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O Grupo de Teatro Mambembe e o Circo-Teatro

O h e r ó i Q u a d e rrnn a a j u s t a c o n t a s n o p a l c o

M ariângela Alves de Lima

H
erdeiro do trono legítimo do Brasil, rei “epopéico”, parente próximo do folhetim e tal
prometido do Quinto Império dos sebas- como seu enobrecido antecessor, gênero dota-
tianistas, Dom Pedro Dinis Quaderna é, do de ganchos para cativar seus leitores por
além disso, o sucessor literoteatral de Ma- muito tempo.
cunaíma. Vivendo desde os anos setenta Não podendo ser na mesma medida ge-
do século passado nas páginas dos romances de nerosa “epopéico” e folhetinesco, o Quaderna
Ariano Suassuna, Quaderna era, há muito tem- apresentado no espetáculo do CPT é, antes de
po, O Desejado do Centro de Pesquisa Teatral tudo, o memorialista. Chamado por um corre-
do Sesc. Agora, sob a direção de Antunes Filho, gedor para prestar esclarecimentos, participa de
o herói paraibano erige sobre o palco o Castelo um processo que é, no tempo sintético do tea-
e Fortaleza de seu império sertanejo. tro, um ajuste de contas feito no tribunal da
Baseando-se nos dois romances protago- consciência. Elementos circunstanciais da his-
nizados por Quaderna, a adaptação assinada tória do País, que nos romances de Suassuna são
pelo diretor do espetáculo entra em cena com o embelezados pelas tinturas da emoção e do
título de A Pedra do Reino. Nos livros, todos os mito, entram resumidos em cena, quase como
gêneros almejados e nomeados pelo criador do legendas necessárias para esclarecer cisões ideo-
herói puderam exercitar-se em liberdade. Mis- lógicas persistentes na história contemporânea.
turas esplêndidas da memorialística, da tragé- São minimizados ou excluídos da adaptação
dia, da oratória barroca, da novela romântica, aportes sociológicos e a crônica histórica que
das narrativas de cordel, da mitologia serta- Ariano Suassuna mobiliza para lembrar ao lei-
neja, do repertório da poesia romântica e até, tor de hoje as convulsões que o sertão e as cida-
em raros momentos, de técnicas da ficção rea- des nordestinas litorâneas atravessaram desde o
lista, constituem uma estratégia por meio da final do século dezenove até o golpe que insti-
qual o protagonista afirma a identidade do seu tuiu o Estado Novo.
reino onde se mesclam todas as culturas do he- Situado no plano da memória, colocado
misfério ocidental. Citação, apropriação, pa- na posição frontal de narrador, o protagonista
ródia ou, inversamente, elevação do banal à da encenação desvencilha-se em parte da missão
categoria do sublime intercalam-se no formato de caracterizar e reproduzir a imensa riqueza

Mariângela Alves de Lima é pesquisadora e crítica de teatro de O Estado de S. Paulo.

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s ala p reta

cultural do seu cenário natal. Os cantares de to- preenche o espaço. Como signo e sonoridade,
dos os gêneros que a personagem recolhe (como as palavras são o fulcro na encenação. Atraem,
o príncipe português de quem empresta o provocam e procuram manter o espectador atre-
nome) são exemplificados de modo sucinto no lado à oralidade emulando os cantadores e “epo-
espetáculo. Há contornos límpidos feitos com peieitas” a que se refere continuamente o prota-
resquícios das cores fortes e das formas abrup- gonista. A galhofa, o “riso-a-cavalo, grosseiro e
tas da paisagem. O trato visual traduz a exube- macho”, não encontra correspondente nas ima-
rância nordestina para outra linguagem, quase gens que atravessam o palco. Manifesta-se no
abstrata, mais plástica do que dramática, expur- modo de narrar, na voz do intérprete, na pro-
gada dos traços barrocos da escrita original. gressiva segurança com que o depoente, engol-
Sem a pretensão de mimetizar a paisa- fado pela memória emotiva, esquece os perigos
gem, os tipos e conflitos da cidade e do sertão do inquérito e deixa de lado etiqueta e pudor.
paraibanos, o espetáculo emula o procedimento Ao transpor para o teatro os dois roman-
dos romances ao extrair o encantamento estéti- ces, Antunes Filho optou por um formato em
co do que é “bruto, despojado e pobre”. Mate- que a personagem-autor da história se sobrepõe
riais submetidos a um trato artesanal, exibindo aos episódios que testemunha. Essa escolha é,
a marca das operações que os transformam em em parte, determinada pela empatia absoluta
instrumentos simbólicos, são arranjados para com a perspectiva existencial que resume a fi-
imitar as operações do Palhaço-Rei sobre a nalidade do inquérito de Quaderna. Chamado
feiúra do real. É assim, por exemplo, que as a prestar contas, preparando-se para o encontro
cavalgadas belicosas onde se misturam em ban- com a “Morte que se imortalizará” o herói bufão
dos aguerridos coronéis, cangaceiros, padres, deve resumir, à guisa de defesa, o credo estético
fazendeiros, vaqueiros e políticos de renome, em que se alicerça a obra artística. Talvez em
avançam em tropel cavalgando a mais ordinária razão da brancura simbólica do final o espetá-
peça do mobiliário doméstico. Quem viu não culo se afasta da religiosidade belicosa e insur-
poderá esquecer o sertanejo sem nome e seu gente de Quaderna (que associa o sertão con-
rebanho comprimidos no desfiladeiro imaginá- flagrado à Judéia) e parece encaminhar-se para
rio e tampouco a metamorfose dessa figura na a resignação ao real. A tarefa difícil de alternar
multidão que, em todos os tempos e lugares, é o delírio criador e profético ao desencanto espi-
obrigada a ceder passagem para as cavalgadas ritual cabe, na encenação, ao ator incumbido de
de poderosos. representar o narrador. Lee Thalor é um intér-
No espetáculo, o componente lírico, o prete excepcional pelo fôlego digno de um
belo-horrível e as representações da mitologia cantador experiente, pela inteligência com que
híbrida de Quaderna deslizam em trajetos pa- modula as tonalidades e intenções do texto, so-
ralelos, mais ou menos distantes do narrador, bretudo pela capacidade de revestir a persona-
como ilustrações de uma fala ininterrupta que gem de maturidade atemporal.

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