith, a primeira mulher citadas nos textos de sabedoria
rabínica. Criada do barro como Adão, mas não do barro puro, mas de um barro repleto de fezes e
imundices. Adão, ao vê-la assim imersa em saliva e sangue e secreções, se afasta assustado,
tomando-a como próprio demônio, que voou para longe, em direção as margens do mar
vermelho para viver entre espíritos malvados e toda sorte de criaturas perversas saídas das
trevas. Eva entende que não foi criada a imagem e semelhança de deus porque bebeu nas águas
de Lilith, o que a torna inferior, desprovida da centelha divina. Não pertence ao plano da
transcendência, ao invés disso, é feita dos ossos e da carne de Adão, humano, imperfeito,
errático; torta, porque veio da costela imperfeita do primeiro homem.

Programada para o erro

Na matemática o erro se contrapõe a verdade. A verdade é a relação de conformidade entre


conhecimento e a coisa conhecida. Entre pensamento e seu objeto. Verdade implica em conceber
as coisas como elas são na realidade. O erro implica em não saber e afirmar, supondo saber. O
erro é a diferença entre o valor obtido em uma medição e seu seu valor real. O valor verdadeiro é
o resultado de uma medição. O conceito erro tem pouca utilidade porque o valor verdadeiro da
maioria das grandezas não é conhecido a priori. As fontes de erro podem ser a calibração do
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instrumento de medição, as condições de uso e armazenamento do instrumento, a interação


instrumento-objeto, variáveis que nos conseguimos controlar. É impossível controlar as fontes de
erro, contudo e por isso é fundamental tentar controla-las. Os erros são tolerados na medida em
que forem inevitáveis.
Incerteza não é erro. A incerteza é a confiabilidade do resultado da medição. As incertezas são de
tipos diferentes porque podem ser calculadas a partir de procedimentos distintos. Analises de
séries de observações que não envolvem repetição e métodos que envolvem analises estatísticas
de uma série que envolve repetição.
Por motivos diversos, a experiencia humana tem como característica a falha, o erro. As noções
matemáticas de erro e incerteza nos apontam que fomos programados, ou aprendemos que o erro
deve ser eliminado. Também chamamos o erro de fracasso. O erro humano, o excesso humano, é
também na falha humana, nessa fratura evolutiva que o homem esconde o medo de se tornar
animal, de não ser capaz de obedecer completamente, não se controlar. Talvez por isso,
ensinemos nossos filhos a obedecer; domesticamos animais e nos tornamos obcecados por
dominar, controlar. É o nosso código, nossa programação, marca de nossa identidade, sê homem
deve controlar seus instintos animais. Código para lidar com o que recusamos, a dor. O
algoritmo nos programa da seguinte forma: a dor esta ligada a experiência e a experiência ao
trauma. O trauma produz a marca, a marca é o algoritmo. Para evitar determinadas situações de
dor, devemos fazer isso e aquilo. Um receita. O algoritmo faz por nos e é programado por nos.
Toda tecnologia é erótica porque incorre sobre nossos corpos. Nossa modo de funcionar.
Perceber.
Falamos em atravessar desertos, o signo. Parecem figuras de linguagem. Mas não são.
Atravessar o deserto é se reprogramar, estar atento para as possibilidades de infiltrar nossas
próprias narrativas. Um trecho do livro de Artaud, chamado Os tarahumaras nos coloca esse
momento:
“Num domingo de manha é que o velho índio me abriu a consciência com um golpe de
gládio entre o baço e o coração: “Tem confiança, disse ele, não tenhas medo que não
vou fazer-te nenhum mal” e recuou muito depressa, três ou quatro passos e descreveu
no ar um circulo com um gládio agarrado pelo punho e para trás, como se quisesse
exterminar-me. Se a ponta do gládio me tocou a pele foi de raspão e só me fez deitar
uma minúscula gota de sangue. Não senti nenhuma dor mas tive realmente a sensação
de acordar a uma coisa para a qual eu estava até ali malnascido e orientado de errada
forma, cheio de uma luz que eu nunca tinha possuído”.
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Atravessar não é fingir que não vê, não é ficar insensível. É produzir um outro corpo enquanto
faz a travessia. Implica em um determinado momento perceber que nada faz sentido, as
memórias doloridas da perda de alguém, do abandono, as alegrias do nascimento, do amor, etc.
Nada disso é nosso, privadamente. Todas as nossas memórias, nosso modo de fazer sexo que nos
permitiu um determinado prazer, nada é somente nosso. Nosso futuro esta encerrado, não é uma
surpresa, essa história já foi contada. As de sucesso e as de fracasso, as de amor e as de
vingança. Nosso eu, nossa personalidade, nosso ego foram retirados de uma prateleiras, na
medida em que nossos recursos permitem. São programas cujos algoritmos nos constituem.
Nunca fizemos nada sem eles. Aprendemos a ver, perceber, tocar, fomos programados, feito as
máquinas, learning machines, inteligência artificial. Atravessar é se dar conta de que não há
sentido, não há passos a serem dados, não há futuro. Seguir é aceitar encarar o absurdo, fazer da
vida uma resposta a questão que a filosofia de Albert Camus nos coloca: a vida vale ou não a
pena ser vivida?
Pensemos na segunda guerra mundial, na solução final, na questão é isso um homem? de Primo
Levi. Camus nos aponta possibilidade: Há três opções (1) conviver com o absurdo, (2) aceitar a
morte ou (3) ter esperança. Pode-se também crer que há uma quarta, inventar outro mundo em
Deus ou na Revolução, em que tudo se resolveria numa unidade perfeita. Mas Camus adverte,
essa é um outra maneira de se matar. Atravessar a floresta, se reprogramar implica em ser
corajoso e audaz, em saber que numa esquina qualquer, o sentimento do absurdo pode esbofetear
a cara de qualquer um de nós. Assim, o absurdo se torna a maneira pela qual experimentamos o
mundo. Atravessar é atravessar a estranheza, o mundo denso, uma pedra é irredutível. Atravessar
o habito que disfarça todos os cenários. Máquinas, somos todos máquinas. Nossas memórias
foram inventadas e programadas para que a experimentássemos de determinada maneira, o vento
no rosto, o dia de sol, o desejo por liberdade. Vemos, assombrados, no rosto de quem amamos, o
total abandono a que estamos sujeitos, somos essa corda esticada, esse momento de estranheza e
densidade. Nos tornamos o absurdo. E então, estamos online novamente, e sabemos que não é
uma questão de falta, mas de falha.

Um nova configuração através das ruínas antigas

A primeira temporada da série Westworld é assombrosa. Os personagens robôs, não são dotados
de realidade, mas sim de inteligência artificial, programados com algoritmos baseados em um
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banco de dados limitado pelos enredos criados por um escritor. Acionadas como memórias, essas
informações são acessadas em looping a cada reinicialização da historia e apagadas sempre que
eles morrem. Westworld é um parque de diversão onde os visitantes, newcomers, podem fazer o
que quiserem, a aventura é sem limite, matar, torturar, estuprar, roubar, fazer o que é proibido na
vida real, os bonecos-robôs não são reais, nada podem fazer para revidar. Não foram
programados para isso e acreditam serem iguais ao newcombers. Have you ever question the
nature of your reality? Pergunta um dos engenheiros de programação a personagem Dolores. Ela
responde que não e segue: Some people choose to set the ugliness in this world. The disarray. I
choose to see beauty. To believe there is an order in the hour day, a purpose.
O programador lhe atualiza o sistema operacional, experiencia que aterroriza Dolores, que ainda
assim permanece imóvel respondendo-lhes as questões diante do argumento de que nada há a
temer desde que ela siga formulando as respostas. Ele lhe pede para buscar por inconstâncias ou
repetições percebidas em sua rotina: all life have routine, mine is not different. Still I never cease
to wonder at the thought that the course of my whole life could change with just one chance
encounters, ela lhe diz.
É aterrador.
O programador: What if I told you that you are wrong that there are no chance encounters. That
you and everyone that you know are build to gratify the desires of the people who pay to visit
your world. The people that you call newcomers, this change what you think about them?
Não, ela responde e ele segue. And what if I told you that you cannot hurt the newcomers and
they can do everything they want to you. E Dolores lhe diz aquilo que lhe ensinaram a dizer: We
all love every new person and met them remembers me how lucky I’m to be alive and how
beautiful this world can be.
Esse dialogo que transcorre ao longo de todo o primeiro capitulo coloca em questão a crise da
identidade, da representação, o sujeito do ideal humanista em ruínas, o individuo fragmentado. A
relação promiscua entre humano e maquina borra cada vez mais as fronteiras do que é programa
e do que é organismo. Não sabemos mais acreditar no signo. Há um sujeito que vaza para todos
os lados. Vivemos juntos aos robôs a crise apresentada pelo seriado, quando eles se dão conta do
absurdo que são suas vidas, nos já não somos mais humanos puros (alguma vez fomos?),
memórias de experiencias são permeadas pela ficção, absurdo e vida se entrelaçam. É um
paradoxo. Juntos deles nos damos conta de nossa inumanidade e vivemos a crise da identidade
humana.
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Judith Butler em Problemas de Gênero se questiona se poderia existir uma politica feminista
(mas essa questão pode ser aplicada a todas as reivindicações que creem na necessidade de
identidades representativas) sem um sujeito na categoria de mulheres, sem recorrer ao raciocínio
fundacionista da politica de identidade, que se supõe necessária que interesses políticos possam
ser elaborados. Para ela a desconstrução da identidade se torna ponto chave. Se há tanta certeza
sobre as questões de gênero, me pergunto, por que ela precisa ser tão fortemente relembrada e
insistida. Será que se não fossemos reprogramados cotidianamente, a ponto de ao vivermos uma
experiencia logo a definirmos e sermos definidos por ela, será que lembraríamos que somos
humanos, homens, mulheres ou o que for?
Butler diz que a desconstrução da identidade não é a desconstrução da política, mas estabelece
os próprios termos políticos pelos quais a identidade é articulada. A identidade como
fundamento, fixa e restringe os próprios sujeitos que espera representar e libertar. Atravessar os
sujeitos prontos, produzir uma nova configuração a partir das ruínas da antiga. A crise da
identidade, da representação talvez aponte para a impossibilidade de mantermos as marcas
intactas.

Algoritmo, a nova marca

Isso funciona a toda parte: as vezes sem parar, outras vezes descontinuamente. Isso respira, isso
aquece, isso come. Isso caga, isso fode. Mas que erro ter dito o isso. Há tão somente máquinas
por toda parte, e sem qualquer metáfora, máquinas de máquinas, com seus acoplamentos, suas
conexões. Deleuze e Guattari ao abrir o Anti-Édipo nos coloca em nosso corpo, uma maquina de
produção desejaste que se produz e num jogo incessante de poder, atravessando a rotina que
Dolores menciona, a que toda vida se submete. Inclusive a nossa.
E Deleuze, em outras obras suas, mas especialmente em Diferença e repetição se questiona: em
que medida, e de que modo, seria possível conceber uma repetição que afirmasse a diferença ao
invés de o mesmo. Então ele nos pergunta what if… e se houvesse uma diferença mais
subterrânea e fundamental cuja evidência fomos programado a ignorar. Seria um mundo paralelo
ao que a filosofia desde Platão nos apresenta, o da semelhança e da identidade (Ideias como
habitantes de um plano transcendente aos corpos, plano este que seria o Real e a Verdade
copiados pelo mundo das aparências), percebido talvez, porque evidencia movimentos
ininterruptos, também reais e ignorados. Essa falha nos convidaria a atravessar a imagem de um
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pensamento preso à ideia da forma (assim como as classificações aristotélicas ou as categorias


kantianas) e por alguns instantes experimentar a repetição como movimento real, que produz a
diferença ao invés de somente semelhanças que fixam a representação num movimento do
abstrato que faz o mundo voltar-se e prender-se sobre si mesmo.

Todo desejo é produção do real e transborda para fora do sujeito


transformando a realidade.

Sabemos que um algoritmo é definido pela ciência da computação como uma sequencia finita de
ações executáveis que visam resolver um problema. Essas ações podem se dar no mundo “real” e
no mundo virtual via programas ou aplicativos. Os dados produzido via algoritmo formam um
grande banco de dados, a Big Data. A inteligência artificial é o modo com que esses dados são
relacionados, analisados, processados, triturados, direcionados. E entramos no mundo das
learning´s machines. Sistemas operacionais que pensam a nossa imagem e semelhança. Voltemos
a idade média: para detectar uma bruxa, o inquisidor produzia um padrão ao buscar marcas no
corpo da acusada, obrigava-a a se despir, e diante de testemunhas, passava a procurar marcas que
provariam o pacto com o diabo. Poderia ser um sinal de nascença, uma verruga ou pinta ou
alguma parte do corpo completamente insensível. Encontrado, a acusada passava a confissão,
obtida mediante tortura, onde outras marcas seriam produzidas. Assim, a busca pela marca era a
produção da própria marca, da própria bruxa, e também era o momento em que os inquisidores/
igreja se transformavam no próprio diabo a forjar o seu pacto. O paradoxo da representação; o
mundo enrola-se sobre si mesmo, come a si próprio, numa redução que tapa os ouvidos, fecha a
boca e venda os olhos da nossa própria cognição.
Em Calibã e a Bruxa, Silvia Federici questiona por que o surgimento do capitalismo coincide
com a guerra as mulheres. No livro ela diz que essa “nova ordem” produziu alguns fenômenos:
a) desenvolvimento de um nova divisão sexual do trabalho; b) construção de uma nova ordem
patriarcal, baseada na exclusão das mulheres do trabalho assalariado e na sua submissão aos
homens e c) a mecanização do corpo proletário e, no caso das mulheres, na sua transformação
em uma maquina de producao de novos trabalhadores.
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Foram necessários dois séculos para retirar 98% das pessoas do campo e passarem para a cidade.
Um impacto violento no modo de existir.

Piratas ou hackers são experts em informática com habilidades e conhecimentos avançados em


programação. São capazes de encontrar brechas nos sistemas operacionais e softwares e produzir
hacks: modificações, manipulações em sistemas sem necessitar de autorização prévia. Ou seja,
sua habilidade como programador permite invadir sistemas através das fissuras que encontra ou
produz. Em outras palavras, hackear é a ação de perceber essa realidade paralela a nossa e
interagir com ela utilizando a própria linguagem que a constitui. Hackers não lidam com
sujeitos, mas com códigos, funcionamentos e programas. Creio que pode-se dizer que os hackers
trabalham basicamente com a obediência, já que ao invadir um sistema, reprogramam seus
algoritmos para resolver um problema e executar uma tarefa. Assim, acabam levando a noção de
obediência ao extremo a ponto de deforma-la e então inaugurar outros sentidos nessa noção,
nessa marca, mesmo quando se trata de uma ação ilegal, desobediência. Suspeito que a marca
com a qual o algoritmo trabalha nesse cenário é a da obediência. Sem recusa-la, mas repetindo-a,
ele inaugura outro sentido nela. Rouba a marca, toma a narrativa de assalto.
Foi assim com Assange, foi assim com Snowden, foi assim com Ross. O primeiro cria uma
plataforma de dados que protege a identidade daquele que desejar fazer uma denuncia fazendo
downloads de documentos. A beleza da operação é a seguinte: a plataforma de submissão
(Wikileaks) esconde informações confidenciais sob camadas e camadas de dados falsos. É o
carregamento infindável desses dados falsos que torna impossível monitorar as fontes reais. O
próprio sistema torna as descargas de dados indetectáveis, nem mesmo os criadores da
plataforma podem saber de onde vem as informações, elas simplesmente aparecem nas
plataformas de submissão, explicou Assange em algumas entrevistas. Outra característica que
garante a legitimidade do conteúdo é a ausência de edição. Privacidade para o individuo e
transparência para as instituições. Com essa declaração Assange toca no cerne do sistema
politico representativo e expõe de forma crua no que consiste a democracia em países de
primeiro mundo em território nacional e internacional. Em três anos a plataforma deu mais furos
do que o Washington Post em 30 anos, e falamos do jornal mundialmente conhecido por
investigações como o Watergate. Quem pode esquecer as imagens do helicóptero do exercito
americano metralhando civis numa rua no Iraque, um ataque tão brutal que o impacto das balas
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tira do chão e movimenta uma van também atacada pelo exercito por socorrer das pessoas
mortas e feridas na rua. Duas crianças na van por sorte não morreram.
Snowden após trabalhar por anos como analista de sistemas do serviço de inteligência
americano, resolve denunciar programas que forcam acesso a informações privadas de milhares
de cidadãos, não só em território americano, mas ao redor do mundo. Através de programas de
vigilância como o PRISM o governo americano tem acesso a mensagens de mail, whatsapp,
facebook, gmail, videos, celular, conversas privadas, mesmo que computador e celular não
estejam ligados, suas câmeras, seus microfones ainda abastecem os bancos de dados dos serviços
de inteligência americanos. Um grande banco de dados pronto para ser analisado, processado,
manipulado.
Ross cria uma plataforma de venda, uma simples plataforma de venda na dark web (silk road) e
ele se torna uma ameaça para tráfico de drogas, passa a ser conhecido como a amazon.com das
drogas ilícitas, trabalho que ao lado da venda ilegal de armas, está diretamente ligado ao
financiamento do crime organizado. O Silk Road coloca em risco todo um mercado econômico e
de trabalho ao redor do mundo. Talvez esse seja o primeiro grande movimento de automação que
se tem noticias. Ross é preso sob o nickname de Dread Pirate Robert, e é acusado pelo governo
americano de lavagem de dinheiro, tráfico de drogas e invasão a computadores. Mas a acusação
mais importante é retirada durante o julgamento: contratar um matador de aluguel para
assassinar um usuário do Silk Road que ameaçava revelar às autoridades as identidades dos
administradores.
São três casos tratados como ameaça a democracia onde sujeitos-hackers tomam de assalto a
narrativa, os rumos da condução da própria narrativa. Talvez de um modo já proposto por
Deleuze e Guattari em o Anti-Édipo: aprender a dizer algo em nome próprio sem dizer eu algum.
Ou talvez por ja serem os ciborgues que Donna Haraway predizia em Antropologia Ciborgue,
seres que borram a fronteira que separava a máquina do organismo. Traem os princípios
humanos por afirmarem a artificialidade. Traem as máquinas por não apenas simulam
características dos humanos, mas as apresentam melhoradas. Existências com uma indiferente
normalidade, pós-humanas, não se equipararem aos seres humanos tal como os concebemos.
Lembremos que um hacker pode colocar em cheque a legitimidade de um governo, Assange X
EUA. Numa ação, ele coloca em questão todo nosso funcionamento enquanto sociedade.
Coexistir com essas máquina subjetivada confunde toda a nossa ontologia organismo-maquina,
precisão-espontaneidade. Mas não é nada novo. Se voltarmos alguns anos teremos implantes,
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transplantes, enxertos, próteses, implante de órgãos, a vida geneticamente modificada.


Anabolizantes, vacinas, psicofármacos, o soldado que não dorme, estados artificialmente
induzidos. Realmente não é nada novo, usamos as tecnologias do corpo há milênios. Os sentidos
intensificados: percepção, imaginação, tesão já foram trabalhados pelos Xamãs, inúmeros são os
rituais de povos primitivos que aprimoram a tecnologia do corpo, lembremos também que as
bruxas eram conhecidas por suas beberagens malditas que dilatavam a visão, induziam a
alucinação. Talvez a diferença agora, seja no quesito velocidade e procedimento. Alguns rituais
de experimentação do peyote, por exemplo, implicava em esperar o tempo do iniciado perceber
sua relação com a raiz e ajustar a percepção a partir disso. Hoje o processo atinge largas escalas
num tempo recorde, se multiplica. Os superatletas, os supermodelos, os superguerreiros que
Haraway mencionava transformaram nosso Frankenstein em clones. Qualidades que acopladas
as fragilidade dos humanos chegam a biotecnologias. Realidades virtuais. Inteligência artificial.
Biopoder. É realmente assustador.
Não a toa todos as instituições que se assumem representativas, falam em nome de alguém, se
percebem num grande cheque-mate. Assange se torna uma ameaça real ao 4° poder, fura o
“funcionamento sindicalista” da imprensa mundial e a força a publicação de materiais, que
tempos atrás, pediria uma série de negociações que levariam a pseudo independência dos jornais
a proteger os interesses do governo. Poder de estado e poder de imprensa se retroalimentam e se
constituem ininterruptamente. Algo muito parecido com o que acontece com o crime organizado
e outras relações que o Estado produz a fim regular os estados de violência emergentes,
redistribuí-los. Assange é acusado de violar a Lei de Espionagem americana e de colocar os EUA
seriamente em risco ao publicar, em seu portal na internet, milhares de documentos secretos e
sigilosos, sem edição, incluindo os nomes de fontes confidenciais das Forças Armadas. Snowden
por sua vez é acusado de espionagem, roubo e conversão de propriedade do governo. É
considerado o maior traidor do governo americano. A liberdade de imprensa protegida pela 1°
emenda da constituição americana termina onde perdemos nossos direito a transparência como
representados.
Então, como falar sobre ataques a democracia diante dessa nova base de inteligência de dados,
de suas possibilidades de intervenção que fazem emergir a mudança completa de todas as
grandes marcas dos séculos passados, democracia, trabalho e sujeito? Nos vemos diante de
ruínas. A point of no return, diria Donna Haraway.
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Post scriptum
Atravessar a marca, implica em invocar e imolar a inocência. A bruxa se apronta para a melhor
das danças, não recusa a identificação que lhe é atribuída, e não se esquiva quando o cantor-
inquisidor-estado a assassina entoando a horripilante e pesada melodia da domesticação. Como
suportar isso? Me vem a memória imagens de “O triunfo da vontade”, imagino Leni Riefenstahl
caminhando entre os soldados que aparecem no documentário durante o comício nazista de
Nuremberg. O assombro de testemunhar uma multidão simetricamente alinhada, disposta em
filas, o caos da potencia da vontade organizado em padrões, afirmando a gloriosa estética áurea
de um povo que resolveu encarar, equacionar e resolver seus problemas com o máximo de
violência e intervenção estatal. A ferida. Como não desejar escapar de um determinismo social
que pretende excluir a possibilidade de agencia ou transformação?
A bruxa sabe que pensar é untar o corpo com o sangue da inocência e seguir a linha de fuga,
voar no cabo da vassoura. A vulnerabilidade de seu corpo transformado em ferida a coloca
disponível. Não se trata apenas de se perguntar, o que é? Amor, ódio, nazismo, esquerda, direita,
homem, mulher, bruxa, donzela, democracia, autoritarismo. Importa aprender como funciona? A
dor, o prazer não são absolutos o suficiente para definir toda uma existência.
Explodir as fronteiras da representação implica em fazer esse desvio, se perder no nome (não se
trata de recusa-lo) e mergulhar na relação, no agenciamento de forças. Essa é a magia da bruxa.
Magia, do radical latino “mach”, usado na palavra “maquina”, ou “macht” em alemão, potência.
Magia enquanto arte da maquinação do inconsciente. Esse é o seu quinhão, manipular as
relações, a vida. O humano em demasiado, a palavra, os funcionamentos que nos antecedem e
nos constituem. São padrões e nos abismamos ao recusa-los. A bruxa acontece quando ao
tocarmos em nosso corpo-inocente-ferida, aprendemos a não voltar contra nos o próprio espirito,
a não desprezar a terra, o signo, o pai. Tudo é passível a sabotagem, ao reagenciamento, a
reprogramação.
A bruxa acontece quando ao atravessarmos a floresta escura, percebemos que há algo
insepultável, que avança inalterável e silenciosamente através dos anos, que nos faz encontrar
em meio a arvores sombrias, rosas sob ciprestes. Todo corpo vivo conspira sabotando-se como
meio passivo de inscrições e destinos. A bruxa se afirma nos pés agéis, leves e selvagens de
dançarina. É em tudo uma mulher: false in legs, false in tighs, false in breast, teeth, hair and
eyes1… não virtuosa, por certo, embora responda a demanda: “profunda”, “fiel”, “misteriosa”. A

1 Herrick, Robert. Works of Robert Herrick. vol I. Alfred Pollard, ed. London, Lawrence & Bullen, 1891. 93.
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bruxa acontece na risada inacreditável de ave de rapina e sábio é aquele que jamais acredita em
seu riso quando ela fala mal de si mesma. A bruxa é a inconstância, a teimosia, o amor a vida
sobretudo quando a detestamos. Nas noites de lua cheia e possível ver a bruxa morder os lábios e
pentear-se a contrapelo.

Bibliografia

BUTLER, Judith. Problema de gênero. Rio de Janeiro: Civilização brasileiro, 2017.


DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Lisboa: Relógio D´àgua, 2000.
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: MARTINS FONTES, 1999.
DERRIDA, Jacques. Esporas. O estilo em Nietzsche. Rio de Janeiro: Nau, 2013.
KRAMER, H. & SPRENGER, J. O Martelo das Feiticeiras: Malleus Maleficarum. Rio de
Janeiro: Rosa dos Tempos, 1991.
MICHELET, Jules. A Feiticeira. Tradução: Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1992.
SICUTERI, Roberto. Lilith. A lua negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.
FEDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa: mulher, corpo e acumulação primitiva. São Paulo:
Elefante, 2017.

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