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TRABALHO DO LATÃO
Rio de Janeiro
2013
PRISCILA SAEMI MATSUNAGA
TRABALHO DO LATÃO
Rio de Janeiro
2013
M434t Matsunaga, Priscila Saemi.
Trabalho do Latão / Priscila Saemi Matsunaga. – Rio de Janeiro: UFRJ,
2013.
224 f. ; 30 cm.
CDD 306.484
TRABALHO DO LATÃO
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________
Profª Drª Eleonora Ziller Camenietzki – Orientadora
Universidade Federal do Rio de Janeiro − UFRJ
_________________________________________
Prof. Dr. André Luiz de Lima Bueno
Universidade Federal do Rio de Janeiro − UFRJ
_________________________________________
Profª Drª Danielle dos Santos Corpas
Universidade Federal do Rio de Janeiro − UFRJ
_________________________________________
Profª Drª Maria Elisa Burgos da Silva Cevasco
Universidade de São Paulo – USP
_________________________________________
Prof. Dr. Walter Garcia da Silveira Júnior
Universidade de São Paulo – USP
Dedico este trabalho ao mestre Fernando Amorim
Tudo quanto ainda me falta dizer e fazer, eu o direi e farei sempre contigo ao me lado.
Augusto Boal
AGRADECIMENTOS
Este percurso só foi possível porque sempre tive o apoio de meus pais Nelson e
Vanilde. Agradeço pelo incentivo incondicional quanto aos meus estudos e, por eles,
tenho muito orgulho em exercer a docência. Compartilho este trabalho com minhas
irmãs amadas, Melissa e Vanessa. Pelo olhar de vocês vejo de um jeito diferente, de
ângulos novos, perspectivas viajantes.
Amorosamente agradeço ao meu companheiro Denis que de mais de perto vem
acompanhando minhas dúvidas, os tropeços nas pedras de Paraty, e que com uma voz,
também inconfundível, me faz olhar para o horizonte, para além do enquadramento da
porta. Nele encontro Bylly, e antes, Cléo.
RESUMO
Esta tese objetiva discutir o trabalho teatral desenvolvido pela Companhia do Latão,
grupo paulistano formado em fins da década de 90. O estudo perpassa a produção
dramatúrgica e cênica, bem como sua produção teórica, com o intuito de identificar o
projeto estético forjado por um preciso projeto ideológico anticapitalista. Nesse sentido,
debruça-se sobre a peça Ópera dos vivos, estreada na cidade do Rio de Janeiro em 2010.
Pelo estudo desenvolvido compreende-se que a Companhia do Latão se insere, com alto
grau de consciência da linguagem, nas contradições do presente, nas quais o
pressuposto crítico problematiza, pela composição cênica, o campo representacional em
que o capitalismo ideologicamente se projeta e constantemente se recompõe.
ABSTRACT
This thesis aims to discuss the theatric work developed by the Companhia do Latão, a
group founded in São Paulo in the late 1990’s. The study links the dramatic and
panoramic production as well as its theoretic production, in order to identify the esthetic
project forged by a precise project of anti-capitalist ideology. In this sense we focus on
the piece Ópera dos vivos, released in Rio de Janeiro in 2010.
With the developed study we understand that the Companhia do Latão falls within the
contradictions of the present, with a high level of linguistic conscience, in which the
critical dialogue questions, with the scenic composition, the representative field in
which capitalism is projected and always reestablishes itself.
RÉSUMÉ
PRÓLOGO.....................................................................................................................10
Os pressupostos básicos...................................................................................................15
É TEMPO DE DESTRAMBELHAR..........................................................................36
EPÍLOGO.....................................................................................................................176
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................186
ANEXOS.......................................................................................................................191
Anexo 1..........................................................................................................................192
Anexo 2..........................................................................................................................194
10
PRÓLOGO
Por incrível que possa parecer, foi a ditadura iniciada em 1964 que pela
primeira vez dotou o país de uma política de cultura digna do nome e de
inspiração keynesiana. Mas é bom não perder de vista o processo: primeiro
os militares trataram de eliminar da cena, por meio da censura, prisões e
exílios, a cultura esquerdista, hegemômica até o AI-5. Feita a limpeza e
criada a infra-estrutura para a indústria cultural (a Embratel é de 1965, o
Ministério das Comunicações é de 1967) que se encarregou de colonizar
para os valores do capital os corações e as mentes da grande maioria, foi
possível, já em 1975 (governo da “distensão lenta, gradual e segura”), criar
um órgão como a Funarte para viabilizar o Plano Nacional de Cultura, que
vinha sendo ruminado desde 1966. Quando, em 1985, o governo da Nova
República desvinculou o Ministério da Cultura do Ministério da Educação,
pouca gente entendeu que este já era o primeiro lance para a entrada do
11
Foi tudo muito rápido: em 1995 foi aprovada uma primeira regulamentação
da Lei Rouanet autorizando a ampliação dos resgates do imposto devido
permitidos na formulação anterior, em 1996 é criado o Sistema Financeiro
da Cultura para organizar a renúncia fiscal no plano dos estados e
municípios, além do federal. Isto é: cada esfera da administração pública
renuncia seus respectivos impostos, como IPTU e ISS (Lei Mendonça),
ICMS (leis estaduais) e IR (Rouanet). Finalmente, em 1997, nova
regulamentação da Lei Rouanet completa o processo, autorizando a dedução
integral dos gastos. A partir deste momento, acabou a farsa, ou melhor,
finalmente se consolidou a parceria tal como definida acima: agora o Estado
paga tudo e o capital exerce a sua liberdade de escolha. (COSTA;
CARVALHO, 2008,p.18)
1
A Lei Rouanet, que instituiu o Programa Nacional de Apoio a Cultura (PRONAC), foi sancionada durante o
governo de Fernando Collor.
2
CARVALHO, Dorberto; COSTA, Iná Camargo. A luta dos grupos teatrais de São Paulo por políticas públicas
para a cultura: os cinco primeiros anos da lei de fomento ao teatro. São Paulo: Cooperativa Paulista de Teatro,
2008, p. 21-22. Em algumas referências, como a que se pode acessar no site da Companhia do Latão, os
“grupos” assinam o documento. Saliento que César Vieira é fundador do grupo Teatro Popular União e Olho
vivo em atividade desde meados da década de 60.
12
recuperados através do citado livro A luta dos grupos teatrais de São Paulo por políticas
públicas para a cultura e também na recente publicação Teatro e vida pública: o fomento e os
coletivos teatrais de São Paulo, organizado por Flávio Desgranges e Maysa Lepique (2012).
De todo modo, abriu-se a trincheira para a discussão da função social da arte, alimentada por
um imaginário quanto à oposição ao pensamento neoliberal. Via a Lei do Fomento3, que
instalou o Programa Municipal de Fomento ao Teatro na cidade de São Paulo, o Estado
passou a financiar, via editais públicos, projetos teatrais com continuidade artística e
relevância social. O período ficou conhecido como um momento de “renovação” do teatro de
grupo devido ao seu processo de politização.
Em Teatro e vida pública: o fomento e os coletivos teatrais de São Paulo, contudo,
principalmente nos textos de Paulo Arantes – A lei do tormento, José Fernando Azevedo –
Uma trajetória na intermitência (notas à procura de um esquema), Luiz Carlos Moreira –
There is no alternative e em Conversa de bastidor – debate entre Marco Antonio Rodrigues e
Sérgio de Carvalho, as contradições e limites tanto do Arte contra a barbárie e da Lei de
Fomento ao teatro na cidade de São Paulo são apresentadas a partir de uma revisão histórica e
política. Paulo Arantes, por exemplo, chama a atenção, recuperando um texto de Sérgio de
Carvalho, quanto às condições dessa retomada
Para começar, nunca será demais relembrar que a Lei de Fomento foi
paradoxalmente arrancada do establishment numa hora de refluxo social em
todas as frentes. Inexplicável demonstração de uma força que em princípio
não poderíamos ter, salvo aquela peculiar dos afogados. Pairava, no entanto,
no ar uma sensação indefinida de virada política iminente, que de fato
ocorreu no ano seguinte ao da aprovação da lei, porém num rumo totalmente
inesperado, por maior que fosse o ceticismo a respeito. Como o momento era
de fadiga do ajuste estrutural que há oito anos infelicitava o país – era
recente a memória ressentida de descaso social sistemático, ilustrada de
modo superlativo, por exemplo, pelo episódio do Apagão −, tivemos a
chance de reagir ao descalabro justamente quando a maré eleitoral
principiava a beneficiar o outro polo da concertação informal que nos rege
há quase duas décadas. Creio, no entanto, que no fundo ninguém se iludia.
Em primeiro lugar, quanto à natureza preponderantemente reativa do atual
ciclo de politização do teatro brasileiro – artisticamente relevante, é claro.
Para ser exato, o terceiro, na periodização muito sugestiva de Sérgio de
Carvalho. Seria o caso de acrescentar, para melhor ressaltar a novidade do
presente, que os dois ciclos precedentes de radicalização da prática teatral –
o auge modernista dos anos 30, ainda que “virtual”, como observa Sérgio,
pois a estética antiburguesa sequer chegou às salas de espetáculo; e a
realização parcial daquele mesmo programa de refuncionalização do teatro,
pela geração artística que o golpe de 64 decapitou – respondiam, nos seus
3
Segundo Alexandre Mate (2012), “a lei que institui o Programa Municipal de Fomento entra em vigor no
segundo semestre de 2002 e até o fim de 2011 contou com dezenove edições de seleção”. (p.75). A citação foi
retirada do livro Teatro e vida pública: o fomento e os coletivos teatrais de São Paulo.
14
Para muitos, o motivo é, na maior parte das vezes, econômico. Seria mais
fácil, diante de todas as dificuldades de produção, começar associando
expectativas – o que talvez justifique a quantidade de filiações na
Cooperativa Paulista de Teatro, com suas cinco centenas de grupos (...) O
fato é que hoje, “formar” um grupo é algo mais ou menos natural, e o Arte
contra a Barbárie, como muita coisa em nossa história, já ganhou contornos
míticos. Faço parte de um grupo formado naquele momento, e resulta desse
percurso a sensação de que, no melhor dos casos, insistimos martelando uma
15
pauta que não soubemos aprofundar, de modo que não deveria causar
espanto, a não ser por excesso de autoilusão, a desconexão alarmante desses
“novos” grupos em relação àquele ideário que animou a leva imediatamente
anterior (...). A Lei forçou intensificar na experiência do teatro de grupo
contradições até aqui incontornáveis. O grupo como força produtiva
desenvolve-se a partir de um impasse – até segunda ordem, um impasse que
indica uma chance histórica. Os artistas apresentam-se como donos de sua
força de trabalho; negada a figura do empresário, o grupo não é, todavia,
inteiramente dono de seus meios de produção. Resulta que a continuidade do
trabalho – baseada na intermitência, inclusiva da Lei – se dá ao custo de
negociações e vínculos precários (o que vai desde as condições para a
manutenção de um espaço de trabalho, em geral alugado, até as condições
mínimas de produção e circulação, muitas vezes sob o signo da submissão).
Tais negociações e vinculações quase sempre conformam um campo
meramente econômico, restrito a necessidades imediatas de sobrevivência. O
que, portanto, está em jogo, é o teor da negociação e do vínculo, ou a
capacidade dos grupos de os converterem em alianças, definindo nesse
movimento quais são seus aliados (...) Na dificuldade interna ao movimento
de decidir-se para além do campo teatral, o passo seguinte foi uma espécie
de recuo. Isto posto, se quisermos ainda verificar processos de politização e
aprofundamento da pauta anterior, teremos de ir à singularidade dos grupos,
e interrogar de perto sobre a maneira como se excedem em cena.
(AZEVEDO, 2012, p.212-214)
Os pressupostos básicos
Ao iniciar o presente estudo não me estavam claras as bases nas quais poderia
encaminhar o projeto de pesquisa, embora soubesse que centraria a análise na produção teatral
da Companhia do Latão, grupo teatral paulistano identificado à pauta anticapitalista do Arte
contra a barbárie. Tinha certa pretensão em compreender a representação sobre a realidade
brasileira através das obras não apenas do Latão, como é conhecido, mas de outros grupos
teatrais, numa espécie de identificação do projeto teatral que estava em curso quando se
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poderia ter uma proposição unificadora em andamento assemelhada ao que ocorreu em 1960
(devo lembrar o último item do manifesto: Este texto é expressão do compromisso e
responsabilidade histórica de seus signatários com a ideia de uma prática artística e política
que se contraponha às diversas faces da barbárie – oficial e não oficial – que forjaram e
forjam um País que não corresponde aos ideais e ao potencial do povo brasileiro) – e minha
admiração ao movimento teatral paulistano não me permitia enxergar todos os senões
expostos acima. Ficou mais claro, então, a partir desses comentários, e reduzida a empolgação
com o Arte contra a barbárie, o que significam obras de relevância artística circunscritas a
uma condição “reativa”. Tendo ponderado – e devo muito às observações dos professores
Maria Elisa Cevasco e André Bueno no exame de qualificação da tese − a impossibilidade de
levar adiante a ideia original, o trabalho realizado satisfaz, em parte, esse impulso inicial ao
localizar o Latão entre os grupos teatrais identificados pelo projeto de construção de um
imaginário anticapitalista. Coube, então, tentar verificar como o projeto ideológico4 da
Companhia, que tem na figura do diretor e dramaturgo Sérgio de Carvalho o seu principal
locutor, se apresenta, ou se equilibra, com seu projeto estético.
Ressalvo que esta é, quando muito, uma tentativa de leitura quanto ao modo como o
Latão operacionaliza aquilo que tem como perspectiva ideológica; a tentativa final é a de
examinar como a reação ao estado de coisas geral, alimentando um imaginário anticapitalista
via construção cênica, se concretiza em sua composição teatral – e por mais um rearranjo do
estudo, que não conseguiu manter o impulso inicial, a análise se dirige a apenas uma peça,
Ópera dos vivos. Demais obras do grupo serão apresentadas, com algumas notas pessoais, a
partir da análise de outros autores.
4
Aqui cabe um breve apontamento sobre como o conceito “ideologia” será utilizado no presente trabalho. Em
Marxismo e literatura, Raymond Williams (1979) demarca que o conceito de ideologia não se origina no
marxismo e nem a ele se limita. Após uma breve explicação de três variações conceituais (i. um sistema de
crenças característico de uma classe ou grupo; ii. um sistema de crenças ilusórias – ideias falsas ou consciência
falsa – que se pode contrastar com o conhecimento verdadeiro ou científico; iii. o processo geral de produção de
significados e ideias) o crítico identifica que o termo criado em fins do século XVIII, pelo filósofo francês
Destutt de Tracy, tinha uma conotação marcadamente antimetafísica ao considerar que não há ideias no mundo
senão as dos homens, ao mesmo tempo em que excluía qualquer dimensão social ao retirar o modelo de homem
e o mundo das relações sociais. Segundo Williams, em A ideologia alemã, Marx e Engels introduzem, no ataque
aos seus contemporâneos alemães, a compreensão de que encontrar causas primárias nas ideias foi considerado
um erro básico (...) Mas já nessa fase havia complicações óbvias. “Ideologia” tornou-se um apelido polêmico
para todos os tipos de pensamento que negligenciavam ou ignoravam o processo material de que a
“consciência” era sempre uma parte (p.36). Das diversas e variadas definições que o conceito pode abarcar,
Terry Eagleton (1997) sugere que muito da tradicional conversa sobre ideologia foi formulada em termos de
“consciência” e “ideias” – termos que têm seus usos adequados, mas que tendem a nos empurrar na direção do
idealismo sem percebemos (p.171). Pois bem, para não avançar nos emaranhados desse debate, nos afastando do
propósito do estudo, pois central do ponto de vista da análise do projeto da Companhia do Latão, não o é do
ponto de vista conceitual, utilizo como ideológico uma ideia, ponto de vista, visão de mundo, que demarca um
campo de construção de ideias e significados, em disputa, porem.
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Brasil, desde o período colonial, como se pode observar nas peças dos coletivos teatrais:
Terror e Miséria no Novo Mundo, da Companhia Antropofágica; Pálido Colosso, da
Companhia do Feijão; Orfeu mestiço, uma hip-hópera brasileira, do Núcleo Bartolomeu;
Milagre Brasileiro, do Coletivo Alfenim entre tantos outros; conjugado por discussões sobre
a estética teatral; parte movida pelo reencontro da temática brasileira e articulação com
demandas populares, caso da Brava Companhia ou do questionamento das formas
representacionais, caso da Companhia do Latão.
Como estudo, a partir desses pressupostos de trabalho – e tendo como dimensão extra-
“discursiva” o que não se concretizou na tese − proponho apresentar algumas questões
relacionadas ao trabalho da Companhia do Latão, que aqui é compreendida assemelhada à
prática crítica de Mário de Andrade; para recuperar as categorias de João Luiz Lafetá:
“consciência é aqui a palavra-chave” (p.154). Aproximando a percepção do crítico à prática
da Companhia do Latão penso que o grupo trabalha através de uma consciência da obra de
arte como fato estético; consciência do teatro como resultante de experiências coletivizadoras;
consciência da necessidade de participação do intelectual na vida de seu tempo; consciência
da função social da arte.6
Para apresentar essa perspectiva, no presente estudo, utilizo depoimentos, entrevistas e
artigos dos integrantes do grupo, em especial de Sérgio de Carvalho, considerando que neles
registra-se uma perspectiva crítica sobre o seu próprio trabalho que ademais sintetiza uma
perspectiva ideológica, pois feita no campo da “representação teórica”, e que condensa seu
projeto ideológico (uma crítica anticapitalista), que se complementa com reflexões de
pesquisadores e intelectuais que dialogam com a Companhia e que por ela são acionados. Em
um segundo momento, como anunciado, apresento a resenha das obras de autoria do grupo e
de Sérgio de Carvalho e Marcio Marciano, entre os anos de 1998 a 2004, utilizando estudos e
reflexões feitas por estudos acadêmicos. A terceira seção da tese se debruça na peça Ópera
dos vivos, e em sua construção tento deixar claros os modos pelos quais a peça equilibra,
como crítica, o projeto ideológico e o projeto estético que, assim como demais peças do
Latão, agrupam pelo assunto semelhantes e pela temática diversa, a consciência da linguagem
6
Sobre Mario de Andrade, João Luiz Lafetá escreve: “consciência é aqui a palavra-chave: consciência da obra
de arte como fato estético; consciência do poema como resultante das projeções de experiências individuais, às
vezes obscuras e enraizadas no eu-profundo; consciência da necessidade de participação do intelectual na vida de
seu tempo; consciência da função social da arte. O pensamento de Mario de Andrade se estende por sobre todos
esses aspectos, detalha-os, busca os meandros de cada um deles, vai atrás de suas implicações mutuas, simplica-
os, complica-os, tenta a síntese. Do esforço para abrange-los nasce sua obra – por vezes confusa, arbitrária,
dilacerada entre tantos rumos, mas sempre incansável na pesquisa da solução clara, lavra paciente nos mistérios
da criação e de seus destinos. E sobretudo – precisemos bem esse ponto – uma obra que se desenha sobre o
fundo nítido da consciência da linguagem (p.154).
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teatral e crítica anticapiltalista. Seguem as notas finais, que menos um ponto de chegada, me
parece, demonstra como o grupo configura, desde sua formação, um trabalho em processo,
que se renova e se alimenta de experiências acumuladas, de análise e síntese de descobertas
cênicas e políticas. Ao final do texto, em anexo seguem imagens do espetáculo Ópera dos
vivos, e trechos da peça – inédita −, citadas pelo estudo.
21
Já se disse, com vontade de diminuir, que a Companhia do Latão tinha a mania do ensaio. De fato, ela
apresenta seus trabalhos como ensaios, aproximações, experimentos. Em uma cultura que cada vez
mais apresenta veleidades como obras primas, apresentar trabalhos caprichados como ensaios é um
choque.
Denuncia, até sem querer, o estágio mais atual da comédia
intelectual brasileira: duas ou três mistificações, mais um assessor de imprensa fazem um luminar das
letras, artes ou ciências.
A circulação tornou-se definitivamente um fim em si mesma.
É contra este estado de coisas que a Companhia do Latão ensaia: contra o fetiche do produto, mesmo
suas peças mais acabadas se expõem como trabalhos,
aproximações. Acho que nisso se exprime tanto a sua vontade de reorientar a dramaturgia para as
questões que de fato interessam,
quanto a consciência de que esse objetivo, o mais simples e difícil de todos,
é inimigo jurado das mistificações
José Antonio Pasta
Entre as várias questões que tem na peça, você tem um debate sobre a crise
da representação e a gente lia como crise do próprio teatro. Então no Ensaio
sobre Danton a gente falava, meio filosoficamente: seja o que for essa peça,
ela tem que partir do desengano, a gente não pode querer enganar ninguém,
ela tem que assumir o fracasso da representação. Isso gerava experiências
teatrais muito interessantes. Houve uma grande reflexão sobre linguagem
teatral. A peça acontecia como uma peça-ensaio dentro do teatro revelando a
máquina do teatro; se a gente não assumir que é mentira a gente não avança
sobre a mentira. Era mais ou menos isso o campo do debate [...] Uma atriz
perguntou pra mim no meio dos ensaios: Sérgio, eu estou entendendo tudo,
mas a gente está a favor ou contra o Danton? E eu me dei conta de que eu
não tinha pensado sobre o assunto da peça até aquele momento. E eu percebi
uma coisa óbvia: a gente estava discutindo pesquisa de linguagem e reflexão
formal sem pensar na interação disso com o assunto da peça, a matéria. Eu
percebi que a gente não tinha um ponto de vista sobre a matéria histórica da
peça, o que naquele caso virava um disparate. No projeto seguinte a gente
não podia fazer só pesquisa de linguagem abstrata, a gente tinha que pensar
o que a linguagem induz, contém, problematiza ponto de vista sobre a
matéria da peça. Como eu penso a relação da forma e assunto. A gente
começa a estudar Brecht como alguém interessado na crítica dos modelos
convencionais de dramaturgia. Ler o Brecht, antes de ler como um autor
social e político, ler como alguém capaz de desmontar a política na forma.
Como alguém capaz de desvendar a ideologia na forma. Brecht faz perceber
que as formas são ideológicas, que as formas têm um ponto de vista 7.
7
Debate realizado na PUC- Rio de Janeiro em junho de 2011. Gravação, transcrição e edição da autora.
8
Na apresentação do livro Brecht no Brasil (1987) Wolfgang Bader salienta que a produção brechtiana foi no
Brasil introduzida por três vias distintas: pela tradução de obras iniciada nos anos 1940; pelas atividades teatrais
desenvolvidas especialmente em São Paulo por alemães exilados e pelo contato com as montagens teatrais do
dramaturgo pelos profissionais do teatro brasileiro em viagem à Europa. A nova concepção teatral de Brecht era
o assunto que unia os profissionais e intelectuais à época e até 1958 era matéria para especialistas.
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politização do grupo tenha se iniciado pela percepção de que o fato artístico, como linguagem
esteticamente organizada, não se limita à expressão neutra, e que a modelagem, arquitetada
pelo artista, é feita conforme seu ponto de vista. Na palestra realizada por Sérgio de Carvalho
no 14º Simpósio Internacional de Brecht, realizado em maio de 2013 em Porto Alegre, o
dramaturgo e diretor “organiza” o trabalho da Companhia. Para Sérgio de Carvalho, “o
trabalho é mais importante do que a obra. A ideia de trabalho em processo artístico é um
conjunto de atividades”. A partir dessa premissa, o dramaturgo apresenta a trajetória de
trabalho. O primeiro espetáculo da Companhia, Ensaio sobre o latão, como coletivo, é uma
peça-ensaio baseada no estudo do texto de Brecht conhecido como A compra do latão. O
primeiro experimento é ensaio “no sentido teatral e teórico filosófico”. Nesse sentido, a
primeira referência de trabalho foi construída a partir das contradições formais: “Eu diria que
esse foi o primeiro ponto importante de contato com o Brecht: perceber que a forma é
produtiva na medida em que ela expõe suas contradições e ela instaura um trabalho no
espectador. Essa questão da contradição formal se dá em todos os níveis e pra nós tem um
aspecto central”. Nasce do contato com o legado de Brecht a consciência de que “qualquer
aproximação útil e atual sobre Brecht não tem que se aproximar de um estilo brechtiano.
Interessa nele uma atitude do trabalho, e essa atitude nasce do desenvolvimento das
contradições, que incidem também nas formas”. Resulta dessa consciência a identificação das
tendências formais dominantes do trabalho teatral e um procedimento comum nas peças é
coloca-las em estudo, em cena. “Um segundo passo, além dessa primeira influência
brechtiana, foi perceber que a atualidade de Brecht exigia uma consciência do que significa o
capitalismo na versão brasileira (...) Adotar o ângulo da periferia do capital e das suas formas
de representação dominantes para poder entender qual o sentido de uma crítica anti-dramática
na atualidade”, quando passou a ser importante compreender as feições da racionalidade
burguesa na estruturação das formas dominantes de representação. “Os trabalhos seguintes da
Companhia do Latão são trabalhos que enfrentam em dois níveis a questão brasileira: no nível
das formas de representação e no nível da tentativa de representar o aburguesamento
contraditório que ocorreu na nossa história. E lidando com esse fato fundamental que a ideia
de individuo é uma ausência histórica até muito recentemente no imaginário coletivo”. O
terceiro aspecto realçado pelo dramaturgo incide sobre a própria crítica ao conceito de cultura:
“Parte dos trabalhos do Latão começou a tratar da questão da representação e da ideologia da
representação, como tema. A própria questão do artista, a função do artista como abastecedor
do aparelho da cultura nos termos que o Brecht já descreveu no passado, na atualidade.
Passou a ser importante a partir daí descobrir formas atuais de representar isso, e o Latão
24
iniciou uma pesquisa sobre a ideia de um narrador desconfiável. Nós começamos a fazer
peças que o espectador deveria desconfiar do espetáculo e da ideia de espetáculo. É como se a
ideologia fosse um problema a ser enfrentado pelo espectador”. A partir da sua exposição
tendo a considerar por procedimentos de trabalho: o primeiro contato com o legado do
dramaturgo alemão se deu como uma necessidade de fundo representacional: a falência da
forma dramática, como já intuída no Ensaio sobre Danton leva a equipe a estudar o mais
significativo dramaturgo que teorizou sobre a construção de uma cena não-dramática. Após o
primeiro impulso, de ordem estética, a proposta brechtiana é estudada como uma forma que
contém um pressuposto anticapitalista, o que faz com que a equipe comece a também estudar
as formas do capital no Brasil, com grande influência de outros campos de conhecimento,
como os estudos de Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre e também no campo da
crítica literária, com os estudos de Roberto Schwarz, e junto a isso, o interesse em
“desmontar”, ou melhor, problematizar, as formas recorrentes do teatro brasileiro. Num
“terceiro momento”, acumulado um repertório de trabalho de processos e espetáculos teatrais,
bem como a investida a outros públicos que não frequentam as salas de espetáculo, a
Companhia desenvolve e amplia seu estudo para outras áreas artísticas, na esfera do
audiovisual e da música (o trabalho com a função da canção já estava presente desde o início
do grupo), buscando o que Sérgio de Carvalho nomeia como a crítica do conceito de arte e
cultura; a questão da representação e da ideologia da representação9. Ainda que seja uma
ordenação incompleta, deixa entrever como a relação do Latão com o método brechtiano se
move e é constantemente reavaliada nos termos de busca por sua atualidade; obviamente não
no sentido de uma reutilização esteticista, e sim de uma refuncionalização do teatro em época
e local diverso. Neste sentido, já na primeira peça de sua autoria, como coletivo, o grupo
demonstra saber que horas são.
No prólogo de O nome do sujeito, que teve sua estreia em São Paulo em 1998, o
personagem Regente avisa que o teatro, como o público percebe, se encontra em total
escuridão. O personagem retorna, ao final do espetáculo, explicando que passou todo o tempo
da apresentação tentando encontrar a causa do “apagão” e o que encontrou foi um fio
desencapado; como não soube resolver a pane elétrica tentou desesperadamente encontrar um
especialista para tal fim, afinal, como homem comum, apenas conseguiu identificar o
problema. Não o encontrou e, sozinho, questiona o público: o que fazer?
9
A transcrição desta apresentação de Sérgio de Carvalho no 14º Simpósio Internacional de Brecht pode ser
consultada nos anexos.
25
A pergunta, escapando à peça, foi feita a Alfred Döblin, citado por Walter Benjamin
no ensaio O autor como produtor, sobre a posição do intelectual engajado às necessidades da
classe operária, em uma sociedade em transformação. A resposta dada, conforme a
compreensão de Benjamin, diz que cabe ao intelectual se colocar como um protetor, um
mecenas ideológico da classe operária, posição que é refutada ao ser comparada às
proposições brechtianas10. Para Brecht, a refuncionalização teatral é direcionada para
Retomando a peça do Latão, que esclarece sua função no meio teatral, a pergunta o
que fazer, mais do que uma questão apresentada pelo assunto da peça, também é um
questionamento para os artistas. O que fazer quando artistas creem estar produzindo algo
funcionalmente novo, quando, no muito, estão reproduzindo uma imagem caduca? De ser um
especialista da arte supondo isento de qualquer determinação?
No texto Na contramão da forma-mercadoria, transcrição de um depoimento no
seminário “Teatro de grupo: reinventando a utopia”, realizado pelo grupo Tribo de Atuadores
Ói Nóis aqui Traveiz, em novembro de 2005, Sérgio de Carvalho explicita as condições e
pressupostos políticos do Latão:
Como todos que precisam trabalhar para viver numa sociedade organizada
pelo capital, os integrantes do nosso grupo perceberam que a decisão de
exercer o teatro como profissão configura uma entrada direta num mundo, o
da mercadoria, que organiza a vida de qualquer trabalhador. O desafio,
diante disso, seria não sucumbir à lógica mercantil. Seria expandir as
brechas, procurar margens do mercado, o que exigiria de nós uma
consciência prática sobre os meios de produção capaz de modificar a nossa
inserção no aparelho teatral, e quem sabe um dia, mudar o próprio aparelho
teatral. Ainda acho que o teatro, sem deixar de reconhecer a época em que se
insere, só faz sentido quando nos faz ver o que está para além do mundo do
capital, na contramão dos padrões convencionais de circulação. A nossa
atuação procurou sempre enfrentar essa ambivalência. Na história da
Companhia do Latão, só viemos a vislumbrar um modo real de tensionar
nossa relação com o sistema das artes quando nossa vida artística nos levou a
10
Há que se considerar, também, que reverbera pelo questionamento o título de famosa reflexão, com
acentuação prática, proposta por Vladimir Lênin, em Que fazer? As questões palpitantes do nosso movimento,
publicado em 1902. Para Lênin, nas conclusões do referido texto, é preciso recuperar um marxismo militante,
“contra um burocratismo revolucionário e uma tendência pueril em brincar com as formas ‘democráticas’” (p.97)
a que estavam identificadas o movimento social-democrata russo. In: LENIN, Vladimir. Que fazer? As questões
palpitantes do nosso movimento. www.marxists.org. Acesso em 30 de outubro de 2013.
26
dialogar com públicos que não iam ao teatro para “consumir” cultura. Com
plateias que têm uma relação mais funcional com a arte, como por exemplo,
os integrantes do MST (...). Por outro lado, esse contato com grupos que
também trabalham na contramão da ideologia dominante, só nos confirmou a
sensação de que é muito importante que o pensamento de esquerda ocupe
núcleos centrais de irradiação do imaginário. (CARVALHO, 2009a, p.147-
148)
luta anticapitalista, pois por sua excepcional feitura artesanal, de explícito trabalho dos atores
em cena, ainda pode contribuir na formação de um imaginário coletivo de superação dessa
condição.
Não é irrelevante, também, anotar como a produção intelectual acadêmica, junto à
prática teatral com público variado, repercute no trabalho da Companhia. Uma das influências
na formação do grupo advém do estudo de José Antonio Pasta Jr sobre o trabalho de Brecht.
Segundo Sérgio de Carvalho
11
Revista Vintém, nº 1, 1998.
31
Seu método de geração de produtividade não pode ser julgado como uma
configuração absoluta, puramente dependente do engajamento, pois sua
qualidade fundamental é a exigência dialética de atualização. Nenhum dos
gestos materializados nas peças existe sem a relação com o que está fora
dele, o que nos sugere que a validade da estratégia de desautomatização
depende do modo com que a dialética da cena (a “imagem praticável do
mundo”) modifica a função convencional do teatro. Mas é claro que pensar a
relação possível entre pesquisa da vida contemporânea, reflexão estética e
radicalização política depende de uma disposição à luta anticapitalista, que
hoje procura suas novas formas (CARVALHO, 2009a, p.53).
explicando o ponto de vista segundo o qual Brecht hoje não tem atualidade nenhuma”
(SCHWARZ, 1999, p.113). E de certo modo, a provocação inicial reverbera como produção
intelectual, dramatúrgica e cênica, rastreando temas em que a crítica anticapitalista se faz pelo
entendimento das condições do capitalismo no Brasil, que se apresentam, objetivamente, pela
reflexão da própria forma de representação.
Como peças-ensaios, cada objetivação dada pela representação recebe tratamento
específico. As peças de autoria da Companhia – assinadas pelos dramaturgos Sérgio de
Carvalho e Marcio Marciano que dão o tratamento final, ou ainda, responsáveis por sua
composição − foram organizadas, no volume Companhia do Latão 7 peças, publicação de
2008, em três sessões: I. Imagens do Brasil, com O nome do sujeito, A comédia do trabalho e
Auto dos bons tratos; II. Cenas da mercantilização, com O mercado do gozo e Visões
siamesas e III. Releituras, com Ensaio para Danton e Equívocos colecionados. Não à toa que
os textos foram assim posicionados: se olharmos em seu conjunto há uma poética em
formação que em muito se organiza pela problematização das formas representacionais
eleitas, pela problematização das contradições precipitadas na forma; divididas pelos assuntos
caros ao Latão (Imagens do Brasil e Cenas de Mercantilização), oferecem uma leitura
organizada, e pedagógica, sobre a matéria social. Segundo Maria Silvia Betti
o trabalho de 1997, Ensaio sobre o latão, contém algumas das questões que
ainda hoje norteiam os experimentos da companhia: possibilidades e limites
do trabalho teatral em tempos de total colonização da sensibilidade e
imaginário pela indústria cultural; desafios práticos e teóricos postos desde
sempre aos que se dispõem a fazer teatro ou qualquer modalidade de arte
consequente no Brasil; e, sem esgotar a pauta, a busca de uma cena em que
as formas da sociabilidade brasileira possam ser examinadas sem
complacência (COSTA, 2008, p.168).
Não foi possível, ainda que entenda os limites de tal opção, desenvolver análises sobre
as produções do grupo em materiais audiovisuais, como poderia encaminhar as discussões
sobre os vídeos do DVD duplo Experimentos videográficos da Companhia do Latão, ou ainda
nos estudos que são feitos em cena, sobre o uso da canção – o Latão produziu dois CD’s
contendo as canções dos trabalhos teatrais. Breves notas sobre esses procedimentos irão
aparecer no presente estudo. Além disto, indico que serão contempladas na tese as peças
publicadas em Companhia do Latão: 7 peças, sem considerações sobre as representações de
peças que não são de autoria do grupo ou dos dramaturgos Sérgio de Carvalho e Marcio
Marciano − Santa Joana dos Matadouros e O círculo de giz caucasiano, ambos de Bertolt
Brecht, estreadas pelo Latão em 1998 e 2006, respectivamente; salvo a última peça, O patrão
14
Revista Crítica Marxista nº 26, 2008, p. 168-174.
35
cordial (2012), que tendo como ponto de partida a peça O Senhor Puntila e seu criado Matti,
é identificada como um “roteiro escrito com base em improvisação de atores”.
Antes de iniciar a próxima seção, faço uma última ressalva: ausentam-se
considerações sobre a peça Ensaio para Danton, por ter sido considerada o “pré-projeto” da
Companhia, como identificado nas entrevistas de Sérgio de Carvalho, embora tenha sido
anotado no primeiro experimento da equipe o impulso do que seria o seu projeto estético (e no
volume Companhia do Latão: 7 peças, o texto foi apresentado da seguinte forma: Ensaio para
Danton estreou no Teatro Cacilda Becker, São Paulo, em 18 de outubro de 1996, pela
Companhia do Latão). Segundo Iná Camargo Costa, as intervenções dos artistas brasileiros no
material de Georg Büchner mostraram o interesse pelas contradições reais da Revolução
Francesa. Uma delas faz referência à forma como os personagens que abrem e fecham o
espetáculo são os excluídos das conquistas revolucionárias. A outra diz respeito a
desmascarar a contradição pressuposta no discurso burguês sobre os direitos (CARVALHO;
MARCIANO, 2008, p.24). A peça foi novamente encenada em 1999 (o texto publicado
refere-se a essa versão), e quando de sua temporada, Marcelo Coelho anota o efeito cômico e
a relevância política advindos da subversão do texto original. Tal questão, a do efeito cômico,
não foi levantada por críticas feitas durante a primeira encenação, a saber, de Mariângela
Alves de Lima e Carmelinda Guimarães e as observações se referem mais aos temas teatrais
contemporâneos – solidão, desesperança − e ao sentimento de fracasso coletivo. Fica a
impressão, através das críticas jornalísticas, que após o contato com o método brechtiano em
1997, como dito pelo diretor da Companhia, o material tenha sofrido modificações cênicas
buscando o tensionamento entre texto e cena e se voltando, com mais força contraditória, à
relação palco e plateia15.
15
As críticas podem ser acessadas no site da Companhia: www.companhiadolatao.com.br. Acesso em 28 de
outubro de 2013. A crítica de Mariângela Alves de Lima, Peça discute revolução impossível, foi publicada no
jornal O Estado de São Paulo em 8 de novembro de 1996. A crítica de Carmelinda Guimarães, O prazer de
poder recomendar um bom espetáculo, foi publicada no jornal A Tribuna de Santos em 01 de novembro de
1996.
36
É TEMPO DE DESTRAMBELHAR
16
CARVALHO, Sérgio e MARCIANO, Marcio (orgs). Companhia do Latão 7 peças. São Paulo: CosacNaify,
2008. As citações de trechos das peças fazem referência a essa publicação. O livro é prefaciado por Iná Camargo
Costa.
17
Ressalta Rodrigo de Freitas Costa (2011) que à época o Latão estudava o livro Tudo que é sólido desmancha
no ar, de Marshall Berman, o que conferia à peça um sentido de compreensão sobre a modernidade, questão que
procurará rastrear nas peças do Latão, especificamente em O nome do sujeito e O mercado do gozo (a peça
estreia em 2003), por esta fazer referência a um poema de Baudelaire.
37
em 15 de outubro de 1849 e também em 1998, bem como de todos os personagens que serão
vistos em cena. Segundo Iná Camargo Costa
18
A citação foi retirada do site: www.itaucultural.org.br. Acesso em 27 de outubro de 2013. Segundo
informações do site, o texto de Iná Camargo Costa pode ser encontrado em Por um teatro épico. Vintém, São
Paulo, ano 2, n.3, p.12-17.
38
MARGARIDA – O que é?
WAGNER – Pediu-me que lhe entregasse.
MARGARIDA – Quem é ele?
WAGNER – Aceite.
MARGARIDA – Nem me conhece.
WAGNER – É um Barão, e quer lhe mostrar o mundo. Mas como são
perfumadas essas goiabas. Aceite.
MARGARIDA – O que ele quer comigo?
WAGNER – Sente que a senhorita é um espírito livre. Já foi ao teatro?
MARGARIDA – Teatro.
WAGNER – É uma maravilha, senhorita.
MARGARIDA – O que tem lá.
WAGNER – Lugares e mais lugares.
MARGARIDA – Tem bonecos articulados?
WAGNER – Abra a caixa.
MARGARIDA – Eu vi um boneco.
WAGNER – É uma jóia.
MARGARIDA – Era muito engraçado.
WAGNER – Aceite.
39
MARGARIDA – Como é?
WAGNER – Um broche delicado. Numa haste de prata, uma flor de
pequenos rubis.
Ela pega o estojo.
MARGARIDA – O Barão é velho?
WAGNER – Diga “sim” e ele virá a seu encontro.
MARGARIDA – Aqui?
WAGNER – Onde quiser.
MARGARIDA – O que é um espírito livre?
BRANCA (Grita de fora.) – Margarida!
MARGARIDA – Agora não, tia. Estou com a Mãe Preta. Tirando a roupa (A
Wagner.) No teatro?
CORO (Canta.) Quero me acabar no sumidouro.
Quero me acabar.
Lamba de vinte dias
Êeh lamba...
(CARVALHO; MARCIANO, 2008, p. 59-60)
peça a partir da análise do processo de trocas da mercadoria empreendida por Karl Marx19. No
início do espetáculo é dito que todos estão em busca do equivalente geral com função
especificamente social da mercadoria, a saber, o dinheiro; as cenas da peça, através das ações
individuais dos personagens no cálculo do valor de suas mercadorias, como proprietários no
processo social, irão incidir na análise marxista de troca direta, tal como a forma natural do
processo de intercâmbio, segundo Lukács, representando “muito mais a transformação inicial
dos valores de uso em mercadorias” (LUKÁCS, 2012, p.195). O problema da mercadoria, na
peça, é investigado em sua estrutura de relação mercantil, para se tentar aproximar as formas
da objetividade às formas correspondentes de subjetividade na sociedade burguesa, nos
termos do “nome do sujeito”.
A ausência do Barão – e também do Imperador e dos grandes senhores de engenho −
em cena se dá pois ele seria o personagem que não estaria na relação de troca consentida (e
numa forma objetivada em cena), e de fato, a comparação à ele é feita pela aparição da Besta,
o grande proprietário, ou ainda o Capital, à personagem de Branca. Os demais negociam o
que possuem, não somente “mercadoria-objetos”, como no caso de Carneiro, comerciante
19
“Não é com seus pés que as mercadorias vão ao mercado, nem se trocam por decisão própria. Temos,
portanto, de procurar seus responsáveis, seus donos. As mercadorias são coisas; portanto, inermes diante do
homem. Se não é dócil, pode o homem empregar força, em outras palavras, apoderar-se dela. Para relacionar
essas coisas, umas com as outras, como mercadorias, têm seus responsáveis de comportar-se, reciprocamente,
como pessoas cuja vontade reside nessas coisas, de modo que um só se aposse da mercadoria do outro, alienando
a sua, mediante o consentimento do outro, através, portanto, de uma ato voluntário comum. É mister, por isso,
que reconheçam, um no outro, a qualidade de proprietário privado. Essa relação de direito, que tem o contrato
por forma, legalmente desenvolvida ou não, é uma relação de vontade, em que se reflete a relação econômica. O
conteúdo da relação jurídica ou de vontade é dado pela própria relação econômica. As pessoas, aqui, só existem,
reciprocamente, na função de representantes de mercadorias, e, portanto, de mercadorias (...) Cada proprietário
de uma mercadoria só a cede por outra cujo valor-de-uso satisfaz necessidade sua. Assim, a troca é, para ele,
processo puramente individual. Além disso, quer realizar sua mercadoria como valor, em qualquer outra
mercadoria do seu agrado, com o mesmo valor, possua ou não sua mercadoria valor-de-uso para o proprietário
da outra. A troca passa então a ser, para ele, processo social. Mas não há possibilidade de o mesmo processo ser
simplesmente individual e ao mesmo tempo simplesmente social e geral, para todos os proprietários de
mercadorias. Todo possuidor de mercadoria considera cada mercadoria alheia equivalente particular da sua, e
sua mercadoria, portanto, equivalente geral de todas as outras mercadorias. Mas todos os possuidores raciocinam
do mesmo modo. Assim, não há equivalente geral, e o valor relativo das mercadorias não possui forma geral em
que se equiparem como valores e se comparem como magnitudes de valor. Não se estabelecem relações entre
elas, como mercadorias, confrontando-se apenas como produtos ou valores-de-uso. Em sua perplexidade, nossos
possuídos de mercadorias pensam como Fausto: “No princípio era a ação.” Agem antes de pensar. As leis
oriundas da natureza das mercadorias revelam-se através do instinto natural dos seus possuidores. Só podem
estabelecer relações entre suas mercadorias, como valores e, por conseguinte, como mercadorias, comparando-as
com qualquer outra que se patenteie equivalente geral. É o que nos mostrou a análise da mercadoria. Mas apenas
ação social pode fazer de determinada mercadoria equivalente geral. A ação social de todas as outras
mercadorias elege, portanto, uma determinada para nela representarem seus valores. A forma corpórea dessa
mercadoria torna-se, desse modo, a forma de equivalente com validade social; ser equivalente geral torna-se
função especificamente social da mercadoria eleita. Assim, ela vira dinheiro. “Todos eles têm um mesmo
desígnio, e entregarão sua força e seu poder à besta. E que só possa comprar ou v eender quem tiver o sinal, a
saber, o nome da besta ou o número do seu nome.” (Apocalipse) (Marx, 2011, p.109-111).
41
português, mas ainda Antonio Lyra que vende sua força de trabalho, seu único “bem” – a
“mercadoria subjetivando-se”. Os personagens-proprietários estão em um grande “mercado”,
e a peça busca complexificar, e demonstrar, os valores-de-uso que define para sua mercadoria
cada proprietário. A escrava Graça, ela própria a primitiva forma dinheiro, será àquela que
tragicamente não perpetuará a relação, cometendo suicídio. Por essa breve exposição, parece
ser a peça um “tratado” de economia política, o que está longe disso. Há um grande engenho
de composição dramatúrgica que promove a compreensão sobre estes aspectos, sem resvalar,
maquinalmente a um julgamento de caráter dramático. O espectador compreende as relações
em jogo e por isso não é facilitada, por exemplo, a condenação de Margarida quando esta
estrangula seu filho recém-nascido, gerado pelo estupro do Barão, à maneira como se mata
uma galinha.
Nessas relações burguesas se vê a venda do intelectual, alusão ao artista por uma
questão extra-teatral dada pelo ponto de vista anunciado como o seu “apagão” através do
narrador (Regente), que sem “contradições” – ainda que lhe doa a cabeça − anuncia e festeja o
vento liberal, de grandes transformações em busca da superação de um atraso que apenas se
dá com a marcha irrevogável do desenvolvimento, que deixa para trás, e também para o
futuro, a reposição da violência. Por esse ângulo de análise, a primeira peça de autoria do
grupo materializa questões do capitalismo brasileiro tendo como referência a “abertura”
desenvolvimentista ficcionada na peça e também as condições repostas pela “reabertura”, em
termos neoliberais, na década de 1990. A figura de Wagner, o intelectual que fica à sombra do
Barão (um homem erudito, de espírito elevado) dá a cara à elite brasileira (em cena da compra
de uma colônia na venda de Carneiro, Wagner reclama: Não! Quero algo mais insinuante.
Algo que traduza melhor minha personalidade. Carneiro: Tenho uma água de Colônia –
produzida em Portugal – mas de alma prussiana. Vou mostrar). Ontem e hoje, “de passagem
fica claro quanto era estreita e provinciana a nossa ideia de modernização, para a qual o
problema não estava na marcha do mundo, mas apenas em nossa posição relativa dentro dela”
(SCHWARZ, 1999, p.161). Em sua última fala Wagner declara ao tomar posse, na Câmara
dos deputados:
20
http://www.funag.gov.br/biblioteca/dmdocuments/Discursos_fhc.pdf. Acesso em 31/07/2013.
43
de agosto de 2000, após ensaios abertos na cidade de Santo André, São Carlos, Taubaté e no
assentamento Ireno Alves do MST em Rio Bonito do Iguaçu, Paraná (CARVALHO;
MARCIANO, 2008, p.88).
Em estilo de farsa de agit-prop, logo no início da peça temos a indicação, através da
Atriz-politizada, que a montagem trata do capitalismo financeirizado. Segundo Iná Camargo
Costa,
Pela dinâmica da peça, as ações dos personagens se fazem ora no escritório da Léo &
Créo & Companhia, e ora nas ruas e praças da “fictícia” Tropélia. Os personagens, como dito
por Iná Camargo Costa, podem ser divididos entre a classe dominante e a classe trabalhadora
em estágio terminal de desagregação; contudo implica observar melhor o que significa, para
o Latão, considerar sua obra como uma farsa.
Pela aparência de uma peça de agitação e propaganda, que tem rendimento expressivo
quando feita a uma plateia organizada, a farsa da comédia de agitprop diz tanto sobre a
tragédia de tal desorganização na vida social brasileira, como também à vida artística, daí da
observação de Sérgio de Carvalho, este mundo para quem sente é uma tragédia, para quem
pensa é uma comédia21.
A comédia do trabalho, realizada após a encenação de Santa Joana dos Matadouros
para públicos “novos”, como movimentos populares, MST e sindicatos, recupera, segundo
Márcio Marciano, um alto de grau de comunicação com o espectador, que ficara restrito, ou
21
O trecho foi retirado de uma entrevista de Sérgio de Carvalho ao Jornal Diário do Pará, em junho de 2004. A
entrevista está disponível no blog da Companhia do Latão – www.companhiadolatao.com.br.
44
Realizando mais um estudo, assim como foi O nome do sujeito, o Latão representa a
dificuldade da organização coletiva da classe trabalhadora. Demonstra a dificuldade de
organização política quando mesmo as classes passam por transformações que não “definem”
sua posição na luta de classes; não à toa, então, que também estão em cena Mendigos e
Pedintes em discussão sobre a desunião da Categoria de miseráveis (!). Se a radicalização do
ponto de vista da luta de classes se faz na luta ideológica pela consciência, pelo
desvelamento ou dissimulação do caráter classista da sociedade, segundo Lukács (2012), no
caso da peça a chave comicamente trágica é o modo de dialogar com o público para ativação
dessa consciência. Muito do movimento da peça, talvez, acompanhe as observações de
Fernando Haddad, convidado pela Companhia do Latão para realizar uma palestra em abril de
2000, sobre a redefinição contemporânea das classes sociais. Segundo Haddad
22
O trecho foi retirado de crítica feita por Fernando Peixoto e disponível no blog da Companhia do Latão –
www.companhiadolatao.com.br.
45
Além da classe trabalhadora que vende sua força produtiva para o capital
(esteja ela empregada, subempregada, precarizada ou não), e que constitui o
chamado proletariado tradicional, − e penso que hoje nós temos mais
chances de contar com ela, justamente pelas derrotas que vem acumulando
−, o processo gerou outras duas classes que não são desprezíveis: a primeira
é a do lúmpem moderno. Não o da época do Marx. O lúmpem moderno é
fruto da putrefação das atuais classes e não das antigas. É a classe do
indivíduo que não tem mais a expectativa de se ver reinserido na sociedade
de mercado. E há uma outra classe, contratada pelo capital, não para
produzir, mas para criar, para pesquisar, para inovar. Aquela tarefa que
antigamente era da burguesia, e que foi delegada a uma classe contratada
para gerar lucros superiores ao lucro médio da economia. (Vintém, nº4, p.17)
Núlio não disse − embora tenha dito para o público −, pois a constatação individual
não chegou a alcançar um aprendizado político, tampouco uma formulação coletiva. As
condições reais da luta de classes não se davam na conjuntura brasileira no início do século
XXI nos termos de consciência de classe, tal como desejada idealmente. A verdade era
elemento fundamental para tentar estudar o estágio da acumulação capitalista em tempos de
capitalismo financeirizado, que na aparência prescinde do trabalho − o que é uma verdade
localizada − e consequentemente do trabalhador, e o tratamento cômico demonstra a
apresentação de tal abordagem como reificação.
Pelos esboços que enquadrei as duas peças, percebe-se àquilo que tentei identificar
como um dos procedimentos do trabalho da Companhia do Latão: estudar as relações
capitalistas em solo brasileiro, tendo como pressuposto um impulso anticapitalista, que se
traduz, entre outros recursos, no tensionamento das formas representacionais: um espetáculo
que é montado para o espaço teatral convencional tenta demonstrar sua realidade comercial,
outro que é pensado no diálogo com públicos populares, busca rastrear a decadência da
organização política da classe trabalhadora. Ambas construções negativas, do ponto de vista
dramatúrgico, que interferem nas “expectativas positivadas”, tendo em vista os lugares de
encenação, do espectador. A peça seguinte do Latão, também identificada a este acento
crítico, irá problematizar o tema da formação capitalista, ainda no período colonial.
A peça Auto dos bons tratos, estreada em 20 de abril de 2002, no Teatro Cacilda
Becker, publicada na seção Imagens do Brasil, utiliza como material de estudo fatos
48
históricos reais relatados no processo movido contra o donatário Pero do Campo Tourinho
(CARVALHO; MARCIANO, 2008, p.200). Segundo a Companhia,
23
Crítica publicada no jornal Folha de São Paulo em 27 de março de 2002: Inquisição da cordialidade. Acesso
em www.folha.uol.com.br, 13 de agosto de 2013.
49
24
É interessante notar que, embora Margarete Maria de Moraes apresente questões sobre o teatro épico
(distanciamento) a partir da leitura de Anatol Rosenfeld, não o faça quanto à aproximação do teatro épico e do
teatro medieval. Embora o autor faça uma advertência quanto ao propósito do livro O teatro épico, o de não se
constituir como uma história do teatro épico, Rosenfeld ilustra, como diz, “mediante vários exemplos, alguns
momentos em que o teatro épico se manifestou em toda a sua plenitude: o teatro medieval e as diversas correntes
do teatro épico moderno” (2008, p.11).
50
Prólogo no teatro
VOZ DE SANTA LUZIA – Sou eu, Santa Luzia. E vim te dar uma lição,
pois desperdiças no cativeiro a chance de ser novo senhor.
25
EXPERIMENTOS videográficos da Companhia do Latão. Produção: Companhia do Latão. São Paulo, 2009, 2
DVD.
53
Há que se levar em conta, portanto, que a ideia de encenação que provém de um estudo
do livro de Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, incide no conceito mais conhecido,
o de homem cordial, pelo resultado cênico das personagens livres, e não pelo “protagonista”
Tourinho. O tratamento será invertido na última peça do Latão, O patrão cordial, que será
analisada na seção Epílogo. Vale ressaltar, então, que à época de Auto dos bons tratos o Latão
estudava O sr. Puntila e o seu criado Matti, de Bertolt Brecht, como diz a atriz Helena
Albergaria em entrevista a Gabriela Villen Malta: Eu entrei substituindo na Comédia do
Trabalho e a gente estava trabalhando o Sr. Puntila e o seu criado Mate. Quanto eu entrei,
estava tendo um trabalho de realismo: estudar Stanislaviski e a peça do Sr. Puntila. Aí,
abandonou-se essa ideia do Sr. Puntila para fazer uma dramaturgia própria que voltasse a
pensar o Brasil (MALTA, 2010, p.97).
Para se pensar, nos termos de hoje, a cordialidade - que Anatol Rosenfeld nomeou a
respeito da peça de Brecht, O Sr. Puntila e seu criado Matti, a cordialidade puntiliana − o
Latão recuperou os princípios da formação da sociedade brasileira em sua já entrada como
periferia do capitalismo. Mantinha o interesse em problematizar formas de se fazer a crítica
anticapitalista por meio do ensaio teatral, e talvez, mas não apenas − e isso serve como
especulação, que ademais rende como narrativa para presente estudo −, o grupo “retornará”
ao texto brechtiano em fins de 2012 como processo de trabalho sobre a formação da ideia de
indivíduo, sujeito burguês, em solo brasileiro articulando-o a ideia de cordialidade, mas
fazendo-o de um ponto de vista identificado às ações dos personagens.
A peça O mercado do gozo, estreada em 2002 pela Companhia, se vincula a um novo
procedimento: a de estudos sobre o caráter “estranhável” do narrador; no caso, a fruição do
espectador deve à composição reconhecível dos mecanismos da construção cênica, ou ainda,
na demonstração da manipulação da função narrativa, que de certa forma já aparecera em O
nome do sujeito e Auto dos bons tratos como assunto de estranhamento via “quebra”
dramática. Em O mercado do gozo, contudo, a “indistinção” da narrativa ficcional e do espaço
teatral se dá logo no prólogo. Segundo Iná Camargo Costa,
fábrica herdada de seu pai após a morte de Getúlia, uma “ex-operária” transformada em
profissional do sexo (antes Getúlia fazia programas ocasionais) pelas mãos de Rosa Bebé.
Dada as circunstâncias do filme em processo de montagem, o diretor/ensaiador, que é intuído
pelas marcas de cena e nunca aparece, vai dando os contornos do ponto de vista de como as
cenas devem ser encaminhadas. Getúlia é a personagem que liga os dois mundos, dos
operários do material rejeitado e da construção da imagem fílmica. Ela é para o primeiro,
contudo, contraditória em suas relações de classe, e, também, pela transformação operada por
Rosa Bebé, dentro do filme, um “espelho” do burguês que contempla, em cena que reproduz a
sessão em um estúdio fotográfico, a manutenção do desejo: quando a mercadoria conhece sua
função ela sabe que àquele que observa “não quer ser tocado, não quer ser saciado, só quer
manter aceso um desejo após o outro” (CARVALHO; MARCIANO, 2008, p.231). É nessa
sentença, dada por Rosa Bebé, que as relações do burguês são construídas com os demais
personagens. Pelo roteiro do filme, então, são dadas as condições de trabalho extremamente
precárias e desumanizadas dos personagens. Acontece que como observou Iná Camargo Costa
o filme, ao final, irá contar a história da prostituta, elemento que será dado em uma das
últimas cenas da peça:
Tudo àquilo que foi dramatizado anteriormente era material de estudo para o filme, desde as
inserções dos coros proletários, antecipadamente rejeitados, às cenas no opiário de Papoula,
ou ainda de espancamento de um mendigo que aceita, no final da cena, as moedas de Burgó.
Cada cena, obviamente, mantém suas próprias relações com o tema da peça – que segundo Iná
demonstra “com extremo rigor a constituição do terreno sobre o qual germina a matéria-prima
da prostituição e de sua exploração em escala industrial, isto é, a indústria cultural, aqui
exposta em sua componente cinematográfica” (COSTA, 2008, p.26) – mas é a partir da
narração acima mencionada que todo o material antecedente pode ser recomposto, a partir da
informação de que o diretor do filme é afinal, Burgó.
Independente de sua ligeira crise, que pode se assemelhar a uma ligeira crise criativa e
de tentativas de narração, o filme assumirá o ponto de vista “na produção de bens de consumo
de massas, que se alimentam do repertório do melodrama” (COSTA, 2008, p. 26) É com essa
imagem, de Bubu queimando o rosto de Rosa Bebé quando esta grita eu sou só tua, que o
espectador deixa a sala. Vejamos, então, que há uma mediação interna, desse material que
está sendo testado para chegar a compor o filme no qual se desdobra a problematização da
manipulação da função narrativa - é claro que com o conhecimento de que o diretor do filme
é o burguês, trata-se de uma função de um ponto de vista de classe. A narrativa cênica vai
operando como se o espectador pudesse julgar as ações de Burgó no registro dramático de
caráter individual, que por parte dos bem intencionados é condenado; nestes termos é de fácil
reconhecimento por parte do público uma construção dramática que é tensionada pelos
registros épicos de recondução da história via inserção dos coros proletários. A construção do
anti-herói burguês, vinda da crítica às suas ações, é feita pelo mesmo registro dramático, que
tem na heroicização de Rosa Bebé, na cena final de filmagem, seu correlato melodramático.
Mas não é por acaso que Valmir Santos, em matéria para o jornal Folha de São Paulo em 13
de agosto de 2003, observa que em O mercado do gozo o espectador tenha o seu próprio
papel colocado sob suspeita. É uma peça radical na relação do palco e plateia que desde o
princípio tensiona o prazer estético ao componente, e uso, como espelho pela indústria da
cultura, onde o desejo se vê e se reconhece como objetivo (HAUG, 1997, p.77).
Muitos dos procedimentos utilizados pelo Latão durante a peça, como o movimento de
interrupção de ações e sua retomada, a partir de indicações dramáticas distintas, que se dão a
conhecer através de rubricas − o que faz com que o espectador veja o procedimento sem lhe
conhecer as “causas” − causa um princípio de reconhecimento, por parte do espectador
familiarizado às peças do Latão, de uma prática teatral feita pela crítica à linguagem; mas há
uma dificuldade maior, colocada pela narração do diretor ao final do espetáculo, pois em jogo
57
está o desejo desse espectador. Tal procedimento, entretanto, não se assemelha a uma prática,
mais ou menos comum, no teatro contemporâneo de embaralhar àquilo que supostamente o
espectador tenderia a esperar e se aproxima muito mais a um experimento sociológico, em
termos brechtianos. A nota é altamente negativa e põe no sentido contrário à manipulação da
função narrativa a expectativa do espectador, numa contradição prática, experiência teatral
que guarda certo parentesco com a peça Ópera dos vivos, objeto do presente estudo, que será
detalhada na análise desta peça.
A peça Visões Siamesas, incluída na seção Cenas de mercantilização junto a O
mercado do gozo, estreou em 21 de outubro de 2004. Segundo nota da publicação, parte do
argumento de Visões siamesas se inspira no conto “As academias de Sião”, de Machado de
Assis (CARVALHO; MARCIANO, 2008, p.327). Além do estudo de Machado de Assis, o
Latão estudou escritos da literatura clássica oriental e utiliza fragmentos de poemas anônimos
de Escadaria de jade: antologia de poesia chinesa: século XII a.c.- século XVIII, entre outros
materiais de pesquisa.
A síntese da história da classe trabalhadora brasileira, como indica Iná, é dada em uma
das últimas falas de Kinara, talvez a personagem, dentre essas peças, mais “ingênua” do
Latão: Por que só me ensinaram a sonhar no singular? – contudo, o “sonho” de Kinara passa
por um processo concreto, no qual ela vê obliteradas suas chances de composição de um
projeto coletivo, pois suas relações com demais personagens no mundo do trabalho vão
sendo esgarçadas, assim como esse mundo, e a própria dramaturgia.
A peça, como indica a pesquisadora, retoma questões críticas de A comédia do
trabalho e de O Mercado do gozo, mas de certa forma opera uma “surpresa” ao construir uma
fábula que se situa em Sião, onde vive a jovem camponesa Kinara, personagem que será
“acompanhada” em seu desenvolvimento “pseudo” dramático. Segundo Gabriela Malta
Cabe, aqui, uma observação em relação à peça: Visões siamesas tem um nível de
exigência de interpretação dos atores, já delineado em O mercado do gozo, que deixa mais
marcas no texto, com grande apuro literário, embora o enredo seja muito simples. As rubricas,
que dizem de ações e também algo da “sensibilidade” das cenas como modelo de atuação para
os atores, são indicações de como se intui a função da ingenuidade, de um lado
potencialmente positivada, buscando sua eficácia teatral na relação com o espectador, embora
o recurso dramático de uma “ingenuidade individual” seja negativizado, uma vez que todas as
ações da personagem só a levam para mais miséria e sofrimento. É precisamente a
ingenuidade na representação de fenômenos simples que dá uma vantagem ao teatro não-
profissional − (profissional no sentido convencional, tradicionalista e não-profissional feito
por atores e encenadores operários, no caso de Wekwerth) (WEKWERTH, 1997, p.37). Ao
tentar escapar da exploração, há um processo de desidentificação a partir da transmutação de
Kinara em Rei Kalafanko, que a princípio, nos sonhos da personagem, a salvaria. Nos
momentos de alucinação nos quais ainda dialoga com o Rei Kalafanko, rei mítico do Sião, o
personagem do Rei é num primeiro momento desempenhado pelo Sr. Tchong, um
latifundiário de arroz, depois pelo Marinheiro, que queria favores sexuais de Kinara e por
Jung, filho de Mamuang, um velho comprador de papel, que na rubrica da peça aparece como
alguém “largado, como tivesse se drogado”. São sobreposições de personagens “perversos”,
que nada têm em comum com o mito do Rei do Sião, embora guardem semelhanças a um
59
registro dramático, ao passo que quando Kinara se transforma no Rei Kalafanko, o próprio
drama se desfaz e a peça oscila entre o registro épico e lírico, como observa Gabriela Malta. A
idealização, de subjetividade lírica e inoperante, se choca com a realidade concreta, de caráter
histórico e social, e que é de conhecimento do público e não da personagem, fazendo com que
a dramaturgia inverta o sentido ideológico da saída individual num sistema capitalista − a
aprendizagem, nesse sentido, é do espectador e não do personagem.
A encenação exigirá do ator o abandono de registros teatrais “tradicionais”, que na
maioria das vezes opera entre a eloquência e a contenção subjetivista-psicanalizada, dada já
pela estrutura do texto. Como assistente de Brecht, Manfred Wekwerth diz sobre a encenação
simples
Todavia, isso exige atores que – pode parecer grotesco – tornem novamente
o teatro mais simples (o que não é fácil). Atores que percebam que o
convívio perceptivo entre as pessoas é mais interessante que a vida interior:
que não mergulhem nos abismos impenetráveis da alma, mas que observem
e representem as relações explicáveis que os homens estabelecem uns com
os outros. Atores que não destilem um tipo sem falhas, mas que representem
simplesmente as rupturas, isto, as contradições de suas ações como elas são:
contraditórias. Atores que se contentem em sugerir os traços que interessem
ao personagem, quando se trata de aludir os grandes traços da fábula. Em
suma: precisamos de atores que compreendam que o ser social determina a
consciência. E que possam, no palco, representar o mundo exatamente desta
forma (WEKWERTH, 1997, p.40-41).
composição via abordagem stanislavskiana, que precisa de uma relação real entre os atores
em cena,
Feito esses apontamentos, o alcance das questões problematizadas nas peças do grupo
estão relacionadas ao “manejo de interpretação” conquistado durante o processo de ensaio e a
cada apresentação do espetáculo. Há que se considerar, portanto, o grande empenho do Latão
na formação de atores-dramaturgos, sem, contudo, fetichizar a relação grupal como “garantia
61
Muito do processo de construção dramatúrgica dessas duas peças pode ser recuperado
no texto de Marcio Marciano (2009), Formas de uma dramaturgia do limite: Equívocos
colecionados e Visões siamesas. Gostaria, entretanto, de retomar apenas uma questão
apontada por Iná sobre Equívocos colecionados em diálogo ao que nos conta o dramaturgo:
62
Há uma grande inserção do debate, no campo de estudos teatrais, da ideia de uma pós-
dramaticidade. Essa proposta baseia-se em certa medida, do ponto de vista teórico, no
inventário da produção teatral europeia dos anos 1970 aos anos 1990, realizado por Hans-
Thies Lehmann e publicado em livro no Brasil em 2007 (Teatro pós-dramático), no qual a
categoria pós-dramático abarca as experiências cênicas que escapam à construção sobretudo
da fábula e as unidades dramáticas normatizadas pelo drama burguês. Para tentar entender a
aproximação feita pelo crítico na palestra em relação ao teatro mülleriano, recorro a alguns
apontamentos do argumento presente no livro em relação ao pós-dramático.
63
Lehmann considera que o discurso teatral produzido entre os anos 1960 e 1990,
principalmente, se emancipou da literariedade, ou seja, não tem como pressuposto o texto
dramático, se aproximando mais da superficialidade e da velocidade em seus aspectos
cênicos. Daí a ressalva feita por Luiz Fernando Ramos (2010), em O Pós-dramático ou
Poética da Cena?, de que a acepção pós-dramático trata de um novo paradigma que se impôs
ao longo do século XX, que apresenta a tensão entre uma poética do espetáculo e uma poética
do dramático do que propriamente um desenvolvimento histórico do dramático.
Para Lehmann, o teatro não se constitui mais como um meio de comunicação de massa
em um mundo de consumo passivo de imagens e informações, mundo que enfraquece a
capacidade de liberação de energias e fantasias, entendido, talvez, como o rebaixamento da
capacidade imaginativa dos indivíduos. No seu argumento comparece a compreensão de que a
comercialidade e a rentabilidade cultural imprimem grandes dificuldades ao teatro, produto
com especificidades que esbarram na facilidade dos suportes audiovisuais. Para corroborar a
sua argumentação, Lehmann elenca as dificuldades materiais de se produzir teatro:
manutenção de equipamentos culturais, administração de todo o aparato teatral e custos
relacionados ao trabalho dos artesãos. Tendo em vista este cenário, o que está em pauta para o
autor é a investigação das produções que utilizam os signos teatrais em confrontação ou
conformidade com as tendências modernas de autorreflexão, no questionamento mesmo
dessas condições, naquilo que projetam sobre “novas possibilidades de pensamento e
representação para o sujeito humano individual” (LEHMANN, 2007, p.20).
Como processo histórico, as inovações teatrais atenderam a uma necessidade política
de representação e não, exclusivamente, opção estética e é exatamente essa perspectiva que se
apresenta de forma contraditória por Lehmann. Ao final do livro, o autor faz um balanço
sobre a interface teatro pós-dramático e política, apontando que já passou o tempo do teatro
como um lugar em que conflitos de valores sociais e fundamentais eram exibidos e
tematizados (LEHMANN, 2007, p.409). Para o autor, “o conflito político tende a escapar à
apreensão imediata e à representação cênica (...) nessas circunstâncias, a única coisa que
ganha algo como um apreensibilidade direta é a interrupção dos comportamentos
normatizados, jurídicos, políticos, portanto o não-político” (LEHMANN, 2007, p.407- 408).
Segundo Sílvia Fernandes (2010)
26
Palestra realizada por Carlos Camargos Mendonça no evento Cenas transversais: artes em trânsito, realizado
pela Escola de Comunicação, curso Direção teatral, da Universidade Federal do Rio de Janeiro em novembro de
2012.
66
27
A informação pode ser consultada em www.companhiadolatao.com.br. Acesso em 07/08/2013.
68
Em 2009, estreia ainda outro experimento audiovisual, Ensaio sobre a crise, uma co-
produção da Companhia do Latão, TV Brasil e Brigada Audiovisual da Vila Campesina. Em
2010 o grupo abre o processo do projeto Opera dos vivos no SESC Santana, em São Paulo,
organizando debates, apresentação de cenas comentadas, e oficina de criação coletiva tendo
como tema o “módulo” televisão de Ópera dos vivos, entre março e abril.
69
Todo lo que se diga sobre cultura desde um puto de vista más distante, más
genérico, sin tener em cuenta la práctica, no es más que uma idea también y
tiene, por tanto,
que ser comprovada primero em la práctica.
Bertolt Brecht
Quer dizer, ninguém escapa da forma-mercadoria e ninguém pode agir como se estivesse fora dela. As
soluções têm que ser achadas a partir dela e não a partir da ausência dela.
Roberto Schwarz
A peça Ópera dos vivos estreou no Rio de Janeiro em setembro de 2010. Em 2011, fez
temporada na cidade de São Paulo e no mesmo ano, em 2012 e 2013 excursionou por diversas
cidades do país, contando com uma apresentação em Portugal 28. O crítico Luiz Fernando
Ramos considerou a peça a mais ambiciosa da Companhia; ambiciosa por se organizar em
quatro atos com aproximadamente quatro horas de duração, e talvez pelo tema por ele eleito –
ânsia do grupo por uma maior politização do teatro. Para Maria Eugênia de Menezes, Ópera
dos vivos é uma obra bela e necessária, que “estabelece pontos com o cinema, a música
popular e a televisão. Tudo isso para lançar luzes sobre os modos de criação artística e o
impacto que os anos de ditadura militar ainda exercem nessa seara, um espetáculo entre outros
para se guardar na lembrança, e de tempos em tempos, para se revisitar”29. A peça gerou,
ainda, discussões informais e um ciclo de debates promovido pelo SESC Belenzinho e pela
Companhia em sua temporada nessa unidade na cidade de São Paulo. Feita na sala de ensaio,
com Sérgio de Carvalho como dramaturgo e diretor, e em suas apresentações, com amplo
estudo sobre a cultura brasileira no período da ditadura instalada em 1964 (entrevistas com
artistas e intelectuais adensaram o trabalho de pesquisa) a dramaturgia cênica apresenta as
marcas do trabalho coletivizado, de interpenetração da literatura dramática e do convívio dos
atores com o público.
28
Em algumas cidades somente o primeiro ato foi encenado, pelos obstáculos da própria montagem – pelo
menos duas salas são ocupadas. Isso faz com que as observações anotadas por este trabalho precisem ser
mediadas quando se tem a informação que o espectador possa ter assistido apenas ao primeiro ato, ou ainda,
quando a encenação se dê em espaços não-convencionais, como a que ocorreu na Escola Nacional Florestan
Fernandes em 12 de novembro de 2011, na Mostra de Cultura. Nesta ocasião foi encenado o primeiro ato de
Ópera dos vivos.
29
A crítica de Luiz Fernando Ramos foi publicada no jornal “Folha de São Paulo”, em 14 de outubro de 2010.
Maria Eugênia de Menezes escreveu para o jornal O Estado de São Paulo em 26 de dezembro de 2011.
70
30
Em conversas informais, Sérgio de Carvalho reitera que não procura, ao dirigir e ser o principal dramaturgo da
Companhia do Latão, um público de forma abstrata. Mas é necessário reconhecer que Ópera dos vivos, pela sua
engenhosa montagem, exige um espaço teatral tradicional, frequentado, essencialmente, pela classe média. No
caso da Companhia, como demais outros coletivos, há um público assíduo de estudantes e intelectuais, de classe
média, de esquerda.
31
Agradeço à Companhia do Latão, em especial a Sérgio de Carvalho, pelo total acolhimento de minhas
solicitações quanto ao texto e pelos momentos preciosos de conversas e discussões. A versão dramatúrgica
utilizada data de 11 de setembro de 2011. A peça não foi, até o momento, publicada.
71
Não há uma fábula específica que conduza a ação, tampouco personagens desenhados pela
orientação dramática clássica. Não se desenha uma história, mas a história recente do país,
tendo como “protagonistas” os artistas e as formas representacionais. Em última instância, os
personagens de Ópera dos vivos são os próprios integrantes da Companhia do Latão
demonstrando as condições e relações de trabalho em distintos meios de produção, por isso, a
cada ato, são acionadas histórias e personagens que dizem respeito a esses meios. Mas como
não se trata de uma colcha de retalhos, a narrativa cênica trata de tentar conduzir um fio por
fragmentos: a estrutura deixa entrever os expedientes artísticos afetados pelo golpe militar de
1964, como as experimentações do teatro de agitação e propaganda dos Centros Populares de
Cultura, assim como os procedimentos do cinema novo e da canção tropicalista, até chegar à
hegemonia do suporte televisivo. A fragmentação cênica sugere os impasses e contradições do
processo cultural brasileiro e dos posicionamentos artístico-intelectuais frente a novas
condições e formas de produção. Desta forma, a ideia é vinculada pelo assunto (teatro
engajado, cinema, canção popular, televisão) numa narrativa cênica que sobrepõe uma
compreensão histórico-crítica e o questionamento, em cena, de expedientes formais, inserindo
o debate sobre as realizações estéticas, no presente dramático em confluência com o passado
histórico; para utilizar um termo de Paulo Arantes, uma das lições possíveis de Ópera dos
vivos é dar a ver uma “herança sem testamento”, através dos “escombros colecionados”
(2012, p.204). Tal composição produz uma reflexão, num fluxo das formas representacionais,
sobre a coletivização em arte – coletivo compreendido como a articulação entre artistas e
realidade social −; a ruptura de tal processo e a sensibilidade da desobrigação impressa por
novas condições de trabalho geradas pela indústria da cultura. Nessa breve exposição, os
termos de Ópera dos vivos podem ser simplificados, mas haveria algo de falseamento caso
cada módulo não gerasse suas próprias relações. A proposta cênica incide na relação entre o
que é dramatizado e o público, trabalhado como mais um elemento da narrativa; ele, em
última instância é também produtor. “O público é sempre a herança mais decisiva, em
qualquer arte. O modo como as pessoas aprenderam a ver e a reagir é o que cria a condição
essencial para o teatro” segundo Raymond Williams (2010, p.221). Suponho que há um
princípio pedagógico no tema-ideia colado à perspectiva de como as pessoas aprendem a ver e
a reagir, exigindo um espectador produtor das articulações. É na relação espectador e cena
que muito das questões trabalhadas na presente análise irão incidir, relação esta que se dá,
pelos termos apresentados por Williams, a condição essencial para o teatro. Mas tal relação é
problematizada a partir do arranjo cênico, ou seja, por sua forma de narrar o trabalho dos
artistas. Talvez o maior rendimento da peça se apresente em sua modelação: para contar o
72
trabalho dos artistas nas condições atuais, de fragmentação e precarização das relações de
trabalho, foi necessário recuperar o movimento histórico que gerou tal situação. Mas como há
uma concepção material do tempo que perpassa a construção da narrativa, cada ato, e a
organização final da peça, busca apresentar materiais que permitam ao espectador
compreender as condições dadas a cada momento e suas consequências estéticas. Presente
dramático – arranjo cênico em atos – e História narrada − as relações de trabalho dos artistas
– chocam-se como “demonstrações” do trabalho dos artistas. O Latão-narrador retira da
experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada por outros. E incorpora as
coisas narradas à experiência dos seus ouvintes (BENJAMIN, 1994, p.201). É claro que seu
arranjo impõe algumas dificuldades de apreensão e de certa forma, os atos funcionam com
rendimentos distintos quanto à compreensão dramática e a estética gerada pelo momento
selecionado.
Em Sociedade mortuária: uma peça camponesa, epiciza-se o trabalho teatral, em
Tempo morto: um filme sobre o golpe epiciza-se o expediente alegórico cinematográfico. Nos
dois primeiros atos, a autorreflexão, ou estranhamento sobre o recurso utilizado – teatro e
cinema – gera sentidos sobre o trabalho do ator e a relação dos meios de produção; em Música
popular: privilégio dos mortos – o material é organizado para demonstrar a precipitação
ideológica representacional através de um show musical, ou seja, àquilo que foi intuído na
epicização do cinema – o produto final sem participação do espectador – soma-se ao sistema
cultural em termos de imposição de relações de trabalho sem “liberdade” artística, mas ainda
em níveis incompletos. O quarto e último ato, Morrer de pé, põe em curto-circuito a
teorização prática proposta nos atos anteriores, recuperando cenas e imagens, no qual o
trabalho do artista materializa a ideologia da indústria cultural, automatizando-a em sua
relação: a “ideologização”, que se foi adensando através dos suportes eleitos, guarda suas
relações com as condições de trabalho intelectual do período a que se referem ao mesmo
tempo que dizem da ideologia anticapitalista do presente.
Em Ópera dos vivos, o trabalho dos artistas na atualidade é visto pela análise daquilo
que é passado político-histórico, fazendo-o dentro da uma trajetória identificada a uma
formação de esquerda artística e intelectual, epicizando-a – a Companhia do Latão não se vê
herdeira ou mantenedora da trajetória dos artistas de esquerda da década de 60, seus contextos
são diversos – uma herança sem testamento −, mas é possível que algo do projeto de
superação que se depreendia das experiências teatrais do passado alimente parte do
imaginário do grupo no sentido de fortalecimento de seu trabalho teatral – talvez por isso da
indução do comentário de Luiz Fernando Ramos quanto ao objetivo da peça. Quer dizer que,
73
como produtores de um trabalho cultural que não separa arte e política – o projeto ideológico
é estético assim como seu contrário −, e consciente da perspectiva ideológica precipitada na
representação artística, talvez a influência mais decisiva de Brecht no trabalho do grupo, o
Latão em Ópera dos vivos revira nosso passado artístico para pôr em movimento o trabalho
teatral, em termos ideológico-intelectuais, nos termos de hoje. Para falar do estado de coisas –
do fetiche da mercadoria e da reificação em termos sociais e da precarização e fragmentação
do trabalho, incluído o dos artistas − foi preciso recuperar o passado histórico do trabalho
artístico, intuindo que se o fizesse apenas pelo recurso da demonstração da alienação dos
personagens do ponto de vista dramático, numa negativização absoluta do presente, o
fenômeno teatral poderia se constituir como uma forma reificadora e, portanto, a-histórica.
No artigo Para que serve o teatro político?, Maria Elisa Cevasco (2012) inicia suas
considerações sobre a função social do teatro de hoje com a apresentação do ensaio de
Roberto Schwarz Cultura e Política, 1964-1969, descrevendo-o como um estudo
multifacetado que demonstra como se pode ler a História de um período nas suas
manifestações culturais (p.129). A conhecida influência intelectual do crítico na produção do
Latão, em especial nesta peça, produz em Ópera dos vivos um itinerário analítico que parte de
suas considerações sobre as manifestações da época mencionada, 1964-1969, através do
estudo da teoria sedimentada sobre o teatro épico, utilizando como suporte a sua própria
prática, ou seja, é uma obra que tenta ler a História, fazendo convergir no presente cênico uma
consciência de que o tempo obviamente passou e, também não passou, pois muito daquilo que
foi esmagado com o golpe reverbera como ruído para os artistas e mantém contradições
sociais na vida brasileira, potencialmente superáveis antes da ditadura. Na dialética que
aproxima os dois primeiros atos em relação ao terceiro, quando a sociedade do espetáculo se
anuncia e quarto, no qual há um acúmulo do capital que tudo irá transformar em mercadoria,
há uma consciência de que o trabalho teatral precisa ser ressignificado enquanto espaço
formulador de percepção e consciência histórica. Em seu arco geral, o trabalho imaterial de
produção simbólica se desenha como um projeto ideológico anticapitalista de ocupação de
espaços de hegemonia burguesa. Trata-se da tentativa de narrar um processo histórico, com
grande senso prático pra falar com Benjamin, sobre a produção artística engajada de 1960 à
contemporaneidade; dessa forma a peça, como um “balanço” do projeto artístico do grupo,
tem uma dimensão utilitária que enfeixa sua potência na consciência sobre seu lugar no
cenário teatral contemporâneo: com alguma influência entre àqueles que procuram formalizar
artisticamente saídas à mercantilização da cultura e quase inoperante diante da fetichização e
despolitização da arte e do trabalho intelectual, condições obviamente extra-teatrais. Por isso,
74
acabou por ser visto como equivalente ao que ele contestava: uma mera
produção, ou a reprodução como um cenário, como um disfarce, para as
mesmas histórias antigas idealizadas ou estereotipadas. Na prática, havia
coisas que o teatro naturalista, mesmo em seu próprio interesse, não podia
realizar. Quanto mais ele encenava a realidade cotidiana, menos ele podia
mover-se seja para o pensamento não dito, seja para ação além dos locais
selecionados. De forma peculiar, ele foi capturado pela armadilha dos
cômodos nos quais as pessoas olhavam para fora pelas janelas ou ouviam
gritos vindos das ruas.” (2011, p.119).
Como vimos anteriormente, o drama burguês passa a ser regra de composição teatral –
“expulsando” prólogos e coros, por exemplo − e assim é que seu pressuposto, o amálgama da
classe à consciência da personagem, entrevista como “o” mundo”, é passível de comentário,
de suspeita como expressão ideológica para o teatro brechtiano; uma “forma da crise” se
usarmos a categoria de Szondi. Em 30 de março de 1947, Brecht anota no Diário de trabalho
que no naturalismo a sociedade é vista como um pedaço da natureza, através de pequenos
mundos independentes (família, escola, unidade militar), ao passo que no realismo a
sociedade é encarada historicamente, através dos pequenos mundos que se percebem como
setores de linha de frente nas grandes lutas (2005, p.293).
77
Brecht utiliza a ideia de realismo não como um estilo representacional, mas uma forma
de aproximação da realidade. Quando do debate sobre o expressionismo alemão no início do
século XX, as divergências entre uma arte sem prescrições quanto à estética e à linguagem
aglutinaram intelectuais de esquerda em posições discordantes à vanguarda artística. Nesse
debate, Brecht afirma que “transformar o realismo numa questão formal, ligá-lo a uma e
apenas uma forma (ainda por cima velha) é esterelizá-lo. A escrita realista não é uma questão
de forma. Temos de eliminar todos os aspectos formais que nos impeçam de apreender a
fundo a causalidade social; temos de lançar mão de todos os aspectos formais que nos ajudem
a apreender a fundo a causalidade social” (BRECHT apud MACHADO, 1998: 241).
O dramaturgo lança mão de procedimentos que auxiliem nessa apreensão e não
deprecia procedimentos vanguardistas como faz Lukács (fluxo de consciência,
multiperspectivismo, montagem, estranhamento). Segundo Anatol Rosenfeld, “Brecht rejeita
a doutrina de Lukács porque este associaria o estilo realista a uma forma envelhecida e estéril,
quando o que atualmente se impõe ao realista é fazer uso de todos os processos artísticos que
facilitem a profunda ‘penetração na causalidade social’”. (2012, p.67) 32.
Ao contrário do que se pode supor, portanto, ao utilizar a categoria “consciência” não
se trata de uma análise psicológica de personagens de enquadramento dramático, mas de
construção da narrativa cênica.
32
Ainda no texto publicado no Suplemento Literário de O Estado de São Paulo, em 3 de fevereiro de 1968,
Rosenfeld chama a atenção para o fato de que Brecht não publicou as suas observações sobre as teses de Lukács
no período do debate: “Brecht não desejava provocar um conflito aberto numa ocasião em que a vitória do
fascismo impunha uma atitude discreta para não aumentar as divergências no campo antifascista.” (2012, p.69).
78
Vejamos que estas são lições para um ator que está estudando uma dramaturgia
“acabada” que deve receber um tratamento diferenciado para demonstrar o ponto de vista que
se precipita na forma. Está na mira do dramaturgo peças dramáticas “naturalistas” – de um
modo geral, no caso do drama, a consciência das personagens está em conformidade à posição
que ocupam na estrutura social − que serão modeladas conforme interesses épicos. Como é de
conhecimento, as peças do Latão se fazem na sala de ensaio com tratamento da dramaturgia
no processo de composição, e, também, com os ajustes finais do dramaturgo. Dessa forma,
supõe-se que já em sala de ensaio a peça Ópera dos vivos, assim como as demais obras, foram
pensadas, antes mesmo da conclusão dos estudos, de forma a buscar esses elementos. Isso faz
com que a engrenagem da obra, ou seja, a relação entre atores ↔ personagens ↔ situações
dramáticas ↔ cenário ↔ figurinos ↔ dramaturgia cênica ↔ espectadores seja o terreno a ser
considerado para o presente estudo como a demonstração do projeto ideológico se fazendo
estético33.
33
Não é demais reforçar que este é um esquema interpretativo proposto pelo presente estudo. Se tivéssemos
outros objetivos em relevo, como o trabalho de formação de atores no interior do grupo do Latão e métodos
utilizados para tal procedimento, ou ainda, as estratégias usadas, individualmente, para produzir “uma narrativa
do personagem” que auxilia a fábula, haveria de considerar, por exemplo, o texto Kusnet hoje de Ney Piacentini
sobre a utilização do método de formação proposta por Eugenio Kusnet. Segundo Ney Piacentini: “Kusnet foi,
segundo o depoimento de todos os profissionais que entrevistei para a pesquisa, um ator rigoroso consigo mesmo
e aplicado, dentro e fora das salas de ensaios e espetáculos. A partir destas constatações não tive como não
mudar o meu comportamento em relação ao trabalho, tentando melhorar a minha disposição para os ensaios e
apresentações, aproveitando melhor o tempo dedicado aos processos. Passei a estudar em casa o máximo
possível de referências sobre o tema em processamento, escrevendo sobre os personagens sob minha
responsabilidade, refletindo acerca dos papéis, não apenas sobre as cenas da dramaturgia que vinham ganhando
vida ao longo do projeto de Ópera dos Vivos, mas também sobre os episódios que estariam antes das ações
vividas no espaço cênico, como uma espécie de preparo para que as cenas da peça contivessem mais elementos
quando fossem executadas. Para mim, retomar o hábito de imaginar e escrever outras cenas, além daquelas
mostradas ao público, só fez aumentar o meu envolvimento com o contexto dos personagens e da fábula
propriamente dita. Como exemplo, relembro a cena do começo de Sociedade Mortuária, primeiro módulo de
Ópera dos Vivos, no qual um dos meus personagens da obra, o latifundiário Capitão Quirino, vai ao encontro dos
filhos de um seu empregado recém falecido. Além de repassar cotidianamente – antes de se iniciarem as sessões
79
Ópera dos vivos propõe um estudo em cena; a dramaturgia cênica foi pensada a partir
da demonstração de tais contradições tendo em vista uma relação nova com o público.
Exatamente no seu arranjo contraditório que se impõe certa atitude do espectador,
necessariamente interessada. O conhecido efeito-d, efeito de distanciamento, ou ainda de
estranhamento foi o instrumento teorizado por Brecht e por ele praticado em suas peças para
distinguir momentos nos quais o espectador identifica-se com determinado personagem,
através da empatia causada pelo arranjo cênico e dele se distancia para compreender as
situações que circunscritas pelo palco fazem referência a relações extra-estéticas, ainda que
participantes, contraditoriamente, da própria fábula. Tal procedimento também deve ser
adotado pelos atores na composição de personagens e, em atitude interessada, pelo
espectador. Brecht registra em 2 de agosto de 1940 que o efeito de distanciamento é um
efeito artístico e também redunda numa experiência teatral. Busca-se mudar a natureza da
relação entre palco e plateia; entre o entretenimento, a diversão, o novo espectador também se
coloca como produtor, assim como os atores. Tanto no palco quanto na plateia “repete-se o
ato original de descoberta” (p.98), buscando um teatro que tenha no “argumento dialético” um
potencializador de apreciação e intervenção do público. Brecht pretendia que seu teatro, o
teatro dialético, fosse uma teoria praticada. No Diário de trabalho, Brecht faz a seguinte
anotação em 20 de dezembro de 1940
para o público – o episódio em que Quirino justifica sua ausência no velório do pai de Aristeu e Marivaldo,
inventei um fragmento no qual o Capitão conversaria com a sua esposa – que sequer se sabe se existe, pois está
ausente na encenação – sobre porque ele deveria ir cumprimentar os filhos de seu ex-marceneiro José. Para
Quirino, ter que dar explicações aos filhos de um empregado, mesmo morto, era desnecessário, afinal ele era o
senhor das terras e de tudo que acontecia no engenho. No diálogo imaginário com a mulher eu ouvia coisas do
gênero: “Além de não ter comparecido ao velório, não vai dirigir uma palavra sequer aos filhos do morto?”.
Atendendo à mulher, mesmo contrariado, o Capitão deixa a casa da sede da fazenda e se dirige à marcenaria para
ter com os jovens. Aí então se inicia a cena da peça. Para mim, aquecer-me, fazendo esta pré-cena, deixou-me
melhor preparado para “entrar” na ficção. Ao longo das temporadas, continuei a me exercitar neste sentido,
inspirado no exemplo de Kusnet.” In: Revista do Centro de Pesquisa de Experimentação Cénica do Ator,
ECA/USP, maio/outubro, 2012.
80
O agitado período não permitiu aos que estavam minimamente interessados em uma
inserção no debate esquivas numa tarefa modeladora no campo cultural e foi, com a lucidez
do momento, anterior e posterior ao golpe civil e militar que os artistas brasileiros se
envolveram calorosamente na discussão sobre a função da arte. O estudo de Iná Camargo
Costa em A hora do teatro épico no Brasil esquadrinha os avanços e recuos formais da
dramaturgia brasileira. Em específico sobre a produção do Teatro de Arena de São Paulo e do
CPC, analisa peças como Eles não usam black-tie, Revolução na América do Sul e A mais-
valia vai acabar, seu Edgar, respectivamente de Gianfrancesco Guarnieri, Augusto Boal e
Oduvaldo Vianna Filho. À época, os artistas de teatro assumiam como tarefa descobrir e
compreender a realidade brasileira elegendo temas populares e com isso questionaram as
ferramentas formais de que dispunham para problematizar a realidade – foi quando as
primeiras experiências deixaram visíveis os limites do drama burguês praticado. Segundo Iná,
“a novidade era que Black-tie introduzia uma importante mudança de foco em nossa
dramaturgia: pela primeira vez o proletariado como classe assume a condição de protagonista
de um espetáculo” (1996,p.21), entretanto o novo protagonista foi “enformado” por uma
estrutura dramática, incapaz de comportar um assunto épico como uma greve, tema
articulador de toda a peça (de acordo com o estudo, apoiando-se em depoimento do autor, a
dramaturgia parecia não apresentar, inicialmente, nenhum caráter partidário-programático que
a subsidiasse, embora a autora chame a atenção ao fato de ser, Guarnieri e também Vianinha,
militantes do Partido Comunista Brasileiro e que Black-tie, por sua composição em curto-
circuito entre forma dramática e assunto épico, “registra, com mais verdade do que seria de
supor, o vigoroso ascenso das lutas dos trabalhadores ao longo dos anos 50 (...) ascenso que
significou a ocupação pelos trabalhadores organizados de importantes espaços na cena
política e social do país, acompanhado das dificuldades dos artistas e intelectuais (...) que não
estavam esteticamente à altura do momento histórico” (p.38)). Em sua análise, a autora busca
compreender as obras teatrais em um movimento historicizante, retomando as condições de
sua produção e suas possibilidades estéticas em atrito com a matéria social.
Registro da procura em fundir revolução social e estética e do embate dentro do
próprio campo de esquerda pode ser identificado nos textos de intervenção de Oduvaldo
Vianna Filho e Augusto Boal, artistas do Teatro de Arena de São Paulo. Vianinha, no mesmo
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ano de estreia de Eles não usam black-tie, escreve, em 1958, Momento do Teatro Brasileiro34,
provocando os demais artistas na busca de uma definição para o teatro. Seu incômodo quanto
às positivas e novas realizações cênicas alcançadas no período alia-se ao desejo de ver “a
ligação imediata do teatro com a vida” (1983, p.24). O artista percebia um movimento
contraditório entre as realizações cênicas melhoradas e a diminuição de suas pretensões. Para
Vianinha Eles não usam black-tie era o símbolo de todo um movimento de afirmação do
teatro brasileiro. Seus textos, reunidos no livro Vianinha: teatro, televisão, política,
organizado por Fernando Peixoto em 1983, compõem um importante e imprescindível
depoimento das questões em pauta e do intenso debate que agitava o meio teatral e político.
Como o organizador apresenta, os textos revelam posturas individuais que se confundiam, em
alguns casos, com o projeto dos grupos artísticos que o dramaturgo participou, em especial,
do Teatro de Arena e do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC
da UNE). As experimentações teatrais em busca de um teatro nacional que refletisse
demandas populares, em estética pautada pela agitação e propaganda, foi radicalmente
proposta pelos cepecês distribuídos pelo país, tendo como centro “aglutinador” o CPC do Rio
de Janeiro.
34
Segundo Fernando Peixoto, organizador do livro Vianinha: teatro, televisão e política, compilação de textos de
Oduvaldo Vianna Filho, certamente o texto destinava-se a publicação, contudo nada confirma sua edição.
Entretanto é relevante observar que o Teatro de Arena mantinha grande discussão interna sobre sua produção
dramatúrgica e interpretativa, e a perspectiva do autor em muito contribuía para sua formação e debate com
outros dramaturgos. Utilizamos o texto mais como registro da época, de um debate interno, do que
necessariamente de algo público, embora outros textos publicados corroborem as problematizações do autor.
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Pois bem, parte do material utilizado no primeiro ato busca a sensibilidade e impulso
emancipador anterior ao golpe militar e tem a função de introduzir o tema da peça. A
utilização da peça camponesa35 como conteúdo dá suporte ao esquema geral pois a totalidade
dramatúrgica sempre faz referência à fratura e incompletude do processo iniciado e
interrompido nesse período, do ponto de vista da história do país e de sua especificidade na
luta de classes e serve de apoio para o debate sobre a aprendizagem política necessária ao
fortalecimento de uma demanda coletiva, como manifestação social e artística. A condução
narrativa do primeiro ato é dada pela composição da personagem Professora e, desempenhada
pela mesma atriz, a Narradora. A Professora é personagem central para demonstrar o
conteúdo: no velório, a comunista, da classe média urbana, se apresenta ao grupo de
campesinos e os convida para o ingresso na Sociedade Mortuária, organização de ajuda
mútua dos trabalhadores, além de ser a responsável pela alfabetização dos camponeses através
do método de Paulo Freire. A ação dramática é interrompida pela indicação, em cenas
narrativas, de que estamos diante de um ensaio de um grupo que se questiona sobre a forma
de representação e de politização do teatro e que utiliza as experiências e temas do passado se
perguntando até que ponto são, ainda, válidas. Nas palavras de Roberto Schwarz (2008), no
citado ensaio Cultura e Política, 1964-1969, havia um princípio de síntese no método Paulo
Freire no qual a oposição entre os termos, arcaísmo da consciência rural e a reflexão
especializada de um alfabetizador, não era insolúvel, ou seja, pelo menos o impulso se
direcionava para a superação da modernização conservadora, assim como as experiências
teatrais poderiam intuí-la. Representar o momento em que esta situação se colocava, pelo
menos, supostamente superável, e sua interrupção, parece ser o princípio organizador do ato
revelador da “função interessada” do espectador.
Na peça camponesa, através do tema trabalhadores do campo o grupo problematiza
as condições de produzir arte pelos trabalhadores da cultura. O ato se organiza como se fosse
um ensaio teatral: cenas da peça em montagem são entrecortadas por narrações sobre o
ensaio ou ainda sobre o enquadramento adequado de personagens. As relações de trabalho
coletivizadas do primeiro ato são as que o próprio Latão experencia em sua prática −
constroem juntos o mundo ficcional. A modelagem da ideia central, entretanto, poderia estar
atrelada a qualquer outra peça em ensaio pelo grupo de atores. Uma questão que importa,
portanto, como primeiro movimento da obra, é reconstruir um imaginário político sobre a luta
de classes que tinha na relação camponeses e proprietários de terra sua definição e outra, por
35
A peça camponesa, principalmente pelas personagens de Élia e a Mãe, se dá por uma estrutura dramática que
tende ao clássico, fazendo com que as personagens avancem, conscientemente, conforme a ação.
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ela conduzida, é fazer trabalhar, incluindo os artistas, as representações tributárias dessa luta e
demonstrar suas ideologias, no passado e no presente.
Funcionalmente, todas as personagens da peça do primeiro ato representarão um gesto
de aprendizagem: é um grupo de camponeses que começa a se organizar para exigir condições
de trabalho e logo enfrenta violenta repressão. A Cena da Professora sintetiza o processo de
aprendizagem: a suposta detentora do conhecimento amplia as dificuldades desse processo,
compartilhadas que são com o público, que também está ali em uma posição de aprendiz para
uma montagem que exige sua participação.
O espectador, ainda àquele que não tem um repertório “informativo” sobre os Centros
Populares de Cultura, o método alfabetizador de Paulo Freire ou sobre as Ligas camponesas −
procedimento comum ao teatro épico, já que as interferências se dão para além do mundo
representado − é inserido na trajetória desses personagens, atores do drama, como aprendizes
e interlocutores. O trabalho, categoria central para se pensar a peça camponesa, é figurado
materialmente; é posto em cena, como atividade dos trabalhadores rurais; somado ao trabalho
dos atores durante o ensaio teatral, e, se propõe, simbolicamente, em relação ao espectador
nos momentos nos quais os artistas interrompem o drama camponês e se questionam sobre as
possibilidades de representação. O gesto que define o posicionamento do espectador no
primeiro ato é o movimento do aprendizado:
A CENA DA PROFESSORA
Um banco a frente. Atriz entra com um vaso de flores. Senta-se de costas
para o público, vira-se para falar
ATRIZ QUE FAZ A GRÁVIDA – Senhora, para que meu trabalho seja
amor e não pena, eu tenho que melhorar as condições dele e dividir os frutos
dele com todos. Para isso nós precisamos aprender a confrontar aqueles que
se dizem donos do nosso trabalho. Isso a senhora pode ensinar?
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PROFESSORA – Olha bem a imagem. Você acha que eles fazem o vaso
para quê?
Brasil) na cena Advertência avisa que o Capitão Quirino determinou seu fim. Destelhamento
de casas e morte de animais ameaçam os trabalhadores. A ação é interrompida para o
confronto final, quanto Marivaldo e Aristeu vão à casa do Capitão e o drama camponês
mostra de forma não dramática a morte de Aristeu pelo Filho do Capitão. Não há a encenação
do destelhamento das casas, tampouco da morte de Aristeu. As cenas epicizadas são
exatamente as que poderiam envolver sentimentalmente o espectador convencendo-o da
inevitável derrota. Nesses instantes a parcela de futuro que foi enterrada com os mortos se
presentifica, se torna imagem praticável do mundo através do trabalho coletivo historicizado:
cena que nega a dramatização para deixar o público construir, simbolicamente, outro mundo.
Não há confinamentos fatalistas: o mundo é seu também; pode ser mudado. A cena A reunião
camponesa implica ainda mais o público nessa construção e é um índice importante para o
desenvolvimento da peça.
ATRIZ (narra)– Dona Odete ocupa o centro da sala com um papel na mão.
MÃE – (mulheres se juntam) Uma pessoa sozinha nesse mundo não vale
nada. Quero pedir licença para ler uma carta que eu e as outras mulheres
escrevemos na escola.
(abre o papel)
Nós, mães, esposas e filhas
De Bom Jardim
Em nome da Associação de Lavradores
Antiga Sociedade Mortuária de Bom Jardim
Aprendemos no último ano
Uma coisa que sabíamos desde sempre
Que somos explorados
Mas só aprendemos o que já sabíamos
Quando dissemos a palavra em voz alta
Explorados
Agora o que nós queremos saber dos aqui presentes
É quem está conosco na hora sem volta
Que ergam os braços.
Fome de fome
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Fome de justiça
Fome de equiparação
Fome de pão
Fome de pão
estivessem rompendo uma cerca, na alusão do enfrentamento interrompido pela cena da morte
de Aristeu. A atualidade aqui, e o distanciamento crítico, é a lembrança da imagem do
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra registrada por Sebastião Salgado. A imagem
é desfeita e o ato termina com uma canção em coro, com os atores de frente para o público:
Está/O que não estava lá/A palavra faz ver/O olho produz/O novo nome /Do barro/É vaso/O
novo nome /Do buraco /é flor/Está/O que não estava lá/Até ser nomeado /O nome produz.
A exposição do primeiro ato nomeia as classes no Brasil ao falar sobre o latifúndio e
sua inscrição na ordem capitalista e os trabalhadores rurais, que ainda numa tentativa de
organização, se não expulsos das áreas produtivas, foram assassinados, e identifica o sistema
escravista como a origem da luta de classes brasileira, com todos os contornos da cordialidade
como tecnologia de mando. Figura, ainda, a identificação do trabalho manual do camponês ao
trabalho artesanal dos atores, ainda num momento em que estes são detentores dos meios de
produção, afinal estão num ensaio teatral definindo os rumos do seu processo, condição de
alguns grupos teatrais contemporâneos. A carpintaria do trabalho camponês é análoga ao
trabalho crítico e intelectual, numa sensibilidade singular na criação de imagens empáticas à
identificação do público sem prejuízo do olhar estranhado. Na relação com o espectador, que
pode estar esperando pelo conflito final, reverberam os impasses e dúvidas, dialetizando suas
expectativas, num movimento de contenção e questionamento sobre o futuro dessas
personagens, atores do drama.
O desenvolvimento da peça camponesa lembra algo do processo de conscientização
de Pelagea Wlassowa de A mãe (1931) de Brecht. Em Notas sobre a peça A mãe, Brecht
informa que esta foi escrita no estilo das peças didáticas, mas que ao contrário de suas peças
de aprendizagem, exige em sua encenação, atores. “Esta arte dramática, empenhada em
ensinar ao espectador um determinado comportamento prático, com vista à modificação do
mundo, deve suscitar nele uma atitude fundamentalmente diferente a que está habituado”
(2005, p.47). É claro, portanto, uma positivação da experiência de aprendizagem coletiva para
a formação do movimento cultural e político. Mas voltemos a uma observação crucial para a
composição das variações e rendimentos: como ilustração, a peça demonstra as condições
sociais que influenciam na vida das personagens, e numa mediação historicizante, na vida
política do país36. Sem essencializações na composição das personagens, sem definição do
36
As personagens do drama são estranháveis, o que colabora para a ausência de celebração e virtudes
messiânicas: Alice, a voluntária americana dos Corpos da Paz, é um pouco ingênua e insatisfeita com o modo de
vida estadunidense – o antiimperialismo raivoso não comparece, é ironizado; Marivaldo, àquele que enuncia
com mais consciência a opressão dos trabalhadores e apresenta o ímpeto em querer saber sobre o mundo e,
sobretudo, saber compreendê-lo, entre frases bíblicas, sonha com Nova Iorque, porque lá é uma cidade que fala,
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conversa, é vida; a Professora, a líder comunista, embora sem situação definida após o destelhamento de casas -
ARISTEU – Eu tinha avisado, Mãe. (Representa a cena da Professora.) A professora tinha colocado a cabeça
cortada da cabra no chão, começou a cavar com as mãos. Dona Élia ajudou, fez piada com sangue nas mãos.
Porque eu não ajudei? Porque vocês acham que eu não ajudei? Pensam que agora a professora está lá, lendo
jornal com as mãos brancas cheias de sangue. Nossa casa destelhada. O céu devassado. Será que vale a pena? –
demonstrava sinais de cansaço.
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do primeiro ato: a relação com o espectador, feita por cenas não dramáticas, resultado de um
trabalho teatral épico, implica sua imaginação na construção de uma imagem praticável de
uma luta “comum”, advinda de uma relação produtiva cenicamente coletivizada:
subjetividades que se objetivam e objetivam o mundo e feito isso, como experiência estética
que apela à simbologia do gesto, pelo sinal inverso dado pelo conteúdo ficcional, o do teatro
em construção/teatro épico, cai por terra certa ilusão – ou seria ideologia? − de um mundo
real compatível a expectativas estruturantes coletivizadoras, que ademais estão circunscritas
pelo aparelho teatral, não correspondente, portanto, ao momento histórico caso o próprio
teatro épico falseie essa relação. A peça camponesa, primoroso exercício épico, amplia a
percepção histórica da luta política derrotada, inserindo-a na memória coletiva sem pretensões
edificantes, analisando-a e estudando-a. A pedagogia estética é a demonstração do trabalho
coletivo como uma narrativa positivada, desdramatizada, principalmente, a possibilidade de
seu consumo – que é o impulso atual. Tal elemento é fundamental para a continuidade da peça
e dos elementos reflexivos que ela aciona, afinal, os atos seguintes irão incidir exatamente no
refluxo do trabalho coletivo e no domínio da técnica, especialização das funções e
equipamentos como constructos da realidade.
Na “segunda variação”, o ato Tempo morto, o espectador se dirige a outra sala para
sua audiência. Durante o trajeto depara-se com a projeção de imagens da União Nacional dos
Estudantes (UNE) incendiada. A intimidade propiciada pela aproximação plateia-palco como
ativador da desdramatização é desativado pela apresentação de um filme. Experiências
distintas colocadas em sequencia ampliam o atrito e trazem para a experiência, inconveniente
e necessária, a sensação de ruptura. A sequência do filme pode ser assim resumida:
Bloco 1: Júlia numa ponte. Sons e ruídos. Apresenta-se o filme. Em sequência apresenta-se a
imagem de Paulo Funis em frente a um mural, reproduzindo o gesto da pintura. A câmera
registra a entrada de Governador Magano e Bárbara. Ela toma nota do discurso do
Governador que parece ser a justificação de uma decisão política.
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Bloco 2 – Inicia-se o fragmento com a legenda: Cabedal, nação periférica. Um ano antes do
golpe. Paulo olha para um imenso relógio que registra a data: 12 de março. Paulo, Bárbara e
Magano confraternizam. Brindam a abertura da nova agência bancária e a decisão de Paulo
por comandá-la. Ele assume seu compromisso matrimonial com Bárbara. Paulo segue por
uma rodovia a caminho da província de Santo Mar. Imagens da mata tropical. Logo em
seguida anda por um cais carregando uma imagem religiosa com a mão decepada. Pequeno
altar na praia. Bárbara dá um escapulário a Paulo. Ele passeia pelos corredores do banco.
Focam-se mãos de trabalhadores do banco.
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Bloco 4 – Anuncia-se a cena com a legenda: Um grupo de teatro politizado. Chega Júlia. Os
atores cantam a canção Tempo morto: O capital é trabalho morto/que só se reanima/sugando o
trabalho vivo/à maneira de um vampiro/que sangra da veia/seu tempo limite/ e tanto mais o
morto é vivo/quanto mais trabalho suga. A atriz, olhando diretamente à câmera – tendo uma
legenda que a identifica: Júlia, uma atriz - declama um texto retirado de Pedagogia da
Autonomia de Paulo Freire.
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Bloco 5 – Paulo Funis conhece a atriz, segundo a legenda. A atriz, incomodada, tentará
vender o filme ao banqueiro. Segundo seu produtor/diretor o filme é um épico terceiro
mundista. Os artistas exibem o filme para o banqueiro nas dependências do banco Patriota. A
produção necessita do investimento do banqueiro para sua circulação. Paulo Funis questiona:
Você acha que essa forma de imagem atinge o grande público? Para a atriz, mais do que
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pensar se o filme atinge o grande público, interessa saber as questões por ele levantadas – a
violência de classe.
Bloco 6 – O cenário é um bar. Artistas cantam Odete. Ao iniciar a letra, apresenta-se a cantora
através da legenda Miranda, uma cantora. Paulo acompanha Júlia e seus companheiros. Os
atores, junto com o banqueiro, conversam sobre Cuba e alfabetização de adultos.
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Bloco 7 – Imagens do encontro entre Funis, Ribeiro, Mr. Hobarth e o Embaixador dos EUA
são entrecortadas com cenas de Bárbara e Grã-fina tentando convencer os empresários de
Cabebal a financiarem o golpe militar. Há também a inserção, ao final da cena, da imagem de
empresários tentando convencer o Governador Magano a intervir e se aliar aos militares no
golpe. Todo o bloco é altamente teatralizada e finaliza com um discurso dirigido diretamente
à câmera por Magano: falta realismo nesse melodrama de armas e sangue. (para Industrial).
Não haverá golpe. O presidente é um João bobo. Apenas balança de um lado ao outro.
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Bloco 8– A câmera foca no cantor da canção Babalú, que canta para Júlia. Estão no teatro. No
cenário, baldes suspensos como luminárias, assim como aconteceu no fragmento 4. Júlia e
Paulo conversam sobre o ensaio do grupo teatral. Há a problematização sobre a concepção
dramática de personagens. Os dois estão sentados em uma escadaria.
Bloco 9 – Com a indicação da legenda a alta sociedade se organiza para a luta sons de tiros.
Mulheres da “alta sociedade”, numa piscina vazia, praticam tiro ao alvo, conduzidas pelos
militares. A trilha sonora, assim como aconteceu no fragmento 7, parece uma valsa patética.
Com a mudança da trilha, imagem de uma grande torre de televisão é projetada. A cena
termina com Ribeiro falando diretamente à câmera sobre seu possível fuzilamento. Funis está
ao seu lado e discursa, também diretamente à câmera: temos que confiar nas forças que regem
as contradições. Após uma dança coreográfica de Mr. Hobarth, Ribeiro olhando de cima para
toda a cidade, exclama: é meu!
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Bloco 11 – Funis venda os olhos de Julia com as mãos. Segue o seguinte diálogo:
Funis: Eu sou uma idealista porque sou uma atriz e tudo posso transformar na minha
imaginação (ele retira as mãos, ela continua de olhos fechados).
Julia: Posso usar a minha voz, as minhas mãos, todo o meu corpo no que imagino (abre os
olhos), acredito, desejo. Mas isso não pode ser um privilégio de classe.
Bloco 12 – Carnaval de Rua. Júlia está mascarada e com Paulo acompanha o bloco de rua. A
câmera a foca e ela aparece, como no fragmento 10, diante do cartaz de Che Guevara, em
transe. Paulo observa o desfile do bloco.
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de Ribeiro mostra uma imagem, carnaval na praça. Paulo e Bárbara, num salão escuro com
velas espalhadas encerram o seguinte diálogo:
Paulo: Me ajude. Serei outro.
Bárbara: Já és outro. Que morra o outro para viver o mesmo. Promete?
Paulo: Prometo que vivo.
Bárbara: Pois então morre.
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Ainda que esta breve descrição do filme – para a exposição em fragmentos utilizei
mudanças na trilha sonora e informações dadas pelas legendas das cenas − auxilie em sua
compreensão, são necessários alguns apontamentos: o espectador, no início, não tem
informações sobre o personagem que dita o discurso, ou mesmo sobre Paulo Funis ou
Bárbara. Eles serão apresentados somente quando estiverem juntos, num grande salão,
confraternizando a nomeação de Paulo como vice-presidente do banco Patriota. É Magano
quem os apresenta, pelo diálogo, para o espectador. As informações sobre a estória de Tempo
morto e seus personagens se dão quase em saltos narrativos para construir a diegese sobre o
golpe num país denominado Cabedal. Pela sua condução, quase não há avanço narrativo em
relação ao primeiro ato, mas a ele se soma na composição dramatúrgica.
Tempo morto, como acima descrito, narra a estória de acontecimentos e dos agentes
envolvidos na concretização de um golpe de Estado. Elege como protagonista um banqueiro e
trabalha para demonstrar as forças envolvidas na conspiração golpista. Segundo Maria Elisa
Cevasco, “ele traz, ainda, ecos do sentido que se dá ao termo em cinema e em jogos
eletrônicos, como o momento da narrativa em que nada acontece, um tempo em que foi
barrada uma continuidade narrativa” (2012, p.143-144). Estabelece-se uma relação com o ato
anterior, interrompida a narrativa e também como proposta independente, aproximando-se
referencialmente do filme Terra em transe (1967), de Glauber Rocha e evidenciando ainda
mais as problematizações formais de Ópera dos vivos. Nas duas vias de diálogo, eleitas aqui
como elementos de análise sobre a composição teatral do filme, Tempo morto torna
problemática a montagem alegórica. A tensão se dá internamente pelo conflito abordado pela
narrativa e sua forma e entre essa composição e a linguagem do primeiro ato. Segundo Ismail
Xavier (2005), em A alegoria histórica
Desde o início dos anos 1970, quando as ideias de Walter Benjamin sobre a
modernidade ganharam papel proeminente na teoria literária e nos estudos
cinematográficos, a reavaliação da alegoria – não apenas como um tropo
linguístico, mas, sobretudo, como uma noção central na caracterização da
crise da cultura na modernidade – tornou-se um importante tópico de
pesquisa e debate cultural. A teoria contemporânea estabeleceu uma relação
essencial entre a alegoria e as vicissitudes da experiência humana no tempo.
(...) A cultura moderna, perseguida por uma noção radical de instabilidade,
parece condenada a explorar as implicações do fato de que os significados –
notadamente nos novos contextos culturais de combinação de signos −
podem ser esquecidos, deslocados e retorcidos em face das forças históricas
e sistemas de poder. Essa nova consciência da instabilidade reforça uma
antiga percepção do caráter problemático dos processos de significação –
percepção que atualmente nos distancia do paraíso perdido das linguagens
transparentes. A alegoria ficou em evidência, e uma das principais razões
para seu ressurgimento nos tempos modernos é o fato de que ela sempre
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Parece ser a alegoria recurso linguístico que permite representar uma sensibilidade
moderna de indeterminação do sujeito diante da história. Como recurso, formaliza as tensões
e choques entre tradições, tradição e modernidade, razão e sensibilidade, representação e
verdade, identidade e alteridade. Problematiza-se ao demonstrar a percepção linear da
história, dada amplamente pelo discurso vencedor. Como o autor sublinha, a noção de
alegoria é muito versátil, que muda de definição e valor de acordo com o contexto cultural
(XAVIER, 2005, p.344). O conceito, então, assume diversas feições quanto as suas
consequências: como recurso narrativo que oculta intencionalmente um significado poderá
implicar em uma complexidade de decodificação que é dada somente a iniciados, protegendo
a “verdade” (tal rendimento é analisado, principalmente, na teologia), ou ainda em momentos
de censura em conjunturas específicas (XAVIER, 2005, p.355). Ainda segundo Ismail Xavier
Como é possível observar, a forma alegórica na cultura moderna é dada pelo seu uso
ou rendimento. Na presente análise corresponde ao uso adotado por Ismail Xavier em seu
estudo sobre o cinema moderno no Brasil, em específico o de Glauber Rocha de Terra em
transe. Tal escolha advém, como já mencionado, da explícita referência a esta obra em Tempo
morto.
O cinema novo, principalmente o de Glauber Rocha, muito se valeu dessa organização
formal para responder ao processo político nas décadas de 60 e 70 e da crise cultural, em
âmbito nacional, além, obviamente, de se constituir como movimento estético decorrente da
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Foi um momento no qual se desenhou, para a sensibilidade das perdas mas também
das esperanças alimentadas no início de 60, a provocação do espectador por meio do
distanciamento como ato agressivo; a necessidade de reposicioná-lo era urgente para um dos
cineastas mais expressivos dessa época, Glauber Rocha. O cinema novo − e seu mais
reconhecido cineasta −, determinado pelo desenvolvimento da produção cinematográfica e do
contexto de seu surgimento, impregnou o imaginário cultural, e também a “crítica
especializada”, como recurso exemplar para demonstração das contradições sociais, culturais,
políticas, econômicas e psicológicas.
Segundo Ismail Xavier (2012) o princípio formal de Terra em transe, que governa a
narração, é dado pela montagem que expõe a subjetividade do poeta Paulo Martins
interpolado por uma presença externa, expresso pela operação da subjetiva indireta livre
autor, não o identifica com Glauber, mas como instância narrativa imanente ao próprio filme,
uma invenção entre outras do cineasta (p.81).
Tempo morto, visto como ato independente, é pastiche ou paródia do estilo de Glauber
pois demonstra uma crítica quanto à textura alegórica como expressão consequente da cultura
contemporânea e na distensão da imprecisão procura um caráter de precisão quanto à
ideologia da narrativa horizontal em conflito com a ideologia da narrativa vertical; não usa
como recurso o discurso indireto e procura tirar proveito do choque entre dois discursos
“diretos”: o do das imagens e sons (narrativa vertical) e do discurso de seu protagonista
(narrativa horizontal). Tal crítica se materializa, na diegese do filme, numa operação que
coloca de um lado a ordem do vencedor, o protagonista “essencial” – o golpe burguês e não a
subjetividade do protagonista – aproximando-se e também interpelando a instância externa,
que é, em última análise, o outro narrador e o espectador que por ela é perscrutado. Esse
dado é crucial para identificar as aproximações, mas também os distanciamentos em relação
ao “modelo” de Tempo morto. Se por um lado o filme adota a textura da fala alegórica – o
traço que Fletcher acentua como próprio à alegoria é o caráter descontínuo da organização das
imagens. Segundo ele, o discurso tipicamente alegórico apresenta brechas, lacunas, e tal
particularidade “tende a colocar o receptor numa postura analítica em que qualquer enunciado
fragmentado assume a aparência de mensagem cifrada que solicita o deciframento”.
(XAVIER, 2012, p.446). −, ao retirar a instância subjetiva uniformemente identificada ao
protagonista – instância que desmascara mas também que se aproxima e revela formalmente
as contradições, que no caso de Tempo morto seria a do burguês − , estuda a relação entre
assunto e forma, pois em última instância é a narrativa que se observa na operação da câmera
que é problematizada. Nesse sentido, Tempo morto não internaliza formalmente o ponto de
vista subjetivo do protagonista e o faz, principalmente, por um registro quase documental –
assim como o fez o cinema novo −, permitindo que a consciência de pertencimento a uma
classe, na estilização das cenas do burguês, ou a câmera na mão das cenas populares-
carnavalescas, organize a história num processo que caminha para um fim, afinal, apresentado
no início do filme: o golpe direitista em Cabedal.
A consciência dos personagens, revelado por suas falas, organiza suas ações e a
narrativa cênica. Paulo Emílio Salles Gomes (2007) em A personagem cinematográfica
salienta “que durante os primórdios do cinema falado, a tendência foi empregar a palavra
apenas objetivamente, isto é, sob a forma de diálogos através dos quais as personagens se
definiam e complementavam a ação” (p.108). Na composição horizontal, da ação dramática,
vão se delineando os comportamentos dos personagens diante da situação do conflito
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iminente: qual posição irão assumir no momento do golpe. Numa composição vertical, feita
de imagens e sons, esses comportamentos são ora demonstrados, ora tensionados até mesmo
pela fala dos personagens. Os vetores que conduzem o filme chocam-se, se contradizem, para
que a narrativa fílmica seja desmontada em seu princípio e é na articulação com um tempo
ficcional idêntico ao do primeiro ato que residem seus maiores rendimentos.
O filme começa com a imagem, em plano médio, de Júlia, a atriz politizada: sons de
trem correndo nos trilhos. Ela está em uma ponte olhando para o horizonte. O espectador tem
como referência a lembrança da Narradora e Professora do primeiro ato, interpretada pela
atriz Helena Albergaria. Em contraste com a imagem, e com a trilha sonora, muito mais
incisiva, a figura do banqueiro Paulo, interpretado por Rodrigo Bolzan, Aristeu da peça
camponesa. De braços para o alto, como que carregando algo em suas costas, está em frente a
uma tela de trabalhadores com enxadas e sacos nas mãos. A montagem é fundamental: Paulo
Funis assumirá como sua a tarefa de construir o futuro da nação, é a burguesia nacional, e do
ponto de vista dramatúrgico é a reivindicação do “herói melodramático” em alinhar sua ordem
ao destino da nação – sua certeza se revela em frases como já no final do filme, no longo
abraço dado em Magano: o raio ordenador nos atingiu e o melhor é transmiti-lo a terra para
que cesse a febre e o mundo pare de tremer sob os nossos pés. Menos do que estabelecer um
gênero, questão que não está em pauta quando se trata das interpenetrações textuais e cênicas
no teatro épico, a caracterização do herói com tintas melodramáticas funciona como
antagonismo cênico à caracterização de Júlia e dos artistas de esquerda37.
Voltando a sequencia inicial do filme, a câmera se aproxima e incide sobre o
Governador Magano ditando um discurso que Bárbara, a militante de direita, toma nota. É o
discurso que justificará o golpe no país imaginário:
37
Jean-Marie Thomasseau (2005) apresenta em O melodrama imprescindível contribuição sobre as
características do gênero e seu desenvolvimento, buscando desconstruir os enganos e preconceitos erigidos pela
“crítica especializada” quanto a esta forma popular. Para a afirmação de que Paulo Funis caracteriza-se como
um “herói” melodramático, adoto a seguinte observação: Quando a história literária fala do melodrama e de
suas origens, ela o faz, frequentemente, m termos de esclerose e decadência, explicando certas vezes o
nascimento do gênero como uma degenerescência da tragédia. É verdade que a tragédia, sobre a qual Voltaire
tentou provocar e teorizar as transformações, pouco a pouco, ao longo do século XVIII, abandonou suas
dimensões metafísicas, substituídas por conflitos psicológicos e debates morais, e escolheu uma estrutura
romanesca mais patética que trágica (p.18). O autor também não deixa de ressaltar seu parentesco com a teoria
do drama burguês. Sentimentalidade e apagamento da luta de classes rendem nas teorizações sobre o drama
burguês, como observou Sérgio de Carvalho no prefácio para Teoria do drama burguês, de Peter Szondi (2004).
Paulo Funis movimenta, em sua composição, elementos sentimentais atrelados ao destino trágico.
115
A trilha sonora grave o acompanha em quase todas as suas aparições enquanto ele
ainda não conheceu a atriz Júlia. O banqueiro circula entre os funcionários do banco e, por
um corte com uma legenda sobreposta à tela, indica-se que o banqueiro irá financiar os meios
de comunicação. Não há a voz over em off de Paulo como que relatando os acontecimentos,
como aparece em Terra em Transe. As cenas são montadas para que o espectador acompanhe
por diferentes enquadramentos as forças empreendidas no golpe: aliança do poder econômico
controlado por Paulo, dos meios de produção midiática-ideológica, controlada por Ribeiro,
dono do Jornal O Todo em negociata para a formação da TV O Todo e o poder político,
representado por Magano, orquestrado pelos interesses do Embaixador Americano, dos
Industriais e Militares. Junto a isso, recupera-se a tentativa de produção artística da esquerda
e a imagem do grupo teatral ensaiando a peça camponesa. O tempo é como que restaurado
para o ensaio do grupo teatral do primeiro ato. Os dois fragmentos – ensaio do grupo e as
imagens de Paulo, em montagem alternada − são complementares temporalmente e
acumulam uma leitura sobre a desigualdade das forças em luta; não à toa em uma das cenas
no apartamento de Paulo, Júlia ameaça os militares com um vaso e logo é ameaçada com uma
arma, aspecto que tem rendimento para esclarecer a narrativa cênica e também para “avaliar”
116
uma suposta isenção de ponto de vista do trabalho documental: assim como a câmera
acompanha Paulo na “sociedade de conchavos” também está presente nos momentos de
ensaio do grupo teatral. É interessante notar que a equiparação do tempo através do ensaio do
grupo dentro do filme e da demonstração, pelo outro lado, do arranjo conservador entre a elite
econômica e política de Cabedal coloca em fricção uma dialética temporal que tem na
posição do espectador alguns frutos, afinal não é o tempo fictício do enredo que organiza sua
participação, mas o tempo empírico que também está ali formalizado. Durante o ensaio teatral
do filme, Júlia olha diretamente à câmera e declama trechos do livro A Pedagogia da
Autonomia de Paulo Freire com a indicação de que se trata da problematização do futuro. Para
o educador, ensinar exige a consciência do inacabamento; “meu destino não é um dado mas
algo que precisa ser feito, cuja responsabilidade não posso me eximir. Gosto de ser gente
porque a História em que me faço com os outros e de cuja feitura tomo parte é um tempo de
possibilidades e não de determinismo. Daí insista tanto na problematização do futuro e recuse
sua inexorabilidade” (2002, p.22). A realidade do golpe – história conhecida e formalizada
pela eleição do banqueiro como protagonista – e o discurso de problematização do presente
do grupo teatral que é dado como campo de possibilidades atrita-se com as imagens da tela
que pelo outro lado mostram a articulação do golpe. No movimento oposto, a legenda, a
problematização do futuro, diz respeito ao tempo ficcional instalado pela narrativa − a do
passado – e, também, do tempo atual. É um fragmento que dialoga diretamente com o
espectador, apelando para sua consciência no presente.
Tempo morto perscruta na ficção, quando utiliza a autorreflexão sobre o filme terceiro
mundista levado pelo Cineasta e por Julia para o banqueiro buscando sensibilizá-lo para o
financiamento para sua circulação, sobre a própria produção cinematográfica, também
condensada em seus resquícios amadores, artesanais, num movimento que deixa evidente a
carência de recursos, negando as exigências do cinema nos moldes industriais. Glauber Rocha
em Revolução cinematográfica, publicado em Revolução do cinema novo, apresenta as
condições necessárias para que seja possível um cinema revolucionário, opondo-o ao cinema
americano, hegemônico na educação moral e estética. Parte de que o cinema é um método e
uma expressão internacional e portanto “a luta dos verdadeiros cineastas independentes é
internacional (...) a finalidade dos cineastas independentes deve ser a de conquistar o poder da
produção e da distribuição em todos os países” (2004, p.101). A distribuição é o ponto
pernicioso de qualquer produção cinematográfica e identifica que para que ocorra um cinema
revolucionário os cineastas precisam se transformar em produtores e distribuidores. Opõe-se
no filme à necessidade do Cineasta recorrer ao Banco Patriota. O diálogo em Tempo morto
117
Deve-se ter em conta, portanto, que o estudo em Tempo morto sobre o procedimento
alegórico insere-se em condições distintas em relação ao procedimento engendrado nas
condições políticas das décadas de 60 e 70. Há que se reforçar, entretanto, que ao parodiar o
filme de Glauber faz uma “retomada avaliativa” da experiência alegórica dos cineastas desse
período deslocando seu rendimento para a produção cultural atual.
Os personagens de Tempo morto não são releituras ficcionais de Terra em transe,
embora retirem deles aspectos performativos. Paulo Funis, assim como Paulo Martins,
constitui a ponte entre as diferentes ordens que atuam no processo político (XAVIER, 2012,
p.108) e assemelha-se em um certo idealismo político, com sinais opostos. Não é o poeta em
crise que se percebe em meio ao jogo, mas o banqueiro que representa uma classe e no
momento de crise a ela se alia para a concretização do golpe. A contradição comportamental
de Martins o inscreve no descaminho das mudanças estruturais de Eldorado, ao passo que é o
destino de Cabedal que, parece, estar nas mãos de Funis, embora para ele não esteja
implicado agir ou não agir, e sim aprovar ou não aprovar. Numa imbricação de Julio Fuentes,
118
Paulo Martins, Vieira e Porfírio Diaz, Paulo Funis, ao mesmo tempo em que se aproxima,
sentimentalmente, de Júlia e financia um filme experimental de esquerda, avaliza e articula o
golpe civil que se materializa no golpe militar.
Os fragmentos apresentam o percurso de Paulo Funis, através de montagem alternada,
e mostram como ele, e a câmera, habitam e circulam entre dois mundos, assim como
apresentado no programa da peça: por razões sentimentais, ele se aproxima da arte
anticapitalista num momento de acirramento da luta social. Torna-se um mecenas de
esquerda, ao mesmo tempo em que financia parcerias internacionais para a fundação de uma
televisão. A ligeira crise afetiva e pessoal serve para acentuar o compromisso com sua
própria classe. Torna-se, assim, um militante do processo de modernização conservadora que
se materializa no golpe militar. Para Sérgio de Carvalho, tal enquadramento do personagem é
responsável pelo teor crítico quanto à retórica lírica derramada do burguês, que num
idealismo individual legitima o golpe. O recurso que torna patético seu protagonista é
utilizado como alegoria ilustrativa, assim como a relação com outros personagens – Ribeiro e
não Marinho, proprietário do Jornal Todo, e não Globo. A alegoria da narrativa interna é
retórica e bem humorada e por isso deliberadamente óbvia e facilmente assimilada, e registra
um modelo explicativo sobre a sociedade brasileira: ausência de uma burguesia-civilizatória
forte, capaz de ser classe dirigente (CHAUÍ, 1983, p.66). Embora apareça como retórica, de
fato, na diegese de Tempo morto, seu cinismo individual irá colaborar para a efetivação dos
anseios de ordenação, incluindo-o a uma ordem cósmica − na cena do bar, um dos atores
comenta sobre Paulo Funis: Rei Midas, tudo que ele toca vira ouro. Com um olhar um
pouquinho mais cuidadoso, a ordem cósmica é o capital que coordena suas peças conforme
um jogo de xadrez. No caso brasileiro, o patético dos banqueiros é acreditar que como
indivíduos (personagens) podem suspender ou não o avanço do capitalismo. É pela militante
de direita, Bárbara, no apartamento de Paulo Funis, enquadrada no centro da imagem, que
fala diretamente à câmera, que as forças em luta estão postas: a luta de classes existe imbecil,
de que lado você está? A personagem de Bárbara, portanto, ganho os contornos mais nítidos
do idealismo burguês.
O evidente discurso político interpela o narrador vertical (imagens e trilha), e a
reboque, o próprio espectador. A cena do bar, no qual confraternizam o banqueiro e o os
artistas de esquerda, dá mostras do trabalho cultural nessa chave
É como o momento que a lua nova e a lua velha não se distinguem. Elas se
misturam. É isso! Enquanto a gente não entender isso, a gente não vai
compreender o sentido da palavra contradição.
119
Em tempo outro, o filme do Latão não tem o rendimento crítico semelhante ao tempo
de Glauber pois não leva às últimas consequências uma especificidade de Terra em transe, a
saber, o solavanco provocativo – que é dado pela voz over de Paulo Martins − , pois ironiza
120
38
Como apresentei no início do estudo, a avaliação sobre as conquistas estéticas do Arte contra a barbárie
deveria percorrer a produção cênica dos grupos envolvidos na construção da crítica anticapitalista. Apontado
anteriormente, não me foi possível percorrer este itinerário. Se o fizesse, a título de nota, penso que o maior
rendimento da discussão sobre o recurso alegórico, e o fato do Latão problematizar este expediente, está na
observação de Ismail Xavier: a paródia de Glauber convida demais grupos de esquerda à autocrítica. Parece que
muito do que vem sendo produzido em teatro por parte dos grupos paulistanos utiliza o expediente alegórico,
com rendimento trágico ou tropicalista, como recurso que em si contém a crítica, sem mediações históricas.
Evidencio, portanto, que as consequências sobre a ideologia representacional presente tanto no segundo ato
como no terceiro residem, essencialmente, no debate com a produção de outros coletivos teatrais, em especial,
aos signatários do Arte contra a barbárie.
121
O homem, não numa fisionomia torturada, mas empobrecida, canta: Toda gente nesse
mundo tem direito a ser feliz, porque que eu não sou. Nem que morra de tristeza, nem que
morra de saudade, vou fugir deste lugar para ver alguém no mundo, desprezado que nem eu,
um alguém para amar. Eu também sou gente, eu também mereço, eu também sou gente para
encontrar alguém para amar.
Há, também, uma inversão na cena conhecida de Terra em transe. Ao invés de tapar a
boca do sindicalista Jerônimo, os olhos da atriz são vendados. A aparição do “povo”
representado pelo ator Flavio Migliaccio não se dá após uma provocação agressiva como feita
por Paulo Martins (está vendo quem é o povo? Um imbecil, um analfabeto, um despolitizado.
Já pensaram Jerônimo no poder?) ou seu enforcamento, mas logo após a negociata de Ribeiro.
Ele está na mesma posição de Júlia (em frente aos cartazes) e no mesmo ambiente
carnavalesco, “empobrecido”, como disse anteriormente, junto com uma esquerda em transe.
A cena é seguida do fragmento 13, no qual Paulo e Júlia discutem:
quem relê os atos do Congresso, jornais, livros, discursos e panfletos dos anos
de 1961 a 1964, encontra em abundância duas expressões: “a vontade do
povo” e “os magnos interesses da Nação”, ou suas variantes, “a consciência
popular” e os verdadeiros interesses nacionais” (...) e todos reivindicam o
direito de serem “os legítimos representantes do povo” e dos “legítimos
interesses da nação”. (CHAUÍ, 1982, p. 63-64).
Logo após a cena de Bárbara, Júlia ocupa a tela, na imagem da ponte do início do
filme em sua construção de um povo imaginário, pronto para a revolução. Seu discurso
também se dirige à câmera: Chegamos ao auge da esperança reformista baseada na
conciliação de classes. Isto é um equívoco. (atrás dela, um cartaz: O Petróleo é nosso).
Dessa burguesia que aí está não se pode esperar nada. São nacionalistas de ocasião, pregam
sempre uma revolução pelo capitalismo. Estamos vivendo um erro ideológico, mas antes que
o nosso tempo acabe, passemos à luta. Morte à conciliação! Viva a revolução popular anti-
capitalista! Alegres na vanguarda! E aqui a dramaturgia cênica surpreende o espectador.
Reaparece o discurso de Francisco Julião do primeiro ato, feito agora por Júlia em praça
pública; ela assume a luta armada. Um coro proletário acompanha o discurso e tensiona uma
leitura psicologizante do personagem − sua fala desencantada ocorre logo após o rompimento
do romance − afinal o filme tematiza o conflito de classes no qual procura implicar a
aproximação dos artistas ao trabalhador.
Há, na composição, algo da sensibilidade de Sérgio de Carvalho que a “retomada” do,
assim chamado, teatro de grupo em meados da década de 90, “tem pouquíssimas ou nenhuma
ligação com o antigo projeto de arte nacional-popular e de teatro coletivo dos anos 1960 e
1970; o antigo desejo de aproximar o experimentalismo e “pesquisa de uma arte nacional-
popular” pouco sobreviveu à enxurrada liberal-conservadora dos anos 1980” (2008, p.157-
158) e parece que a produtividade da “paródia” da fala alegórica diz mais da percepção de um
certo formalismo integrante do sistema de artes no Brasil.
em frente a Paulo revela a pergunta, afinal, que horas são? Brecht (2005), exilado na Suécia,
faz a seguinte anotação em seu Diário de trabalho, em 07 de dezembro de 1939
quando eu saí do teatro e discuti com pessoas que mal tinham compreendido
do que se tratava, eu disse: “mas a peça não é nem sobre o campo, nem sobre
a ditadura.” A minha impressão geral é que Ópera dos vivos é uma reflexão
39
O texto publicado na revista foi editado a partir da apresentação de Maria Rita Khel no Ciclo de debates Opera
dos vivos, organizado pelo SESC Belenzinho de São Paulo, em parceria com a Companhia do Latão. Foram
quatro encontros ocorridos nos dias 16, 17, 23, 24 de fevereiro de 2011, durante a primeira temporada paulistana
do espetáculo.
127
organizadas pela narrativa cênica e por ela conduzida como ocorreu nos dois primeiros atos –
começará a se mostrar “inoperante” diante da engrenagem e das novas relações de produção –
e de fato acomodada à nova situação cultural – se no primeiro ato as consciências vinham de
uma prática emancipadora, a consciência dos personagens do terceiro estão “à vontade” com a
indústria cultural, principalmente para Os Intactos. As tentativas de Miranda – e cabe ao
espectador perceber sua incompreensão, uma autoconsciência desarticulada que é a
contradição da nova situação − em manter um discurso articulado e coerente com o que pensa
e sente sobre a nova situação política e cultural será constantemente interrompido por
Benzinho para que o show continue. Atua em Privilégio dos mortos a alternância entre uma
quase ação dramática – o diálogo entre Bebelo, a Militante de esquerda e o Ator
desempregado, e a narrativa cênica − o discurso de Miranda e as canções, ora de Bebelo ora
dos Intactos.
O show abre com Bebelo e Os Intactos exaltando a oportunidade de voltar para uma
revolução de corações individualmente sujos. Miranda assume o palco e declara: o meu
benzinho não queria que eu cantasse nada de protesto, mas eu sei que vocês estão aqui
porque gostam de mim, do que eu sou ou me tornei. Então eu insisti para começar com uma
velha canção.
Para não deixar dúvidas quanto ao valor cultural dado ao momento histórico por
alguns protagonistas desse movimento, reproduzo depoimentos: soma-se à encenação já
citada de O Rei da vela, a exposição de Hélio Oiticica, Tropicália, e a exibição de Terra em
transe de Glauber Rocha. Caetano Veloso anota em Verdade tropical que depois de assistir ao
Rei da Vela, Zé Celso se tornou um artista
o grande aspecto novo, quem percebe é quem está criando arte neste país.
Assim, o pessoal do cinema novo, da música brasileira vê e revê O rei da
vela, incorpora a nossa experiência em suas realizações, sem seus projetos.
Eu ouço as músicas, vejo e revejo os filmes e vou descobrindo que alguma
coisa nova está nascendo no país (MARTINEZ CORRÊA, 1998, p.112).
40
A peça de Oduvaldo Viana Filho estava em processo de montagem pelo CPC da UNE do Rio de Janeiro
quando o prédio foi incendiado.
132
O entrevistador de 1980, José Arrabal, cita então uma crítica ao projeto de Zé Celso
feita por Anatol Rosenfeld, considerando a encenação de Roda viva feita pelo diretor como
uma experiência que leva o público ao conformismo. Sem identificar tal citação à peça de
Chico Buarque, em O teatro agressivo, Anatol Rosenfeld (2009) expôs as semelhanças e
diferenças entre Bertolt Brecht e o teatrólogo Antonin Artaud, conhecido pelo seu empenho
em imprimir um teatro “como espelho do inconsciente coletivo, capaz de libertar os recalques
a ponto de, tal como a peste, impelir o espírito para a fonte originária dos conflitos” (p.49).
Em ambos há uma tendência em refutar o teatro culinário e estabelecer uma nova relação
palco e plateia. “O que, no entanto, os separa radicalmente é o racionalismo crítico do
primeiro e o irracionalismo incandescente do segundo. Brecht criou um teatro sócio-político,
de tendência imanentista, Artaud imagina um teatro essencialmente metafísico” (p.49).
Continua o crítico, em sua exposição sobre o teatro agressivo, exemplificado pela encenação
O rei da vela, e por entrevistas e manifestos do diretor, que este pretende “um teatro
anárquico, cruel, grosso como a grossura da apatia em que vivemos” (p.50). Tal concepção,
iniciada por Zé Celso no período com certa influência do pensador francês, dá a tônica de suas
realizações até os dias de hoje. À época, Anatol considerou, a despeito de sua noção de justiça
e pathos de sinceridade presente em sua cena e em seus manifestos,
Conclui Anatol, que a despeito de José Celso conseguir efetivar o que ele pretende em
seus manifestos teóricos, que este teatro não passaria de neoculinário, pois a violência em si
se torna clichê, constituindo-se de fato como descarga gratuita, aliviando o público e o
confirmando em seu conformismo, uma vez que este paga para se colocar em uma situação
sadomasoquista; “agradavelmente esbofeteado, purificado de todos os complexos de culpa e
convencido de seu generoso liberalismo e da sua tolerância democrática, já que não só
permite, mas até sustenta um teatro que o agride” (p.57).
Para Zé Celso, tanto as observações de Anatol Rosenfeld quanto de Roberto Schwarz
registradas em Cultura e política – “ao que pude observar, passa-se o seguinte: parte da
plateia identifica-se ao agressor, às expensas do agredido. Se alguém, depois de agarrado, sai
da sala, a satisfação dos que ficam é enorme” (SCHWARZ, 2008,p.104) −, não passam de
críticas acadêmicas, e reserva ao segundo o comentário de que o crítico não entende de teatro.
Quanto à Anatol, o próprio Zé Celso retirou seus óculos em uma apresentação. O encenador
não viu uma violência à pessoa, mas ao retirar os apetrechos de uma personagem – como
óculos e o guarda-chuva – retirava, também, sua máscara.
Retomando, então, o argumento de análise de Privilégio dos mortos, este se faz,
incrivelmente, dolorosamente festivo para seus fãs. Muito dessa percepção deve à
compreensão crítica de que após o golpe os primeiros resultados artísticos “festejaram”, no
espaço reservado ao teatro, uma percepção histórica que não mais correspondia à realidade
social. Parte dessa discussão foi apresentada no ensaio mencionado de Roberto Schwarz,
Cultura e política, e retomado por Nicholas Brown (2007) em Tropicália, pós-modernismo e
a subsunção real do trabalho sob o capital da seguinte maneira:
41
A marca na dramaturgia sobre o processo de dessolidarização é dada na seguinte passagem: logo após a
discussão entre Bebelo e o Ator desempregado, inicia-se a cantiga com a melodia ao fundo: Oi quem tem pemba/
Risca agora/ Maré, maré/ Maré, maré/ Os companheiros/ Vão embora/ Maré, maré/Maré, maré. MILITANTE –
O quadro atual: intervenção nos sindicatos, terror na zona rural, rebaixamento geral dos salários, expurgo nos
baixos escalões das forças armadas, inquérito na universidade, invasão da igreja, economia em alta, garantindo a
expansão da forma mercadoria. Isso não é luta de classes? No palco. Coreografia da Maré dos Parangolés.
Entra Miranda conduzida. APRESENTADOR – Vamos chamá-la. Senhoras e senhores, enquanto funcionem
nossas vísceras, com vocês a voz e a carne de Miranda.
42
Em A reificação do teatro político: Roda viva, Asdrúbal Trouxe o trambone a gênese do besteirol, Rafael
Litvin Villas Bôas coloca em epígrafe o conteúdo da filipeta jogada pelo Oficina. O texto integra a publicação
Revista Cerrados, do Programa de Pós-graduação em Literatura do Departamento de Teoria Literária e Literatura
da Universidade de Brasília, vol 19, n.29.
135
A narrativa cênica de Privilégio dos mortos retoma através de seu arranjo a inserção
decisiva, nestes termos, do pós-modernismo:
MANI - Vocês querem o quê? Rimar horário com o operário? Patrão com
exploração? Isso aqui é poesia, é a dimensão estética.
Num diálogo entre Perene e Bebelo, quando esse deixa o palco, o sinal de um
inconformismo impotente é claro:
ainda não fez essa “passagem”, mas sabe que se não trabalhar para a televisão será esquecido,
não terá outra possibilidade de trabalho. Situação terrivelmente dolorosa para os artistas sem
lugar nesse novo mundo, agarrado por outros que viam nele sua nova tarefa. Como Júlia,
alguns artistas encaminharam-se para a luta armada, viveram clandestinos, como a Militante,
outros se adaptaram forçosamente e outros, ainda, confortavelmente. Como a narrativa cênica
irá demonstrar, a engrenagem começa a operar prescindindo da consciência dos personsagens
dando sinais de sua impotência; após esse diálogo, o cantor retornará à cena apenas no final
do ato, dando voz à sua posição. Ficam no palco Miranda e Os Intactos, esses produtos da
indústria cultural e da lógica pós-moderna.
A via mais facilitada para o espectador é dirigida à crítica à engrenagem ideológica
neoliberal e, assim como ocorreu nos dois primeiros atos, Privilégio dos mortos encena as
contradições da época para fazer trabalhar a ideologia representacional. Encena a
ambiguidade do ponto de vista do espectador de hoje (!) do “aderir, criticando; criticar,
aderindo” e do ponto de vista da cena, nos termos de Schwarz em Notas sobre vanguarda e
conformismo43: produzir consumindo, consumir produzindo, (...) o aspecto-mercadoria passa
para o primeiro plano e tende a governar o momento da produção (p.49). O show feito para a
transmissão televisiva é a apresentação do processo de produção da mídia da brincadeira de
salão – lembro de todos os apetrechos dos Intactos e a inoperância e impotência das
oposições – e a máquina de produção de ídolos que se traduz pelo tratamento caricatural.
Em A compra do latão, Brecht (1999) indica algumas possibilidades de utilização da
caricatura pelo teatro épico: a caricatura é a forma em que aparece a crítica na
representação que pretende a identificação. Nela o actor faz a crítica da vida, e o espectador
identifica-se com a sua crítica e avalia que o procedimento avança quando as caricaturas
aparecem então como máscaras num baile de máscaras representado no palco, mostrando o
ato de caricaturar.
43
Agradeço a professora Iná Camargo Costa pela sugestão de leitura do artigo de Roberto Schwarz.
138
44
A crítica de Bárbara Heliodora foi publicada no jornal “O Globo” em 18 de outubro de 2010.
139
Assim como ocorreu nos outros atos, é possível uma leitura de Privilégio dos mortos
como ato independente, que age pela caricatura para dar contornos precisos à polarização
ideológica dos artistas e peça articulada que tem nas condições da sociedade do espetáculo
sua “forma exemplar”. Na performance dos Intactos, com Bebelo exibindo seu corpo magro
para o público, Cao narra: A única chance do subdesenvolvido é negociar o espetáculo de sua
miséria. Era criança, quando chegou em minha cidade o faquir Elói. Num armazém de secos
e molhados, ele exibia a glória de seu corpo desprovido de carnes. E sempre me pareceu de
genial desfaçatez que, num país de famélicos ele cobrasse, ainda que pouco e de poucos, pelo
espetáculo de sua fome, deliberada.
No ato performático enterra-se a projeto coletivo do início da década de 60 e sob seus
escombros nasce a nova realidade, sem nenhuma pretensão de síntese, “que se reproduz em
45
Depoimento de Gilberto Gil em Historia da Música Popular Brasileira, São Paulo, Abril Cultural, 1971,
fasc.30, p.10. Apud Favaretto, p. 21.
140
lugar de extinguir” (SCHWARZ, 2008, p.91). Fixa a imagem reificada, que registra a
condição de periferia do capitalismo, que mesmo Caetano Veloso tem consciência: “era a
não-explicação do inexplicável” (apud Favaretto, p.80), “operando com os resulados do golpe
de direita, indicando o escândalo, de forma interessante e importante, mas (que) não buscava
formas de superação”, segundo Roberto Schwarz em trecho de entrevista publicado no
programa da peça. Segundo Caetano Veloso (2005) a tropicália
Nos termos de Caetano, o tropicalismo não merece a importância que lhe atribuem.
Em Diferentemente dos americanos do norte 46, conferência de Caetano Veloso realizada em
26 de outubro de 1993 no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, o músico busca
construir um discurso revisor quanto à perspectiva crítica, sedimentada, do viés pessimista do
46
Agradeço o prof. Walter Garcia pela sugestão de leitura do referido artigo.
141
Em seu depoimento segue a lembrança de que o interesse que unia Roberto Pinho e o
suposto alquimista era o professor português Agostinho da Silva, responsável pela
disseminação de um “sebastianismo erudito de inspiração pessoana” (p.54). Reproduzo o
trecho para estruturar o argumento:
O excêntrico (de) Caetano buscava produzir uma distinção identificatória ao que ele
reconhecia como uma esquerda festiva boba e buscando salvar (!) àqueles que ele considerava
bobos mas ao menos artísticos, de sua própria derrocada, parodiava-os: “nós queríamos trazer
a tudo que disse respeito à música popular a luz da perda da inocência e, para isso, fizemos
muitas caretas e usamos muitas máscaras” (VELOSO, 2005, p.49). Após um grande apanhado
de referências, a palestra retoma o tom
Depois de tanto falar, e com tanta pose, fica-me faltando explicar por que
disse ter sido ou ser o tropicalismo superestimado (...) Uma vez,
respondendo a uma minha provocação irresponsável, José Guilherme
Merquior nos chamou, a mim e a todos os componentes do mundo do
espetáculos, de subintelectuais de miolo mole. Sempre achei essa expressão
bem cunhada. A meu ver ela não perde sua força cômica por eu ser capaz de
escrever assim. Mas o que me leva a reafirmar que houve uma
superestimação do tropicalismo é a certeza de que, apesar da boutade de
Merquior, há um consenso hoje, no Brasil, a respeito da grandeza do que
fizemos quando nada fizemos além de chamar atenção para o fato que temos
um dever de grandeza. (VELOSO, 2005, p.72)
Ora, não é do “dever de grandeza” que Privilégio dos mortos tece sua crítica,
reforçadora do mito tropicalista – O mytho é o nada que é tudo./O mesmo sol que abre os
céus/É um mytho brilhante e mudo/O corpo morto de Deus,/Vivo e desnudo (Fernando
Pessoa, Mensagem) – na qual a exibição do corpo magro de Bebelo deixa evidente a crítica
quanto à mitificação artística. Certo que o ato acentue, entretanto, o lugar privilegiado da
canção como movimento estético que aglutinou o debate pós-64 relativizada pelo sentido
político de uma nova expressividade.
E por motivos óbvios, o próprio Caetano abre mão em sua autobiografia, Verdade
tropical, do “impulso negativo” da Tropicália. Roberto Schwarz, no ensaio já citado, conclui
O recurso caricatural de Privilégio dos mortos, antes de se constituir pela negação dos
expressivos resultados estéticos do tropicalismo de 67 e 68 se aproxima dos expressivos
resultados mercantis no passado e, também, no presente e se faz necessária sua leitura, assim
como observou Roberto Schwarz sobre o livro Verdade tropical, a contrapelo – material
estudado pela Companhia durante o processo de ensaio, como salientou Helena Albergaria.
Assim, a ironia do ato, que tem sua verdade explicitada em relação ao projeto anticapitalista
de Ópera dos vivos, se assemelha a uma motivação identificada por José Antonio Pasta Júnior
sobre a Ópera dos três vinténs, de Brecht.
indústria da cultura, como salienta Vladimir Saflate47 − invade o ato na última fala: se você
não juntou as partes até agora não desista. Tudo fará sentido em: Morrer de pé. Não se
preocupem com o carro no estacionamento, não se preocupem com o horário do metrô, não
se preocupem a radial alagada, não se preocupem com a fome, com a distribuição de renda
(os atores saem). Nesse sentido, os diálogos abertos pelo Privilégio dos mortos se dão ora
com o espectador que observa e interage com o show, consumindo-o em seu momento
explícito de produção, num movimento de prazerosa desresponsabilização (afinal não se
preocupem com nada, nem com a fome ou a distribuição de renda; afinal a contradição está aí
explícita), como elemento que só pode ser pensado a partir dos expedientes cênicos
engendrados pelo próprio ato, ordenado pela brincadeira programada e pela liberdade nova
(lembro que o distanciamento e a textura em preto e branco do filme Tempo morto se opõe ao
colorido e engraçado caricatural de Privilégio dos mortos) e na confluência com os atos
anteriores e o último e quarto ato.
Ressoa em Privilégio dos mortos a desobrigação do artista e da nova liberdade trazida
pelo tropicalismo. Para o primeiro, os Intactos constituem um núcleo muito divertido,
inocente e inocentado pela nova conjuntura, que por seu lado faz com que a plateia se divida
quanto a um suposto revanchismo. Na articulação com os atos anteriores, de tematização
sobre a relação entre artistas e povo, ou demandas populares, e do tenso envolvimento entre
artista e política que resultou no desaparecimento de Júlia e no golpe, o espectador também
vivencia uma nova liberdade − algumas plateias vaiam e jogam papeizinhos no palco. Tudo é
permitido, do anunciado espancamento dos atores ao riso do espectador e nisso mesmo a
plateia “politicamente engajada” que se vê identificada à crítica quanto aos “personagens
tropicalistas” é tratada como cúmplice da derrota sofrida.
Em Sociedade mortuária a consciência dos personagens entra em acordo com o
avanço da narrativa cênica, coerente entre àquilo que representam e a estória que narram, o
enunciado formal corresponde ao enunciado do conteúdo; em Tempo morto, as forças em luta
se abrigam na textura alegórica da narrativa vertical, ao mesmo tempo em que expõe seu
conteúdo ideológico; a partir do terceiro ato, a forma representacional conduzirá o enunciado
do conteúdo, ou seja, os personagens irão, aos poucos, introjetar a ideologia da forma em seu
comportamento, e o discurso passa a ser cada vez mais ideologizado. Em Privilégio dos
mortos a automação ainda é recusada por Miranda e problematizada por Bebelo, em Morrer
de pé, entretanto, é devastadora e deixa apenas “vestígios humanos”.
47
SAFLATE, Vladimir. Cinismo e falência da crítica. São Paulo: Boitempo, 2008.
145
Muito do exposto sobre a análise de Ópera dos vivos, como dito anteriormente, exige
um espectador interessado. O espectador solicitado por Brecht, “que aprecia ver o homem em
situações que não resultam lógicas e claras à primeira vista” (1970a, p.56), teve à sua
disposição materializações de compreensão e distanciamento crítico, cenas em que pôde
comparar os pontos de vista dos personagens, de ligação com um mundo e intenções
derrotadas, estranhamento de formas e procedimentos culturais habituais. No desencontro, nos
atritos encenados, a articulação dos atos e das narrativas cênicas buscou representar a
trajetória da cultura brasileira de forma clara, com calma épica. Foi recuo necessário para que
a negativização do último ato não fosse apanhado como mera reiteração de uma tese
conhecida, tese anunciada pela primeira fala da Narradora:
O homem tem que se desumanizar para continuar vivo. Simples. Não há nada de novo.
Na operação, Morrer de pé é aparentemente dispensável por representar questões
consensualmente comuns, de integração entre o trabalho alienado da indústria televisiva,
relações de trabalho hierarquizadas, empregos subalternos destinados aos negros. Dito no
início deste estudo, o último ato articula uma ideia da peça: o trabalho de artistas, mas é claro
que Morrer de pé é o mais vazio e mais lúcido quando se verifica a impotência das
consciências desalienadoras em um momento de total alienação. O ponto de vista do Latão
sobre a narrativa cênica chega ao mais alto nível de solicitação dos atores no último ato: o tom
irônico de algumas falas, as nuances entre a representação e a narração crítica não se faz
através de ferramentas clássicas, mas na modulação de gesto e fala. Exige-se dos atores que a
contradição entre o que está sendo dito e encenado e o ponto de vista crítico sobre o material
se dê para além dos grandes engenhos da dramaturgia. Apuro técnico que advém do trabalho
dos atores como, também, dramaturgos e demonstração, em cena, de que o teatro épico não é
um estilo representacional, mas um trabalho coletivo de composição. Escreve Brecht em
Diário de trabajo, em 25 de dezembro de 1952
48
O texto é retirado dos Diários de Trabalho de Bertolt Brecht, nos anos 1942, quando estava exilado nos
Estados Unidos e registra seu grande desconforto com a vida estadunidense.
146
visto en forma objetiva, eso que yo he llamado actuación épica es una forma
de actuar en la cual la natural contradicción entre el intérprete y el personaje
teatral representado por él se expresa de una manera muy precisa. entra em
juego la crítica (social) del intérprete respecto a la figura que él, por cierto,
debe materializar de manera cabal. porque las opiniones, las pasiones, las
experiencias y los intereses del personageje no son los del intérprete, y éste
también debe manifestar los suyos en su representación. (!eso ha sucedido
siempre, en forma espontanea, aunque por lo general insconsciente!).en este
aspecto, como en tantos otros, la introducción de la dialétictica en el teatro
ha provocado una evidente conmoción, aun en quienes admiten la dialéctica
en otros terrenos. (BRECHT, 1979, p.329)
A batalha campal, suspensa, do fim primeiro ato, de camponeses em luta por melhores
condições de trabalho, foi aprisionada pela imagem (estátuas clássicas) do mundo da
mercadoria. Claro está que a maior emissora do país, a TV Todo, é a TV Globo; alusão feita
no segundo ato, Tempo Morto. Na trama do filme realizado pelo Latão, a ditadura militar e a
formação de um conglomerado midiático não deixam dúvidas quanto aos elementos que
promoveram o sucesso golpista: dinheiro estrangeiro para fortalecimento do bloco capitalista
na América do Sul e conservadorismo nacional diante da ameaça vermelha. Não há lugar para
todos em uma sociedade capitalista e através da peça arma-se uma consciência histórica sobre
as anomalias sociais do país como elemento indispensável à expansão capitalista. A memória
recuperada no primeiro ato é o esquecimento necessário no quarto. O colapso da
modernização, como bem salientou Maria Elisa Cevasco (2012) devastador no campo da
cultura, institui uma “linha de produção” que engole qualquer debate criativo, resquícios de
utopia, possibilidades de mudança.
No primeiro ato a personagem Élia fala de seu processo de alfabetização - eu digo que
o que eu aprendi já mudou o meu corpo, que os meus olhos já fazem falar as letras, que o
destino do meu esforço me pertence enquanto seguirmos juntos, como uma forma de
resistência à ameaça dos donos da terra. Maria Elisa confronta essa perspectiva aos dados de
pesquisa de Walquíria Leão Rego sobre camponesas nordestinas que receberam o bolsa-
família:
A cena solicita uma identificação por parte do público com a Assistente – lembro que
anotei que os espectadores estão nos bastidores da emissora, talvez esperando para entrar em
cena. Nas palavras de Schwarz (2008) em sua compreensão sobre as diferenças entre o
princípio organizador de síntese de Paulo Freire e a alfabetização de camponeses ou ainda o
impulso revolucionário que produziu alguns dos melhores filmes brasileiros, pouco antes e
pouco depois do golpe, a oposição entre os termos não é insolúvel, assim como o princípio
que parece organizar o Latão que busca sua força e modernidade na etapa presente da vida
nacional, compondo uma cena humanizada, através da apresentação em contraste de imagens
que alfabetizam, ora pelo avesso, negativizando a representação mistificada que através de
expedientes cênicos paralisantes em busca de uma sensibilidade diferenciada a aprisionam no
absurdo da representação. Nos termos: Perene chega para gravar. Ele reconhece que não tinha
lido o roteiro e discorda quanto ao final de seu personagem, o suicídio. Para ele, não se deve
humanizar um torturador. A Assistente narra: nessa crise haverá reviravolta. O
desenvolvimento dramático resulta da ação imediatamente anterior, e não da ideia do todo.
O Diretor mantém o diálogo com o Ator dizendo que a minissérie é um caso de amor, fala de
pessoas e não de ideias. A esquerda e a direita são duas pontas de uma mesma ferradura,
portanto o torturador é mostrado da mesma forma que os guerrilheiros. O Ator pergunta por
Dora Helena, sua companheira de cena. Ela saiu para tomar um remédio. A Figurante avisa
para a Assistente que irá embora assim que terminar seu horário/diária. O Ator então
improvisa, ensaia, sua fala com a Assistente. Ela fica extremamente irritada e lembra que
todos estão esperando por ele decidir fazer a cena. A Assistente nega a sugestão do Ator
quanto a mudar o final da minissérie, assim como o Diretor, o Câmera e o Contra-regra.
Ficam em cena a Assistente, o Câmera e o Contra-regra. O Câmera narra para o publico:
artistas acham que é preciso ter amor pelas coisas. Por acaso uma fábrica precisa do amor
dos operários? Retorna o Ator. A Assistente está no centro do palco. Segue o seguinte
diálogo:
ATOR – Anita, eu conheci sua mãe. Era a melhor atriz que eu já vi no palco.
152
ATOR – Júlia era uma aparição, se ela tivesse continuado no teatro não teria
sido presa. Arte é uma coisa, política é sempre arriscado.
ATOR – Era um tempo em que tudo podia acontecer, um raio podia cair de
um céu azul.
MÃE - Filha, por que você está sempre à espera? Aqui, é preciso ser mais
Brecht do que Stanislavski. Não podemos só sentir, temos que tentar
compreender. Você tem que exagerar a dor que sofre. Em parte será verdade,
em parte fingimento. Exagera, viu? E não confesse nada. Tem gente que
confessa um pouquinho pensando que vão parar com a tortura, mas o
pouquinho só piora. O melhor é não confessar nada. Você me entende? Já
tomou café?
O foco é retirado de Júlia- Mãe. A luz cai, mostra-se novamente um vídeo da Moça da
cozinha cortando carne. Todos os atores estão em cena. Começam a fazer gestos
desencontrados. Uma das atrizes, no microfone, diz sobre a utilização da arte para a criação
de animais: Veja bem, vivemos numa época insensível. Todos nós precisamos de
“experiências” intensas. Se o porquinho está relaxado na hora da morte, distraído com a
projeção de um bom filme – o que importa são as imagens em movimento – sua carne fica
mais molinha. O problema da sociedade ocidental é que não estamos preparados para a
morte.
O fragmento é didático: a interrupção de Anita fala de como se encadeia um drama
clássico: as ações limitam o reconhecimento do espectador no mundo conformado. Uma coisa
leva a outra. Além disso, o Diretor anuncia como as personagens são compreendidas:
interessa seu comportamento individual e não as situações e relações que a eles
correspondem. Por outro lado, encena-se uma representação “pós-moderna”: uma paisagem
153
lírica dada por comportamentos desconjuntados, aleatórios, indicando muito mais o estado
interior das personagens. A forma dramática não sustenta a realidade atual e apela-se para o
expressionismo subjetivista. Ambos, independentes dos estilos fixados, dizem de formas
representacionais que ora apelam para a sentimentalidade ou por ela expressam a inadequação
dos sujeitos. Entre elas, o diálogo de Perene e a Assistente e a aparição da Mãe. Pelo
programa da peça, sabe-se que sua narração inspira-se numa passagem do livro de Augusto
Boal sobre sua prisão e tortura, Milagre no Brasil. Boal relata, possivelmente, o encontro com
sua assistente, Heleny Guariba, quando os dois foram presos em 1971. Segundo ele, a amiga
queria amenizar seu sofrimento e lhe disse aquelas palavras antes de desaparecer. A narração
aprofunda a compreensão sobre a ditatura militar brasileira, toda a barbárie cometida em
nome de uma suposta ordem e ilumina ainda mais o processo alienador atual, na qual a
desumanização produz apenas vultos, como Anita, que ao contrário de se ver como
conformada, se vê sozinha. Àquela que mais rigorosamente explicitou os mecanismos de
produção da sociedade atual – Anita é esquecimento em ato e é Odete sozinha, Júlia
despolitizada, Miranda conformada – é a personagem restrita à operação da máquina,
articuladora dos demais personagens (e também o próprio espectador, que alimenta a
engrenagem).
O diálogo entre Perene e Anita é dramático: divergem pois ele fala do passado, ela do
presente e convergem no presente da ação (tempo e lugar); a cena é interrompida por uma
memória involuntária – a narração da Mãe : o passado, então, se introduz por uma esfera além
do diálogo intersubjetivo, como uma interrupção da própria possibilidade de diálogo entre o
passado e presente. Não só Anita assiste o passado, mas o espectador, no tempo presente,
como uma reminiscência incorporada à forma épica. Reminiscência ordenada pelos atos
anteriores, pelo projeto interrompido que não pode ser recuperado pelo drama, mas retorna
como ação dos atores em convulsão. Duas elaborações, portanto: a primeira, a aparição de
Júlia, fruto da repressão de Anita – do tempo presente, preenche a reposição infinita de
posições antagônicas, impondo sua presença reveladoramente constrangedora; memória viva
daqueles que sofreram diretamente a repressão militar. A segunda, a cena de ação convulsiva,
é ato, repetição nauseante em que se mostra a tentativa desesperada dos artistas por uma
“experiência intensa” e reatualiza verdadeiramente a função dramática em tempos pós-
dramáticos, produto do processo interrompido dentro do esquema proposto por Ópera dos
vivos como percepção da desobrigação e morte do compromisso coletivo.
Citado por Jeanne Marie Gagnebin (2010) em O preço de uma reconciliação
extorquida, Adorno, quando retorna de seu exílio imposto pelo nazismo, escreve uma
154
conferência intitulada O que significa: elaboração do passado. Para ele, segundo Jeanne
Marie, as tentativas forçadas de esquecimento do passado alemão estimulou um otimismo sob
o manto do sucesso econômico (semelhanças com o presente brasileiro?). Adorno não
advogará, porém, pela “comemoração incessante nem uma heroicização das vítimas, mas uma
atividade comum de esclarecimento, isto é, em termos mais freudianos, um trabalho de
elaboração e de luto contra a repetição e o ressentimento” (GAGNEBIN, 2010, p.183).
Perene decide realizar a cena do suicídio. A última cena da peça é a imagem projetada
no telão de Perene, Dora Helena e o Moço da Cozinha no lugar da personagem empregada,
pois a Figurante foi embora assim que sua diária terminou. Lélia dos Santos, a cozinheira,
que interpretaria a empregada se recusou a entrar em cena. Retomo o diálogo:
DORA HELENA – Lélia dos Santos. Você vai gostar disso aqui. Todo dia
uma novidade. (o Contra-Regra oferece um café à Atriz) Tira esse café da
minha frente. (para o Ator) No neo-realismo italiano eles adoravam misturar
gente do povo com atores de verdade, pena que eles já não existem.
LÉLIA – Tenho trinta quilos de carne para temperar. Eu vou embora (Sai
correndo).
mundo já desmoronou, pelo menos para àqueles que não se veem desobrigados de alguma
tarefa de alteração das coisas, que Roberto Schwarz nomeou como dessolidarização social.
Como ato independente, visto desarticulado, a constatação melancólica, feita em parte
por uma consciência autoirônica, fica procurando formas de representar tal situação, próxima
a uma observação naturalista, na qual “o estabelecimento da causalidade social tem início
com descrições de situações em que todas as ações humanas são puras reações” – a memória
involuntária e as ações desconjuntadas não passam de reações e como correlato o drama
social da minissérie −; “o meio social tem o caráter de um fetiche, é destino” (BRECHT,
2002, p.150). Há que se levar em conta, portanto, que Morrer de pé se mantém no limite da
autoidentificação com as figuras automatizadas, pois ao mesmo tempo que demonstra a
alienação artística não deixa de identificar os mecanismos por onde ela opera e o elemento
ativo se introduz a força. Parece que a fresta, idealmente composta e exigente de uma
condição extra-teatral, está na sobreposição do projeto artístico e da matéria social, na última
cena da peça:
Vê-se os três em plano aberto. Ouve-se o tiro. Sai projeção da cena. Entram
imagens de um ônibus pegando fogo e do camponês Marivaldo.
49
Blog de Sérgio de Carvalho. www.sergiodecarvalho.com.br. Acesso em 22 de abril de 2013.
156
Interessante notar que Sergio de Carvalho reitere que a peça é sobre o futuro. A
estética praticável está na consciência da impraticabilidade do imediatismo político, sem
obliterar a capacidade de autodeterminação do homem (lembremos Anita: quando perguntam
estamos por quem sempre penso, estamos por mim).
A idealização contida no epílogo afirma que a verdade, para o Latão, se opera no atrito
e trânsito da composição simbólica entre palco e plateia. A aposta dialética está na
experiência coletiva − como afirma Fredric Jameson em O método Brecht (1999), no trabalho
do dramaturgo alemão “intelectual” gradualmente vai se transformar em “coletivo” − e no
movimento da análise crítica das formas utilizadas, historicamente e atualmente, para a
compreensão do mundo e por isso, portanto, Ópera dos vivos vai buscar nas representações do
passado – no teatro, no cinema e na canção – formas para compreender o presente e projetar o
futuro. Muito se deve à perspectiva brechtiana de buscar uma forma que não “enforme” uma
experiência, mas que a dialetize, no desmonte da lógica de qualquer representação. A
notoriedade da proposta do Latão, apropriação brechtiana, é também de deixar exposta a sua
própria lógica. A fricção entre os procedimentos estéticos estimulam um olhar distanciador,
não mais circunscrito à constatação de que a injustiça é social, e não natural (esclarecimento
dualista da mola econômica), operação por demais desgastada como bem observou Schwarz
(1999), mas de que as formas deixam ver, também, historicização (atividade, trabalho vivo) e
que são, elas mesmas, produção ideológica.
Suponho que na articulação dos atos e principalmente na encenação do quarto ato, há a
vibração das considerações de Brecht (1970a, p.187) sobre dialética e distanciamento
que a ideia da peça seja inteiramente não dogmática, porque a peça não diz nada de como
articular os quatro, isso cabe inteiramente ao espectador, então é uma concepção de
conjunto que sugere a formação de uma consciência histórica sem dar nenhuma dica sobre
como formar, então realmente é uma coisa muito não dogmática, e muito acertada em
relação ao estado geral da consciência contemporânea. Então, você dá parte de um processo
dos últimos cinquenta anos e o espectador é que se arranje pra pegar esse significado. Então,
mal ou bem, a coisa mais exigente da peça é discutir um pouco essa evolução.50
Hipoteticamente, a articulação pode se dar pelo assunto – o golpe de 1964 e a derrota
do projeto emancipador da esquerda – ; pelo drama – afinal a peça começa com um grupo de
teatro ensaiando e aos poucos ele desaparece da narrativa, assim como Júlia; pelas
manifestações artísticas – diferenças entre teatro, cinema, show; e os pontos de vista que as
modelam. Ópera dos vivos é uma obra irregular e desarticuladora, o que lhe garante seus
maiores efeitos. Num arco geral, o espectador mais “capacitado”, ou melhor dizendo,
frequentador de teatro, fica obliterado pelo discurso ideológico do segundo e principalmente
do terceiro ato que através da paródia dá mostras de como se constitui um pensamento
hegemônico, não afeito às materialidades, tampouco à relações extra-teatrais, que quando são
feitas, não passam de reiterar conceitos que às formas hegemônicas teatrais correspondem, o
que deixa mais evidente o antagonismo de classe. As críticas publicadas em jornais foram
elogiosas, e imprecisas, restritas a considerações sobre a peça, sem articulações com o sistema
teatral ou do país. A peça gerou encontros informais, como o realizado por um grupo de
intelectuais e professores de São Paulo do qual extrai a observação de Roberto Schwarz acima
apresentada e entre eles, um dos participantes perguntou: o que a peça prova? Espremendo a
laranja, qual seria o propósito de Ópera dos vivos?
Certamente a questão não deveria ser dirigida apenas a uma peça do Latão. Como um
grupo de intensa atividade dramaturgicamente pedagógica, Ópera dos vivos deveria ser
articulada, em relação aos seus rendimentos, a trajetória do grupo e a como, de certa forma,
ela revisa e põe acentos no percurso de estudos da Companhia. Iniciei o presente estudo com a
pretensão em desenvolver uma análise pormenorizada das peças do grupo em seus 13 anos de
atividades (quando Ópera dos vivos estreia) que deveria buscar estabelecer um, entre outros
possíveis, propósito pedagógico no “desmonte” moderno das ideologias representacionais
que, com nuances várias, se apresenta em todas as suas peças. O desejo inicial, infelizmente,
não se concretizou – o que pode ser percebido pelas resenhas apresentadas anteriormente
50
Agradeço o prof. Roberto Schwarz por autorizar a gravação da conversa, bem como a utilização de trechos no
presente trabalho. A transcrição e edição foram realizadas pela autora.
159
sobre as outras peças do grupo. Mas como nota diante da provocação da pergunta sobre a peça
e tendo, ainda que reduzida, a pretensão de análise exaustiva, sou tentada a respondê-la tendo
em vista uma aproximação àquela que nomeou a Companhia, Ensaio sobre o latão.
Ensaio sobre o latão estreou no Teatro de Arena Eugênio Kusnet em agosto de 1997 51
e fez parte do projeto Pesquisa em teatro dialético. Publicado em Introdução ao teatro
dialético: experimentos da Companhia do Latão, o texto é apresentado, junto a O grande
circo da ideologia, na seção Peças teorizantes. Utilizou-se como material de pesquisa o texto
teórico A compra do latão, de Bertolt Brecht, escrito entre os anos 1939 e 1955, além das
observações dos integrantes do grupo nas ruas do centro de São Paulo. Em 12 de fevereiro de
1939, Brecht faz a seguinte anotação em seu diário
De caráter teórico, os textos reunidos também poderiam ser encenados, assim como se
propôs em seus diálogos. O Filósofo, que inicialmente vai à procura dos atores interessado
nos comportamentos humanos que por eles são representados, sugere exercícios cênicos para
demonstrar sua “teoria”. Àquilo que começa como sugestão teórica, passa a ser esteticamente
experimentação52. Os textos de Brecht, segundo os tradutores da versão portuguesa, Urs
Zuber e Peggy Berndt
51
Direção de Sérgio de Carvalho e Márcio Marciano, com música e preparação musical de Walter Garcia,
Lincoln Antonio e Fernando Rocha, iluminação de Wagner Pinto e Paulo Heise, cenografia e figurinos criados
coletivamente, com os seguintes atores: Edgar Castro, Gustavo Bayer, Maria Tendlau, Ney Piacentini, Otávio
Martins, Vicente Latorre. Particpações eventuais de Deborah Lobo, Francisco Bruno e Georgette Fadel, e Heitor
Goldflus na temporada de 2000 (CARVALHO, Sérgio (org). Introdução ao teatro dialético, São Paulo:
Expressão Popular; Companhia do Latão, 2009, p 265).
52
O Berliner Ensemble encenou A Compra do latão em 1963, como Noite brechtiana n. 3.
160
O filósofo deseja utilizar sem limitações o teatro para os seus fins. Este deve
fornecer imagens fiéis dos processos entre os homens, e permitir uma
tomada de posição dos espectadores.
O actor deseja expressar-se. Quer ser admirado. É para que lhe servem a
fábula e os caracteres.
A actriz deseja um teatro com uma função social de caráter educativo. Ela é
politizada.
O dramaturgista põe-se à disposição do filósofo e propõe-se pôr as suas
capacidades e conhecimentos à disposição para a conversão do teatro no
taetro do filósofo. Espera uma revivificação do teatro.
O maquinista do teatro representa o público novo. É o operário e está
descontente com o mundo. (p.12)
Durante as quatro noites o Filósofo irá contrapor o seu ponto de vista sobre arte às
expectativas e pontos de vista dos demais personagens, esclarecendo seus propósitos e
opiniões sobre o naturalismo, realismo, marxismo, técnicas de representação. Temas e
assuntos vários que se dão por meio de diálogos e também demonstrações. Segundo Brecht, o
Pequeno organón para o teatro é um breve resumo da A compra do latão
E assim se encadeia a peça: ensaiando Hamlet, as cenas são comentadas e ideias são
explicadas. Algumas narrações dão conta da passagem do tempo e, como consequência, dos
ensaios, que invariavelmente terminam com discussões entre os personagens. É possível uma
leitura com a seguinte estrutura: na primeira noite de ensaios o público espectador da peça é
convidado a ser também ator. Quando entra no teatro o espectador é confrontado com a cena –
em ensaio – cena II, do ato I de Hamlet. Muda-se a luz para a narração do Ator-Polônio
“naquela primeira noite de ensaio, os atores da companhia realizaram uma série de
experimentos com personagens clássicas. O Diretor, não satisfeito, insistia na importância dos
acontecimentos, o que gerou uma reação por parte de alguns atores” (CARVALHO, 2009a,
p.272) O Diretor, após o debate com o Dramaturgista e o Ator-Polônio, dá a explicação do
experimento (tanto dos ensaios, quanto do Ensaio).
Esse teatro de todos os dias, que tem na rua o seu palco! [Ouve-se a banda
de música oriental, com a qual ele dialoga.] O homem na calçada, vejam:
está mostrando como o acidente ocorreu. Ele submete o motorista à sentença
da multidão, pela maneira como vai ao volante. E agora faz o papel do
atropelado, pelo visto um ancião. De um e de outro ele só diz o
indispensável. E dá a entender que ambos poderiam ter evitado o acidente. E
o acidente é compreendido embora incompreensível, pois tanto um como
outro bem poderia ter agido de outra forma. Em seu testemunho ocular ele
não atribui a sorte dos mortais a estrela alguma, mas às próprias falhas.
(CARVALHO, 2009a, p.281)
53
No texto, quando há a inserção de falas retiradas diretamente do clássico Hamlet, o personagem é assim
identificado. Quanto há alterações, o personagem é identificado como Ator-Hamlet, assim como os demais
personagens.
54
No ensaio, Brecht coloca a questão a partir de sua experiência no Berliner Ensemble e das transformações em
operação na Alemanha Oriental. Acho oportuno deixar registrada a passagem: Já há muitos anos que venho
mantendo esta opinião, e moro atualmente num país onde está se efetivando um esforço gigantesco para
modificar a sociedade. Podem condenar os meios e os processos – espero, aliás, que os conheçam de fato, e não
por intermédio de jornais -, podem rejeitar este ideal específico de um mundo novo – espero também que o
conheçam -, não hão, porém de pôr em dúvida que, no país onde vivo, se trabalha para a modificação do mundo,
para a modificação do convívio dos homens. E talvez concordem comigo em que o mundo de hoje precisa de
uma transformação (2005, p.21).
163
A narrativa é esclarecedora pois afirma que a forma de se contar uma história implica
o público em determinado julgamento; se a encenação mostra um motorista desatento é
possível à multidão atribuir-lhe uma sentença (nesse primeiro contato com o Brecht se
anuncia uma forma de trabalho que estará presente nos demais espetáculos da Companhia: a
encenação precisa demonstrar que está apresentando ao espectador um ponto de vista).
Embora demonstrada, ainda o Ator-Polônio questiona os propósitos do Diretor. A terceira
noite é anunciada pelo Dramaturgista: haverá um teste de elenco com os atores, feito pelo
Assistente de televisão, procurando tipos que representam o padrão nacional. Os testes que
procuram o physique du rôle para os personagens televisivos são feitos pelos atores utilizando
o material clássico, numa outra experimentação do curto-circuito de materiais e expectativas.
Após os testes, penso que a principal sugestão de Ensaio sobre o latão, insinuada já no início
do espetáculo, é explicitada. O Assistente de vídeo deixa a cena: a música do gamelan encerra
a sequencia de testes. O espaço é preparado para mais um debate.
DIRETOR - Eu não tenho a menor dúvida que é para eles que nós devemos
nos dirigir: aos descontentes.
ATOR – Em quê?
ambiguidade, de uma certa forma, será o assunto das peças da Companhia. É a modelação
mais madura por permitir observar as contradições do processo cultural, pois não incide num
julgamento individualizante e moralizador ao mesmo tempo que abre a percepção para a
historicização!
O Iluminador, no Ensaio, é uma personagem contraditória, que no topo da escada,
observando a cena do ensaio de Hamlet e marcando os momentos passo a passo, dando a eles
o tom desejado, sofrerá um “choquinho de 220 volts”. Como observou Marcelo Coelho na
crítica da peça publicada na Folha de São Paulo em 15 de setembro de 1999, o Iluminador é
se quer evidenciar com o paralelismo a melhor escolha para a composição do teatro dialético,
mas são exercícios diferentes que produzem, obviamente, resultados que lhe correspondem.
Se tomo “apenas” o trabalho técnico do estranhamento, questão muito comum em cursos e
oficinas teatrais para atores e também recorrente na crítica e análise acadêmica, o rendimento
estará na esfera da realização cênica, com alguns comentários sobre o ineditismo ou não da
proposta ou o virtuosismo dos atores; se tomo o trabalho dialético como um exercício de
produção de sentido, ou sensibilidade, ou ainda de produção simbólica, muito provavelmente
o rendimento será de ordem social, ou nas palavras de Brecht, com sexto sentido para a
história. Ambos são frequentemente usados pela Companhia e por outros coletivos que se
aproximam de Brecht e é curioso que no primeiro experimento do Latão estejam apresentados
em sequência. Cabe aqui uma última nota sobre a e A compra do latão, antes de comentar a
aproximação de Ensaio sobre o latão e a Ópera dos vivos,
Na quarta noite, entre os diálogos do Filósofo, Actor e Dramaturgista sobre a
pertinência de representação de velhas obras-primas, o Filósofo apresenta a seguinte imagem
FILÓSOFO – Mas também é uma realidade que se está num teatro e não em
frente de um buraco de uma fechadura! Como pode ser realista escamotear
este facto? Não, queremos deitar abaixo a quarta parede. O acordo fica então
sem efeito. No futuro, não tenham problemas em mostrar que tudo é
arranjado para nos facilitar ao máximo a compreensão.
(BRECTH, 1999, p.110)
Cada vez mais, a bem dizer por desleixo, tomba maior quantidade de pó
sobre as grandes obras da pintura antiga, e, quando se fazem reproduções
delas, reproduzem-se também, mais ou menos diligentemente, as manchas
de pó. Perde-se, assim, sobretudo, a frescura original da obra clássica, o
caráter que possuía outrora, surpreendente, novo, criador, e que era uma das
suas características essenciais. A forma de representação tradicional
coaduna-se ao comodismo dos encenadores, dos atores e do público,
simultaneamente. Substitui-se a profunda emotividade das grandes obras por
um mero temperamento dramático, e o processo de cultura a que se submete
o público, é, em contraste com o espírito combativo dos clássicos, tíbio,
acomodatício e com fraco poder de intervenção. (BRECHT, 2005, p.122)
Penso que a mesma postura solicitada por Brecht em relação aos clássicos é assumida
pelo Latão em relação à Brecht, o que faz com que o acione exatamente para compor uma
cena não conformada, que apresenta problemas e não soluções.
Aproximei Ensaio sobre o latão à Ópera dos vivos por alguns motivos óbvios: alguns
materiais são revisitados, com outros enquadramentos, como o questionamento de Júlia em
conversa com Paulo Funis sobre os motivos que levam os atores a encenar personagens
clássicos (segundo ato), ainda quando um dos panfletos jogados a plateia no show narrativo
foi retirado de A compra do latão (há fases em que os sonhos/não se convertem em
planos/nem as intuições em conhecimentos/nem a nostalgia nos incita/a nos
movimentarmos./Esses são maus tempos/para a arte), ou ainda quando, no diálogo da quarta
noite, se diz sobre as condições do trabalho dos artistas que se não percebem como
trabalhadores também se alinham ao que resta de ilusório: o amor ao trabalho. Na Compra do
latão o Maquinista do teatro é o único a ter certeza que essa é uma exigência ruim. Em
Ópera dos vivos ela é dada, com algumas alterações, por Dora Helena quando esta conversa
com o Moço da cozinha: NARRAÇAO – Na cozinha. DORA HELENA – (sobe no cubo, do
lado oposto à imagem, com uma cenoura na mão) Isso é para o Ivan? Ivan? É um cavalo
marrom, com uma estrela branca na testa. MOÇO DA COZINHA – (do lado oposto à Atriz,
junto com a Moça da Cozinha com uma faca) Mais um copinho? DORA HELENA– Não, eu
estou bem. (tapa os olhos com medo) Moça, você não tem medo de cortar o dedinho na faca?
É, é o seu trabalho... E você é feliz com ele? Quem é, não é? Tanta gente trabalhando. A gente
esquece que para as coisas funcionarem precisa de tanta gente. Mas seria bom que todos
amassem o que fazem. Quem ama, não é? MOÇO DA COZINHA – (para a Moça) Ela é
esquisita, mas é viva).
Se no Ensaio sobre o latão, a encenação deixava compreensível uma postura
solicitada ao espectador pela sua “identificação” como atores, mas ainda distanciada pois os
mecanismos eram, passo a passo, exemplificados e explicados, desmontando-os de um ponto
169
de vista formal, nesses anos de estudo e experimentos cênicos, que Ópera dos vivos é uma
“avaliação”, o espectador é posto pra dentro da encenação, como se não bastasse mais a
apresentação dos pontos de vista formais; o espectador precisa tomar parte do processo da
cultura e perceber os pontos em que ela também é produção ideológica que se faz com a sua
participação. Em Ópera, narra-se a história do país e ao fazê-lo, da forma como elegeu o
Latão, o espectador necessariamente precisa fazer parte como trabalhador (lembro que na
Compra do latão o Maquinista é o público descontente, o operário; no Ensaio sobre o latão,
o Iluminador é o ator e o Latão não o compara com o público); de um certo “didatismo”
necessário no primeiro Ensaio, o espectador de Ópera é, antecipadamente, àquele que
“opera”, materializa também a cena e tem todas as condições de compreender sua posição.
Tal mudança, obviamente, minimiza a dúvida quanto à função “esclarecedora” que cabe,
também obviamente em parte, ao trabalho teatral. Como se na fala do Moço da cozinha
também estivesse uma verdade sobre o Latão: ela é esquisita, mas é viva. Retomo, então, o
comentário de Roberto Schwarz: As quatro partes são independentes, como vocês mesmo
dizem no programa, cada uma é muito elaborada (...) Do ponto de vista do espectador, o
problema maior é como articular os quatro, e isso faz que a ideia da peça seja inteiramente
não dogmática (...) Então é uma concepção de conjunto que sugere a formação de uma
consciência histórica sem dar nenhuma dica sobre como formar (...) e muito acertada em
relação ao estado geral da consciência contemporânea. Então, você dá parte de um processo
dos últimos cinquenta anos e o espectador é que se arranje pra pegar esse significado. Então,
mal ou bem, a coisa mais exigente da peça é discutir um pouco essa evolução. E aí eu acho
que tem um pouquinho o problema, porque como vocês explicam no programa também, as
peças não são sobre a realidade, as peças são sobre a linguagem. É arte sobre arte, não é
arte sobre processo histórico, é arte sobre arte e através do arte sobre arte há uma sugestão
do que seria realmente o processo histórico. (...) E isso faz também com que o espetáculo seja
muito intelectualizado, porque ele requer para uma boa apreciação alguma reflexão sobre
todas essas matérias que foram tratadas por outros artistas. De certo modo, a melhor
maneira de ver a peça requer que se saiba o que foi o CPC, que se saiba o que foi Terra em
Transe, quer dizer, a matéria não se apresenta de maneira imediata; a matéria se apresenta
através do tratamento que outros artistas deram dela. Como é muito acertado a peça não
falar do arco geral dos últimos cinquenta anos e deixar para o espectador, onde ela trabalha
mesmo sobre a linguagem, se coloca um pouco a questão: e o que eu aprendo?
Busquei na análise de Ópera dos vivos traçar os rendimentos da “dialética de
superação”, da “paródia glauberiana”, da “caricatura tropicalista” e do “fragmento televisivo”
170
55
Roberto Schwarz, em passagem anterior, aproxima a composição narrativa do livro de Robert Kurz ao 18
brumário de Luís Bonaparte, de Karl Marx.
172
Inserindo o estudo, em cena, sobre pesquisa estética e política, a peça registra formas
operativas dentro do campo crítico de projeto anticapitalista, percorrendo a encruzilhada de
175
EPÍLOGO
(2012, p. 63). Mas também como é muito fácil verificar, não foi possível resgatar, estudar, os
projetos estéticos de outros grupos ou artistas, questão que este estudo se ressente. Nessa nota
final, não pretendo recuperar o que foi discutido nas seções anteriores de forma
pormenorizada. Espero que pelo andamento por mim proposto, tenha esclarecido os termos
pelos quais analisei as peças do Latão; em específico Ópera dos vivos, com o projeto
ideológico de crítica anticapitalista se fazendo forma pela condução da narrativa durante os
quatro atos, bem como, numa outra mediação, pelo assunto do primeiro e do último, e em
uma terceira mediação, ainda, das abordagens “alegóricas” com resultados mais curtos no
filme e evidentemente mais expressivos no show narrativo, como formas de estudo e ensaio
quanto à prática teatral (e da obra de arte na esfera da mercantilização) – por essa via, o
expediente alegórico é posto em tensão com o projeto anticapitalista e registra, em oposição,
seus limites.
Recuperando o comentário feito no início desta tese: a) o grupo trabalha através da
consciência do teatro como resultante de experiências coletivizadoras – experiências
experimentadas em sala de ensaio e principalmente, na relação com o público que é
convidado a participar ativamente da construção simbólica da fábula; b) consciência da
necessidade de participação do intelectual na vida do seu tempo – participação feita por meio
do próprio fazer artístico, com peças apresentadas como ensaios, e ensaios críticos,
intervenções públicas, publicações de dramaturgia e crítica como formas de intervenção na
realidade brasileira; c) consciência da função social da arte – função compreendida como o
tensionamento entre o aparelho teatral e a expectativa por ele gerada, como espaço de
produção simbólica em desacordo com aquilo que lhe corresponde e d) consciência da obra de
arte como fato estético – exigente, portanto, do mais alto nível da consciência da linguagem.
A última seção deste trabalho se volta para as impressões da última peça do grupo, O
patrão cordial57, que estreou em julho de 2013, após várias apresentações e estudos cênicos
conduzidos desde agosto de 2012, no Rio de Janeiro no Centro Cultural Banco do Brasil, que
parece novamente tensionar a relação palco e plateia nos termos “suspensos” e abertos por
Ópera dos vivos.
Como “trabalho em processo”, baseada no texto O Sr. Puntila e seu Criado Matti, de
Bertolt Brecht, escrito em 1940, a peça é uma montagem que expõe o procedimento de
trabalho do Latão sobre teatro dialético, tanto na leitura do assunto ligado à luta de classes,
quanto na crítica à ideologia da forma dramática. O roteiro de O Patrão cordial, ainda
57
Agradeço a Companhia do Latão por fornecer o texto, inédito, de O patrão cordial. Utilizo a versão datada de
julho de 2013.
178
segundo o programa da peça, foi escrito a partir da improvisação dos atores e se baseia,
também, no estudo do livro Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda. A estrutura
dramatúrgica de O Sr. Puntila e seu Criado Matti é mantida e busca na identificação da
propriedade – sugerida pela inversão do O Homem cordial de Sérgio Buarque de Holanda,
mais próxima, portanto, do próprio Brecht – o motor da cordialidade, que dá o tom às relações
de trabalho na realidade brasileira. Segundo Anatol Rosenfeld, tratando da peça de Brecht
Segundo Anatol Rosenfeld, Brecht constrói uma peça episódica, “sem unidade de
ação, continuidade de intriga a desenvolver-se até o desenlace final” (ROSENFELD, 2008,
p.167). É saboroso o modo como apresenta Puntila, de modo hilariante e irônico, “com uma
ordem puntiliana que consagra a desordem, já que o seu comportamento humano, em vez de
fazer parte da normalidade das instituições, surge apenas como capricho pessoal, como
adorno que enfeita a dura realidade” (ROSENFELD, 2008, p.172).
A relação com seu motorista, “Matti, criado cético, solidário com os seus colegas, que
tem a sabedoria e um pouco a esperteza dos oprimidos” (ROSENFELD, 2008, p.173), é de
desconfiança, embora embriagado tenda a tratá-lo, como demais empregados, de forma
“humanizada”.
(Vidinha, no Patrão) é apresentada, pela encenação, com contornos dramáticos, assim como
Cornélio. Ambos estão “em constante contradição consigo mesmo, produzindo na própria
pessoa o distanciamento”, como diria Anatol Rosenfeld sobre Puntilla, exigindo dos atores
capacidade crítica daquele que se deixa mostrar como intérprete.
As situações de personagens de cunho dramático estão em tensão com a matéria social
e com isso quero dizer que está em cena o próprio reconhecimento de que a forma dramática é
devedora de uma compreensão sobre a autonomia do sujeito, que entretanto, pela peça, é
sempre posta em questão uma vez que esta ideologia não corresponde às situações concretas
da vida. Por isso a personagem de Vidinha para escapar à sua função como proprietária
romantiza e idealiza o amor, em registro sincero, e mesmo Cornélio utiliza do álcool como
forma duvidável de se desvincular de sua função de classe. Ambos são determinados por
condições reais que não escapam obviamente em uma sociedade dividida em classes, da
divisão do trabalho.
O estrago do capitalismo, posto materialmente em cena, diz sobre as formas de
representação da vida privada, tanto de trabalhadores quanto de patrões e pelo mesmo
movimento alça a explicação sociológica sobre a cordialidade em termos concretos. Mas é
claro que a peça não trata apenas da consciência da forma representacional. O problema deste
ângulo, naturalmente, é refuncionalizar o aparelho teatral burguês, passando pelo escrutínio
da própria expectativa deste aparelho e do seu espectador.
A Vivi, ou Vidinha, de O patrão cordial sugere a relação que pode se estabelecer com
o espectador caso haja alguma identificação deste com a personagem. No início da peça, há a
seguinte narração: No Brasil não foi formado o individuo moderno. Mas só quando existe
diálogo entre indivíduos é que a desigualdade aparece como resultado da dominação de
classe.
É preciso determinar, junto ao rendimento da peça, um sentido para a narração inicial.
Mesmo quando Cornélio, a exemplo de Puntila, utiliza a embriaguez como forma de
“escapar” de sua função como proprietário, operando a conhecida “cordialidade”; a violência
da estrutura capitalista está à mostra nas situações dos personagens. Assim como observou
Anatol Rosenfeld sobre a peça de Brecht, “o problema levantado pela obra não é o “bom
patrão” ou o “mau patrão”, mas o patrão, simplesmente” (p.168).
As relações entre patrões e empregados ganham completa demonstração na encenação,
que também se desdobra com os demais personagens da peça: empregados na fazenda de
Cornélio e trabalhadores “livres” que o servem em outros ambientes, como no bar ou no
Mercado de Trabalhadores.
180
A situação fica um pouco mais complicada quando se observa as relações entre pai e
filha, que se dão também, no eixo da propriedade. O sentimentalismo de Vidinha, que não está
interessada em seu noivo Hélio, mas no motorista Vitor é uma das chaves para perceber o
estrago das relações de propriedade que se faz em âmbito individual. Na cena 5, intitulada: Na
fazenda, a necessidade do escândalo, muito do efeito hipnótico do teatro tradicional enreda o
espectador, embora a cena comece com uma narração de Vivi: Um aposentado grego de 77
anos se suicidou ontem nas proximidades da parlamento do país, dizendo ser esse o único fim
digno possível para ele, numa Grécia que atravessa severa crise. “Não quero deixar dívidas
para os meus filhos” gritou segundo testemunhas, antes de atirar na própria cabeça, debaixo
de uma árvore. Escreveu num bilhete: antes de começar a procurar comida no lixo.
A narração é entrecortada com a chegada de Luís Carlos, ex-trabalhador da fazenda,
demitido por ser comunista e que retorna à fazenda, no momento “cordial” de Cornélio. A
“imagem” do aposentado grego vai se desfazendo na medida em que a cena avança e tenta ser
“re-ativada” pela apresentação de outras relações da “fábula”: nela acompanhamos, via
narração, a surra que Descalcinho leva do patrão, que estando sóbrio desfaz os acordos
prévios com o novo trabalhador, ou ainda acusa Vitor de roubo, por este estar com sua carteira
quando foi o patrão que lhe deu quando ébrio. Vidinha observa a cena e pergunta a Vitor:
VIVI: Por que não se defendeu? Todo mundo sabe que quando papai bebe dá
a carteira pros outros, para não ter que mexer com dinheiro.
VIVI - É, uma coisa que nem todos têm, livre arbítrio, (Vinheta musical,
todos ficam de pé) sabe o que quer dizer: capacidade de decidir a própria
sorte. Eu sempre tive, papai me disse que, se eu quiser me caso com
qualquer um, até com você (Vinheta musical. Dançam pelo espaço e se
posicionam). Mas não podemos romper o noivado. Papai não é homem de
voltar atrás com a palavra. “o pico do Itatiaia pode...”Ah é isso.
VIVI – O que eu faço, você pode me ajudar. (Vivi se joga aos pés de Vitor)
VIVI – Tudo bem, eu topo. Mas não abusa de mim. (Ele mostra o baralho)
Pra que o baralho?
VIVI – Eles nunca vão acreditar que estamos fazendo essas porcarias a essa
hora do dia.
Acompanhamos nessa cena como a violência das relações de trabalho vão deixando o
terreno para a construção da necessidade do escândalo, que do ponto de vista dramatúrgico
coincide com a construção da ação dramática. Nenhum dos personagens que estão sendo
coagidos e violentados pelo patrão está em registro sentimentalmente “dramático”, ao passo
que quando começa a falar de sua infeliz vida, Vivi começa a conduzir a história e o
espectador é enredado na ficção esperando a solução do escândalo: se o noivo ficará ofendido
ou não, se desmanchará o noivado ou não. Mas o que será mais escandaloso para o
espectador: saber do suicídio de um trabalhador pois considerava indigno comer restos de
comida ou ver a construção de uma farsa sexual – ser falsamente abusada pelo Motorista –
para desfazer um casamento? O que é mais usual na construção teatral: a tentativa de
esclarecimento quanto às relações que determinam, de fato, a vida dos sujeitos e como estes
se movimentam diante desta ou daquela situação ou o enredamento nas situações dramáticas
cotidianas, sem contudo, articuladas às relações que as condicionam? É claro que o
182
encadeamento da cena de forma cômica faz com que, pelo sentimentalismo de Vidinha na
narração, a boa consciência, que pode ser até empregada pelo drama social, possa muito
pouco por colocar um problema que se estrutura do ponto de vista individual.
Em O patrão cordial, em Vidinha – e é muito interessante o modo como o realismo
psicológico fica a meio caminho, sendo o achado para a problematização da cordialidade − é
o recurso que permite a interpenetração do estudo épico e dramático, no qual a luta de classes
fica explícita pela ameaça de que o empregado compartilhe, ou “barbaramente invada” o
espaço do patrão, derrubando qualquer véu ideológico, como posto pela cordialidade e em
consequência formal, pela ótica dramático-burguesa. E o recurso dramatúrgico-cênico
presente em O Sr. Puntila e o seu criado Matti, mantido pelo Latão em O patrão cordial é
muito potente: quando de fato se avizinha a intimidade, o tapa dado por Vitor na bunda de
Vivi após uma cena na qual ela tenta convencê-lo de que é um “bom partido” para o motorista
novamente retoma o eixo da propriedade através do “gestus” (VIVI − não te autorizo a me
encostar um dedo). Segundo Fredric Jameson
58
Crítica da especialista Barbara Heliodora publicada no Segundo caderno do Jornal O Globo, em 07 de julho de
2013. Acesso em institutoaugustoboal.org em 09 de agosto de 2013.
184
Ontem à noite na casa de Bergner após conversa iniciada à tarde sobre teatro
épico. Ela é a mas bem-sucedida expoente do teatro reinante. Por isso
interessa conhecer sua reação. Ela gosta de Um homem é um homem e
detesta as notas que acompanham a peça. Desaprova Wedekind que
determinava que uma pai tivesse algo a dizer ao filho o dissesse à plateia.
Trato de explicar que Wedekind apenas precisava de um efeito-d e o criou de
modo um tanto primitivo. O principal obstáculo, obviamente, reside no fato
de que ela não vê a plateia como um conjunto de pessoas que desejam mudar
o mundo, escutando o informe sobre o mundo. Assim o tom básico desse
tipo de teatro lhe é estranho, o gesto de começar, o entusiasmo por um novo
milênio, a paixão pela pesquisa, a vontade de desencadear a criatividade de
todos. Ela vê a coisa toda como um novo “estilo”, uma questão de moda, um
capricho, e não reconhece que o que ela mesma faz é apenas um “estilo” etc
(...) (BRECHT, 2005, p.70).
59
Reflexão apresentada por alunos do curso noturno da Faculdade de Letras/UFRJ, na disciplina Fundamentos
da Cultura Literária Brasileira, após assistirem ao espetáculo. Agradeço Leonardo Ferreira, Thiago Machado e
Walter Neto por autorizarem a inclusão da reflexão neste trabalho.
185
Não é gratuita, portanto, a última observação da peça, logo após Descalcinho dar um
sugestivo chute em Vítor quando este decide ir embora da fazenda de Cornélio:
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192
ANEXOS
193
ANEXO 1
A primeira coisa importante pra nós e talvez seja um conceito brechtiano de fundo de
experiência do Latão é a ideia de que para um grupo como o nosso, o trabalho é mais
importante do que a obra. A gente trabalha com a ideia de trabalho em processo artístico em
que o trabalho não é só o espetáculo teatral, mas um conjunto de atividades. Essa ideia está na
origem do próprio grupo. A Companhia do Latão nasceu de um estudo do Brecht chamado A
compra do latão. De início era um grupo de artistas que se reuniu pra estudar esse texto e
tentar fazer uma encenação a partir do material teórico. O primeiro trabalho do Latão é uma
peça-ensaio. Ensaio no sentido teatral e teórico filosófico. Essa peça ensaística foi uma peça
que aconteceu entre a teoria e a prática e ela estabeleceu uma primeira referência pra gente: o
trabalho sobre contradições formais. Eu diria que esse foi o primeiro ponto importante de
contato com o Brecht: perceber que a forma é produtiva na medida em que ela expõe suas
contradições e ela instaura um trabalho no espectador. Essa questão da contradição formal se
dá em todos os níveis e pra nós tem um aspecto central. Qualquer aproximação útil e atual
sobre Brecht não tem que se aproximar de um estilo brechtiano. Interessa nele uma atitude do
trabalho, e essa atitude nasce do desenvolvimento das contradições, que incidem também nas
formas. O que passou a ser importante para nós: examinar as tendências formais dominantes
no nosso trabalho teatral, anterior ao nosso contato com Brecht. A gente, a título de
contradição, na sala de ensaio começou a praticar uma busca realista. O grupo estava
interessado em desmontar a tendência à abstração da mesma forma quando percebíamos que
em nós existia uma tendência ao drama; isso era combatido com experimentações com a
dimensão narrativa. Isso era importante, pois rompia com o drama social que por vezes
aparecia no nosso trabalho. Um segundo passo, além dessa primeira influência brechtiana, foi
perceber que a atualidade de Brecht exigia uma consciência do que significa o capitalismo na
versão brasileira. É como se fosse importante adotar o ângulo da periferia do capital e das
suas formas de representação dominantes para poder entender qual o sentido de uma crítica
anti-dramática na atualidade. O que eu quero dizer é o seguinte: no Brasil, um país de passado
escravista tão recente, em que os modelos da racionalidade burguesa ocorre em padrões
distintos dos modelos de racionalidade burguesa europeia a ponto de uma forma como o
drama não existir na tradição literária brasileira até os anos 60 do séc. XX – é como se o
194
drama fosse uma forma impossível desde sempre no Brasil na medida em que você não tem o
conceito de indivíduo formado do ponto de vista social – nesse sentido passava ser importante
compreender que feições a racionalidade burguesa assume na estruturação das formas
dominantes de representação. Os trabalhos seguintes da Companhia do Latão são trabalhos
que enfrentam em dois níveis a questão brasileira: no nível das formas de representação e no
nível da tentativa de representar o aburguesamento contraditório que ocorreu na nossa
história. E lidando com esse fato fundamental que a ideia de individuo é uma ausência
histórica até muito recentemente no imaginário coletivo. Um terceiro aspecto importante foi
pensar que era necessário, além de estudar as contradições formais e de tentar descolar o
campo para um olhar sobre o capitalismo brasileiro atual, passava a ser importante também
fazer a crítica da representação dentro do campo da cultura. O que eu quero dizer com isso é o
seguinte: era importante fazer peças em que fosse temático a crítica ao próprio conceito de
cultura e de arte. Parte dos trabalhos do Latão começou a tratar da questão da representação e
da ideologia da representação, como tema. A própria questão do artista, a função do artista
como abastecedor do aparelho da cultura nos termos que o Brecht já descreveu no passado, na
atualidade. Passou a ser importante a partir daí descobrir formas atuais de representar isso, e o
Latão iniciou uma pesquisa sobre a ideia de um narrador desconfiável. Nós começamos a
fazer peças que o espectador deveria desconfiar do espetáculo e da ideia de espetáculo. É
como se a ideologia fosse um problema a ser enfrentado pelo espectador.
195
ANEXO 2
Imagens retiradas da gravação em vídeo realizada por Luiz Gustavo Cruz do primeiro ato da
peça Ópera dos vivos, Sociedade mortuária – uma peça camponesa.
Palco vazio. Contra-regragem nas lateriais. Dois cavaletes segurando uma estrutura de madeira do
lado direito. Atores entram e se espalham pelo espaço. O ator que representa o Morto ocupa o centro
da cena. O Funcionário da prefeitura com um caixão ao fundo. Entra Aristeu.
ARISTEU – Bati na porta, disseram que o Capitão está doente, agarrado ao lençol, não pode.
NARRADORA – Podem lembrar os feitos, podem esquecer os feitos. Não podem ajudar um homem
morto.
***
A CENA DA PROFESSORA
Um banco a frente. Atriz entra com um vaso de flores. Senta-se de costas para o público, vira-se para
falar.
PROFESSORA – Eu sou uma professora, devo alfabetizar homens adultos. Mas antes de ensinar o
alfabeto, quero que entendam que são sujeitos, que estão no mundo e com o mundo, aprendendo com
ele e transformando-o com seu trabalho. Quando do barro fazem um vaso, transformam a natureza, e
quando têm a necessidade de enfeitá-lo com flores continuam a transformá-la, produzindo cultura. Por
isso, o vaso, as flores, as letras têm de ser de todos.
PROFESSORA (Para os alunos) - O mundo é seu também. O seu trabalho não é a pena que você paga
por ser homem, mas um modo de amar, de ajudar o mundo a ser melhor.
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ATRIZ QUE FAZ A GRÁVIDA – Senhora, para que meu trabalho seja amor e não pena, eu tenho que
melhorar as condições dele e dividir seus frutos com todos. Para isso nós precisamos aprender a
confrontar aqueles que se dizem donos do nosso trabalho. Isso a senhora pode ensinar?
PROFESSORA (Para o público) – Eu olhei para ela e assustada pensei: o que eu devo aprender?
Todos se juntam. Professora à frente segura a lousa com o desenho de dois homens fazendo um vaso
de barro virado para o público.
MARIVALDO – Eu sei fazer um vaso igual a esse aí, mesmo sem a giradeira, dá para fazer a forma na
mão com o barro cru, depois é só queimar.
PROFESSORA – Olha bem a imagem. Você acha que eles fazem o vaso para quê?
(...)
***
Cena do teatro de mamulengo. Os três atores que fazem os bonecos se preparam ao fundo e seguem
até o palco, representado por um pano segurado pelos dois atores que fazem as falas.
Canção Odete
Eu tenho pena de morrer
Deixar Odete
Eu tenho pena de Odete
Me deixar
Eu tenho pena
De morrer
Deixar o mundo
Quando eu morrer
O mundo pode se acabar.
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ATOR - Quem é?
OUTRO ATOR - Sou eu, o capitão! (Atriz que representa o boneco coloca e tira a cabeça de dentro do
pano.)
ATOR - Ih! O capitão já veio. O capitão vem chegando. Senhor capitão, fez boa viagem?
ATOR - Ah, capitão, a situação do trabalho está boa. Botei foi dois moradores para fora. Ah! Ah! Ah!
Foi pau! Mas deixaram foi tanta coisa para nós capitão! Deixaram mandioca, milho e outras
leguminosas, deixaram tudo plantado. Estamos no lucro, capitão.
OUTRO ATOR - Mas quem mandou fazer isso, seu truculento? (Coronel bate na cabeça do empregado
e lhe arranca o chapéu.) Agora eu sou o presidente de honra da Sociedade Mortuária.
DONA ÉLIA – É mungunzá que não acaba mais. Está precisando namorar, hein, Odete. Quem tem
veia, tem pulsação.
NARRADOR – Os atores procuram um realismo que seja ruptura. Discutem se é possível imitar um
mundo que desmorona. Experimentam com formas populares e descobrem novas relações de trabalho
em arte.
CEGO – (sentado num caixote à direita do palco, fala a Vitorino. Músicos acompanham)
Nunca estive nessa igreja
Nunca teve a porta aberta
Qual a reza benfazeja
Que pagou a vossa festa
VITORINO – (do alto da escada.) É a Sociedade Beneficente dos Mortos, Seu Cego. Inspirada nas
Ligas Camponesas. E será batizada hoje: (lê a faixa.) Associação dos Lavradores de Bom Jardim.
ABDIAS – É a nova cruz, doada pelo Capitão. Tem uma faixa no alto. A igreja vai ser reformada.
Tudo conquista nossa.
ABDIAS – Fomos em cinco ao Bom Jardim, engenho do capitão Quirino. Eu e Vitorino na frente. O
rascunho da carta está com a senhora, professora?
PROFESSORA (lendo) – Prezado Capitão: A Sociedade Mortuária de Bom Jardim pede vênia para
comunicar a Vossa Excelência que em sua Assembleia Geral, com o comparecimento de 123
associados..
PROFESSORA – Por unanimidade de votos foste eleito presidente de Honra da Sociedade Mortuária.
ABDIAS – (interrompe a leitura) Quando eu vi nós cinco no pé daquela varanda, o homem lendo a
nossa carta, nervoso com a nossa presença, alguma coisa estava mudando. Vamos representar!
Marivaldo e Vitorino, venha cá. Vocês fazem a gente. Eu faço o capitão. (Para o cego) Assiste dali,
Seu Cego.
Abdias representa o Capitão com a carta na mão. Dá dois passos, entra música.
***
200
PROCURA DO BARRO
O sol em Pernambuco
Leva dois sóis
Sol de dois canos de tiros repetidos
O primeiro dos dois
O fuzil de fogo
Incendeia a terra
Tiro de inimigo
Tiro de inimigo
Transição para translado da estrutura do cenário. Marivaldo, Dona Odete e Dona Élia fazem um
coro, virados para a plateia: Revela real a terra. Tiro de inimigo.
Dona Odete, a Professora e Marivaldo. Dona Élia observa a cena do fundo a esquerda.
MÃE – Aqui é o açude, professora. Podemos pegar mais barro. (Professora agacha, com a cabeça
entre as mãos. Dona Odete a observa.) O que a senhora tem professora?
MARIVALDO – Dá para passar o cansaço para uma pedra. Unta de saliva, esfrega no calcanhar e joga
para trás bem longe, sem olhar. Vai tudo para a pedra.
PROFESSORA – Os escravos?
MARIVALDO – Os escravos. As águas são pesadas, puxam para o fundo. É por isso que não se pode
nadar aí.
ATRIZ – Ele riscava no ar desenhos que ela não entendia. Dava explicações mais complicadas do que
os enigmas de que falava.
MÃE – Meu marido, o finado José, me dizia: “Odete seja mansa, tua raiva com os senhores não leva a
nada”. Ele não me deixaria freqüentar escola, quanto mais participar de política.
***
A REUNIÃO CAMPONESA
Canção Eu não sou daqui. Sons de assembleia. Vitorino entra correndo na frente, os outros com um
sino nas mãos.
VITORINO – Vamos minha gente. Eles exigem o fim da associação. Deram vinte e quatro horas. E o
recado veio com assalto, destelhamento, lavoura arrasada.
ATRIZ – As pessoas chegam aos grupos para a reunião. É preciso representar a dificuldade de
estarmos juntos.
ABDIAS – Quando eu entrei na sociedade era por melhoria: escola, reforma da igreja, posto de saúde.
Não era por propriedade, não sei se nos temos força para isso.
ATRIZ – Ensaiávamos discutindo a diferença entre a nossa situação e a dos artistas dos anos 1960,
retomávamos um tema que foi deles nos perguntando até que ponto ainda é nosso.
ABDIAS – Bem que eu queria nessa vida um pedaço de mundo. Mas não é assim.
MARCELINO – Eu vim travar conhecimento. Acho bom criticar, mas eu não dou um passo contra a
lei.
VITORINO – É nosso direito nos juntarmos para fazermos o que quisermos. Enterrar morto, jogar
cartas, ir para a escola, ninguém tem que se intrometer nisso.
GRÁVIDA – Quem não estiver aqui para lutar pela Associação pode pegar as coisas e ir embora. Mas
quem permanecer deve mexer os braços e fechar a boca.
DONA ÉLIA – Se estiver precisando de ajuda, eu tenho uma panela cheia de mungunzá que eu posso
enfiar goela abaixo.
ATOR (que estava sentado) – Eu me sinto desconfortável com uma demarcação tão nítida do conflito.
Para mim o teatro devia ser para unir.
ATRIZ – Uma atriz lembra das cinco dificuldades de se dizer a verdade, de Brecht. A primeira: ter
coragem para dizer a verdade.
DONA ÉLIA – Eu digo que o que eu aprendi fez mudar o meu corpo. Os meus olhos já fazem falar as
palavras. O meu destino e o meu esforço me pertencem enquanto seguirmos juntos.
ATRIZ (Narra) – Dona Odete ocupa o centro da sala com um papel na mão.
MÃE – (Mulheres se juntam) Uma pessoa sozinha nesse mundo não vale nada. Quero pedir licença
para ler uma carta que eu e as outras mulheres escrevemos na escola. (Abre a carta.)
Fome de fome
Fome de justiça
Fome de equiparação
Fome de pão
Fome de pão
MARIVALDO – Organizaremos uma marcha, uma multidão, somos muitos, temos bocas, temos
olhos, somos feitos da matéria da terra.
***
204
Desfaz-se a imagem da cerca. Todos os atores de frente para o público cantam a Canção da
professora
CANÇÃO DA PROFESSORA
Está
O que não estava lá
A palavra faz ver
O olho produz
O novo nome
Do barro
É vaso
O novo nome
Do buraco
é flor
Está
O que não estava lá
Até ser nomeado
O nome produz
205
Cena do filme Tempo morto – um filme sobre o golpe, segundo ato de Ópera dos vivos.
Bloco 7
Corta para torre de antenas.
FUNIS - Eu avalizo. Cabedal tem uma elite atrasada, mas que justamente por isso honra suas
dívidas.
MAGANO: Mas por quê? A propriedade privada está longe de ser ameaçada.
MAGANO: Parecem todos marxistas! Sempre o primado do dinheiro. Há um ano que se fala
no golpe dos esquerdistas e do nosso contra golpe. Todos os dias. (para a câmera) Falta
realismo nesse melodrama de armas e sangue. (para Industrial). Não haverá golpe. O
presidente é um João bobo. Apenas balança de um lado ao outro.
207
Imagens retiradas da gravação em audiovisual realizada por Luiz Gustavo Cruz do terceiro ato
da peça Ópera dos vivos, Música popular – privilégio dos mortos.
CANÇÃO
Vultos distantes
Vultos distantes
Teatro em obras
Atores com armas na mão.
Braços pra cima
De punhos fechados
Enxadas, caixotes, ação.
Mas daqui onde estou
Eu ouço apenas
Uma canção feliz.
Perna de pau, uma atriz mascarada
Cartola estrelada, Tio Sam
Na madrugada, assembleia
Meninas, cartazes
Guevara, nação.
Mas daqui onde estou
Eu ouço apenas
Uma canção feliz.
Virada de março
Rajada de fogo
Acordo de um golpe no chão.
Barricada, incêndio
208
O céu do Aterro
Uma faixa estendida:
Revolução.
Revolução.
No palco.
APRESENTADOR – (ao microfone) Ela não morreu. Está viva como nunca. O terrível espetáculo do
seu internamento acabou. Era o tempo da espera. Ela imóvel num leito de hospital, sua carne
atravessada por aparelhos, e eis que ela se ergue no terceiro ato, depois de três anos em coma. (a
Miranda) Miranda, essa cena é sua, eu nada fiz que não fosse em seu benefício. Ouviu minha querida,
com você voltamos à luz. Receba a homenagem dos seus amigos.
BEBELO – Eu vim aqui hoje, como vocês, para celebrar a volta de uma grande alma. Devo a ela...
Tão diferente de mim, ter me tornado um artista. E nossa história teve o seguinte começo...
Cao, a frente de Bebelo, começa a dança de forma casúlica, e aos poucos se transforma na atriz da
grande tela. Parangolés indicam o casulo de Cao. Continuam dançando nas laterais do palco.
209
***
210
Canção
Humanamente Real
Humanamente real
Eu estou me tornando.
Humanamente real
Eu estou me tornando.
Os mitos caíram.
Eu estou me tornando...
(Queira a metamorfose)
Despojadamente
Sintético
Real...
Eu estou me tornando.
CAO – Alacasam. Xasam. Evoé. Sem cor, sem linhas, sem forma, sem nada.
BEBELO – A história dessa música: um dia, durante o coma de Miranda fui visitá-la e percebi em sua
palidez cadavérica a conexão entre os aparelhos hospitalares e a carne. A velocidade da máquina
deixava a água escorrer, e era preciso um faxineiro que limpasse o chão. No mesmo movimento, o
arcaico e o moderno. Cheguei ao estúdio para gravar e olhei para o alto e vi um espírito, e foi a Cao
quem me falou.
CAO – Sabe esse fantasma que você vê atrás das paredes envidraçadas?
BEBELO – O que é?
***
***
213
Canção
Júlia
Ela dá as costas à platéia por alguns instantes. Quando volta, toma o microfone e começa a discursar.
MIRANDA – O benzinho para eu não discursar, mas eu não gosto desse sapato. (Miranda senta no
palco e tira o sapato) Dá para parar um pouco. (Para os músicos) Esse negócio de televisao, toda essa
estrutura, e a gente meio que vai virando parte dela. Sabe o que é, a nossa voz é o nosso instrumento
de luta, por isso... (Pausa) Tá bom, vamos cantar...(Retomam a música) Era para eu dançar nessa
hora.
Miranda canta.
Música
Na metade esprimida da laranja
Eu vejo a feira
Dois por um
Dois por um
Eu vejo a feira
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***
215
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216
Imagens retiradas da gravação em vídeo realizada por Luiz Gustavo Cruz de Morrer de pé,
quarto ato de Ópera dos vivos.
***
***
217
***
(...)
CAPTADOR DE SOM – (Para a Figurante) Você pode passar o seu texto para mim?
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218
NA COZINHA
Projeção de cenas da cozinha. Trilha da Cozinha ao piano. Assistente de direção acompanha com
vocalize. Atores narram de posições diferentes do palco.
CONTRA-REGRA – (Na frente da tela, para o público) – Oh grande tela, mostrai-nos agora seu
movimento contínuo. Pois só a vitória universal da produção e reprodução é a garantia de que nada
neste mundo surgirá que não seja capaz de se adaptar. Que se veja o fogo aceso da cozinha operária
(aparece a imagem) As panelas fumegando, a matéria prima das carnes e plantas à espera da
transmutação.
MOÇA DA COZINHA – (Do lado oposto a imagem) – Carne, peixe, frango, tanto faz. O conteúdo
não importa. Igual novela.
MOÇO DA COZINHA – Eu falei para ela: “já tem frango xadrez para a mistura, não descongela outra
coisa sem consultar.” Mas vai dar tudo certo.
DONA MORITA – Você acha que eu tenho dinheiro para jogar fora? (Para o público) Algum
funcionário aqui me ouviu falar a palavra “carne”?
DONA MORITA – Eu vou lembrar: só vai sair daqui quando tiver refogado, desfiado e colocar tudo
na geladeira lá de baixo. Ouviu, Dona Élia? Ninguém é bonzinho comigo, ninguém. Para quem não
quer trabalhar tem uma fila aí fora. Eu vou passar o carnaval pensando nessa carne. Eu vou sonhar
com ela apodrecendo. (Sai)
MOÇO DA COZINHA – Você é teimosa demais. Enquanto não aprender a se adaptar, a vida vai ser
dura com você. Nunca ouviu falar do karatê? Se o sujeito não se dobra como a vara de um bambu, ele
quebra a espinha.
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219
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220
221
***
* **
Off - Foi encontrado vagando na fronteira do Chile, o trabalhador rural brasileiro Marivaldo dos
Santos, natural de Bom Jardim, Pernambuco. Dado como desaparecido há dois anos, ele declarou que
sua intenção era voltar a pé para Havana, segundo ele “uma cidade que fala, conversa, é vida.
CÂMERA – Então?
CAPTADOR – Um camponês, na fronteira. Igual o Homem que enfrentou o capeta quarenta dias no
deserto.
(...)
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A DECISÃO
Projeção do olho do cavalo, depois, rosto do Ator. Paredão de técnicos ao lado do Diretor na frente
da imagem.
DIRETOR – Olha só a cara dele: nenhuma beleza, mas a imagem parece bela. Será que ele não
percebe que isso não é um troço feito em série. (Para a Assistente) Anita, o que você faria no meu
lugar?
FIGURANTE – (para o Câmera) Você me conhece, não conhece? Há quantos anos eu faço figuração
aqui? Depois vão dizer que eu não sou profissional.
DIRETOR – Não, é uma criança. De manhã, na cama, a cabeça pesa, ele luta para organizar o dia, mas
só encontra desordem. Quando chega a noite, ele se mete num canto de bar, enche a cara de uísque,
porque aí ele espera a desordem, mas o que vê é o tempo passar uniforme nas risadas e caretas da
mesa ao lado. Eu entendo, sou um pouco assim. Mas eu vou mudar, eu sei, eu tenho tempo.
ATOR – E eu respondo a ele: “por que é tão difícil mudar uma história?”
Todos olham para o alto. Sons acompanham. O Produtor, de terno e chapéu, passeia pelas ameias do
teatro acompanhando de sua secretária.
CÂMERA - No alto, vemos a silhueta do produtor caminhando sobre as ameias do estúdio. Todos
olham para o alto atônitos.
FIGURANTE - Ouçam agora o que a figurante pensou e não disse: “este bloco sai sem mim, o meu
não”
DIRETOR – Dr. Lamaso, tudo bem com o senhor? Quanta elegância hein. (o Produtor o faz sinal
para que o Diretor suba) O senhor quer que eu suba? Desculpa senhor, eu não entendi. (o Produtor
sai, a secretária faz o último sinal) Entendi.
ATOR (a Assistente) – O Lamaso, produtor, fez teatro comigo e com a sua mãe. Ela dizia dele: “esse,
tem o senso da adequação” Será que ela se orgulharia de mim e de você aqui?
ATOR – Esquecendo.
ASSISTENTE – Eu entendo o que você quer dizer, mas isso não muda nada. Eu não me junto a você.
(vai sair, e volta.) E para de falar da minha mãe.
A Atriz entra pela porta do cenário. Ao longo a fala os atores se levantam, conforme sua fala os
inclui.
ATRIZ - Eu vi o cavalinho, você é igual a ale, a mesma recusa, o mesmo não. Eu que sempre disse
sim, agora entendi a jogada toda. Para que representar? Para falar o quê? Seu gesto é lindo. Você se
revoltar aos 60 anos porque viu que eles precisam de nós. Com etiqueta e tudo. Podem pegar outras
máquinas de carne, pôr rugas em volta dos olhos, mas só um velho tem o olhar de um velho.
ATRIZ – Eles vão te respeitar, não vai te faltar papel. Se fosse uma mulher era mais difícil lutar
contra... (chora) Uma atriz velha não vale nada, mas um homem é um homem. Não pode ser
desmontado. Você é um símbolo de resistência ao sistema.
ATOR – Cala a boca! Eu não sou nada. (Para todos, decidido) Anita.
ATOR – Eu vou morrer. Chama o diretor. Eu vou fazer a cena. Quero pedir desculpas a todos por não
saber onde estou.
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EPÍLOGO