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29/11/2019 primeiraparte:asorigens - lancapatricia

Primeira Parte: AS ORIGENS

Portolani Books Volume Dois: Misérias do Exílio

1.  Prólogo.   2.  O complot de Morrocos

Primeira Parte INÍCIO

AS ORIGENS SEGUINTE

ANTERIOR

1. Prólogo
REFERÊNCIAS
1. Esse número é hoje
contestado em alguns
As origens da Frente Patriótica de Libertação Nacional e a sua
meios. Os mais
instalação na República Argelina, logo após a independência desta conceituados
antiga província francesa em 1962, continuam enredadas em especialistas, porém,
mistério. Conspiração comunista, como diziam os salazaristas? confirmam a estimativa
feita já em 1962. Ver
Michael Kettle, De Gaulle
Até à crise dos mísseis no Outono de 1962, com Khruchtchev no and Algeria 1940-1960,
Kremlin, os partidos comunistas pró-soviéticos, plenamente Londres, Quartet Books,
empenhados na então intensa campanha a favor da coexistência 1993, e Alistair Horne, A
Savage War of Peace,
pacífica, desconfiavam profundamente das intenções dos novos Londres, Macmillan, 1996.
governantes da Argélia independente, tal como tinham desconfiado
de Fidel Castro. Nessa época, a revolução árabe não tinha ainda 2. Ver a narrativa de um
caído sob a hegemonia soviética. Os nacionalismos não-marxistas, ex-dirigente comunista
argelino, Amar Ouzegane,
para os partidos comunistas, estavam perigosamente próximos das
que abandonou o PCA
teses chinesas. para juntar-se à FLN. Le
meilleur combat, Paris,
Solidariedade de um ‘país progressista’? Os novos governantes da Julliard,1962.
Argélia tinham as suas razões e a sua estratégia próprias quando
3. Só quando o fim se
decidiram abrir as portas aos exilados políticos estrangeiros. Essas aproximava é que alguns
razões continuaram, durante muito tempo, escondidas dos sectores do PCF
portugueses ingénuos. E, em larga medida, continuam ocultas. começaram a participar
nos reseaux.

A Frente Patriótica de Libertação Nacional foi o título pomposo de 4. Agrupamento de


um pequeno grupo de pessoas cujo fim era o aproveitamento de seguidores de Léon
acções e sacrifícios feitos por outros. Só em sentido figurativo Trotsky, assim chamado
por combater a Terceira
comeram na África do Norte o pão amargo do exílio político. Na Internacional, patrocinada
realidade gozaram de um exílio dourado, à custa de um povo que pela URSS. Depois do
ainda chorava um milhão de mortos1 Como é que esse grupo de assassínio do seu
pessoas, cujos nomes em 1962 apenas se conhecia nos cafés do fundador, a IV
Internacional sofreu
Chiado, conseguiu instalar-se na Argélia logo após a independência várias cisões e já na
deste país? Como é que chegaram a convencer os dirigentes época da guerra da
argelinos—anti-marxistas—a dar-lhes asilo político, apoios Argélia existiam outros
financeiros e meios de propaganda, que nem o PCP, com tanta grupos reclamando do
mesmo nome. Refere-se
autonomia nos países de Leste, alguma vez chegou a ter? aqui à IV Internacional
dirigida por Ernest
Não se sabe ainda muito bem a posição de alguns membros do que Mandel, Pierre Frank e
veio a ser conhecido como o ‘bando de Argel’ no início das suas Michel Raptis, este último

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aventuras: se estavam suficientemente afastados do PCP e já em conflito com os dois


primeiros.
ambicionavam concorrer com o partido de Cunhal. Para
compreender toda a história, teremos que recuar no tempo e traçar 5. Aquino de Bragança,
o cenário da situação internacional nos começos da década de nascido em Goa, tinha
sessenta. vivido alguns anos em
Moçambique. Depois
emigrou para França onde
O fim da guerra da Argélia travou conhecimento com
os nacionalistas africanos,
Em 1961-62, a França estava traumatizada pela guerra da estabelecendo –se mais
tarde em Marrocos onde
Argélia. A esquerda encontrava-se dividida. O Partido Comunista leccionava Matemática.
Francês, estalinista, sempre se recusou a apoiar a Frente de
Libertação Nacional (FLN) argelina, chegando até a acusar os seus 6. Marcelino dos Santos,
dirigentes de estarem vendidos aos Estados Unidos. Nasser,do natural de Moçambique.
Egipto, que ajudou os argelinos, era apontado como agente da CIA.
7. Contava-se que
O Partido Comunista Argelino, composto em grande parte por Marcelino dos Santos,
colonos europeus, tinha-se desmoronado e muitos dos seus enquanto estudante em
militantes ingressaram nas fileiras da OAS2. A União Soviética Paris, prestara serviços ao
então principe herdeiro de
ainda não tinha posto o pé no Mediterrâneo—e muito menos em
Mohamed V, quando os
África. marroquinos ainda
lutavam pela
Por toda a Europa onde havia emigrantes argelinos—França, independência do antigo
protectorado francês.
Bélgica, Suiça e Alemanha—os dissidentes europeus da esquerda
tradicional, intelectuais e jovens, criaram os famosos réseaux de 8. O diferendo MPLA-UPA
soutien, grupos de apoio à revolução argelina. Nestes grupos havia é tratado em pormenor na
representantes de toda a família marxista, salvo os incondicionais Sexta Parte.
pró-soviéticos3. Particularmente activos eram os trotskistas da IV
9. Ver Rol de
Internacional4. Alguns europeus dos réseaux haviam sido presos Personagens.
em França e noutros países. Um dirigente da IV Internacional, o
grego Michel Raptis (mais conhecido pelo nome revolucionário de 10.Ver Rol de
Pablo), fora condenado na Holanda por falsificação de moeda Personagens.
moeda a favor da FLN. Uma campanha internacional de
11.Mário Coelho Pinto de
solidariedade tornara-o famoso e altamente estimado junto de Andrade, nacionalista
alguns sectores da FLN.. angolano e um dos
fundadores do MPLA,
Mas toda esta solidariedade tinha o seu preço. Cada grupo
12.Ver rol de
ideológico europeu tentava influenciar e converter os argelinos à Personagens.
sua linha política. Impotentes para influenciar a política nos seus
próprios países, e inflamados com os êxitos recentes de Fidel 13.Ruy Luís Gomes não
Castro, esperavam o nascimento de uma Cuba árabe no apareceu e Piteira atribuiu
o fracasso aos
Mediterrâneo. Em nome do anti-colonialismo, davam largas ao seu
preconceitos católicos da
paternalismo para com os argelinos, tal como veio depois a esposa do professor que,
acontecer com os povos das colónias portuguesas. diaia, não querer ir para
um país muçulmano.
Entretanto, dentro da própria Argélia, as guerrilhas estavam 14.Vergès ganhou
praticamente dominadas. De Gaulle prometera a paz e um notoriedade internacional
referendo sobre o futuro estatuto da província. A guerra, em 1961, quando, anos mais tarde,
resumia-se a uma luta política entre as diversas facções argelinas assumiu o papel de
advogado de defesa do
no exterior e no combate à OAS. Havia a emigração de quase nazi Kllaus Barbie e,
400.000 argelinos que trabalhavam em França; em Marrocos e actualmente, do terrorista
Tunísia, ao longo das fronteiras, havia 60.000 soldados argelinos ‘Carlos’, nos tribunais
armados, transformados agora em militares profissionais. Havia franceses.
ainda milhares de presos nos cárceres franceses, incluindo o futuro
15.Christopher Dobson e
presidente Ahmed Ben Bella. Ronald Payne, autores do
The Dictionary of
Espionage, Londres,
A preocupação principal dos dirigentes argelinos já não era a
Harrap, 1984. referem
derrota dos franceses e sim a luta intestina das várias facções para Curiel como ‘pessoa
alcançar o poder. Os grupos de apoio europeus envolveram-se com misteriosa’ que tinha
zelo na mesma luta. Cada um escolhia a ‘sua’ tendência argelina e ficheiros ‘não só na DST
declarava guerra às outras. Os argelinos encorajavam os seus (serviços franceses de
contra-espionagem) mas
clientes. Os da Tunísia, onde funcionava a sede do Governo também em muitos
Provisório, eram hostis aos militares argelinos de Marrocos, e vice- serviçoa secretos do
versa. mundo’- (p.35). Ainda
segundo aqueles autores,
pensa-se que ele, após a
Ahmed Ben Bella, um dos dirigentes históricos, era um civil. expulsão do Egipto por
Participara na elaboração e execução da revolta inicial de 1954. Nasser, tenha começado a
Contudo, esteve preso durante cinco anos. Em 1962, pouco tinha trabalhar para o KGB NA
Europa Oriental.
em comum com os ‘coronéis das fronteiras’. Era um galicizado,
Curiosamente, era primo
antigo sargento do exército francês, que admitia só ter estudado a do espião britânico,
George Blake,condenado a
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língua árabe na prisão. O Coronel Houari Boumedienne, seu 42 anos de prisão por
sucessor em 1965, passava por ser, à semelhança de outros espionagem a favor dos
soviéticos. Curiel acabou
militares, um arabizante, um muçulmano ortodoxo, ligado ao por se instalar em Paris e
Egipto. A prisão tinha isolado Ben Bella dos militares e aproximara- envolveu-se com grupos
o das várias tendências dos réseaux europeus. de apoio às organizações
terroristas e de libertação
na Europa, na América
Não e meu objectivo pormenorizar a luta que encheu todo o Verão Latina e na África do Sul.
de 1962 e que culminou na escolha de Ben Bella pelo governo Os serviços franceses
provisório como presidente do novo país e a sua relutante acreditavam que ele
fornecia aos russos
aceitação por parte dos coronéis. O importante é mostrar a informações respeitantes
fraqueza do chefe histórico face ao poder militar. Para compensar a tais organizações. A vida
a sua falta de apoios nacionais, Ben Bella rodeou-se de de Curiel terminou em
conselheiros estrangeiros; para preencher o vazio da política 1978 quando foi
assassinado em Paris por
interna, concentrou-se na política internacional; insistindo no não- homens armados não
alinhamento aos blocos da Guerra Fria, a sua primeira visita ao identificados.
estrangeiro foi a Cuba, onde o não-alinhamento de Fidel Castro já
se tinha evaporado com a sua submissão à política soviética, 16.Advogado exilado no
Brasil, foi durante algum
evidenciada na crise dos mísseis desse Outono. Desde o início, Ben
tempo íntimo de Delgado.
Bella proclamou o seu apoio às revoluções africana e latino- Ver Quarta e Quinta Parte
americana. Disse estar pronto até a oferecer ajuda aos Papuas da e rol de Personagens.
Oceânia se estes a pedissem.
17.Pouco antes, Ben Bella
proibiu o PC Argelino.
Michel Raptis-Pablo apareceu, justamente nesse contexto como um
dos principais conselheiros do presidente Ben Bella. Tinha não só o
~~~«»~~~
prestígio da sua prisão e dos seus escritos trotskistas, mas
também uma corte de revolucionários estrangeiros, alguns dos
quais lusófonos.

2. O COMPLOT DE MARROCOS

A Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias


Portuguesas (CONCP) tinha a sua sede em Rabat, capital de
Marrocos. Secretariada pelo goês Aquino de Bragança5 e pelo
moçambicano Marcelino dos Santos6, era composta principalmente
pelo MPLA e PAIGC. Recebeu asilo e ajuda em Marrocos, graças à
alegada amizade pessoal existente entre o Rei Hassan II e
Marcelino dos Santos.7

No princípio as relações dos nacionalistas da CONCP com os


argelinos não foram estreitas. Os lusófonos eram marxistas,
críticos do PCP, mas desconfiados do islamismo dos argelinos e da
sua política. Os argelinos pareciam já comprometidos em apoiar a
UPA de Holden Roberto, movimento francamente anti-comunista.
Holden Roberto mantinha excelentes relações com muitos
dirigentes argelinos, principalmente na Tunísia8.

Em 1962 os chefes do MPLA, PAIGC e futura FRELIMO aguardavam


nervosíssimos a independência argelina pelo apoio prestigioso que
ela poderia trazer à UPA. Por isso, procuraram desesperadamente
um esquema que impressionasse os argelinos e anulasse a
influência de Holden Roberto. No entanto, tornava-se difícil saber
qual a facção argelina que iria ganhar.

Foi, portanto, nesse Verão quente, a arder de intrigas, cheio de


grupos de pressão internacionais, que Fernando António Piteira
Santos foi cair em Rabat9. Fugido de Portugal, após um período de
clandestinidade, atravessou a fronteira vestindo três fatos. Com
muitos inimigos na oposição anti-salazarista, perigosamente
ambicioso (como diria mais tarde Delgado), Piteira Santos era um
dos raros portugueses familiarizado com as dissidências no
movimento marxista. Expulso do PCP por duas vezes, em 1945 e
1951, acusado, primeiro, de delator quando preso e, depois, de
pró-jugoslavo, numa altura em que Tito fora afastado da família
comunista, Piteira Santos juntava à fama de trotskista o ser visto,
bem ou mal, pelos militantes do PCP como agente da PIDE

Em Rabat foi bem acolhido pelos dirigentes da CONCP. Mas os


portugueses que iam chegando a Marrocos e o encontravam

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ficavam perturbados. A maior parte eram desertores e refractários.


Exemplo: Helder Martins, que veio a ser ministro da Saúde de
Moçambique e desertara de Londres do seu posto de médico-oficial
da Marinha de Guerra portuguesa10. Ao verificar a presença de
Piteira Santos em familiar cavaqueira com os africanos alarmou-se.
Imediatamente correu os cafés frequentados pelos exilados
portugueses a alertá-los para a presença na sede da CONCP de um
‘perigoso agente da PIDE’. Porém, pouco tempo depois, a seguir a
longas conversas com os dirigentes nacionalistas, acalmou-se e
converteu-se rapidamente num dos mais fiéis colaboradores de
Piteira. O mesmo iria acontecer com outros militantes do PCP que
foram aparecendo, só mais tarde começando as dissidências.

Os dirigentes da CONCP encararam Piteira Santos como aliado e


conseguiram para ele a ajuda dos marroquinos e documentos para
poder viajar. Apresentaram-no também a Michel Raptis-Pablo que
o recebeu de braços abertos.

Todas os principais personagens estavam agora ali, preparando os


ingredientes de uma trama que se iria revelar desastrosa. Nenhum
representava qualquer movimento real no seu país de origem.
Cada qual ambicionava apenas o poder. Todos receavam os rivais
de outros quadrantes ideológicos. Contudo, uniam-se num mesmo
objectivo: aproveitar a confusão que fatalmente iria acompanhar o
nascimento do novo Estado argelino para lá estabelecer uma base
onde o grande rival - o PCP de Cunhal - estivesse sempre em
segundo plano.

Foi Pablo quem reuniu o grupo e concebeu o projecto de o


apresentar aos argelinos, reforçando com isto o seu prestígio junto
de Ben Bella enquanto este ganhava trunfos na sua luta contra
outras facções argelinas.

O plano era muito simples mas bastante adequado às pretensões


de todas as forças envolvidas. A nova Argélia, abandonada por
quase um milhão de colonos franceses, carecia dramaticamente de
quadros técnicos. A oposição portuguesa no exílio dispunha de
médicos, engenheiros e outros diplomados, além de descontentes e
mal pagos em Portugal. Além destes havia os «assimilados» das
colónias portuguesas, diplomados também, e irrequietos com a
onda de nacionalismo africano. Com essa mercadoria os
negociantes políticos contaram poder comerciar. Ofereceu-se a Ben
Bella esta cooperação técnica, uma cooperação a preço bastante
mais em baixo comparada com uma futura e ainda hipotética
cooperação francesa.

Em contrapartida, Ben Bella daria todo o apoio à CONCP, em


prejuízo de Holden Roberto. E Piteira Santos, como chefe da
oposição portuguesa na Argélia, teria finalmente vantagens sobre
Cunhal e o resto da oposição. Apesar de expulso do PCP e
escorraçado durante longos anos por certos meios da oposição, ele
poderia finalmente ter as suas massas, financeiras e humanas.
Dono do direito de asilo e de bons lugares na Argélia, estaria
optimamente colocado para negociar com outros sectores da
oposição, desta vez com todos os trunfos na mão.

Pablo também se sentia triunfante. O dirigente da Quarta


Internacional trotskista via-se como conselheiro não só do
presidente argelino como de futuros dirigentes de países de
expressão portuguesa, situação que lhe asseguraria uma primazia
sobre os seus rivais no movimento trotskista.

Ben Bella, que ambicionava ser o Fidel Castro do Mediterrâneo,


teria mais dois valiosos pontos de propaganda a adicionar ao seu
projecto político: a solidariedade com os povos de Portugal e suas
colónias de molde a contrabalançar o inconveniente (no plano
demagógico) das excelentes relações que a FLN mantinha com a

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Espanha de Franco; e a solução parcial do problema de quadros


para a reconstrução de Argélia.

Agora só faltava um pormenor que desse ao plano o último retoque


convincente. O nome de Piteira Santos, que era desconhecido no
estrangeiro, polarizava muitos inimigos na oposição anti-
salazarista. Fora uma tese de licenciatura, não tinha obras
publicadas e tão pouco representava qualquer organização. Para
servir de bandeira impunha-se uma personalidade conhecida: uma
figura idónea, de envergadura internacional, alguém que não fosse
um teórico de revoluções de café, nem marxista. Os argelinos
admiravam sobretudo homens de acção. Sem uma figura dessas
para encabeçar a grande aliança que Piteira sonhava dirigir, o
plano não teria qualquer viabilidade. Nem para vender aos
argelinos, nem para encontrar eco dentro da oposição anti-
salazarista.Foi assim que surgiu o nome do general Humberto
Delgado que, longe no Brasil, vivia totalmente alheio à intriga que
se tramava em Rabat.

Primeira aposta: Henrique Galvão

Quando os dirigentes nacionalistas da CONCP, ainda em 1961,


procuraram uma oportunidade para estar na berlinda,
aproveitando a luta armada iniciada pela UPA em Março desse ano,
voltaram-se para uma aproximação com a oposição não-cunhalista.
A princípio apostaram em Henrique Galvão.

Galvão vinha do salazarismo, tal como Delgado. Mas a sua oposição


era muito anterior à do general. Durante largos anos o PCP e
outros elementos da oposição tinham olhado esse velho africanista
como uma personalidade a aproveitar. Em 1949 já o PCP tinha
editado um panfleto clandestino que reproduzia o relatório de
Galvão sobre as condições de Angola na altura. Delgado, pelo
contrário, nunca foi visto com agrado pelo PCP e os seus
simpatizantes. Se o apoiaram nas eleições de 1958, desistindo da
candidatura de Arlindo Vicente, fizeram-no com bastante má
vontade. Delgado era demasiado carismático, demasiado
independente para servir de fantoche. Embora se tente hoje
esconder das novas gerações esta fase da política sinuosa do PCP,
ela está suficientemente documentada para quem quiser averiguar
a verdade.

Atribuindo a captura do paquete Santa Maria inteiramente a


Galvão, e querendo aproveitar-se da publicidade mundial à volta do
seu nome, os oposicionistas de esquerda, e também os
nacionalistas da CONCP, estavam prestes em 1961 a tentar uma
aliança com o capitão. Sintomaticamente um futuro dirigente da
FPLN nesse mesmo ano, em carta dirigida do Brasil a um
correligionário de Londres, escreveu: ‘Delgado está impossível.
Terá que ser eliminado politicamente. Galvão é o nosso homem!’.

Galvão, contudo, provaria também ser incontrolável. Numa viagem


à Suécia destruiu em poucas palavras quaisquer esperanças que
nele depositavam os aventureiros. Condenou o nacionalismo nas
colónias portuguesas e atacou o comunismo, escapando assim de
cair nas malhas que acabaram por enredar Delgado.

A oposição volta a apoiar Delgado

Como Galvão já não servia, voltou-se a propor Delgado como


bandeira. O general, de passagem por Marrocos, quando da revolta
de Beja, conversou com os nacionalistas da CONCP, deixando-lhes
uma impressão favorável.

Mário de Andrade11, Marcelino dos Santos e Aquino de Bragança


eram indivíduos que tinham saído de Angola, Moçambique e Goa
respectivamente 15 a 20 anos antes. Tinham fraquíssimas
possibilidades de encabeçar movimentos de luta armada. E sabiam

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bem que não seriam acolhidos de bom grado nas fileiras da UPA.
Daí o seu interesse em patrocinar um movimento anti-salazarista
na metrópole com o qual pudessem contar no futuro para os ajudar
a ascender ao poder.

Quando Piteira Santos chegou a Rabat parece que os dirigentes da


CONCP já tinham abordado Cunhal sobre a questão de Delgado,
como cabeça duma frente a ser formada. Mas a hora ainda não
tinha chegado. Para negociar efectivamente com Cunhal, era
preciso ter o trunfo de Argel nas mãos.

Piteira entusiasmou-se logo com o projecto Pablo-CONCP. Não só


iria conseguir a colaboração de Delgado como os seus projectos
eram mais vastos. Também falava em Rui Luís Gomes12 e outros
universitários portugueses de renome. A Universidade de Argel,
outrora a segunda da França, abandonada pelos franceses, carecia
de docentes. Através de Pablo, convenceu Ben Bella a oferecer uma
cadeira ao distinto matemático portuense, na altura exilado no
Brasil13.

Os contornos do plano acima relatados foram traçados, sem


inibições, nas conversas que eu e Carlos Lança tivemos com Aquino
e Pablo. Para ambos, Fernando Piteira Santos representava uma
peça chave. Pablo andava deliciado com o português. A melhor
referência que este podia colher junto dos trotskistas era ser um
expulso do PCP e simpatizante dos jugoslavos. Aquino apreciava
também o facto de Piteira ser um comunista dissidente. Carlos
Lança e eu nutríamos mais simpatias pelas teses chinesas e
desconfiávamos dos jugoslavos. Pablo insistia connosco, em vão,
para que fossemos com ele à Embaixada da Jugoslávia, que
frequentava com assiduidade. Os Jugoslavos eram os únicos, dos
países de leste, que tinham ajudado a FLN argelina, mas nem por
isso víamos utilidade em conhecê-los.

Carlos Lança já conhecia Piteira de Lisboa, tal como eu, e quando


nos encontrámos em Rabat o futuro dirigente da FPLN mostrou-se
extremamente afável. Não hesitou em falar dos seus projectos,
tentando captar-nos como aliados. O facto de Carlos ter passado
muitos anos em Moçambique longe das intrigas de Lisboa valia
como recomendação. O meu ‘prestígio’ vinha do Oldest Ally e de ter
uma próxima edição em francês e espanhol; e ser uma pessoa com
contactos em Inglaterra que lhe poderiam ser úteis, o que, sem
dúvida, o influenciou favoravelmente. As nossas reacções, porém,
foram de desconfiança. Numa das nossas primeiras conversas,
Piteira Santos emitiu uma frase lapidar que nos pôs logo de
sobreaviso: ‘Nós temos de adquirir as armas antes que eles as
tenham’. Referia-se aos africanos. Então seguiu-se o velho debate
sobre a ‘unidade antifascista’. Mas Piteira era um aprendiz astuto:
as suas conversas com Pablo e o ambiente anti-colonialista de
Rabat rapidamente o convenceram da necessidade de modificar o
seu discurso, pelo menos connosco e com os nacionalistas da
CONCP.

Com Aquino de Bragança tivemos um convívio diário. Arranjámos


um apartamento no mesmo prédio, onde igualmente habitavam
Amilcar Cabral e a família, sendo frequentes os serões até altas
horas. Aquino era um companheiro sedutor,. inteligente e culto à
maneira parisiense Tinha uma enorme admiração por Amilcar
Cabral e Mário de Andrade, mas mal sabia esconder a sua
condescendência para com os africanos em geral, especialmente os
de pura raça negra. Para ele a chave da independência colonial
passava por um entendimento com os portugueses e não parecia
ter muita confiança no êxito de qualquer luta armada. ‘Eu sou
capaz de negociar com o próprio Salazar’—dizia muitas vezes, algo
vaidosamente—‘o essencial é exercer a pressão necessária para
que ele venha a aceitar conversas connosco, recusando-as à UPA.’
Enquanto Aquino insistia comigo, dizendo que eu tinha o dever de
fazer um ‘grande livro’ sobre o nacionalismo angolano, eu e Carlos

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Lança começámos a sentir que tínhamos caído num enleio cujas


implicações ainda não eram muito claras.

Piteira Santos tinha outros aliados além de Pablo. Era demasiado


perito em intrigas para se entregar totalmente ao dirigente da
Quarta Internacional trotskista, embora tivesse com este as
maiores afinidades políticas. Através da CONCP, entretinha
também relações com personalidades que eram mais do agrado
dos comunistas.

Uma delas era Jacques Vergès, advogado francês, de origem


franco-vietnamita. Antigo dirigente da União Internacional de
Estudantes, com sede em Praga, íntimo amigo de Alexandre
Chelepine, que veio a ser chefe do KGB, Vergès gozava de enorme
prestígio entre argelinos e inúmeros intelectuais franceses14.
Naturalizou-se argelino, ‘converteu-se’ à religião muçulmana,
casou com uma das grandes heroinas argelinas, Djamila Bouhired,
e instalou-se em Argel. Foi o primeiro director do semanário
Révolution Africaine, que depois se tornou órgão do partido FLN.
Vergès era tido, na altura, por maoísta e concorria com Pablo no
controlo dos revolucionários de diversas nacionalidades que
afluíam a Argel. Desde o início seria amigo e protector da CONCP e,
portanto, também disposto a ajudar Piteira. Conheci-o através do
Aquino e ele logo me contratou para trabalhar no semanário que ia
dirigir.

Outro poderoso protector de Piteira foi o notório réseau Curiel,


dirigido por Henri Curiel, um antigo secretário-geral do Partido
Comunista do Egipto15. A fama deste réseau era bastante sinistra
e dizia-se que mantinha boas relações com o PCP e com a polícia
francesa. De tal modo que, quando Delgado nos últimos dias rompe
com os ‘patrióticos’, o reseau Curiel conseguiu penetrar na
organização do general português.

Os sonhos de Piteira

Ainda em Rabat, Piteira sonhava com um ‘Governo Português no


Exílio’, segundo o modelo do Governo Republicano Espanhol. Com
sede na Argélia, presidido por Delgado e com o prestígio dos votos
recebidos por este nas eleições de 1958, e ainda rodeado por
nomes de destaque que lhe deviam os lugares, Piteira disporia
finalmente de um trampolim para o assalto ao poder em Portugal
e, se este demorasse, ao menos marcaria a sua posição como rival
de Cunhal na líderança da oposição anti-salazarista.

Vale a pena insistir nesta fase inicial do nascimento do grupo de


Argel. Se não se entender o alcance do plano, será difícil perceber
a actuação desesperada e ‘o fel’ de Piteira (como diria Delgado
mais tarde), quando começou a verificar o colapso dos seus
esquemas. Na realidade, para muito boa gente afastada dos
acontecimentos é difícil, hoje como ontem, acreditar em tanto ódio
e tanta loucura como, três anos depois, se verificou com o grupo de
Piteira.

Em retrospectiva, toda essa conspiração parece mirabolante. Teria


Piteira Santos acreditado verdadeiramente que a Argélia iria ajudar
numa invasão armada de Portugal? Teria ele realmente pensado
que iria arranjar centenas de técnicos portugueses para a Argélia?
Teria ele imaginado que fosse possível domesticar Delgado ou
manipular Álvaro Cunhal? Quem conheça a experiência portuguesa
de 1974-75 sabe que o ambiente revolucionário é intoxicante para
os espíritos mais ambiciosos e permite todos os sonhos. Na África
do Norte o ambiente da segunda metade de 62 era esse.

Depois de terem sido marginalizados durante tantos anos pelos


comunistas ortodoxos, tanto o português como o grego Raptis
andavam agora eufóricos. Piteira Santos estava embriagado com
as entrevistas que Pablo lhe conseguira com o chefe de Estado

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argelino. À mesa do café, num hotel de Argel, onde nos


encontrámos por ocasião das festas da independência, em
Novembro de 1962, e na véspera da sua partida para França, falou-
nos das negociações que iria ter com outros exilados portugueses.
Mal continha o seu delírio. ‘Realmente—exclamou—nós, da
oposição portuguesa, temos sido muito saloios. Faltaram-nos
iniciativas. Mas isso tudo acabou. Agora que estou tu-cá, tu-lá com
Ben Bella, por que não havia também de estar tu-cá, tu-lá com De
Gaulle?’.

Não é de admirar que Piteira andasse tão optimista. Tinha


encontrado a chave que lhe abrira o portão do seu isolamento.
Depois das festas da independência em Argel, com Ben Bella
instalado no palácio do governo e Pablo num gabinete ao lado,
Piteira partiu para a Europa. Foi ao encontro dos outros exilados e
de Cunhal, convencido de que agora seria ele a mandar.

Em Dezembro de 1962, teve lugar em Roma a primeira conferência


da FPLN. Piteira Santos era indubitavelmente o ‘grande’ do
encontro. Estava no auge da sua carreira. Cheio de promessas,
conseguiu lançar a ‘empresa patriótica’. Delgado, que não podia
ainda sair do Brasil por falta de passaporte, fez-se representar pelo
Manuel Sertório Marques da Silva16. Relutante, o PCP entrou no
jogo, hesitando em mandar quadros seus a esse imprevisível país
árabe, muçulmano e oficialmente anti-comunista17. Porém, já não
podia ignorar Fernando Piteira Santos.

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