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.6~ EDIÇÃO

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Orlandi, Eni P.
A linguagem e seu funcionamento : as formas do discurso/
Eni P. Or!andi - 6ª Edição ·
Campinas, SP : Pontes Editores, 2011.

Bibliografia.
ISBN 978-85-7113-107-4

!. Análise do discurso 2. Sociolinguística


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CDD - 401.41
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Índice para ~catáJog,l~·~f~f.Íco: ·


!. Análise do discurso ~ Cqrn~clÇà~~~lfrig~iihem - 401.41
2. Discurso - Análise - Çomallicàção' ~~Lfügüâgem - 401.41
3. Sociolinguístic(i:~tl}'.9 ·e<, ·

1
1

1~-- --
LEITURA: DE QUEM, PARA QUEM?

INTRODUÇÃO

O objetivo deste texto é discutir os determinantes sociais de


classe do leitor, que atuam sobre as condições de ensin() da leitura,
se pretendemos que este Bnsino seja coerente com uma pedagogia de
transformação 1 •

Co!flo discutir isso de forma simples, para fornecer subsídios


para a reflexão sobre o ensino de leitura, sem que esta simplicidade
seja ingênua ou redutora e que, além disso, não seja demag6z'.;:::1 :-:1 ::;~
seja política?

Nossa proposta é a de tornar explícitos certos fatores centrais


para a discussão da escola em sua relação com os conflitos sociais. Em
termos discursivas isso significa situar o "o que", o "de quem" e o
"para quem" da leitura, em nosso sistema ~ ensino.

1. Primeira Parte: ALGUNS DADOS, SUJEITOS A REFLEXÃO

A) A natureza da relação entre as classes

O problema que se coloca, antes de tudo, é o de. saber qual é a


relação entre as classes sociais e, mais especificamente, como essa
relação se dá quando se trata da educaçãó.

Como forma de ilustração, vou considerar essa relação em termos


históricos.

1. Este texto foi apresentado em uma mesa-redonda do III Cole, em 1984,


realizado em Campinas. O texto-gerador, de Magda Soares, perguntava
justamente pelos determinantes sociais de classe do leitor.

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O dispo~itivo feudal visava manter, regularmente, as ordens sepa- :É pois, ainda no interior dessas finalidades burguesas que esta-
radas, isto é, mantinha separada a ordem dominante, ·traduzindo-a, mos discutindo 2 •
através da retórica da religião e do poder, para as formas específicas
de representações e imagens próprias aos diversos grupos dominados. Daí se. poder considerar que ler e escrever antes podem favorecer
Em relação à linguagem, pode-se dizer que o mosaico dos falares a exploração dos seres humanos mais do que sua iluminação. Trata-
permanecia, assim corno nas monarquias absolutas, tão intocáveis como se, então, sem muito otimismo, de se observar o que a educação pro-
o corpo do rei. .. duz em relação aos direitos e aos deveres do cidadão. Sem esquecer
que mesmo os direitos são respostas às faltas produzidas pelo próprio
Ao contrário do feudalismo, a dominação burguesa desenvolve sistema (o direito é o direito de remediar a falta).
processos de interpenetração das classes dominadas, transformando a
fixidez das ordens em terreno de confronto de diferenças. Em relação Considerando, portanto, que há absorção e reinstalação de dife-
à questão lingüística, inaugura-se a "política da língua": a constituição renças, no jogo da "igualdade", a minha posição é a seguinte: na
da língua nacional através da alfabetização; aprendizagem e utilização medida em que surge o projeto de uma escola democrática, no inte-
legal da língua nacional. Desenvolvendo, assim, o que havia começado rior da sociedade capitalista, devemos detectar o que essa escola reins-
com as empresas da cristianização da Igreja Medieval, continuado tala como diferença.
com os inícios do colonialismo (as gramáticas dos missionários) e a
Sem esquecer que, ao se alargar o olhar além de soluções
constituição dos Estados Nacionais.
restritas ao percurso pedagógico, se deverá, necessariamente, encarar
A característica das revoluções burguesas é, pois, absorver as o fato de que, em relação às diferenças de classe, a educação é apenas
diferenças para universalizar as relações jurídicas, no momento em um elemento entre muitos outros de uma política efetiva de justiça
que se universalizam a circulação do dinheiro, das mercadorias e dos social e nem é o mais importante ou mais decisivo deles.
trabalhadõres "livres". E para se tornarem cidadãos (e urbanos) os
Procurar determinar, em relação à educação, ein que outro lugar
sujeitos têm de se livrar dos particularismos históricos que os entra-
se instala (se reorganiza) a diferença é fundamental para se deter-
vam: seus costumes locais, suas concepções ancestrais, seus precon-
minar corno deve ser essa outra forma de ensino, a da escola demo-
ceitos e sua língua materna.
crática. Dessa maneira, ao se reivindicar a igualdade, não se estará
Nessa perspectiva - da interpenetração das classes· e da absor- apenas ocultando novas diferenças, mas explicitando-as.
ção das diferenças - é que chegamos ao jogo de palavras existente
O pressuposto de que parto é o de que a educação é uma educa-
em relação aos conceitos de "liberdade" e "igualdade": a burguesia
ção de classe, e à questão "De quem é a Educação?" podemos res-
sempre proclama o ideal da igualdade ao mesmo tempo em que orga-
ponder: é da classe dominante do sistema capitalista, com suas fina-
niza urna desigualdade real.
lidades.
Um exemplo disso é a divisão política no ensino da gramática,
Isso nos leva ao segundo ponto da reflexão que é um desdobra-
por volta de 1880, na França: ao mesmo tempo em que colocava a mento desse primeiro.
educação como direito de todos, a classe dominante tinha acesso ao
bilinguismo (o ensino da língua francesa sobre o modelo do latim) B) O domínio dos instrumentos: o discurso da classe-média
enquanto, para as massas, fornecia urna gramática truncada, fundada
sobre a lógica da frase simples. Começo por dizer, sem preâmbulos, que a afirmação de que é
preciso o acesso à totalidade do conhecimento da classe dominante
A absorção da diferença, então, supõe, antes de tudo, que ela
seja reconhecida, isto é, reproduzida, reorganizada em algum outro
2. Essas observações de cunho histórico foram elaboradas a partir da leitura
lugar. de La Langue lntrouvable (F. Gadet, M. Pêcheux, 1981 ).

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para que haja transformação é uma afirmação de classe. Mais espe-
cificamente: da classe-média. Que não deixa de ser romântica e incon- . Ensinar, em si, não é nem deixa de ser arbitrário. O que cons-
seqüente na medida em que propõe a tomada desse conhecimento e titui essa arbitrariedade é a ideologia que pode presidir a prática peda-
não fala quem pode e em que condições sociais isso pode se dar. gógica. Por .sua vez, é bom enfatizar, o saber, em si, não é, nem deixa
Além disso, penso que o acesso à totalidade desse conhecimento não de ser legítimo. A sua categorização, como forma legítima ou não,
é, talvez, necessário e muito menos suficiente para a transformação. depende das condições histórico-sociais em que ele se configura.
Pelo menos para uma transformação que não tenha a direçãü" já dada Em relação às classes populares, caberia se perguntar qual a
pela classe dominante. relação dessas classes com esse conhecimento, com a linguagem, com
No interior do discurso que propõe o acesso ao conhecimento a escola?
detido pela classe dominante - ou que se atribui a ela - viaja o Como fica essa relação, dado o modo como nossa sociedade se
discurso do poder e da exclusão. Nesse discurso, ou se tem o saber relaciona com o saber letrado? Esse saber não é partilhado mas distri-
dominante, ou só resta o saber menos abstrato, menos rigoroso, buído socialmente, de tal forma que não basta tê-lo, uma vez que é
rebaixado, o da facilidade. Saber nenhum, portanto. Cria-se, assim, preciso tê-lo de uma certa maneira, isto é, é preciso ter o status atri-
um falso dilema, pois se torna categórica a distância entre saber e buído a ele (Por exemplo: qual o valor atribuído ao supletivo; ao
não saber, entre ser igual ou ser menos, etc. curso por televisão? etc.). Nesse sentido, o "o quê" (o que se aprende,
o que se lê) não é o que importa, o que importa é o "quem" e o
Para mim, não é uma questão de tudo ou nada. Há o saber "onde". Há um valor intrínseco à própria escolaridade que atribui
dominante e há outros que sequer foram formulados. Há formas de legitimidade ao saber. Haverá sempre escolas diferentes que reinstalam
saber que são diferentes e que têm funções sociais distintas. O fato as diferenças (Exemplo : escola pública/escola particular).
de que se atribuem diferentes estatutos epistêmicos a essas formas de Cabe, então, aqui à questão : quando as classes populares passam
saber não está desvinculado do fato de que, dada a divisão social, há a dominar algum instrumento da classe dominante o que acontece?
formas diferentes de conhecimento: legítimas e não legítimas, o que Mudam as finalidades da antiga dominação? A apropriação do instru-
equivale a dizer legitimadas ou não pelo poder dominante. Quando se mento transforma o instrumento ou aquele que dele se utiliza? Ou
adere ao conhecimento legítimo, se desconhece a luta de classes, a os dois? Qual o sentido dessa transformação? Depende do instrumento
luta pela validade das diferentes formas. e depende do modo de apropriação. Veremos o que se passa com
a educação.
O discurso da classe média passa por cima dessa distinção: in-
corpora a legitimidade e procura as formas competentes que levam à Para alguns, o que acontece é que aumenta a autoridade da classe
apropriação do conhecimento legítimo. Esse discurso é adequado para dominante; para outros, a educação pode provocar, nos dominados,
a classe-média, tanto que, quando se fala na crise da escola, está-se a insastifação com a própria condição de vida, já que se considera que
falando sobretudo da crise da eficácia das formas institucionais do a educação é uma via eficaz para a formação da consciência crítica.
saber para esta classe. Estes diriam, pois, que através da leitura se tem acesso ao saber, e
pelo domínio do saber se podem explicitar os mecanismos do funcio-
Trata-se, assim, nesse discurso da classe-média, não do acesso ao namento da sociedade. Digamos que as duas coisas acontecem: au-
conhecimento, como se diz com neutralidade, mas da apropriação do menta a autoridade do Estado mas, ao mesmo tempo, se cria a
conhecimento legítimo, que lhe é necessário, em sua condição de possibilidade da consciência crítica.
classe. Fica à margem, toda outra forma de conhecimento, que sequer
é reconhecida como tal e com a qual não se opera. Reivindica-se o E, aí, o que podemos perguntar a nós mesmos, se pretendemos
direito a ter o conhecimento legítimo sem discutir seus pressupostos, uma escola crítica, é que finalidades nós mesmos privilegiamos em
ou seja, não se procura transformar a relação com esse conhecimento, relação a esse instrumento, quando ensinamos: ler para subir na vida?
nem se discute sua legitimidade (legítimo para quem?). Para ser crítico? Nem vou discutir se, pela escola, dá para subir na
vida. E para ser crítico?
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Tomamos nossa profissão pelo verdadeiro e dessa forma, na rela-
ção com nossa profissão, reforçamos o mito pelo qual se sustenta - ~uando o povo usa um bem cultural diferentemente do .
nao ha falta de entendimento do sig 'f' d l previsto,
o sistema do qual fazemos parte. Entretanto, procurando ser tão crítica , . m ica o cu tural (não é por ue
quanto possível, eu faria duas observações: ~ povo e ignorante). Ao usá-lo diferentemente, ele está se apropria::do
f e um espaço que a rigor não lhe pertence e recriando nele
1 . Não há relação automática, mecânica, entre "ter o domínio
da cultura'', e "ser crítico";
~rmas de sociabilid_ade, de acordo com suas necessidades e cª;n~~
çoes. Reve~a-se, as~1m, a discrepância entre a força transformadop
do uso efetivo e as imposições restritivas dos regulamentos (Exe Ir~
2 . Há aí, suposta, a supervalorização de um instrumento da
cultura, a escrita, e, via escrita, a do saber letrado, ao passo que se o uso do Museu do I · · mp o. 1
pode considerar que a oralidade também permite o conhecimento piranga, citado por A.A. Arantes, 1981 ).
e a crítica. . No discurso da classe-média, tachamos de ignorância 1
Como disse anteriormente há várias formas de conhecimento e mmtas vezes, uma forma de resistência cultural. o que é,
não apenas a oficial, estabelecida segundo as regras do jogo da classe 1
Essas reflexões indicam que o modo de leit d 1
dominante, na escola. Além disso, o problema não é de quantidade, la d . . ura as c asses popu-
res po e ser d1stmto do da classe dominante, sem lhe ser inferior.
de extensão. Para a mobilização do conhecimento (legítimo ou não)
em torno do homem e sua vida não é preciso se apossar da totalidade d .Em suma, ~m ~elação à distinção entre classes populares/ classe
dessas formas de saber (a ilusão -da completude). Em termos de ommante, eu f1cana na tensão existente entre elas: não penderia,
leitura, por exemplo, eu diria que não é necessário dominar todos os em ab~trat~, nem para a dominação do saber erudito nem ara a
produtos (todas as grandes obras) mas sim saber o processo de sua absolut1z_açao do saber popular, já que essas são formas que co:vivem
produção. em conflito em nossa sociedade, com suas diferentes :.:sfer:.:i~ d..-: :i~n;i窺·
Por outro lado, o leitor vai se formando no decorrer de suei
existência, em suas experiências de interação. com o universo natural, . No que concerne ao. discurso da classe-média, que diz ue é
cultural e social em que vive. A leitura é um ato cultural em seu preciso se apossar da totalidade da cultura dominante para se li~ rt
sentido amplo, que não se esgota na educação formal tal como esta (eles querem dizer "dominar"), a resposta pode ser a de que é pr:ci:
tem sido definida. Deve-se considerar a relação entre o leitor e o sel explo~a~ as contradições do que vem implícito nesse discurso da
e asse-media.
conhecimento, assim como a sua reflexão sobre o mundo. Eu diria
que o conhecimento tem caminhos insuspeitados. Ninguém tem a fór- , Logo, ª. meu ver, há dois níveis de reivindicações, em rela ão
mula da descoberta, de como se chega ao conhecimento e à crítica. a classe ?º~mante: a) de um lado, deve-se reivindicar politicame~te
O que proponho é que se relativize a importância do conheci- a apropnaçao dos seus instrumentos de conhecimento· b) de t
mento legítimo, pois, muºdar a relação com esse conhecimento pode d~ve-~e, efetivamente, elaborar formas de conhecime~to crític~u ~;
significar a negação da escola como detentora do conhecimento letra- nao sao_ meras reproduções de formas de conhecimento legítimo ~as
do redentor, em que ler e escrever não tem originado um saber atuante, que denvem de um conhecimento efetivo do aprend1'z em suas'
não tem desencadeado uma práxis, nem contribuído para a transfor- diç -e 3 e f . ' can-
o s . orno azer isso? Não reproduzindo atraves ' d d'
f l ( · · , o 1scurso
.mação dessa realidade social da qual estamos falando. Realidade ~ro essor~ e ~~rodares) a distinção estrita entre conhecimento legí-
em que o saber legítimo acumulado sequer consegue evitar a fome f mo e nao leglt1~0; promover o discurso da legitimidade das várias
da grande parte da população. Mudar essa relação significa não armas de conhecimento, dando um espaço real para a elabora ão
extrapolar o valor do saber acumulado nas bibliotecas, embora se dessas outras formas de conhecimento com suas distintas funç~es
reivindique o acesso a elas. O conhecimento legítimo se apresenta
como um conhecimento no passado, pronto, acabado e no entanto 3 · Quero crer que a pr6pria bur ·
conhecimento que nã gues1a, na sua ascenção, inaugurou formas de
ele está se fazendo continuamente, e na relação entre dominador e tico. Por outro lado ºa e;am m~ra aprop~iaç_ão do conhecimento aristocrá-
dominado. Ele é a marca de uma diferença. determinada pela bu;guesi~~ma e apropnaçao deve ter sido minimamente

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sociais; fazendo com que esse espaço de elaboração represente efeti- . . Na observação desse princípio é ue em
leitura, tenho proposto. 1 º) q_ ' meus trabalhos sobre
vamente um espaço real de poder de decisão. Caso contrário, se estará º) · · que se considere que a le"t
1 ,
e 2 · que se atente às suas cond· - d ura e produzida
produzindo uma escola democrática domesticada pelo poder dominante. certamente . serão diferentes - iço~s e produção. Essas condições
O que nos leva a dizer, em relação à apropriação dos instrumentos classe social às diferenças id nl~o . so em relação às diferenças de
grupo etc. ' eo og1cas, mas de histórias pessoal e de
da classe dominante, que é a forma, o modo de acesso a eles que
determina a qualidade de sua apropriação e define as suas conse-
qüências. A sociedade capitalista tem interesse em conceder o direito O estabelecimento das condi ões d - .
ser uma forma de se operar com ç dif e produçao de leitura pretende
ao saber para manter sua força de trabalho em bom estado de funcio- · ª erença sem absorvê-la.
namento. Daí construir a imagem da igualdade de direitos. Essa é a Tenho feito o levantamento d , .
imagem que ela quer dar de si mesma. Para explorar as possíveis de produção de leitura que explicita e va~10s .aspectos das condições
contradições que vêm imbutidas nesse interesse, e nessa imagem, é discurso). m o unc10namento do texto (do
preciso que as classes populares possam estabelecer, minimamente,
as condições em que se dá essa apropriação. E não deixar, como se
faz predominantemente, que lhe dêem o produto e a receita de como
Ao saber como o texto funciona es er
ler não apenas como o professor l' , l .
o que o aluno-le1tor possa
em aberto, podendo se construir e mas es~~bra o processo da leitura
consumi-lo. Que é o modo que a classe dominante tem de não deixar como SUJe1to de sua leitura.
as classes populares colocarem suas marcas nos "produtos culturais". Nessa perspectiva, então, como o erar c , . -
dos nas diferentes leituras de um text~ (leituom a ~ar;a~ao dos senti-
II . . Segunda Parte: AS CLASSES POPULARES E AS HISTORIAS mo tem~o :m que a disciplina escolar, e instit~a _pohssem1ca) a~ me_s-
a reproau:;u~" de sentidos p . t c~onal em geral, impoe
DA LEITURA . revis os para ele (leitura parafrástica)?
A resposta está em um método
A relação de interação (leitor/texto/autor) estabelecida na esco- se traçar o limite entre aquilo q 1 . que ~orneça um critério para
la, tem como mediador o professor. Uma vez que, segundo a ideologia (limite mínimo do que se od~e eº e1tor nao ch_egou a compreender
escolar, o professor é que tem a leitura que se deve fazer (a boa aquilo que já ultrapassa o p sperar que se1a compreendido) e
leitura, a legítima), essa relação, além de ser, na maioria das vezes, Isso significa decidir de que lsedpode compreender (limite máximo).
heterogênea, é, necessariamente, assimétrica: o saber do professor e ' um a o se uma leitu , ,
outro, se ela chega a ser p 1 , , ra e possivel, e, de
seus objetivos é dominante em relação ao saber e objetivos do aluno. ' e o menos, razoavel.
Dada, pois, essa relação de interação da leitura escolar (na esco- ~ minha posição é a de que a leitura nã , , ,
em s1. Quer dizer não há le. t . o e poss1vel ou razoavel
la, para a escola ou de acordo com o padrão escolar), e dado o fato ' 1 uras previstas por um t t
de que essa relação produzirá uma transformação, cabe perguntar como se ele fosse um ob1· eto f h d . ex o, em geral,
ec a o em s1 mesmo t fº ·
qual a direção, qual o sentido dessa transformação? Q uando, na escola se fala sob . ' au o-su 1c1ente.
re o sentido do texto t,
o fato de que há sentidos est b 1 "d se es a ocultando
Esse sentido, creio, deve-se oríginar no espaço dado ao aluno a e ec1 os para ele.
para que ele mesmo elabore sua relação com a leitura, ou seja, é , Considero que toda leitura tem sua história
preciso não tirar seu poder de decisão, não pretender estar no seu e que o possível e o razoável em 1 - , . . O que proponho
lugar. Isso significa seguir o mais elementar princípio pedagógico que se definam levando-se em cont' . re hª?ª~ ~ compreensão do texto,
a essas istonas. a hist, . d 1
diz que o processo de aprendizagem do aluno é distinto do método d o texto e a história de leitur d 1 . . ona e eituras
. as o e1tor (Orlandi, 1985).
de ensino proposto para ele. Uma vez que ele tem seu processo de
aprendizagem, o método de ensino deve apenas servir para lhe propi- Leituras possíveis em certas épocas não o são em outras. Nós
ciar condições para que seu processo se desenvolva. O método não lemos diferentemente um mesmo
' texto em épocas, condições, dife-
í1 deve se sobrepor (sufocar) ao processo, mas se articular com ele.
rentes.
l.
t
r 212 213
1
.i
A legitimação do processo histórico da leitura - que sentidos
atribuir ao texto, ou, como o texto deve ser compreendido? - se reproduzir a mesma leitura, através dos anos, e apesar dos leitores
faz de formas variadas, nas diferentes instituições, através de espe- e de suas classes sociais. Assim, pelo conceito de autoridade, há um

'
cialistas, de autoridades: na Igreja Cristã, a leitura competente está deslize entre a função crítica e a censura: o leitor fica obrigado a
a cargo do teólogo, no Direito, do jurista, na Escola, do professor. reproduzir o seu modelo de leitura, custe o que custar. O que, em
geral, custa a sua capacidade de reflexão.
O professor, por sua vez, ou representa a voz do crítico ou a do livro
didátíco adotado. Se esses fenômenos podem ser observados como sistemáticos na
Esse processo de legitimação resulta em que há um caráter previ- produção da leitura, o ensino desta deve operar com eles. Uma suges-
sível em relação à leitura: há leituras previstas para o texto pois o tão pedagógica seria os professores proporem uma organização curri-
crítico, ao mesmo tempo em que avalia a importância do texto, cular que permita que o aluno trabalhe em sua própria história de
leituras. Desafiar a sua compreensão e ao mesmo tempo lhe fornecer
fixa-lhe um sentido, uma leitura.
as condições para que esse desafio seja assumido de forma conse-
Por outro lado, todo leitor tem sua história de leituras. O con- qüente. E para isso não se pode prescindir da convivência múltipla,
junto de leituras feitas por um leitor específico é um aspecto relevante aberta e total com textos, ou seja, bibliotecas, arquivos, coleções,
que configura a sua compreensibilidade (capacidade de compreender) recortes etc. que devem estar à inteira disposição dos alunos . Tendo
diante de um texto. acesso a um material variado, e que ele ajuda a constituir como

~
material didático, terá também uma visão crítica dele e a consciência
As leituras já feitas por um leitor específico dirigem - podem
da provisoriedade e da validade desse material enquanto instrumento
alargar ou restringir - a compreensão do texto. Essa é a contrapar- para o conhecimento de algo.
tida, para o leitor, da sedimentação histórica de sentidos e do fato t
Ji
de que todo texto tem relação com outros (intertextualidade) . Enfim, com essas condições de ensino,. e aberto um espaço para
Com relação ao que é previsível na leitura (a história de leituras
,,~ que o aluno-leitor elabore suas experiências de leituras, a partir de
·~

'1
do texto), o professor pode modificar as condições de produção de 1 suas condições de vida, esse aluno determinará a forma de apropriação
desse instrumento que é a leitura, o que permitirá que, sendo ele das

~
leitura do aluno de duas maneiras: a) de um lado, propiciando-lhe
que construa sua história de leituras; b) de outro, estabelecendo,
quando necessário, as relações entre os diferentes textos, resgatando,
assim, a história dos sentidos deles .
i
j
classes populares, essa classe se construa e se representa em sua histó-
ria de leituras que a classe dominante desconhece 4 •

\ Mas há o outro lado da questão: a imprevisibilidade (a história


de leituras do leitor). Há algumas leituras previstas mas há muitas
1 BIBLIOGRAFIA

l
·~ leituras possíveis. Ou seja: as leituras têm suas histórias no plural. ARANTES, A. A. - O que é cultura popular, Primeiros Passos, Brasiliense, São
Paulo, 1981.
Na transformação das condições de produção do aprendiz im- BRANDÃO, C. R. - Casa de Escola, Papirus, Campinas, 1983.
porta cuidar-se para que não se petrifiquem essas leituras previstas GADET, F. & PÊCHEUX, M. - La Langue lntrouvable, Maspero, Paris, 1981.
em detrimento da descoberta, da leitura nova, que deve acontecer ORLANDI, E. - "As histórias da leitura", Leitura: Teoria e Prática, Merca-
tanto quanto possível. do Aberto, Porto Alegre, 1985.

Isso só pode se dar, a nosso ver, se se enfatizar o papel da


história de leituras do leitor e se não absolutizar o previsto através
1 4. Quando apresentei este texto, perguntaram o que estávamos considerando

J do conceito de autoridade: o da leitura competente.


como classe dominante, classe-média e classes populares. Eu diria que,
relativamente ao problema da escola e ao conhecimento "legítimo", a classe

No esquema reprodutor, a melhor leitura tem sido aquela feita


por uma autoridade x, que é tomada como modelo estrito. Daí se
1 dominante é a que não precisa desse conhecimento para se legitimar, a
classe-média é a que precisa do conhecimento legítimo para se reproduzir
(ou ascender) e a cfasse popular é a que está. excluída, ou seja, já sabe que
não lhe adianta essa forma de conhecimento.

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