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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

PRISCILA SAEMI MATSUNAGA

TRABALHO DO LATÃO

Rio de Janeiro
2013
PRISCILA SAEMI MATSUNAGA

TRABALHO DO LATÃO

Tese de Doutorado apresentado ao


Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura (Literatura comparada),
Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
como requisito parcial à obtenção do título de
Doutora em Ciência da Literatura (Literatura comparada)

Orientadora: Profa. Dra. Eleonora Ziller Camenietzki

Rio de Janeiro
2013
M434t Matsunaga, Priscila Saemi.
Trabalho do Latão / Priscila Saemi Matsunaga. – Rio de Janeiro: UFRJ,
2013.
224 f. ; 30 cm.

Orientadora: Profa. Dra. Eleonora Ziller Carmenietzki.


Tese (Doutorado em Literatura Comparada) – Faculdade de Letras,
Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.
Bibliografia: f. 185-190.
Inclui anexo.

1. Literatura comparada. 2. Dramaturgia. 3. Teatro – aspectos sociais.


I. Título. II. Carmenietzki, Eleonora Ziller.

CDD 306.484

Ficha elaborada pela Biblioteca José de Alencar – Faculdade de Letras/UFRJ


PRISCILA SAEMI MATSUNAGA

TRABALHO DO LATÃO

BANCA EXAMINADORA

Tese de Doutorado apresentado ao Programa de Pós-graduação em Ciência da


Literatura (Literatura comparada), Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título de
Doutora em Ciência da Literatura (Literatura comparada).

_________________________________________
Profª Drª Eleonora Ziller Camenietzki – Orientadora
Universidade Federal do Rio de Janeiro − UFRJ

_________________________________________
Prof. Dr. André Luiz de Lima Bueno
Universidade Federal do Rio de Janeiro − UFRJ

_________________________________________
Profª Drª Danielle dos Santos Corpas
Universidade Federal do Rio de Janeiro − UFRJ

_________________________________________
Profª Drª Maria Elisa Burgos da Silva Cevasco
Universidade de São Paulo – USP

_________________________________________
Prof. Dr. Walter Garcia da Silveira Júnior
Universidade de São Paulo – USP
Dedico este trabalho ao mestre Fernando Amorim

Tudo quanto ainda me falta dizer e fazer, eu o direi e farei sempre contigo ao me lado.
Augusto Boal
AGRADECIMENTOS

Ao percorrer as ruas de pedra de Paraty, o caminhante sabe o quão difícil é não


fixar os olhos no chão. Mas ainda que o corpo, ou os pés, nos obriguem a andar
curvados com medo do tropeção, há sempre um som, um cheiro, uma brisa, que faz com
que olhemos para o horizonte e para o alto. A mim ocorreu estar perambulando numa
das ruas de Paraty, desajeitadamente, e conhecer dois personagens essenciais, de tons
inconfundíveis, sem os quais este trabalho não teria sido realizado: o meu querido
professor Fernando Amorim e minha querida orientadora Eleonora Ziller. Faltam
palavras para agradecer e homenagear as figuras mais decisivas desse momento, que de
um cafezinho na esquina se transformou numa nova etapa da minha vida. A eles minha
imensa, para sempre, gratidão.
Através de Fernando e Eleonora tive outros encontros, pessoas por demais
especiais, que estiveram comigo nesses anos de aprendizado – e suas vozes e desejos de
boa jornada ressoam pelas linhas do trabalho: os queridos professores Jose Cubero e
Maria Helena Silveira; meus amigos do Núcleo UFRJMar Marcella Freire Ventin, Paula
Callegario, Bianca Pires, Elielson Barros, Daniela Carvalho. Agradeço especialmente a
Paulo Maia, pela acolhida em Santa Tereza e conversas até ... às 22h. Deixa muita
saudade um grande amigo e professor, Luiz Henrique da Costa. Com vocês o céu de
Paraty sempre está mais azul. Com vocês partilho o trabalho de estudo, e, também, de
vida. À Paula Kropf, companheira de doutoramento, muito obrigada por dividir
materiais, pensamentos, sugestões.
Reconduzida pela orientação da professora Eleonora, o estudo permitiu outro
encontro inesperado e tão prazeroso quanto o primeiro: aos mui queridos integrantes da
Companhia do Latão, meu sincero e respeitoso agradecimento. Em especial, agradeço a
João Pissarra, Martin Eikmeier, Luiz Gustavo Cruz, Roberta Carbone, Paula
Bellaguarda, Renan Rovida, Rogério Bandeira, Carlos Escher, Ney Piacentini e Helena
Albergaria pelas conversas, e principalmente pelo aprendizado. Ao mestre Sérgio de
Carvalho, muito mais do que agradecida pela paciência e carinho nos momentos de
certezas tão incertas, de partilhamento intelectual. Este estudo não teria se concretizado
sem a sua parceria e generosidade. Com Sérgio redescobri o teatro e serei eternamente
grata. É o meu desejo que a aprendizagem com esse grande dramaturgo se espalhe por
essas linhas e por demais trabalhos que estão por vir.
Deste encontro, novos amigos: ao querido Julian Boal, agradeço as observações
pontiagudas que sempre me fazem pensar adiante e a Cecília Boal, pelo carinho,
confiança e respeito quanto ao meu trabalho.
Agradeço os professores Maria Elisa Cevasco e André Bueno pelas generosas
observações no exame de qualificação e confiança em mim depositada.
Agradeço os professores do departamento de Ciência da Literatura, em especial
à Martha Alkmin, Danielle Corpas e Flávia Trocolli pelas sugestões de leitura e
generosidade e o professor Luis Alberto Alves, coordenador do Programa de Pós-
graduação em Ciência da Literatura.
Agradeço os funcionários da Faculdade de Letras, em especial a Jorge Fernandes
e Maria de Fátima Quintela Campelo, pela sempre disposta acolhida às minhas
solicitações.

Este percurso só foi possível porque sempre tive o apoio de meus pais Nelson e
Vanilde. Agradeço pelo incentivo incondicional quanto aos meus estudos e, por eles,
tenho muito orgulho em exercer a docência. Compartilho este trabalho com minhas
irmãs amadas, Melissa e Vanessa. Pelo olhar de vocês vejo de um jeito diferente, de
ângulos novos, perspectivas viajantes.
Amorosamente agradeço ao meu companheiro Denis que de mais de perto vem
acompanhando minhas dúvidas, os tropeços nas pedras de Paraty, e que com uma voz,
também inconfundível, me faz olhar para o horizonte, para além do enquadramento da
porta. Nele encontro Bylly, e antes, Cléo.
RESUMO

Esta tese objetiva discutir o trabalho teatral desenvolvido pela Companhia do Latão,
grupo paulistano formado em fins da década de 90. O estudo perpassa a produção
dramatúrgica e cênica, bem como sua produção teórica, com o intuito de identificar o
projeto estético forjado por um preciso projeto ideológico anticapitalista. Nesse sentido,
debruça-se sobre a peça Ópera dos vivos, estreada na cidade do Rio de Janeiro em 2010.
Pelo estudo desenvolvido compreende-se que a Companhia do Latão se insere, com alto
grau de consciência da linguagem, nas contradições do presente, nas quais o
pressuposto crítico problematiza, pela composição cênica, o campo representacional em
que o capitalismo ideologicamente se projeta e constantemente se recompõe.
ABSTRACT

This thesis aims to discuss the theatric work developed by the Companhia do Latão, a
group founded in São Paulo in the late 1990’s. The study links the dramatic and
panoramic production as well as its theoretic production, in order to identify the esthetic
project forged by a precise project of anti-capitalist ideology. In this sense we focus on
the piece Ópera dos vivos, released in Rio de Janeiro in 2010.
With the developed study we understand that the Companhia do Latão falls within the
contradictions of the present, with a high level of linguistic conscience, in which the
critical dialogue questions, with the scenic composition, the representative field in
which capitalism is projected and always reestablishes itself.
RÉSUMÉ

Cette thèse à comme objectif de discuter le dévelopement du travail théatrale par la


Companhia do Latão, un groupe de São Paulo formée dans la fin des années 90. L’étude
relie la production dramaturgique et scénique, bien comme sa production théorique, afin
d’identifier le projet esthétique forgée par un projet d’idéologie anti-capitaliste bien
precis. Dans ce sens c’est une étude de la piece Ópera dos Vivos , sortie à Rio de Janeiro
en 2010. Dans l’étude effectuée on comprend que la Companhia do Latão insert, avec
un haut niveau de conscience linguistique, dans la contradiction du présent, dans lequel
le dialogue critique thématise, par la composition scenique, le domaine figuratif dans
lequel le capitalisme idéologiquement se conçois et constamment se recompose.
SUMÁRIO

PRÓLOGO.....................................................................................................................10

Os pressupostos básicos...................................................................................................15

NÃO SE PODE ULTRAPASSAR O FIM A NÃO SER RECUANDO....................21

É TEMPO DE DESTRAMBELHAR..........................................................................36

OS MORTOS OBSTACULIZAM A FELICIDADE DOS VIVOS..........................69

EPÍLOGO.....................................................................................................................176

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................186

ANEXOS.......................................................................................................................191

Anexo 1..........................................................................................................................192
Anexo 2..........................................................................................................................194
10

PRÓLOGO

Em fins da década de 90, diante do acirramento da economia neoliberal, artistas de


São Paulo constituíram um movimento conhecido posteriormente como Arte contra a
barbárie. Os pressupostos do movimento se dirigiam para a formulação de políticas públicas
contra a prática do Estado, a de investimentos via renúncia fiscal, disputando publicamente o
pensamento sobre arte e cultura. O livro organizado por Iná Camargo Costa e Dorberto
Carvalho, A luta dos grupos teatrais de São Paulo por políticas públicas para a cultura,
registra as condições históricas que geraram tal movimento, identificando num primeiro
momento o entrelaçamento, em nível global, do Estado ao sistema capitalista (tanto o “estado
mínimo” que obviamente retira sua responsabilidade de setores como educação, saúde e
cultura quanto o “estado forte”, funcionando estrategicamente como um espaço nacional
legitimador do capitalismo global). Os autores acabam com qualquer ilusão sobre o papel do
Estado: “o capital dá régua e compasso a todas as esferas da nossa vida” (COSTA;
CARVALHO, 2008, p.13). A partir dessa consideração enterram outra ilusão, a saber, que no
campo artístico poderia ser cultivada alguma autonomia, econômica e também estética: ao
Estado gestor do capital não cabe senão a função de encaminhar questões públicas conforme
interesses privados, o que fica evidente quando reduz investimentos estatais na oferta de
serviços públicos, incluindo a cultura, negando a convicção de que se tratam de direitos
fundamentais do cidadão. No Brasil, que nunca vivenciou um estado de bem-estar social,
segundo os autores, passamos da “política” benfeitora de iniciativas individuais amigáveis do
período colonial, barrados impulsos republicanos mais democráticos, ao processo de
mercantilização da cultura em nível mundial. A ditadura iniciada em 1964 deu as condições
estruturais para a entrada definitiva do Brasil nessa ordem.

Por incrível que possa parecer, foi a ditadura iniciada em 1964 que pela
primeira vez dotou o país de uma política de cultura digna do nome e de
inspiração keynesiana. Mas é bom não perder de vista o processo: primeiro
os militares trataram de eliminar da cena, por meio da censura, prisões e
exílios, a cultura esquerdista, hegemômica até o AI-5. Feita a limpeza e
criada a infra-estrutura para a indústria cultural (a Embratel é de 1965, o
Ministério das Comunicações é de 1967) que se encarregou de colonizar
para os valores do capital os corações e as mentes da grande maioria, foi
possível, já em 1975 (governo da “distensão lenta, gradual e segura”), criar
um órgão como a Funarte para viabilizar o Plano Nacional de Cultura, que
vinha sendo ruminado desde 1966. Quando, em 1985, o governo da Nova
República desvinculou o Ministério da Cultura do Ministério da Educação,
pouca gente entendeu que este já era o primeiro lance para a entrada do
11

Brasil no jogo bruto da administração da cultura pelo capital. (COSTA;


CARVALHO, 2008, p.17)

A perversidade dessa condição ficou explícita com a regulamentação da Lei Rouanet


(nº 8.313/91)1.

Foi tudo muito rápido: em 1995 foi aprovada uma primeira regulamentação
da Lei Rouanet autorizando a ampliação dos resgates do imposto devido
permitidos na formulação anterior, em 1996 é criado o Sistema Financeiro
da Cultura para organizar a renúncia fiscal no plano dos estados e
municípios, além do federal. Isto é: cada esfera da administração pública
renuncia seus respectivos impostos, como IPTU e ISS (Lei Mendonça),
ICMS (leis estaduais) e IR (Rouanet). Finalmente, em 1997, nova
regulamentação da Lei Rouanet completa o processo, autorizando a dedução
integral dos gastos. A partir deste momento, acabou a farsa, ou melhor,
finalmente se consolidou a parceria tal como definida acima: agora o Estado
paga tudo e o capital exerce a sua liberdade de escolha. (COSTA;
CARVALHO, 2008,p.18)

É neste cenário devastador, de total precarização das condições de trabalho de artistas


sujeitos à política de marketing de grandes empresas, que o movimento Arte contra a
barbárie é gestado. Alguns dos signatários do Primeiro Manifesto Arte contra a barbárie –
Aimar Labaki, Beto Andretta, Carlos Francisco Rodrigues, César Vieria, Eduardo Tolentino,
Fernando Peixoto, Gianni Ratto, Hugo Possolo, Marco Antonio Rodrigues, Reinaldo Maia,
Sérgio de Carvalho, Tadeu de Souza e Umberto Magnani (publicado em 07 de maio de 1999
pela grande impressa e divulgado para mais de 300 pessoas no Teatro Aliança Francesa no dia
10 de maio) −, integravam grupos teatrais formados entre os anos 1980 e 1990 e junto deles,
artistas de longa trajetória na produção cultural brasileira. O encontro entre gerações, talvez,
tenha dado o tom de alguns pontos apresentados pelo documento, que reproduzo abaixo2:

Manifesto arte contra a barbárie


O teatro é uma forma de arte cuja especificidade a torna insubstituível como
registro, difusão e reflexão do imaginário de um povo. Sua condição atual
reflete uma situação social e política grave. É inaceitável a mercantilização
imposta à cultura no País, na qual predomina uma política de eventos. É
fundamental a existência de um processo continuado de trabalho e pesquisa
artística. Nosso compromisso ético é com a função social da arte. A

1
A Lei Rouanet, que instituiu o Programa Nacional de Apoio a Cultura (PRONAC), foi sancionada durante o
governo de Fernando Collor.
2
CARVALHO, Dorberto; COSTA, Iná Camargo. A luta dos grupos teatrais de São Paulo por políticas públicas
para a cultura: os cinco primeiros anos da lei de fomento ao teatro. São Paulo: Cooperativa Paulista de Teatro,
2008, p. 21-22. Em algumas referências, como a que se pode acessar no site da Companhia do Latão, os
“grupos” assinam o documento. Saliento que César Vieira é fundador do grupo Teatro Popular União e Olho
vivo em atividade desde meados da década de 60.
12

produção, circulação e fruição dos bens culturais é um direito constitucional,


que não tem sido respeitado. Uma visão mercadológica transforma a obra de
arte em “produto cultural”. E cria uma série de ilusões que mascaram a
produção cultural no Brasil de hoje. A atual política oficial, que transfere a
responsabilidade do fomento da produção cultural para a iniciativa privada,
mascara a omissão que transforma os órgãos públicos em meros
intermediários de negócios. A aparente quantidade de eventos faz supor uma
efervescência mas, na verdade, disfarça a miséria de investimentos culturais
a longo prazo que visem à qualidade da produção artística. A maior das
ilusões é supor a existência de um mercado. Não há mecanismos regulares
de circulação de espetáculos no Brasil. A produção teatral é descontínua e no
máximo gera subemprego. Hoje, a política oficial deixou a cultura restrita ao
mero comércio do entretenimento. O teatro não pode ser tratado sob a ótica
economicista. A cultura é o elemento de união de um povo que pode
fornecer-lhe dignidade e o próprio sentido de nação. É tão fundamental
quanto a saúde, o transporte e a educação. É, portanto, prioridade do Estado.
Torna-se imprescindível uma política cultural estável para a atividade teatral.
Para isso, são necessárias, de imediato, ações no sentido de:

Definição da estrutura do funcionamento e da distribuição de verbas dos


órgãos públicos voltados à cultura.

Apoio constante à manutenção dos diversos grupos de teatro do País.

Política regional de viabilização de acesso do público aos espetáculos.

Fomento à formulação de uma dramaturgia nacional.

Criação de mecanismos estáveis e permanentes de fomento à pesquisa e à


experimentação teatral.

Recursos e políticas permanentes para a construção, manutenção e ocupação


dos teatros públicos.

Criação de programas planejados de circulação de espetáculos pelo País.

Este texto é expressão do compromisso e responsabilidade histórica de seus


signatários com a ideia de uma prática artística e política que se contraponha
às diversas faces da barbárie – oficial e não oficial – que forjaram e forjam
um País que não corresponde aos ideais e ao potencial do povo brasileiro.
(COSTA; CARVALHO, 2008, p.20)

Na identificação das condições de trabalho que não se enquadravam no eixo


“fomentado” pelo Estado via renúncia fiscal, e com a clareza de que a cultura é direito do
cidadão, houve um enfrentamento ideológico potencializador para o envolvimento de outros
artistas e coletivos, e assim os integrantes passaram a se reunir com certa frequência para
determinar suas pautas e encaminhamentos. Seguiram-se outros manifestos e a concretização
de uma reivindicação: a aprovação de uma lei de fomento ao teatro na cidade de São Paulo.
As dificuldades para sua aprovação, os embates políticos, as esperanças em torno de seu
alcance e também o balanço político, e estético, dos artistas fomentados podem ser
13

recuperados através do citado livro A luta dos grupos teatrais de São Paulo por políticas
públicas para a cultura e também na recente publicação Teatro e vida pública: o fomento e os
coletivos teatrais de São Paulo, organizado por Flávio Desgranges e Maysa Lepique (2012).
De todo modo, abriu-se a trincheira para a discussão da função social da arte, alimentada por
um imaginário quanto à oposição ao pensamento neoliberal. Via a Lei do Fomento3, que
instalou o Programa Municipal de Fomento ao Teatro na cidade de São Paulo, o Estado
passou a financiar, via editais públicos, projetos teatrais com continuidade artística e
relevância social. O período ficou conhecido como um momento de “renovação” do teatro de
grupo devido ao seu processo de politização.
Em Teatro e vida pública: o fomento e os coletivos teatrais de São Paulo, contudo,
principalmente nos textos de Paulo Arantes – A lei do tormento, José Fernando Azevedo –
Uma trajetória na intermitência (notas à procura de um esquema), Luiz Carlos Moreira –
There is no alternative e em Conversa de bastidor – debate entre Marco Antonio Rodrigues e
Sérgio de Carvalho, as contradições e limites tanto do Arte contra a barbárie e da Lei de
Fomento ao teatro na cidade de São Paulo são apresentadas a partir de uma revisão histórica e
política. Paulo Arantes, por exemplo, chama a atenção, recuperando um texto de Sérgio de
Carvalho, quanto às condições dessa retomada

Para começar, nunca será demais relembrar que a Lei de Fomento foi
paradoxalmente arrancada do establishment numa hora de refluxo social em
todas as frentes. Inexplicável demonstração de uma força que em princípio
não poderíamos ter, salvo aquela peculiar dos afogados. Pairava, no entanto,
no ar uma sensação indefinida de virada política iminente, que de fato
ocorreu no ano seguinte ao da aprovação da lei, porém num rumo totalmente
inesperado, por maior que fosse o ceticismo a respeito. Como o momento era
de fadiga do ajuste estrutural que há oito anos infelicitava o país – era
recente a memória ressentida de descaso social sistemático, ilustrada de
modo superlativo, por exemplo, pelo episódio do Apagão −, tivemos a
chance de reagir ao descalabro justamente quando a maré eleitoral
principiava a beneficiar o outro polo da concertação informal que nos rege
há quase duas décadas. Creio, no entanto, que no fundo ninguém se iludia.
Em primeiro lugar, quanto à natureza preponderantemente reativa do atual
ciclo de politização do teatro brasileiro – artisticamente relevante, é claro.
Para ser exato, o terceiro, na periodização muito sugestiva de Sérgio de
Carvalho. Seria o caso de acrescentar, para melhor ressaltar a novidade do
presente, que os dois ciclos precedentes de radicalização da prática teatral –
o auge modernista dos anos 30, ainda que “virtual”, como observa Sérgio,
pois a estética antiburguesa sequer chegou às salas de espetáculo; e a
realização parcial daquele mesmo programa de refuncionalização do teatro,
pela geração artística que o golpe de 64 decapitou – respondiam, nos seus
3
Segundo Alexandre Mate (2012), “a lei que institui o Programa Municipal de Fomento entra em vigor no
segundo semestre de 2002 e até o fim de 2011 contou com dezenove edições de seleção”. (p.75). A citação foi
retirada do livro Teatro e vida pública: o fomento e os coletivos teatrais de São Paulo.
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próprios termos, a um impulso de reviravolta social no horizonte. Hoje a


expectativa não é mais de ruptura (o que dirá utópica, como é o caso da
gravitação do imaginário modernista em torno de uma outra civilização), não
há sequer “horizonte”, obliterado por uma queda euforizante no Presente, no
presente de um capitalismo de novo em marcha forçada, como nos tempos
do Milagre (...) Daí a nota dissonante do período: o atual terceiro ciclo de
politização é menos uma reação ofensiva, do que uma maneira radical de
sobreviver na adversidade. (ARANTES, 2012, p.203-204)

A ideia de uma retomada do teatro de grupo − implícita nesta denominação a


politização dos coletivos teatrais − é, também, problematizada por Gustavo Assano (2011)
em Périplo de ajuntados: um esboço da trajetória de grupo teatral Folias D’arte, por ser
demais imprecisa e imprópria, uma vez que as condições daquilo que ficou como conhecido
pelo trabalho de teatro de grupo na década de 60, experimentalismo unido à pesquisa de uma
arte nacional-popular segundo Sérgio de Carvalho, não estava dado aos grupos que se
formaram entre fins de 1980 e durante 1990. Para Assano

O que marca o campo teatral do período é justamente a denúncia de uma


completa ausência de estrutura material e unidade conceitual que permitisse
a atuação de trabalhos esteticamente mais ambiciosos, que articulasse algum
tipo de proposta sobre suas especificidades enquanto campo de atividade
artística para a categoria. (ASSANO, 2011, p.182)

De todo modo, aparentado na disposição coletivizadora e distante da


“refuncionalização emancipadora” de 1960, e mais ainda da “revolucionária” de 1930, pois
tratavam-se de outros momentos políticos (e tal momento se dá a ver na imprecisão
terminológica entre teatro de grupo, processo coletivo, colaborativo ou de criação coletiva,
categorias que invariavelmente dizem respeito mais às condições de criação dos artistas do
que aos sentidos políticos que orientam os grupos e artistas), não há como negar que a
formação de novos grupos teatrais mudou a feição da cena teatral paulistana, frisando, claro,
uma “simples” questão de sobrevivência.
Também José Fernando Azevedo faz coro às condições que geraram e principiaram a
renovação teatral

Para muitos, o motivo é, na maior parte das vezes, econômico. Seria mais
fácil, diante de todas as dificuldades de produção, começar associando
expectativas – o que talvez justifique a quantidade de filiações na
Cooperativa Paulista de Teatro, com suas cinco centenas de grupos (...) O
fato é que hoje, “formar” um grupo é algo mais ou menos natural, e o Arte
contra a Barbárie, como muita coisa em nossa história, já ganhou contornos
míticos. Faço parte de um grupo formado naquele momento, e resulta desse
percurso a sensação de que, no melhor dos casos, insistimos martelando uma
15

pauta que não soubemos aprofundar, de modo que não deveria causar
espanto, a não ser por excesso de autoilusão, a desconexão alarmante desses
“novos” grupos em relação àquele ideário que animou a leva imediatamente
anterior (...). A Lei forçou intensificar na experiência do teatro de grupo
contradições até aqui incontornáveis. O grupo como força produtiva
desenvolve-se a partir de um impasse – até segunda ordem, um impasse que
indica uma chance histórica. Os artistas apresentam-se como donos de sua
força de trabalho; negada a figura do empresário, o grupo não é, todavia,
inteiramente dono de seus meios de produção. Resulta que a continuidade do
trabalho – baseada na intermitência, inclusiva da Lei – se dá ao custo de
negociações e vínculos precários (o que vai desde as condições para a
manutenção de um espaço de trabalho, em geral alugado, até as condições
mínimas de produção e circulação, muitas vezes sob o signo da submissão).
Tais negociações e vinculações quase sempre conformam um campo
meramente econômico, restrito a necessidades imediatas de sobrevivência. O
que, portanto, está em jogo, é o teor da negociação e do vínculo, ou a
capacidade dos grupos de os converterem em alianças, definindo nesse
movimento quais são seus aliados (...) Na dificuldade interna ao movimento
de decidir-se para além do campo teatral, o passo seguinte foi uma espécie
de recuo. Isto posto, se quisermos ainda verificar processos de politização e
aprofundamento da pauta anterior, teremos de ir à singularidade dos grupos,
e interrogar de perto sobre a maneira como se excedem em cena.
(AZEVEDO, 2012, p.212-214)

Recorrendo a essa breve apresentação do que significou, politicamente, o Arte contra


a barbárie, fica claro que o que está em jogo é a construção de um pensamento anticapitalista,
talvez a pauta que os grupos não conseguiram aprofundar quando se aventou a oportunidade
de manutenção de sua existência via lei de fomento. Com as contradições da própria
permanência do teatro de grupo, como salienta José Fernando Azevedo, seria uma tarefa
identificar a singularidade estética no encaminhamento de tal questão, uma vez que os grupos
não conseguiram avançar com a pauta para além do campo teatral, e talvez, precariamente, no
próprio campo.
A partir dessa breve apresentação das condições históricas no qual se formam os
coletivos teatrais paulistanos da década de 90, apresento os pressupostos do presente trabalho.

Os pressupostos básicos

Ao iniciar o presente estudo não me estavam claras as bases nas quais poderia
encaminhar o projeto de pesquisa, embora soubesse que centraria a análise na produção teatral
da Companhia do Latão, grupo teatral paulistano identificado à pauta anticapitalista do Arte
contra a barbárie. Tinha certa pretensão em compreender a representação sobre a realidade
brasileira através das obras não apenas do Latão, como é conhecido, mas de outros grupos
teatrais, numa espécie de identificação do projeto teatral que estava em curso quando se
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poderia ter uma proposição unificadora em andamento assemelhada ao que ocorreu em 1960
(devo lembrar o último item do manifesto: Este texto é expressão do compromisso e
responsabilidade histórica de seus signatários com a ideia de uma prática artística e política
que se contraponha às diversas faces da barbárie – oficial e não oficial – que forjaram e
forjam um País que não corresponde aos ideais e ao potencial do povo brasileiro) – e minha
admiração ao movimento teatral paulistano não me permitia enxergar todos os senões
expostos acima. Ficou mais claro, então, a partir desses comentários, e reduzida a empolgação
com o Arte contra a barbárie, o que significam obras de relevância artística circunscritas a
uma condição “reativa”. Tendo ponderado – e devo muito às observações dos professores
Maria Elisa Cevasco e André Bueno no exame de qualificação da tese − a impossibilidade de
levar adiante a ideia original, o trabalho realizado satisfaz, em parte, esse impulso inicial ao
localizar o Latão entre os grupos teatrais identificados pelo projeto de construção de um
imaginário anticapitalista. Coube, então, tentar verificar como o projeto ideológico4 da
Companhia, que tem na figura do diretor e dramaturgo Sérgio de Carvalho o seu principal
locutor, se apresenta, ou se equilibra, com seu projeto estético.
Ressalvo que esta é, quando muito, uma tentativa de leitura quanto ao modo como o
Latão operacionaliza aquilo que tem como perspectiva ideológica; a tentativa final é a de
examinar como a reação ao estado de coisas geral, alimentando um imaginário anticapitalista
via construção cênica, se concretiza em sua composição teatral – e por mais um rearranjo do
estudo, que não conseguiu manter o impulso inicial, a análise se dirige a apenas uma peça,
Ópera dos vivos. Demais obras do grupo serão apresentadas, com algumas notas pessoais, a
partir da análise de outros autores.

4
Aqui cabe um breve apontamento sobre como o conceito “ideologia” será utilizado no presente trabalho. Em
Marxismo e literatura, Raymond Williams (1979) demarca que o conceito de ideologia não se origina no
marxismo e nem a ele se limita. Após uma breve explicação de três variações conceituais (i. um sistema de
crenças característico de uma classe ou grupo; ii. um sistema de crenças ilusórias – ideias falsas ou consciência
falsa – que se pode contrastar com o conhecimento verdadeiro ou científico; iii. o processo geral de produção de
significados e ideias) o crítico identifica que o termo criado em fins do século XVIII, pelo filósofo francês
Destutt de Tracy, tinha uma conotação marcadamente antimetafísica ao considerar que não há ideias no mundo
senão as dos homens, ao mesmo tempo em que excluía qualquer dimensão social ao retirar o modelo de homem
e o mundo das relações sociais. Segundo Williams, em A ideologia alemã, Marx e Engels introduzem, no ataque
aos seus contemporâneos alemães, a compreensão de que encontrar causas primárias nas ideias foi considerado
um erro básico (...) Mas já nessa fase havia complicações óbvias. “Ideologia” tornou-se um apelido polêmico
para todos os tipos de pensamento que negligenciavam ou ignoravam o processo material de que a
“consciência” era sempre uma parte (p.36). Das diversas e variadas definições que o conceito pode abarcar,
Terry Eagleton (1997) sugere que muito da tradicional conversa sobre ideologia foi formulada em termos de
“consciência” e “ideias” – termos que têm seus usos adequados, mas que tendem a nos empurrar na direção do
idealismo sem percebemos (p.171). Pois bem, para não avançar nos emaranhados desse debate, nos afastando do
propósito do estudo, pois central do ponto de vista da análise do projeto da Companhia do Latão, não o é do
ponto de vista conceitual, utilizo como ideológico uma ideia, ponto de vista, visão de mundo, que demarca um
campo de construção de ideias e significados, em disputa, porem.
17

É claro que na própria organização da obra, independente da vontade de seu criador,


se apresenta uma visão de mundo; contudo é fato que desde o modernismo brasileiro da
década de 20, a crítica que se faz sobre o procedimento estético, como salienta João Luiz
Lafetá em seu estudo sobre a literatura e a crítica no modernismo de 1920 e 1930, reconhece
um procedimento autorreflexivo na construção da linguagem, o que faz com a própria crítica
se reposicione:

Em épocas de grandes revisões de procedimentos literários, de mudanças


radicais nas concepções estéticas, o papel da crítica é fundamental; no caso
contemporâneo esse papel cresce de importância, já que se trata de uma
literatura que assume a posição crítica como elemento constitutivo, que se
constrói a partir da crítica constante à sua própria linguagem, a revisão da
obra fazendo-se no interior da própria obra. Com efeito, na medida em que o
ato criador incorpora a metalinguagem – provocando dessa maneira a
ruptura com uma estética da ilusão – a literatura se pensa e se critica. Que
resta então fazer? Que sobrará para a “velha crítica”, aquela que exerce de
fora da obra e que pretende ser seu conhecimento e sua avalição? (...)
acrescenta-se-lhe uma nova tarefa: já que a literatura moderna se faz como
exercício de sua própria crítica, como reflexão sobre sua própria linguagem,
à “velha crítica” incumbe dizer e explicitar se a obra consegue realizar essa
ultrapassagem de si mesma. Em outros termos: a ela cabe exercer, no mais
alto grau, a consciência da linguagem. (FAFETÁ, 2000, p.37)

Utilizamos do estudo de João Luiz Lafetá a compreensão de que os projetos teatrais


forjados pelos grupos renovadores do cenário paulistano estão dispostos a fornecer peças
críticas; elas mesmas se fazendo recurso ideológico-reflexivo na formação de um imaginário
anticapitalista, construindo, portanto, em cena, uma reflexão dos expedientes teatrais que
reforçam o imaginário, e a prática, capitalista.
Em 1930: a crítica e o modernismo, João Luiz Lafetá, desenvolve o estudo sobre “a
tensão entre o que chamamos projeto estético (a consciência da linguagem e a ruptura com as
formas tradicionais de representação literária) e o que denominamos projeto ideológico (a
proposição de participar socialmente através da literatura)” (LAFETÁ, 2000, p.252). Para
tanto, analisa a produção crítica de Agripino Grieco, Tristão de Athayde, Mário de Andrade e
Octavio de Faria, descrevendo nesse percurso a alienação da crítica quanto ao modernismo
estético vanguardista harmonizado à alienação política (Agripino Grieco), a obsessão política
de timbre ordeiro e católico obliterando, conscientemente, a avaliação e crítica da estética
modernista (Tristão de Athayde), a consciência lúcida “das contradições entre um projeto
estético avançado e a necessidade de se criar uma literatura para o país subdesenvolvido e
culturalmente atrasado” (p.255) (Mário de Andrade) e, finalmente, a prática de uma crítica
18

nitidamente antimodernista tendo em vista a posição política direitista e a instalação de um


novo debate ideológico (Octavio de Faria).
Ainda que utilizando as categorias do crítico, é consequente deixar claro que não
conseguimos percorrer o mesmo itinerário. Desse ponto de vista, seria necessário percorrer a
produção teatral crítica de mais de um grupo paulistano e buscar descrever suas
especificidades ou ainda caberia percorrer o caudaloso e ainda quase inexplorado “sistema
teatral”, e examinar experiências teatrais diversas que reforçaram o imaginário anticapitalista
pela periodização, por exemplo, sugerida por Sérgio de Carvalho5.
Como tal tarefa, para mim, não foi possível no presente estudo de doutorado, assumo
que os projetos críticos anticapitalistas do campo teatral, fazem frente, obviamente, a todas as
formas estéticas produtivistas que tendem a enredar o espectador no consumo facilitado da
cena, o que só reforça seu comportamento em outras esferas da vida social – a perspectiva
mais rasteira −, mas também, e principalmente, a uma certa perspectiva teatral que tende a
mistificar o trabalho do artista e por isso abusa da capacidade intelectual de qualquer
indivíduo ao manter uma comédia ideológica com ares de grande arte. Sabendo do risco
“coloco no mesmo saco” todas as iniciativas que mantém a perspectiva individualizada e
sentimentalizável, com o pressuposto da esfera privada em suas encenações, o que faz, pelo
outro lado, em considerar que o projeto ideológico anticapitalista se faz por uma cena aberta
ao “processo social” que busca tornar estranhável àquela a que se opõem. Nesta arena,
teríamos como antagonistas, teoricamente, o drama burguês e o teatro épico.
Num olhar de “sobrevôo”: não é incomum aos grupos teatrais paulistanos o recurso do
teatro épico aliado àqueles assuntos tão custosamente identificados a respeito da cultura do
país. Uma parte do que se tem produzido em teatro nos dias que correm busca lançar
questões, a partir dos assuntos das peças, sobre o período da ditadura e sobre a formação do
5
Tal questão enveredaria, se realmente responsável, pela historiografia do teatro brasileiro. A título de nota,
trago uma observação de Iná Camargo Costa, “as poucas tentativas de historiar as experiências de nossos
dramaturgos com o drama tendem a sugerir, por um lado, uma espécie de incapacidade congênita em alcançar
resultados comparáveis aos europeus. Por outro lado, a importação das novidades modernas, com seus resultados
mais ou menos prontos para o consumo, trouxe-nos a confortável palavra de ordem da abolição das formas do
passado – o drama seria uma delas. Como de hábito, nós passamos para novas modalidades teatrais mais up to
date sem fazer o necessário acerto de contas com os gostos e convicções da véspera.” (p. 36-37). Assim, para a
pesquisadora, como para Roberto Schwarz, antes mesmo de concretizar uma experiência intelectual e seu
esgotamento crítico, intelectuais e artistas saem à procura do que está na pauta de países “que nos servem de
modelo”, resultando a “impressão – decepcionante – da mudança sem necessidade interna, e por isso mesmo sem
proveito” (2006, p. 30). “Percepções e teses notáveis a respeito da cultura do país são decapitadas
periodicamente, e problemas a muito custo identificados e assumidos ficam sem desdobramento que lhes poderia
corresponder” (p.31). Parece ser este o movimento empreendido pelo cenário teatral brasileiro, mas haveria algo
de falso em não abordar, analiticamente, o que significa a comédia ligeira, a revisitação dos clássicos – se
olharmos para as estreias dos últimos anos, constantemente são encenadas tragédias gregas, com ou sem
inovações de palco -, as novas “teatralidades” e todas as renovações teatrais, em seus resultados estéticos.
19

Brasil, desde o período colonial, como se pode observar nas peças dos coletivos teatrais:
Terror e Miséria no Novo Mundo, da Companhia Antropofágica; Pálido Colosso, da
Companhia do Feijão; Orfeu mestiço, uma hip-hópera brasileira, do Núcleo Bartolomeu;
Milagre Brasileiro, do Coletivo Alfenim entre tantos outros; conjugado por discussões sobre
a estética teatral; parte movida pelo reencontro da temática brasileira e articulação com
demandas populares, caso da Brava Companhia ou do questionamento das formas
representacionais, caso da Companhia do Latão.
Como estudo, a partir desses pressupostos de trabalho – e tendo como dimensão extra-
“discursiva” o que não se concretizou na tese − proponho apresentar algumas questões
relacionadas ao trabalho da Companhia do Latão, que aqui é compreendida assemelhada à
prática crítica de Mário de Andrade; para recuperar as categorias de João Luiz Lafetá:
“consciência é aqui a palavra-chave” (p.154). Aproximando a percepção do crítico à prática
da Companhia do Latão penso que o grupo trabalha através de uma consciência da obra de
arte como fato estético; consciência do teatro como resultante de experiências coletivizadoras;
consciência da necessidade de participação do intelectual na vida de seu tempo; consciência
da função social da arte.6
Para apresentar essa perspectiva, no presente estudo, utilizo depoimentos, entrevistas e
artigos dos integrantes do grupo, em especial de Sérgio de Carvalho, considerando que neles
registra-se uma perspectiva crítica sobre o seu próprio trabalho que ademais sintetiza uma
perspectiva ideológica, pois feita no campo da “representação teórica”, e que condensa seu
projeto ideológico (uma crítica anticapitalista), que se complementa com reflexões de
pesquisadores e intelectuais que dialogam com a Companhia e que por ela são acionados. Em
um segundo momento, como anunciado, apresento a resenha das obras de autoria do grupo e
de Sérgio de Carvalho e Marcio Marciano, entre os anos de 1998 a 2004, utilizando estudos e
reflexões feitas por estudos acadêmicos. A terceira seção da tese se debruça na peça Ópera
dos vivos, e em sua construção tento deixar claros os modos pelos quais a peça equilibra,
como crítica, o projeto ideológico e o projeto estético que, assim como demais peças do
Latão, agrupam pelo assunto semelhantes e pela temática diversa, a consciência da linguagem

6
Sobre Mario de Andrade, João Luiz Lafetá escreve: “consciência é aqui a palavra-chave: consciência da obra
de arte como fato estético; consciência do poema como resultante das projeções de experiências individuais, às
vezes obscuras e enraizadas no eu-profundo; consciência da necessidade de participação do intelectual na vida de
seu tempo; consciência da função social da arte. O pensamento de Mario de Andrade se estende por sobre todos
esses aspectos, detalha-os, busca os meandros de cada um deles, vai atrás de suas implicações mutuas, simplica-
os, complica-os, tenta a síntese. Do esforço para abrange-los nasce sua obra – por vezes confusa, arbitrária,
dilacerada entre tantos rumos, mas sempre incansável na pesquisa da solução clara, lavra paciente nos mistérios
da criação e de seus destinos. E sobretudo – precisemos bem esse ponto – uma obra que se desenha sobre o
fundo nítido da consciência da linguagem (p.154).
20

teatral e crítica anticapiltalista. Seguem as notas finais, que menos um ponto de chegada, me
parece, demonstra como o grupo configura, desde sua formação, um trabalho em processo,
que se renova e se alimenta de experiências acumuladas, de análise e síntese de descobertas
cênicas e políticas. Ao final do texto, em anexo seguem imagens do espetáculo Ópera dos
vivos, e trechos da peça – inédita −, citadas pelo estudo.
21

NÃO SE PODE ULTRAPASSAR O FIM A NÃO SER RECUANDO

Deducimos nuestra estetica, al igual que nuestra moral


de las necesidades de nuestro combate.
Bertolt Brecht

Já se disse, com vontade de diminuir, que a Companhia do Latão tinha a mania do ensaio. De fato, ela
apresenta seus trabalhos como ensaios, aproximações, experimentos. Em uma cultura que cada vez
mais apresenta veleidades como obras primas, apresentar trabalhos caprichados como ensaios é um
choque.
Denuncia, até sem querer, o estágio mais atual da comédia
intelectual brasileira: duas ou três mistificações, mais um assessor de imprensa fazem um luminar das
letras, artes ou ciências.
A circulação tornou-se definitivamente um fim em si mesma.
É contra este estado de coisas que a Companhia do Latão ensaia: contra o fetiche do produto, mesmo
suas peças mais acabadas se expõem como trabalhos,
aproximações. Acho que nisso se exprime tanto a sua vontade de reorientar a dramaturgia para as
questões que de fato interessam,
quanto a consciência de que esse objetivo, o mais simples e difícil de todos,
é inimigo jurado das mistificações
José Antonio Pasta

É no quadro cultural e político desesperador identificado pelo Arte contra a barbárie


que se organiza o coletivo teatral Companhia do Latão. A equipe reunida por Sérgio de
Carvalho em 1996, quando o grupo ainda não tinha sido “nomeado”, era composta por artistas
egressos da universidade. Segundo Sérgio de Carvalho, num primeiro momento, à equipe
interessava a pesquisa sobre a linguagem cênica, tópico muito comum no meio universitário e
também nas experimentações estéticas que orbitavam a década de 90 em busca de uma
“identidade artística”. Sérgio de Carvalho, jornalista, crítico teatral e dramaturgo – uma das
primeiras incursões na dramaturgia ocorreu em Paraíso Perdido, encenado pelo Teatro da
Vertigem em 1992 – convidou alguns artistas para a pesquisa em torno de A morte de Danton,
de Georg Büchner. O primeiro experimento foi dimensionado para atender a uma necessidade
de “teatro de pesquisa artística” e que em certa medida contemplava configurações esteticistas
acadêmicas. Parte da memória de formação do grupo pode ser recuperada nos textos
publicados em Introdução ao teatro dialético: experimentos da Companhia do Latão,
organizado por Sérgio de Carvalho, especificamente na entrevista de Márcio Marciano,
Trabalhadores do teatro, dramaturgo que assina, junto a Sérgio de Carvalho e colaboradores,
as peças da Companhia até 2006. Nessa publicação podemos encontrar artigos que tentam
22

trazer as questões do trabalho articulado da Companhia, na esfera dos espetáculos e também


na formação cultural do público.
A experiência em torno de A morte de Danton gerou inquietações que foram dirigidas
ao projeto seguinte, de ocupação artística do Teatro de Arena Eugênio Kusnet, com a pesquisa
em teatro dialético.
É elucidativa a explicação:

Entre as várias questões que tem na peça, você tem um debate sobre a crise
da representação e a gente lia como crise do próprio teatro. Então no Ensaio
sobre Danton a gente falava, meio filosoficamente: seja o que for essa peça,
ela tem que partir do desengano, a gente não pode querer enganar ninguém,
ela tem que assumir o fracasso da representação. Isso gerava experiências
teatrais muito interessantes. Houve uma grande reflexão sobre linguagem
teatral. A peça acontecia como uma peça-ensaio dentro do teatro revelando a
máquina do teatro; se a gente não assumir que é mentira a gente não avança
sobre a mentira. Era mais ou menos isso o campo do debate [...] Uma atriz
perguntou pra mim no meio dos ensaios: Sérgio, eu estou entendendo tudo,
mas a gente está a favor ou contra o Danton? E eu me dei conta de que eu
não tinha pensado sobre o assunto da peça até aquele momento. E eu percebi
uma coisa óbvia: a gente estava discutindo pesquisa de linguagem e reflexão
formal sem pensar na interação disso com o assunto da peça, a matéria. Eu
percebi que a gente não tinha um ponto de vista sobre a matéria histórica da
peça, o que naquele caso virava um disparate. No projeto seguinte a gente
não podia fazer só pesquisa de linguagem abstrata, a gente tinha que pensar
o que a linguagem induz, contém, problematiza ponto de vista sobre a
matéria da peça. Como eu penso a relação da forma e assunto. A gente
começa a estudar Brecht como alguém interessado na crítica dos modelos
convencionais de dramaturgia. Ler o Brecht, antes de ler como um autor
social e político, ler como alguém capaz de desmontar a política na forma.
Como alguém capaz de desvendar a ideologia na forma. Brecht faz perceber
que as formas são ideológicas, que as formas têm um ponto de vista 7.

Influenciados por Bertolt Brecht, na pesquisa em teatro dialético mencionada, o grupo


começa a conduzir seu método de trabalho. É interessante notar, contudo, que se a motivação
inicial de Sérgio de Carvalho esteve centrada, como nos anos iniciais de interesse por Bertolt
Brecht no Brasil8 − o grande teórico sobre teatro épico − na inovação teatral do dramaturgo
alemão, é no enfrentamento produtivo com o legado brechtiano que se dá a observação de que
a atuação estética em Brecht perpassa a discussão política: isso faz com que o itinerário de

7
Debate realizado na PUC- Rio de Janeiro em junho de 2011. Gravação, transcrição e edição da autora.
8
Na apresentação do livro Brecht no Brasil (1987) Wolfgang Bader salienta que a produção brechtiana foi no
Brasil introduzida por três vias distintas: pela tradução de obras iniciada nos anos 1940; pelas atividades teatrais
desenvolvidas especialmente em São Paulo por alemães exilados e pelo contato com as montagens teatrais do
dramaturgo pelos profissionais do teatro brasileiro em viagem à Europa. A nova concepção teatral de Brecht era
o assunto que unia os profissionais e intelectuais à época e até 1958 era matéria para especialistas.
23

politização do grupo tenha se iniciado pela percepção de que o fato artístico, como linguagem
esteticamente organizada, não se limita à expressão neutra, e que a modelagem, arquitetada
pelo artista, é feita conforme seu ponto de vista. Na palestra realizada por Sérgio de Carvalho
no 14º Simpósio Internacional de Brecht, realizado em maio de 2013 em Porto Alegre, o
dramaturgo e diretor “organiza” o trabalho da Companhia. Para Sérgio de Carvalho, “o
trabalho é mais importante do que a obra. A ideia de trabalho em processo artístico é um
conjunto de atividades”. A partir dessa premissa, o dramaturgo apresenta a trajetória de
trabalho. O primeiro espetáculo da Companhia, Ensaio sobre o latão, como coletivo, é uma
peça-ensaio baseada no estudo do texto de Brecht conhecido como A compra do latão. O
primeiro experimento é ensaio “no sentido teatral e teórico filosófico”. Nesse sentido, a
primeira referência de trabalho foi construída a partir das contradições formais: “Eu diria que
esse foi o primeiro ponto importante de contato com o Brecht: perceber que a forma é
produtiva na medida em que ela expõe suas contradições e ela instaura um trabalho no
espectador. Essa questão da contradição formal se dá em todos os níveis e pra nós tem um
aspecto central”. Nasce do contato com o legado de Brecht a consciência de que “qualquer
aproximação útil e atual sobre Brecht não tem que se aproximar de um estilo brechtiano.
Interessa nele uma atitude do trabalho, e essa atitude nasce do desenvolvimento das
contradições, que incidem também nas formas”. Resulta dessa consciência a identificação das
tendências formais dominantes do trabalho teatral e um procedimento comum nas peças é
coloca-las em estudo, em cena. “Um segundo passo, além dessa primeira influência
brechtiana, foi perceber que a atualidade de Brecht exigia uma consciência do que significa o
capitalismo na versão brasileira (...) Adotar o ângulo da periferia do capital e das suas formas
de representação dominantes para poder entender qual o sentido de uma crítica anti-dramática
na atualidade”, quando passou a ser importante compreender as feições da racionalidade
burguesa na estruturação das formas dominantes de representação. “Os trabalhos seguintes da
Companhia do Latão são trabalhos que enfrentam em dois níveis a questão brasileira: no nível
das formas de representação e no nível da tentativa de representar o aburguesamento
contraditório que ocorreu na nossa história. E lidando com esse fato fundamental que a ideia
de individuo é uma ausência histórica até muito recentemente no imaginário coletivo”. O
terceiro aspecto realçado pelo dramaturgo incide sobre a própria crítica ao conceito de cultura:
“Parte dos trabalhos do Latão começou a tratar da questão da representação e da ideologia da
representação, como tema. A própria questão do artista, a função do artista como abastecedor
do aparelho da cultura nos termos que o Brecht já descreveu no passado, na atualidade.
Passou a ser importante a partir daí descobrir formas atuais de representar isso, e o Latão
24

iniciou uma pesquisa sobre a ideia de um narrador desconfiável. Nós começamos a fazer
peças que o espectador deveria desconfiar do espetáculo e da ideia de espetáculo. É como se a
ideologia fosse um problema a ser enfrentado pelo espectador”. A partir da sua exposição
tendo a considerar por procedimentos de trabalho: o primeiro contato com o legado do
dramaturgo alemão se deu como uma necessidade de fundo representacional: a falência da
forma dramática, como já intuída no Ensaio sobre Danton leva a equipe a estudar o mais
significativo dramaturgo que teorizou sobre a construção de uma cena não-dramática. Após o
primeiro impulso, de ordem estética, a proposta brechtiana é estudada como uma forma que
contém um pressuposto anticapitalista, o que faz com que a equipe comece a também estudar
as formas do capital no Brasil, com grande influência de outros campos de conhecimento,
como os estudos de Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre e também no campo da
crítica literária, com os estudos de Roberto Schwarz, e junto a isso, o interesse em
“desmontar”, ou melhor, problematizar, as formas recorrentes do teatro brasileiro. Num
“terceiro momento”, acumulado um repertório de trabalho de processos e espetáculos teatrais,
bem como a investida a outros públicos que não frequentam as salas de espetáculo, a
Companhia desenvolve e amplia seu estudo para outras áreas artísticas, na esfera do
audiovisual e da música (o trabalho com a função da canção já estava presente desde o início
do grupo), buscando o que Sérgio de Carvalho nomeia como a crítica do conceito de arte e
cultura; a questão da representação e da ideologia da representação9. Ainda que seja uma
ordenação incompleta, deixa entrever como a relação do Latão com o método brechtiano se
move e é constantemente reavaliada nos termos de busca por sua atualidade; obviamente não
no sentido de uma reutilização esteticista, e sim de uma refuncionalização do teatro em época
e local diverso. Neste sentido, já na primeira peça de sua autoria, como coletivo, o grupo
demonstra saber que horas são.
No prólogo de O nome do sujeito, que teve sua estreia em São Paulo em 1998, o
personagem Regente avisa que o teatro, como o público percebe, se encontra em total
escuridão. O personagem retorna, ao final do espetáculo, explicando que passou todo o tempo
da apresentação tentando encontrar a causa do “apagão” e o que encontrou foi um fio
desencapado; como não soube resolver a pane elétrica tentou desesperadamente encontrar um
especialista para tal fim, afinal, como homem comum, apenas conseguiu identificar o
problema. Não o encontrou e, sozinho, questiona o público: o que fazer?

9
A transcrição desta apresentação de Sérgio de Carvalho no 14º Simpósio Internacional de Brecht pode ser
consultada nos anexos.
25

A pergunta, escapando à peça, foi feita a Alfred Döblin, citado por Walter Benjamin
no ensaio O autor como produtor, sobre a posição do intelectual engajado às necessidades da
classe operária, em uma sociedade em transformação. A resposta dada, conforme a
compreensão de Benjamin, diz que cabe ao intelectual se colocar como um protetor, um
mecenas ideológico da classe operária, posição que é refutada ao ser comparada às
proposições brechtianas10. Para Brecht, a refuncionalização teatral é direcionada para

uma inteligência progressista e, portanto, interessada na liberação dos meios


de produção, a serviço da luta de classes. Brecht foi o primeiro a confrontar
o intelectual com a exigência fundamental: não abastecer o aparelho de
produção, sem o modificar, na medida do possível, num sentido socialista.
(BENJAMIN, 1994, p.127)

Retomando a peça do Latão, que esclarece sua função no meio teatral, a pergunta o
que fazer, mais do que uma questão apresentada pelo assunto da peça, também é um
questionamento para os artistas. O que fazer quando artistas creem estar produzindo algo
funcionalmente novo, quando, no muito, estão reproduzindo uma imagem caduca? De ser um
especialista da arte supondo isento de qualquer determinação?
No texto Na contramão da forma-mercadoria, transcrição de um depoimento no
seminário “Teatro de grupo: reinventando a utopia”, realizado pelo grupo Tribo de Atuadores
Ói Nóis aqui Traveiz, em novembro de 2005, Sérgio de Carvalho explicita as condições e
pressupostos políticos do Latão:

Como todos que precisam trabalhar para viver numa sociedade organizada
pelo capital, os integrantes do nosso grupo perceberam que a decisão de
exercer o teatro como profissão configura uma entrada direta num mundo, o
da mercadoria, que organiza a vida de qualquer trabalhador. O desafio,
diante disso, seria não sucumbir à lógica mercantil. Seria expandir as
brechas, procurar margens do mercado, o que exigiria de nós uma
consciência prática sobre os meios de produção capaz de modificar a nossa
inserção no aparelho teatral, e quem sabe um dia, mudar o próprio aparelho
teatral. Ainda acho que o teatro, sem deixar de reconhecer a época em que se
insere, só faz sentido quando nos faz ver o que está para além do mundo do
capital, na contramão dos padrões convencionais de circulação. A nossa
atuação procurou sempre enfrentar essa ambivalência. Na história da
Companhia do Latão, só viemos a vislumbrar um modo real de tensionar
nossa relação com o sistema das artes quando nossa vida artística nos levou a

10
Há que se considerar, também, que reverbera pelo questionamento o título de famosa reflexão, com
acentuação prática, proposta por Vladimir Lênin, em Que fazer? As questões palpitantes do nosso movimento,
publicado em 1902. Para Lênin, nas conclusões do referido texto, é preciso recuperar um marxismo militante,
“contra um burocratismo revolucionário e uma tendência pueril em brincar com as formas ‘democráticas’” (p.97)
a que estavam identificadas o movimento social-democrata russo. In: LENIN, Vladimir. Que fazer? As questões
palpitantes do nosso movimento. www.marxists.org. Acesso em 30 de outubro de 2013.
26

dialogar com públicos que não iam ao teatro para “consumir” cultura. Com
plateias que têm uma relação mais funcional com a arte, como por exemplo,
os integrantes do MST (...). Por outro lado, esse contato com grupos que
também trabalham na contramão da ideologia dominante, só nos confirmou a
sensação de que é muito importante que o pensamento de esquerda ocupe
núcleos centrais de irradiação do imaginário. (CARVALHO, 2009a, p.147-
148)

Entre o trabalho feito em assentamentos e sindicatos, como foi o caso durante o


processo de encenação de Santa Joana dos Matadouros em 1998, texto de Brecht de 1929, e a
montagem de A comédia do trabalho em 2000, ou ainda com o intenso envolvimento com o
projeto Brigadas de teatro, fomentando oficinas e experimentos junto a movimentos sociais
como o MST, o Latão mantém uma ocupação dos “teatros convencionais”, buscando
“refuncionalizá-los”, sabendo do caráter relativo dessa tentativa.

Então, tornaram-se importantes duas coisas: produzir processos teatrais que


sejam referências para a discussão do que significa produzir um teatro crítico
(oferecendo novos modelos para aqueles que estão formulando o imaginário
coletivo), a ponto de entrar em atrito com a expectativa do aparelho. E, ao
mesmo tempo, dialogar com novos públicos que estão à margem do
mercado. Toda vez em que levamos um espetáculo complexo do ponto de
vista da invenção estética a uma plateia popular, não procurando mascarar a
diferença de perspectiva poética que embute diferenças de classe, e
podemos, ao mesmo tempo, debater a experiência com os espectadores,
refletir sobre os temas anticapitalistas da peça, uma contradição se torna
produtiva. Toda vez que parte das cadeiras de um grande teatro burguês é
ocupada, nas nossas apresentações, por espectadores do MST, que ali foram
espontaneamente porque acompanham o trabalho da Companhia do Latão,
essa contradição se torna produtiva. Nesses dois casos surge uma tensão de
pontos de vista na plateia que tem efeitos simbólicos. (CARVALHO, 2009a,
p.149-150)

Como é possível constatar, as bases nas quais se assenta o trabalho do Latão


convergem para a explicitação das contradições e antagonismos de classe, que obviamente
não habitam apenas a esfera teatral. Dessas contradições se busca retirar um aprendizado, ou
ainda, algo produtivo, tanto para o grupo quanto para os espectadores.
O Latão mantém uma intensa produção, incluindo uma formação pedagógica através
de ciclos e palestras com pesquisadores das mais diversas áreas, buscando neles interlocutores
de trabalho. Todo o empenho se dirige para uma “provocação” de questionamentos, de
público e artistas, tendo como pano de fundo a convicção de que só é possível continuar
trabalhando se constantemente as condições do trabalho no mundo do capital forem
problematizadas. Ao que parece, o teatro não se tornou algo completamente dispensável na
27

luta anticapitalista, pois por sua excepcional feitura artesanal, de explícito trabalho dos atores
em cena, ainda pode contribuir na formação de um imaginário coletivo de superação dessa
condição.
Não é irrelevante, também, anotar como a produção intelectual acadêmica, junto à
prática teatral com público variado, repercute no trabalho da Companhia. Uma das influências
na formação do grupo advém do estudo de José Antonio Pasta Jr sobre o trabalho de Brecht.
Segundo Sérgio de Carvalho

Ao estudar como Brecht foi capaz de converter a “falta de imediatidade” em


gesto produtivo, José Antonio Pasta parecia buscar, naquele início da década
de 1980, um modelo de ação intelectual em meios culturais hostis a qualquer
contestação do ideário liberal-conservador. Assim como Anatol Rosenfeld
lhe ensinou que o esforço clássico é sempre uma luta contra os “poderes
noturnos”, este livro nos transmite um modelo de superação de uma
impossibilidade que Brecht chamava de “grande desordem”. Talvez por isso
sua primeira edição tenha inspirado o trabalho de alguns jovens grupos de
teatro de São Paulo, entre os quais a Companhia do Latão, que deve sua
origem à influência inventiva desta obra. (CARVALHO apud PASTA,
2010)

Em Trabalho de Brecht, breve introdução ao estudo de uma classicidade


contemporânea, José Antonio Pasta Júnior analisa a composição do trabalho brechtiano pelo
“seu desejo de nascer como clássico, sem aguardar o trabalho do tempo”. Segundo o autor

Fazer-se clássico (...) significa postular, basicamente, o mesmo valor de


referência monumental e incontornável, os mesmos alcance coletivo e
influência modelar – valor de paradigma −, contando, para isso, apenas com
a força de seu próprio trabalho em marcha, com a capacidade de organizá-lo
e potenciá-lo para a consecução de um fim que, por definição, parece
exceder desmedidamente o seu alcance, por maior que ele seja. É evidente
que tal projeto implica desenvolver e exercitar uma agudíssima
autoconsciência do fazer poético (PASTA, 1986, p.23).

A análise abriga o trabalho de Bertolt Brecht como composição que se dá no diálogo


com os clássicos, contrapondo-os e assimilando-os, na problematização do campo modelador
como um campo de luta. A análise da obra de Brecht problematiza os riscos da intenção
paradigmática quando mesmo a obra está em processo de composição deixando rastros de sua
incompletude, assumindo-os como registros de autorreflexão que se chocam para o intento
primeiro de constituição de um campo organizativo da cultura. A obra brechtiana “não se
deixa perder na conflagração das contradições que aciona e dos embates que produz; ela os
28

organiza, a esses embates, e se organiza através deles, espécie de objeto estável e


conflagrado”. (p.24)
A falta de imediatidade – condição imposta pelo exílio e suas consequências no
trabalho – exigirá uma resposta radical do dramaturgo alemão: “ele irá trazê-la para o centro
problemático de sua produção. A distância, o descentramento e o risco de desagregação a que
era submetida, a produção de Brecht irá internalizá-los, transformando-os dialeticamente em
seu próprio motor”.( PASTA, 1986, p.178)
A ausência do imediatismo político utilizada para se pensar o projeto clássico da obra
brechtiana, é articulada aqui para a análise do projeto do Latão. Pasta, por exemplo, compõe o
seu argumento, também, a partir da aproximação entre Brecht e Maiakovski e ressalta os
distintos momentos das suas produções. A consequência do exílio na obra de Brecht não
corresponde à produção ritmada pela marcha da revolução como em Maiakovski, em que não
há separação entre sua obra e o seu exterior; “sente-se o seu percurso como consubstancial ao
percurso da Revolução e, neste sentido, mesmo a sua morte, em circunstâncias de
endurecimento e refluxo, sente-se quase como um símbolo” (PASTA, 1986, p.179). O artista
revolucionário russo elabora uma teoria do imediato, produzida no fluxo revolucionário. A
Alemanha na qual Brecht poderia conduzir-se na indistinção obra e conjuntura, elaborando
seu trabalho conforme as necessidades imediatas e respondendo-as imediatamente, “via-se
transformar na pátria da contra-revolução” (PASTA, 1986, p.178). As contradições do exílio
de Brecht impulsionaram um trabalho que internalizou a falta de imediatidade, “analisando-a,
examinando-a sob cada um de seus aspectos, verificando o seu sentido sob diversos ângulos e
interrogando suas causas e suas consequências na esfera estética e social” (PASTA, 1986,
p.182). Mais do que produzir um discurso sobre a distância entre obra e condições reais para a
revolução, a obra brechtiana incorporou-a como assunto. A vida de Galileu, peça de Brecht, é
a obra por excelência da separação; assim como as personagens cindidas, que não produzem
uma consciência de si, de Mãe Coragem; O Sr. Puntila e seu criado Matti; e A alma boa de
setsuam.
Em Brecht a falta de imediatidade incorporada pela composição artística deveu-se ao
exílio diante a ascensão nazista que o obrigara a se afastar da Alemanha por 15 anos, de 1933
a 1948, e às suas consequências no mundo do trabalho teatral e o ascenso da indústria
cultural, contribuindo para um refluxo produtivo de seu engajamento político para os temas de
suas peças. O projeto do Latão em muito articula o princípio organizador da obra de Brecht,
como apresentado por Pasta (1996)
29

Perdida a imediação, mais feliz, de que desfrutava, a obra de Brecht não


ficará presa a sua impossibilidade. O gesto literário que não mais pode se
conectar com o contexto imediato, a que se integra e de que se realimenta,
passa agora a desferir-se no âmbito da própria obra, na qual se conecta,
construindo-a como conjunto integrado, “domesticum”. A obra – e o trabalho
de fazê-la – passa a ser, em certa medida e num sentido novo, o contexto de
sua própria produção. Que nela própria conecta e integra ao mesmo tempo
que nela retoma alento e impulso de auto-superação. Devendo, num certo
sentido, bastar-se, a obra suscita um mundo, que ao mesmo tempo a
constitui, a sustenta e lhe permite avançar. (PASTA, 1986, p.180)

O princípio organizador de trabalho do Latão é uma tentativa de compreensão


inteligível dos processos sociais pela formalização artística, coisa que parece não fazer sentido
aos que acreditam que a arte, ou o teatro, não se constitui como uma produção, ou por outro
lado, não se constitui como uma esfera de representação ideológica. De um lado, a busca em
narrar o mundo como transformável é representado pelas contradições do próprio
pensamento comprimido pela distância das condições reais de transformação e por isso o
empenho da Companhia circunscreve-se num imaginário dialético que põe em perspectiva as
representações hegemônicas e as desloca, acionando temas em torno da formação capitalista
no Brasil, para o exame crítico representacional do consumo de imagens, naquilo que Sérgio
de Carvalho chamou de confrontação dos padrões ideológicos representacionais com as
práticas materiais. Em algumas peças, é no tema trabalho intelectual que reside a potência
simbólica da produção do grupo e a internalização de sua consciência sobre a não
imediatidade de sua proposição. Como se não bastasse essa consciência, porém advinda dela,
o campo de construção dramatúrgica é colocado em suspeição já que reconhece as
circunstâncias dramáticas, com personagens com integridade psicológica, insuficientes para a
representação dos mecanismos de formação capitalista na sociedade brasileira.
Há que se considerar que os ensaios cênicos e a produção teórica do Latão, registrado
no livro Introdução ao teatro dialético, além da publicação da Revista Vintém (oito edições
entre 1997 e 2013) e do Jornal Traulito (oito edições entre 2010 e 2013), juntamente com a
publicação de suas peças nos dá a medida de seu empenho em partilhar e tornar claros seus
pressupostos de trabalho.
Retomo, brevemente, buscando apresentar a produção intelectual do grupo, e como se
dá o diálogo de forma produtiva, o debate entre Roberto Schwarz e Sérgio de Carvalho,
pautada por dois artigos. O artigo Altos e baixos da atualidade de Brecht, de Roberto
Schwarz, resulta da transcrição de uma palestra realizada em 1997, após a leitura de Santa
Joana dos matadouros, promovida pela Companhia, com algumas alterações. O artigo
30

Questões sobre a atualidade de Brecht de Sérgio de Carvalho é uma transcrição de sua


intervenção durante a homenagem à Schwarz, promovida pela Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, em 2004. O estranhamento, ferramenta
estético-política teatral que por Brecht foi amplamente utilizado para possibilitar o
distanciamento crítico do espectador, é um dos elementos tratados, neste debate, para se
pensar a atualidade de sua proposta. Ambos buscam problematizar seu alcance e eficácia no
mundo contemporâneo. Roberto Schwarz aponta na palestra realizada após a leitura de Santa
Joana que a

A técnica do distanciamento, que vocês viram usado aqui nessa encenação, o


que é que ela faz? O ator em lugar de se identificar ao seu papel – papel que
corresponde mais ou menos ao funcionamento normal e corrente da
sociedade – o ator toma distância dele e mostra esse papel ao público, mostra
esse papel a uma outra classe social, com interesses contrários,
eventualmente mostra esse papel a si mesmo. Ele não se identifica, ele
guarda distância, ele guarda um espaço de liberdade em relação ao seu papel,
em relação à ordem social que está sendo mostrada ali em cena, e com isso,
ao se desidentificar dessa ordem, ele aponta para a possibilidade de uma
outra ordem, dando acesso ao novo (...). Bem, esse horizonte realmente
encheu de entusiasmo a minha geração (...) Esse sistema de expectativas ou
esse horizonte deixaram de existir. A data brasileira de mudança foi 1964, ou
68, conforme o ponto de vista. Hoje isso tudo funciona de outra maneira. E
uma encenação atualizada de Brecht tem que levar em conta essas mudanças
(SCHWARZ, 1998, p.30)11.

Para o crítico, as mudanças de conjuntura da sociedade brasileira, comparada a


expectativa revolucionária dos anos 60 e os dias que correm, comprovam que não basta a
apresentação, ou ainda, o conhecimento, seja do público ou do palco, quanto à naturalização
de condições que não são naturais e sim sociais, para que mudanças sejam efetivadas. Sérgio
de Carvalho, salvo engano, parece caminhar para uma reflexão sobre, também, a eficácia da
técnica, contudo, como recurso simbólico,

Está longe de ser de conhecimento geral que as representações humanas não


são naturais. Os véus ideológicos contemporâneos são muito fortes e
elásticos, e mesmo que não sejam mais baseados nas crenças tradicionais (ou
no idealismo clássico) continuam hábeis em eternizar as dinâmicas
totalizantes do capitalismo em imagens de aparência eterna. (...) É um outro
estágio do processo de naturalização, em que o conhecimento de que o
dinheiro não é a alma das coisas do mundo pouco pode diante da sua
violência material quando diz que é (CARVALHO, 2009a, p.50).

11
Revista Vintém, nº 1, 1998.
31

Para confirmar o argumento, Sérgio de Carvalho destaca a trajetória da peça Santa


Joana dos Matadouros, e ao fazer isto reforça um elemento importante na construção da obra,
o trabalho do espectador. Sobre a proposta brechtiana, continua

Seu método de geração de produtividade não pode ser julgado como uma
configuração absoluta, puramente dependente do engajamento, pois sua
qualidade fundamental é a exigência dialética de atualização. Nenhum dos
gestos materializados nas peças existe sem a relação com o que está fora
dele, o que nos sugere que a validade da estratégia de desautomatização
depende do modo com que a dialética da cena (a “imagem praticável do
mundo”) modifica a função convencional do teatro. Mas é claro que pensar a
relação possível entre pesquisa da vida contemporânea, reflexão estética e
radicalização política depende de uma disposição à luta anticapitalista, que
hoje procura suas novas formas (CARVALHO, 2009a, p.53).

Vejamos que Sérgio de Carvalho não assenta a produtividade da obra de Brecht


naquilo à que habitualmente é reconhecida, a saber, no engajamento. Para o dramaturgo, o
método do trabalho de Brecht − que na identificação de José Antonio Pasta é vislumbrado
pela falta de imediatidade, sem contudo através de sua poética buscar o impulso de auto-
superação − exige que a crítica anticapitalista se faça a partir da materialização das
contradições em cena, articulada e problematizada à expectativa convencional do teatro. Por
isso que a própria crítica precisa “atualizar” Brecht. Portanto, deste encontro, e debate,
destaco a observação de Schwarz quanto a uma outra condição histórica:

Como sabem os tradutores, a linguagem nua dos interesses e das


contradições de classe, que imprime a nitidez sui generis à literatura
brechtiana, não tem equivalente no imaginário brasileiro, pautado pelas
relações de favor e pelas saídas da malandragem. A inteligência de vida que
está sedimentada em nossa fala popular tem sentido crítico específico,
diferente da gíria proletária berlinense, educada e afiada pelo enfrentamento
de classe. Conforme um descompasso análogo entre as respectivas ordens do
dia, o nosso zé-ninguém precisava ainda se transformar em um cidadão
respeitável, com nome próprio; ao passo que para Brecht a superação do
mundo capitalista, assim como a disciplina da guerra de classes, dependiam
da lógica do coletivo e da crítica à mitologia burguesa do indivíduo avulso.
Em suma, as constelações históricas não eram iguais, embora a questão de
fundo – a crise na dominação do capital – fosse a mesma, assegurando o
denominador comum (SCHWARZ, 1999, p. 121).

O debate intelectual gera produção – não gratuitamente uma das investigações do


Latão procurou enveredar pelo nome do sujeito. No início de seu projeto estético, quando o
Latão se apoia no método brechtiano, tateando-o, um dos maiores críticos literários brasileiros
desfere um raio num céu sem nuvens e começa sua palestra com observação: “quero começar
32

explicando o ponto de vista segundo o qual Brecht hoje não tem atualidade nenhuma”
(SCHWARZ, 1999, p.113). E de certo modo, a provocação inicial reverbera como produção
intelectual, dramatúrgica e cênica, rastreando temas em que a crítica anticapitalista se faz pelo
entendimento das condições do capitalismo no Brasil, que se apresentam, objetivamente, pela
reflexão da própria forma de representação.
Como peças-ensaios, cada objetivação dada pela representação recebe tratamento
específico. As peças de autoria da Companhia – assinadas pelos dramaturgos Sérgio de
Carvalho e Marcio Marciano que dão o tratamento final, ou ainda, responsáveis por sua
composição − foram organizadas, no volume Companhia do Latão 7 peças, publicação de
2008, em três sessões: I. Imagens do Brasil, com O nome do sujeito, A comédia do trabalho e
Auto dos bons tratos; II. Cenas da mercantilização, com O mercado do gozo e Visões
siamesas e III. Releituras, com Ensaio para Danton e Equívocos colecionados. Não à toa que
os textos foram assim posicionados: se olharmos em seu conjunto há uma poética em
formação que em muito se organiza pela problematização das formas representacionais
eleitas, pela problematização das contradições precipitadas na forma; divididas pelos assuntos
caros ao Latão (Imagens do Brasil e Cenas de Mercantilização), oferecem uma leitura
organizada, e pedagógica, sobre a matéria social. Segundo Maria Silvia Betti

O mapeamento crítico resultante permite tratar de questões desafiadoras,


dotadas de ampla envergadura histórica, crítica e figurativa. É a sua
realização que dá margem à representação de aspectos cruciais do processo
histórico brasileiro, como os mecanismos pelos quais a intelectualidade do
país racionaliza e justifica o ato de se deixar instrumentalizar pelo poder, ou
de aspectos inerentes ao capitalismo contemporâneo, como a impregnação
dos bens simbólicos e das relações sociais pela lógica da mercadoria, e o
contraste entre o desmonte do trabalho e a multiplicação mercadológica de
empreendimentos culturais geridos por industriais e banqueiros. A forma
como o Latão realiza o processamento dramatúrgico e cênico de questões de
tão amplo espectro histórico e densidade conceitual é ímpar, no teatro
brasileiro, como trabalho efetivamente épico e dialético (BETTI, 2010,
p.183)

Na publicação das peças, Sérgio de Carvalho apresenta os textos, de assunto originado


coletivamente, como o resultado de um aprendizado comum que, em certa medida, registra a
herança intelectual e estética de George Büchner e Bertolt Brecht. Para Carvalho, as peças-
ensaios, frutos dos “anos de aprendizagem”, procuram demonstrar

uma produção de tentativas, pesquisas, experimentos sobre uma teatralidade


em que os padrões ideológicos da representação são confrontados com as
práticas materiais, com experiências vivas dos atores e dos espectadores a
33

respeito das formas atuais da mercantilização e da luta de classes


(CARVALHO, 2008, p.11).

No prefácio da publicação, Iná Camargo Costa afirma que a Companhia do Latão


“nunca se enganou sobre as condições em que desenvolve o seu trabalho nem sobre os seus
limites, embora desde o início seja visível seu empenho em confrontá-los e, sempre que
possível, ultrapassá-los” (COSTA, 2008, p.15). Trocando em miúdos, a Companhia sabe que
produz um teatro crítico em condições hostis e incorpora, em seu trabalho, essa consciência.
O projeto do Latão só pode ser responsável ao compreender e empreender em sua obra seus
próprios limites afirmando que a reflexão estética e histórica tem alguma produtividade se
encarar, sem mistificações, seu próprio trabalho diante de uma situação ideológica que
reiteradamente desqualifica o próprio pensamento12.
Em um breve texto de 2003 intitulado Por um teatro materialista, Sergio de Carvalho
e Marcio Marciano13, apresentam suas reflexões sobre a utilidade do grupo como produtora de
representações, deixando claro que buscam uma oposição “aos modos hegemônicos da
atividade artística”. (CARVALHO, 2009a, p.165). Os autores defendem a construção de um
teatro que já na sala de ensaio supere as especializações, transplantando para o palco, e talvez
para o público, um processo coletivizante de trabalho e nessa perspectiva reative criticamente
o debate sobre a função da arte tendo como fim último a produção de “formas capazes de
incluir a sociedade como um todo numa perspectiva revolucionária, num projeto coletivo
anticapitalista”. (CARVALHO, 2009a, p.167).
Compreendido como um texto-manifesto, publicado originalmente na revista O
sarrafo, de organização do grupo Folias D’Arte, os dramaturgos problematizam a produção
cultural na sociedade capitalista e buscam um debate sobre os limites e possibilidades de
construção de um imaginário a partir de uma dialética que gera o futuro e flagra as condições
do presente. Inserida no debate sobre dramaturgia e teatro brasileiro, o projeto em construção,
com algo do impulso organizativo, integra pesquisa estética e política; propõe assuntos que
escapam ao interesse dramático, hegemônico, e com isso interfere pedagogicamente pela
torção da formalização adotada.
12
Na resenha O elogia da dialética: algumas observações sobreo teatro engajado da Companhia do Latão,
Gabriel Alves de Campos (2011) identifica a dramaturgia do Latão como um trabalho de pesquisa que opera na
contramão ao “processo de modernização conservadora; utilizando-se do mecanismo de distanciamento, a cena
contrasta com a harmonização das diferenças do mundo mercantil e lança a pergunta no seio da evidência
fazendo pulsar as contradições que a ideologia procura manter em repouso”. In: Revista Crioula. São Paulo,
n.10, novembro. 2011.
13
Marcio Marciano dedica-se desde 2007 ao projeto do Coletivo Alfenim desvinculando-se do Latão.
34

Do ponto de vista teórico, portanto, é possível perceber a clareza dos procedimentos


que nutrem a prática teatral, contudo se faz interesse do presente estudo compreender como o
projeto ideológico, compreendido como a crítica de caráter anticapitalista de fato se
materializa nas peças, em específico, em Ópera dos vivos. Passo, então, a alguns
apontamentos sobre suas peças, utilizando como referências outros estudos acadêmicos e
muito das observações de Iná Camargo Costa registradas no prefácio da publicação das peças
de autoria do grupo, e com mais detalhamento, adiante, à peça Ópera dos vivos − tal escolha,
a de debruçar com mais precisão na encenação estreada em 2010, justifica-se por
oportunidade de pesquisa – enquanto definia o projeto de doutoramento o grupo estreia no
Rio de Janeiro – e, obviamente, por interesse específico – construída ao longo de três anos de
pesquisa, pode ser lida como o “acúmulo” de experimentos e estudos realizados em treze anos
de formação. Para a abertura da publicação de uma entrevista que Iná Camargo Costa realizou
com Sérgio de Carvalho em 2008, publicada na Revista Crítica Marxista14, a crítica faz uma
observação que cabe a atuação do Latão até o presente

o trabalho de 1997, Ensaio sobre o latão, contém algumas das questões que
ainda hoje norteiam os experimentos da companhia: possibilidades e limites
do trabalho teatral em tempos de total colonização da sensibilidade e
imaginário pela indústria cultural; desafios práticos e teóricos postos desde
sempre aos que se dispõem a fazer teatro ou qualquer modalidade de arte
consequente no Brasil; e, sem esgotar a pauta, a busca de uma cena em que
as formas da sociabilidade brasileira possam ser examinadas sem
complacência (COSTA, 2008, p.168).

Não foi possível, ainda que entenda os limites de tal opção, desenvolver análises sobre
as produções do grupo em materiais audiovisuais, como poderia encaminhar as discussões
sobre os vídeos do DVD duplo Experimentos videográficos da Companhia do Latão, ou ainda
nos estudos que são feitos em cena, sobre o uso da canção – o Latão produziu dois CD’s
contendo as canções dos trabalhos teatrais. Breves notas sobre esses procedimentos irão
aparecer no presente estudo. Além disto, indico que serão contempladas na tese as peças
publicadas em Companhia do Latão: 7 peças, sem considerações sobre as representações de
peças que não são de autoria do grupo ou dos dramaturgos Sérgio de Carvalho e Marcio
Marciano − Santa Joana dos Matadouros e O círculo de giz caucasiano, ambos de Bertolt
Brecht, estreadas pelo Latão em 1998 e 2006, respectivamente; salvo a última peça, O patrão

14
Revista Crítica Marxista nº 26, 2008, p. 168-174.
35

cordial (2012), que tendo como ponto de partida a peça O Senhor Puntila e seu criado Matti,
é identificada como um “roteiro escrito com base em improvisação de atores”.
Antes de iniciar a próxima seção, faço uma última ressalva: ausentam-se
considerações sobre a peça Ensaio para Danton, por ter sido considerada o “pré-projeto” da
Companhia, como identificado nas entrevistas de Sérgio de Carvalho, embora tenha sido
anotado no primeiro experimento da equipe o impulso do que seria o seu projeto estético (e no
volume Companhia do Latão: 7 peças, o texto foi apresentado da seguinte forma: Ensaio para
Danton estreou no Teatro Cacilda Becker, São Paulo, em 18 de outubro de 1996, pela
Companhia do Latão). Segundo Iná Camargo Costa, as intervenções dos artistas brasileiros no
material de Georg Büchner mostraram o interesse pelas contradições reais da Revolução
Francesa. Uma delas faz referência à forma como os personagens que abrem e fecham o
espetáculo são os excluídos das conquistas revolucionárias. A outra diz respeito a
desmascarar a contradição pressuposta no discurso burguês sobre os direitos (CARVALHO;
MARCIANO, 2008, p.24). A peça foi novamente encenada em 1999 (o texto publicado
refere-se a essa versão), e quando de sua temporada, Marcelo Coelho anota o efeito cômico e
a relevância política advindos da subversão do texto original. Tal questão, a do efeito cômico,
não foi levantada por críticas feitas durante a primeira encenação, a saber, de Mariângela
Alves de Lima e Carmelinda Guimarães e as observações se referem mais aos temas teatrais
contemporâneos – solidão, desesperança − e ao sentimento de fracasso coletivo. Fica a
impressão, através das críticas jornalísticas, que após o contato com o método brechtiano em
1997, como dito pelo diretor da Companhia, o material tenha sofrido modificações cênicas
buscando o tensionamento entre texto e cena e se voltando, com mais força contraditória, à
relação palco e plateia15.

15
As críticas podem ser acessadas no site da Companhia: www.companhiadolatao.com.br. Acesso em 28 de
outubro de 2013. A crítica de Mariângela Alves de Lima, Peça discute revolução impossível, foi publicada no
jornal O Estado de São Paulo em 8 de novembro de 1996. A crítica de Carmelinda Guimarães, O prazer de
poder recomendar um bom espetáculo, foi publicada no jornal A Tribuna de Santos em 01 de novembro de
1996.
36

É TEMPO DE DESTRAMBELHAR

A primeira peça de autoria do coletivo teatral após o estudo em teatro dialético, O


nome do sujeito, teve sua estreia em 9 de outubro de 1998, no Teatro de Arena Eugenio
Kusnet. Segundo Marcio Marciano, após três trabalhos feitos a partir de intervenções em
materiais pré-existentes − Ensaio para Danton (1996), Ensaio sobre o Latão (1997) que
tratarei nas notas finais, e Santa Joana dos matadouros (1998) −, o grupo teve necessidade de
“tentar uma intervenção mais direta na realidade social brasileira a partir de uma dramaturgia
própria” (MARCIANO, 2009, p.185).
Em nota da publicação16, soma-se à leitura do poema dramático Fausto de Goethe,
materiais recolhidos de Assombrações do Recife Velho de Gilberto Freyre para a composição
da peça. Ainda Márcio Marciano lembra que a equipe percebeu, ao estudar o Recife antigo,
que o processo de modernização que abria a cidade às inovações técnicas dadas pelo sistema
escravista se assemelhava ao projeto econômico do então presidente Fernando Henrique
Cardoso, nas mesmas bases conservadoras17.
Há dois prólogos na peça: o primeiro ocorre na rua, tendo como personagens o
Bonequeiro e Ludwigo e outro, como citado anteriormente, se dá no teatro. Nessa articulação
de dois prólogos, a problematização do “mito do palco”, como diz o dramaturgo Márcio
Marciano, se faz já na rua, sem meias palavras, através do boneco Ludwigo: interessa ao
público apenas um tema universal, o dinheiro. Claro que a lembrete dirigido ao espectador-
burguês, feita por um boneco irônico, produz riso no público, constituindo uma primeira
tensão na representação. Aparece uma oposição entre os artistas da rua – miseráveis e sem
nenhum recurso – e o “templo” teatral, supostamente mais rico, questão que será desmentida
pela “falta de luz” no recinto. Ainda é interessante observar que na publicação da peça, a
epígrafe de Louis L. Vauthier, diga sobre a miséria do teatro. “Miséria”, em O nome do
sujeito, cênica, por levar ao palco tão poucos recursos ilusionistas, ricos, entretanto, em tentar
produzir uma nova relação com o espectador; “miséria teatral”, por perceber as condições de
trabalho dos artistas à época em que o projetista do Teatro Santa Isabel, anotou em seu diário

16
CARVALHO, Sérgio e MARCIANO, Marcio (orgs). Companhia do Latão 7 peças. São Paulo: CosacNaify,
2008. As citações de trechos das peças fazem referência a essa publicação. O livro é prefaciado por Iná Camargo
Costa.
17
Ressalta Rodrigo de Freitas Costa (2011) que à época o Latão estudava o livro Tudo que é sólido desmancha
no ar, de Marshall Berman, o que conferia à peça um sentido de compreensão sobre a modernidade, questão que
procurará rastrear nas peças do Latão, especificamente em O nome do sujeito e O mercado do gozo (a peça
estreia em 2003), por esta fazer referência a um poema de Baudelaire.
37

em 15 de outubro de 1849 e também em 1998, bem como de todos os personagens que serão
vistos em cena. Segundo Iná Camargo Costa

Uma das maiores virtudes de O nome do sujeito é aquele enquadramento:


enquanto o narrador introduz e especifica o ponto de vista a partir do qual o
espetáculo está sendo apresentado. São intervenções que mostram que o
espetáculo não tem pretensão de ser o que não é. De início ele assume o
ponto de vista da obscuridade e no final tem aquela cena da fotografia em
que alguém diz: eu preciso de luz. E aí se apaga tudo. Eu não consigo
imaginar maior consciência de ponto de vista. Quando não se participa de
um movimento coletivo, o importante é tentar entender o que se passa. E não
fazer de conta que está acontecendo alguma coisa que não está 18.

Ainda segundo a autora, no prefácio da publicação Companhia do Latão: 7 peças

situada no Recife do século XIX, a peça incorpora a visita do Imperador, o


anúncio de empréstimos internacionais ao país, a vida popular na feira e,
principalmente, expõe a fáustica trajetória do intelectual a favor, que nem ao
menos se dá conta da contradição entre ser humanista e ter escravos, sem
falar na quantidade de serviços sujos que presta a seu grão-senhor que, em
decisão política do texto, não comparece em pessoa à cena, configurando
pela ausência uma de suas maiores verdades. O herói de nossas letras (ou da
burocracia, tanto faz) compra escravos, arregimenta jovens para serem
exploradas sexualmente, compra o silêncio da testemunha do crime do Barão
e assim por diante. Ao final cuida ainda de sua sucessão, ao aliciar o
trabalhador português, que começou a entender melhor a regra do jogo
quando vendeu o seu silêncio, para trabalhos de maior responsabilidade,
como promover incêndios que podem beneficiar a causa da especulação
imobiliária aliada à limpeza-étnica. A trajetória deste trabalhador, de semi-
escravo do comerciante a assecla do Barão, por sua vez, serve ao Latão para
iluminar, tanto no sentido próprio (da cena), quanto no figurado, uma face
até hoje pouco explorada da constituição da classe trabalhadora brasileira e a
necessidade de se recorrer às melhores técnicas de iluminação, tanto do
nosso passado quanto do nosso presente, se o objetivo for mostrar o mundo
como transformável. (COSTA, 2008, p.26)

A partir das considerações de Iná é possível perceber alguns temas do espetáculo: a


constituição da classe trabalhadora brasileira, no jogo de favores, junto à própria dimensão do
trabalho intelectual, também a serviço do capital. Vejamos, então, as duas questões que
rondam esse primeiro experimento autoral da Companhia: uma que diz respeito à sua própria
condição de artista, e do teatro em fins da década de 90 e outra, que a reboque da primeira, faz
referência ao contexto político e econômico da época estudada. Em busca de tentar

18
A citação foi retirada do site: www.itaucultural.org.br. Acesso em 27 de outubro de 2013. Segundo
informações do site, o texto de Iná Camargo Costa pode ser encontrado em Por um teatro épico. Vintém, São
Paulo, ano 2, n.3, p.12-17.
38

compreender a formação brasileira, o grupo se aproximou das condições de “formação do


sujeito burguês” em meados do século XIX.
Como o conteúdo e os temas da peça estão esclarecidos pelas citações, faço,
entretanto, um acréscimo do ponto de vista formal, semelhante às observações de Marília
Carbonari em Teatro épico na América Latina: estudo comparativo da dramaturgia das peças
Preguntas Inutiles, de Enrique Buenaventura (TEC-Colômbia), e O nome do sujeito de Sérgio
de Carvalho e Márcio Marciano (Cia do Latão-Brasil), dissertação de mestrado defendida em
2006. Parece que em O nome do sujeito o encadeamento das cenas, de forma épica,
problematiza as relações comerciais, afinal seu pano de fundo é o mercado das artes. Como
salientou Rodrigo de Freitas Costa, “as cenas se passam em locais diversos, como ruas,
praças, igreja, casas comerciais e no teatro Santa Isabel” (COSTA, 2012, p.215). Há que se
observar que em todas as cenas, diga-se de passagem, citadinas, local privilegiado das
relações comerciais, o aspecto da negociata, da troca de mercadorias, está em evidência.
Reproduzo, a título de exemplificação, a cena 8, na qual Margarida aceita um presente do
Barão, enviado por Wagner (o personagem que Iná considerou o humanista intelectual):

MARGARIDA – O que é?
WAGNER – Pediu-me que lhe entregasse.
MARGARIDA – Quem é ele?
WAGNER – Aceite.
MARGARIDA – Nem me conhece.
WAGNER – É um Barão, e quer lhe mostrar o mundo. Mas como são
perfumadas essas goiabas. Aceite.
MARGARIDA – O que ele quer comigo?
WAGNER – Sente que a senhorita é um espírito livre. Já foi ao teatro?
MARGARIDA – Teatro.
WAGNER – É uma maravilha, senhorita.
MARGARIDA – O que tem lá.
WAGNER – Lugares e mais lugares.
MARGARIDA – Tem bonecos articulados?
WAGNER – Abra a caixa.
MARGARIDA – Eu vi um boneco.
WAGNER – É uma jóia.
MARGARIDA – Era muito engraçado.
WAGNER – Aceite.
39

MARGARIDA – Como é?
WAGNER – Um broche delicado. Numa haste de prata, uma flor de
pequenos rubis.
Ela pega o estojo.
MARGARIDA – O Barão é velho?
WAGNER – Diga “sim” e ele virá a seu encontro.
MARGARIDA – Aqui?
WAGNER – Onde quiser.
MARGARIDA – O que é um espírito livre?
BRANCA (Grita de fora.) – Margarida!
MARGARIDA – Agora não, tia. Estou com a Mãe Preta. Tirando a roupa (A
Wagner.) No teatro?
CORO (Canta.) Quero me acabar no sumidouro.
Quero me acabar.
Lamba de vinte dias
Êeh lamba...
(CARVALHO; MARCIANO, 2008, p. 59-60)

Há na sobreposição das falas a aproximação da compra de Margarida pelo Barão –


que é feita em tom sincero por Margarida quando diz que está tirando a roupa (do varal) e o
público “lê” com ironia a situação, pois reconhece o teor de negociação − à venda de produtos
pelo teatro, embora se tenha a impressão que lá se produzam, ainda, algo livre da
determinação do capital. A menção aos bonecos articulados se dá por uma apresentação feita
na praça, em cena anterior. Margarida acompanhou uma apresentação de artistas populares,
que tem na sua encenação suas próprias contradições: o apresentador do espetáculo,
Charlatão, pede o pagamento antecipado para que ela assista à encenação e diante da falta de
pagamento, pois ela tem curiosidade e não dinheiro, se abrem as cortinas para o número de
Papardelle, um trovador, encomiasta, epitalamista e crítico literário (!) e Ludwigo, o boneco
endiabrado. Pelo teor da fala, qualquer suposição de heroicização idealista do artista de rua
cai por terra.
Na dinâmica da peça, as situações conduzidas pela narrativa cênica apresentam, em
graus diferentes, as relações entre os personagens que se definem por aquilo que possuem de
valor: o corpo, sua força de trabalho, ou sua posição social. Dessa forma, poderíamos ler a
40

peça a partir da análise do processo de trocas da mercadoria empreendida por Karl Marx19. No
início do espetáculo é dito que todos estão em busca do equivalente geral com função
especificamente social da mercadoria, a saber, o dinheiro; as cenas da peça, através das ações
individuais dos personagens no cálculo do valor de suas mercadorias, como proprietários no
processo social, irão incidir na análise marxista de troca direta, tal como a forma natural do
processo de intercâmbio, segundo Lukács, representando “muito mais a transformação inicial
dos valores de uso em mercadorias” (LUKÁCS, 2012, p.195). O problema da mercadoria, na
peça, é investigado em sua estrutura de relação mercantil, para se tentar aproximar as formas
da objetividade às formas correspondentes de subjetividade na sociedade burguesa, nos
termos do “nome do sujeito”.
A ausência do Barão – e também do Imperador e dos grandes senhores de engenho −
em cena se dá pois ele seria o personagem que não estaria na relação de troca consentida (e
numa forma objetivada em cena), e de fato, a comparação à ele é feita pela aparição da Besta,
o grande proprietário, ou ainda o Capital, à personagem de Branca. Os demais negociam o
que possuem, não somente “mercadoria-objetos”, como no caso de Carneiro, comerciante

19
“Não é com seus pés que as mercadorias vão ao mercado, nem se trocam por decisão própria. Temos,
portanto, de procurar seus responsáveis, seus donos. As mercadorias são coisas; portanto, inermes diante do
homem. Se não é dócil, pode o homem empregar força, em outras palavras, apoderar-se dela. Para relacionar
essas coisas, umas com as outras, como mercadorias, têm seus responsáveis de comportar-se, reciprocamente,
como pessoas cuja vontade reside nessas coisas, de modo que um só se aposse da mercadoria do outro, alienando
a sua, mediante o consentimento do outro, através, portanto, de uma ato voluntário comum. É mister, por isso,
que reconheçam, um no outro, a qualidade de proprietário privado. Essa relação de direito, que tem o contrato
por forma, legalmente desenvolvida ou não, é uma relação de vontade, em que se reflete a relação econômica. O
conteúdo da relação jurídica ou de vontade é dado pela própria relação econômica. As pessoas, aqui, só existem,
reciprocamente, na função de representantes de mercadorias, e, portanto, de mercadorias (...) Cada proprietário
de uma mercadoria só a cede por outra cujo valor-de-uso satisfaz necessidade sua. Assim, a troca é, para ele,
processo puramente individual. Além disso, quer realizar sua mercadoria como valor, em qualquer outra
mercadoria do seu agrado, com o mesmo valor, possua ou não sua mercadoria valor-de-uso para o proprietário
da outra. A troca passa então a ser, para ele, processo social. Mas não há possibilidade de o mesmo processo ser
simplesmente individual e ao mesmo tempo simplesmente social e geral, para todos os proprietários de
mercadorias. Todo possuidor de mercadoria considera cada mercadoria alheia equivalente particular da sua, e
sua mercadoria, portanto, equivalente geral de todas as outras mercadorias. Mas todos os possuidores raciocinam
do mesmo modo. Assim, não há equivalente geral, e o valor relativo das mercadorias não possui forma geral em
que se equiparem como valores e se comparem como magnitudes de valor. Não se estabelecem relações entre
elas, como mercadorias, confrontando-se apenas como produtos ou valores-de-uso. Em sua perplexidade, nossos
possuídos de mercadorias pensam como Fausto: “No princípio era a ação.” Agem antes de pensar. As leis
oriundas da natureza das mercadorias revelam-se através do instinto natural dos seus possuidores. Só podem
estabelecer relações entre suas mercadorias, como valores e, por conseguinte, como mercadorias, comparando-as
com qualquer outra que se patenteie equivalente geral. É o que nos mostrou a análise da mercadoria. Mas apenas
ação social pode fazer de determinada mercadoria equivalente geral. A ação social de todas as outras
mercadorias elege, portanto, uma determinada para nela representarem seus valores. A forma corpórea dessa
mercadoria torna-se, desse modo, a forma de equivalente com validade social; ser equivalente geral torna-se
função especificamente social da mercadoria eleita. Assim, ela vira dinheiro. “Todos eles têm um mesmo
desígnio, e entregarão sua força e seu poder à besta. E que só possa comprar ou v eender quem tiver o sinal, a
saber, o nome da besta ou o número do seu nome.” (Apocalipse) (Marx, 2011, p.109-111).
41

português, mas ainda Antonio Lyra que vende sua força de trabalho, seu único “bem” – a
“mercadoria subjetivando-se”. Os personagens-proprietários estão em um grande “mercado”,
e a peça busca complexificar, e demonstrar, os valores-de-uso que define para sua mercadoria
cada proprietário. A escrava Graça, ela própria a primitiva forma dinheiro, será àquela que
tragicamente não perpetuará a relação, cometendo suicídio. Por essa breve exposição, parece
ser a peça um “tratado” de economia política, o que está longe disso. Há um grande engenho
de composição dramatúrgica que promove a compreensão sobre estes aspectos, sem resvalar,
maquinalmente a um julgamento de caráter dramático. O espectador compreende as relações
em jogo e por isso não é facilitada, por exemplo, a condenação de Margarida quando esta
estrangula seu filho recém-nascido, gerado pelo estupro do Barão, à maneira como se mata
uma galinha.
Nessas relações burguesas se vê a venda do intelectual, alusão ao artista por uma
questão extra-teatral dada pelo ponto de vista anunciado como o seu “apagão” através do
narrador (Regente), que sem “contradições” – ainda que lhe doa a cabeça − anuncia e festeja o
vento liberal, de grandes transformações em busca da superação de um atraso que apenas se
dá com a marcha irrevogável do desenvolvimento, que deixa para trás, e também para o
futuro, a reposição da violência. Por esse ângulo de análise, a primeira peça de autoria do
grupo materializa questões do capitalismo brasileiro tendo como referência a “abertura”
desenvolvimentista ficcionada na peça e também as condições repostas pela “reabertura”, em
termos neoliberais, na década de 1990. A figura de Wagner, o intelectual que fica à sombra do
Barão (um homem erudito, de espírito elevado) dá a cara à elite brasileira (em cena da compra
de uma colônia na venda de Carneiro, Wagner reclama: Não! Quero algo mais insinuante.
Algo que traduza melhor minha personalidade. Carneiro: Tenho uma água de Colônia –
produzida em Portugal – mas de alma prussiana. Vou mostrar). Ontem e hoje, “de passagem
fica claro quanto era estreita e provinciana a nossa ideia de modernização, para a qual o
problema não estava na marcha do mundo, mas apenas em nossa posição relativa dentro dela”
(SCHWARZ, 1999, p.161). Em sua última fala Wagner declara ao tomar posse, na Câmara
dos deputados:

WAGNER – Srs. Deputados, um grande homem não deve se abrasar com o


mal que lhe dirigem. Mas cabe a seus seguidores evitar a propagação de
fagulhas perigosas. Sobretudo quando a chama da maldade ameaça se
alastrar aqui e ali, anônima, crepitando na voz seca da arraia miúda, ou se
erguendo em labaredas das colunas de jornais inexpressivos. Acusam o sr.
Barão de mandar tocar fogo em mocambos. Seria um mal usar de todos os
meios para limpar o terreno onde será cultivado um progresso que fará bem a
42

gerações? Acusam o sr. Barão de pactuar com o capital estrangeiro. Seria um


mal se sujeitar aos juros do dia, quando serão inomináveis os dividendos da
noite? No aniversário da grande Aliança, eu lhes garanto: daqui a cem anos
Pernambuco será uma sociedade mais justa e feliz. E por enquanto não me
venham com simplificações maniqueístas entre Bem e Mal.
(CARVALHO; MARCIANO, 2008, p. 81)

Apenas a título de exemplificação, reproduzo um trecho do discurso do intelectual


Fernando Henrique Cardoso, ao tomar posse como Presidente da República, no Congresso
Nacional, em 1º de janeiro de 1995.

Por algum tempo, na Presidência de Juscelino Kubitschek, o futuro nos


pareceu estar perto. Havia desenvolvimento. O Brasil se industrializava
rapidamente. Nossa democracia funcionava, apesar dos sobressaltos. E havia
perspectivas de melhoria social. Mas a História dá voltas que nos
confundem. Os “anos dourados” de JK terminaram com inflação e tensões
políticas em alta. Vieram, então, anos sombrios, que primeiro trouxeram de
volta o crescimento, mas sacrificaram a liberdade. Trouxeram progresso,
mas para poucos. E, depois, nem isso, mas somente o legado – este, sim,
para todos – de uma dívida externa que amarrou a economia e de uma
inflação que agravou as mazelas sociais na década de 1980 (...) Para os
jovens de hoje, que pintaram a cara e ocuparam as ruas exigindo decência
dos seus representantes, assim como para as pessoas da minha geração, que
aprenderam o valor da liberdade, ao perdê-la, a democracia é uma conquista
definitiva (...) Recuperamos a confiança no desenvolvimento. Não é mais
uma questão de esperança, apenas. Nem é euforia passageira pelos dois bons
anos que acabamos de ter (...) Hoje não há especialista sério que preveja para
o Brasil outra coisa que não um longo período de crescimento. As condições
internacionais são favoráveis. O peso da dívida externa já não nos sufoca.
(...) As raízes – as pessoas e as empresas que produzem riqueza – resistiram
aos rigores da estagnação e da inflação. Sobreviveram. Saíram fortes da
provação. Nossos empresários souberam inovar, souberam refazer suas
fábricas e escritórios, souberam vencer as dificuldades. Os trabalhadores
brasileiros souberam enfrentar as agruras do arbítrio e da recessão e os
desafios das novas tecnologias. Reorganizaram seus sindicatos para serem
capazes, como hoje são, de reivindicar seus direitos e sua parte no bolo do
crescimento econômico (...) Mais importante: hoje nós sabemos o que o
Governo tem que fazer para sustentar o crescimento da economia. E vamos
fazer. Aliás, já estamos fazendo.20

Na peça seguinte de autoria da Companhia do Latão − e após cinco anos de governo


FHC − os não personagens de O nome do sujeito aparecerão em A comédia do trabalho
(2000): os banqueiros, gêmeos, Leonid e Creonid (na encenação, ganha muita graça o fato dos
gêmeos serem, fisicamente, muito diferentes).
Segundo as informações da publicação, A comédia do trabalho, roteiro para um
espetáculo de intervenção popular, estreou no Teatro SESC-Anchieta em São Paulo no dia 03

20
http://www.funag.gov.br/biblioteca/dmdocuments/Discursos_fhc.pdf. Acesso em 31/07/2013.
43

de agosto de 2000, após ensaios abertos na cidade de Santo André, São Carlos, Taubaté e no
assentamento Ireno Alves do MST em Rio Bonito do Iguaçu, Paraná (CARVALHO;
MARCIANO, 2008, p.88).
Em estilo de farsa de agit-prop, logo no início da peça temos a indicação, através da
Atriz-politizada, que a montagem trata do capitalismo financeirizado. Segundo Iná Camargo
Costa,

Para começar, definiu como estratégia que o objeto de riso seriam os


representantes da classe dominante e seus emissários políticos e ideológicos
e que a classe trabalhadora, em estágio terminal de desagregação, mas ainda
assim responsável pelo maior pesadelo dos dominantes (a Revolução),
formularia os grandes problemas verdadeiramente humanos da peça, como a
tentativa de suicídio de um desempregado, a reivindicação reprimida através
de violência cidadã, a violência que se instala nas famílias sem renda, a
busca desesperada por qualquer tipo de qualificação de trabalho, e assim por
diante. A classe dominante, na figura dos gêmeos banqueiros, por sua vez,
barbariza promovendo demissões a torto e a direito, patrocinando
empreendimentos de auto-ajuda, como o genial grupo de “reconstituição do
universo simbólico” e, sobretudo, tomando as providências cabíveis para
socializar seus prejuízos financeiros, isto é, obrigando o Estado a facilitar a
venda do banquinho ao grande capital. Como nas comédias o final feliz é
uma exigência, esta se encerra com a festa promovida pelos ex-banqueiros
que agora vão se dedicar ao financiamento de empreendimentos culturais
(COSTA, 2008, p.28)

Pela dinâmica da peça, as ações dos personagens se fazem ora no escritório da Léo &
Créo & Companhia, e ora nas ruas e praças da “fictícia” Tropélia. Os personagens, como dito
por Iná Camargo Costa, podem ser divididos entre a classe dominante e a classe trabalhadora
em estágio terminal de desagregação; contudo implica observar melhor o que significa, para
o Latão, considerar sua obra como uma farsa.
Pela aparência de uma peça de agitação e propaganda, que tem rendimento expressivo
quando feita a uma plateia organizada, a farsa da comédia de agitprop diz tanto sobre a
tragédia de tal desorganização na vida social brasileira, como também à vida artística, daí da
observação de Sérgio de Carvalho, este mundo para quem sente é uma tragédia, para quem
pensa é uma comédia21.
A comédia do trabalho, realizada após a encenação de Santa Joana dos Matadouros
para públicos “novos”, como movimentos populares, MST e sindicatos, recupera, segundo
Márcio Marciano, um alto de grau de comunicação com o espectador, que ficara restrito, ou

21
O trecho foi retirado de uma entrevista de Sérgio de Carvalho ao Jornal Diário do Pará, em junho de 2004. A
entrevista está disponível no blog da Companhia do Latão – www.companhiadolatao.com.br.
44

confinado, pelo espaço teatral convencional e sutilezas de cena e dramaturgia de O nome do


sujeito, e foi pensada, também, para ser realizada em lugares não convencionais para
apresentação teatral – a peça foi apresentada em sindicatos, por exemplo. Com certa
influência de A ópera dos três vinténs, de Brecht, quanto aos procedimentos formais – e de
composição da desagregação dos trabalhadores − , que buscam utilizar uma forma conhecida
para fazê-la trabalhar, em atrito, como “esquema estranhado”, A comédia do trabalho dá
tratamento cômico aos banqueiros, numa verdade posta em Brecht: o que é um assalto a um
banco comparado à fundação de um banco? e nessa percepção se materializam as complexas
relações trabalhistas e a grande dificuldade, no presente, de formação de uma consciência de
classe. Em crítica feita por Fernando Peixoto22

A opção pela comédia, que pode parecer um paradoxo, é a deliberada busca


de uma linguagem cênica capaz de levar o espectador a uma compreensão
mais aprofundada e reveladora de muitos problemas trágicos de nossa
realidade cotidiana. Esta é efetivamente a "tragédia do trabalho": capitalismo
e bancos em crise, investidores estrangeiros prontos para dominar,
desemprego, miséria, governos corruptos e violência policial contra
manifestações populares. E até mesmo, quase no centro da estrutura do
texto, em meio a tantos conflitos e contradições coletivas, a presença de um
violento e dramático conflito individual: um empregado que, depois de ter
sido demitido, decidiu suicidar-se. As cenas se sucedem de forma sempre
surpreendente, surgem novos personagens operários e capitalistas, todas as
sequências são tratadas com espírito de comicidade, mas dialeticamente
fazendo pensar e repensar múltiplos aspectos das relações trabalhistas e da
luta de classes.

Realizando mais um estudo, assim como foi O nome do sujeito, o Latão representa a
dificuldade da organização coletiva da classe trabalhadora. Demonstra a dificuldade de
organização política quando mesmo as classes passam por transformações que não “definem”
sua posição na luta de classes; não à toa, então, que também estão em cena Mendigos e
Pedintes em discussão sobre a desunião da Categoria de miseráveis (!). Se a radicalização do
ponto de vista da luta de classes se faz na luta ideológica pela consciência, pelo
desvelamento ou dissimulação do caráter classista da sociedade, segundo Lukács (2012), no
caso da peça a chave comicamente trágica é o modo de dialogar com o público para ativação
dessa consciência. Muito do movimento da peça, talvez, acompanhe as observações de
Fernando Haddad, convidado pela Companhia do Latão para realizar uma palestra em abril de
2000, sobre a redefinição contemporânea das classes sociais. Segundo Haddad

22
O trecho foi retirado de crítica feita por Fernando Peixoto e disponível no blog da Companhia do Latão –
www.companhiadolatao.com.br.
45

Além da classe trabalhadora que vende sua força produtiva para o capital
(esteja ela empregada, subempregada, precarizada ou não), e que constitui o
chamado proletariado tradicional, − e penso que hoje nós temos mais
chances de contar com ela, justamente pelas derrotas que vem acumulando
−, o processo gerou outras duas classes que não são desprezíveis: a primeira
é a do lúmpem moderno. Não o da época do Marx. O lúmpem moderno é
fruto da putrefação das atuais classes e não das antigas. É a classe do
indivíduo que não tem mais a expectativa de se ver reinserido na sociedade
de mercado. E há uma outra classe, contratada pelo capital, não para
produzir, mas para criar, para pesquisar, para inovar. Aquela tarefa que
antigamente era da burguesia, e que foi delegada a uma classe contratada
para gerar lucros superiores ao lucro médio da economia. (Vintém, nº4, p.17)

Em estudo desenvolvido por Walmir Barguil Pavam, A dramaturgia do trabalho no


teatro paulistano contemporâneo, dissertação de mestrado defendida em 2009, A comédia do
trabalho, junto às peças Bartolomeu, que será que nele deu?, de Claudia Schapira e Borandá,
de Luis Alberto de Abreu, é analisada a partir do tratamento da temática trabalhista.
Especificamente sobre o A comédia do trabalho, o autor, apoiando-se nas estratégias
narrativas, incluindo os coros e as metáforas espaciais (alto do prédio, com antenas de
televisão e pássaros voando e a rua, com tumulto, pobreza e desemprego. Para tal
comparação, o autor utiliza a cena da peça reproduzida adiante) considera

Na peça da Companhia do Latão, os personagens demonstram,


individualmente, constante e cômica contradição nas suas ações e discursos,
quando da relação com sua classe social ou categoria trabalhista; formam
coros contraditórios, mais ou menos desarticulados em sua própria classe ou
categoria (elite, funcionários, desempregados). No entanto, a luta de classes,
mesmo sem discursos e práticas uníssonas, ainda continua, e forte, o que é
evidenciado pelas constantes metáforas espaciais de alto e baixo. A alusão
ao passado serve para constatar que, mesmo com as mudanças nas formas de
produção, há incríveis semelhanças na intensidade de exploração que o
capital mantém no país desde a colonização; além disso, o enfoque temporal
mostra que os anos de labuta não levam a um presente bem-sucedido,
mesmo com o discurso de recompensa pela produtividade e a flexibilização
da produção nas empresas atuais. Mas a estratégia negativa do grupo – com
forte carga irônica e satírica – mostra que não há superação nas diferenças de
classe no mundo contemporâneo, mesmo com supostos discursos
conciliadores da elite, nem a possibilidade idealista de uma completa
organização dos trabalhadores; apesar de tudo, dialeticamente, enxerga-se a
resistência das classes baixas ao final da peça, com uma pedra atirada a uma
festa das elites: a contradição leva a uma possível transformação (PAVAM,
2009, p. 121-122).
46

Para Pavam, portanto, embora reconhecida a dificuldade na organização coletiva da


classe trabalhadora, de um ponto de vista temático, a luta de classe se dá por um recurso
formal, no qual as metáforas espaciais ganham destaque na representação. Nestas condições,
insere-se a precarização das condições de trabalho dos artistas. Núlio, o desempregado que
tentará o suicídio, narra – fazendo coincidir assunto e forma:

ATOR QUE REPRESENTA NÚLIO – Dentro de instantes, os senhores me


verão representar Núlio, o suicida. Como estudo para uma personagem tão
triste, pensei em minha própria situação e compus os seguintes versos.
Permitam-me declama-los.
Sou um ator de teatro.
Apesar do amor ao ofício
As contas de casa não pago com isso.
Tenho saudades do dia
Em que era um ator-mercadoria.
Fazia anúncios, vinhetas, reclames
Vendia carros, viagens, salames
E tudo fazia sentido
Porque meu cabelo não tinha caído.
Pensei mesmo que a vida era bela
Quando fiz um garçom numa telenovela.
Alguém aí tem outro emprego
Que volta a me dar sossego?
No mundo da mercadoria
Coisa má é não ser mercadoria.
Obrigado. (Curva-se para agradecer os aplausos.)
Voltemos à peça.
(CARVALHO; MARCIANO, 2008, p.118-119)

Entre a constatação dolorosa, há o cinismo do ator que se curva, para agradecer os


aplausos imaginários, e também à “verdade” do Capital. Em outra cena, os Manifestantes
oscilam entre a compreensão da necessidade de mudança, que virá apenas a partir da
organização da classe trabalhadora, em contradição à subsunção dos indivíduos pelas
condições de vida “predestinadas”. Ao ser questionado pelo sentido da vida, Núlio anuncia a
canção (cena mencionada no desenvolvimento espacial alto/baixo, segundo Walmir Pavam):

Eu não sabia que a vida tem um sentido


Inevitável, perpétuo, inflexível
Para baixo, para baixo, para baixo
Para baixo, para baixo, para baixo
Para baixo, para baixo, para baixo
(Narrado) Pensei na morte então como um alívio
Porque para baixo de sete palmos de terra
Meu corpo não desceria.
Mas logo vi o patrão feito um diabo
Gritar meu nome e apontar o itinerário.
47

Para baixo, para baixo, para baixo


Para baixo, para baixo, para baixo
No oitavo mês de desemprego
Núlio poderia ter dito
Que andando pelas praças
Ouviu muitas histórias, de vidas começadas na esperança
Quando os homens ainda têm bons estômagos
E as mulheres não ensaboam os cabelos nas águas da sarjeta
Poderia ter dito que viu abrir-se à sua frente um abismo profundo e imenso
E via a si próprio
Agarrado às paredes escorregadias
Dobrando os dedos para que as unhas não quebrassem.
E percebeu que todos os dias
Fez tudo o que diziam ser certo
Até a exaustão.
Talvez tenha sido este o seu engano:
Pensar que sofria sozinho
Que o trouxe tão baixo no fundo do abismo.
Núlio poderia ter dito, mas não disse.
(CARVALHO; MARCIANO, 2008, p.134-135)

Núlio não disse − embora tenha dito para o público −, pois a constatação individual
não chegou a alcançar um aprendizado político, tampouco uma formulação coletiva. As
condições reais da luta de classes não se davam na conjuntura brasileira no início do século
XXI nos termos de consciência de classe, tal como desejada idealmente. A verdade era
elemento fundamental para tentar estudar o estágio da acumulação capitalista em tempos de
capitalismo financeirizado, que na aparência prescinde do trabalho − o que é uma verdade
localizada − e consequentemente do trabalhador, e o tratamento cômico demonstra a
apresentação de tal abordagem como reificação.
Pelos esboços que enquadrei as duas peças, percebe-se àquilo que tentei identificar
como um dos procedimentos do trabalho da Companhia do Latão: estudar as relações
capitalistas em solo brasileiro, tendo como pressuposto um impulso anticapitalista, que se
traduz, entre outros recursos, no tensionamento das formas representacionais: um espetáculo
que é montado para o espaço teatral convencional tenta demonstrar sua realidade comercial,
outro que é pensado no diálogo com públicos populares, busca rastrear a decadência da
organização política da classe trabalhadora. Ambas construções negativas, do ponto de vista
dramatúrgico, que interferem nas “expectativas positivadas”, tendo em vista os lugares de
encenação, do espectador. A peça seguinte do Latão, também identificada a este acento
crítico, irá problematizar o tema da formação capitalista, ainda no período colonial.
A peça Auto dos bons tratos, estreada em 20 de abril de 2002, no Teatro Cacilda
Becker, publicada na seção Imagens do Brasil, utiliza como material de estudo fatos
48

históricos reais relatados no processo movido contra o donatário Pero do Campo Tourinho
(CARVALHO; MARCIANO, 2008, p.200). Segundo a Companhia,

a ideia da encenação provém de um estudo do livro de Sérgio Buarque de


Holanda, Raízes do Brasil, feito pela Companhia do Latão no ano de 2001 e
da leitura do ensaio “Atribulações de um donatário”, de Capistrano de
Abreu, em Caminhos Antigos e Povoamento do Brasil. Durante o processo
de ensaios foram consultados diversos relatos de viajante do período, entre
os quais o livro de Hans Staden, Duas viagens ao Brasil e cartas jesuíticas.
A obra de Luiz Felipe de Alencastro, O trato dos viventes, inspira alguns
pontos de vista e o titulo da peça (CARVALHO; MARCIANO, 2008,
p.200).

O espectador acompanha as ações autoritárias do donatário Pero do Campo Tourinho,


um senhor que buscava imprimir uma prática protestante de trabalho, segundo Sérgio de
Carvalho, e nisso entrou em conflito com as práticas da Igreja católica. A crítica feita à peça,
como a de Valmir Santos, identifica como tema a formação da personalidade autoritária no
Brasil, quando o pano de fundo retrata fatos reais do processo de inquisição a qual foi
submetido o donatário da Capitania de Porto Seguro, em 1546.23
Segundo Iná Camargo Costa

À parte a exposição sem complacência da impossibilidade material de se


falar em liberdade em qualquer de suas figuras na chamada época colonial,
ou época de ouro do empreendimento-Brasil (Pero do Campo Tourinho, a
figura emblemática da peça, é tutelado pela Coroa e pela Igreja), o Latão
examina principalmente a contradição mais fértil: aquela que opôs igreja e
empreendedores na disputa pela mão-de-obra de nativos escravizados. No
caso específico de Tourinho, o empreendedor que se imaginava livre leva a
pior por não se dar conta da capilaridade do poder de Igreja (as redes,
inclusive de intriga) e é entregue, após um julgamento preliminar, aos
tribunais europeus. Ironia final: quando de seu embarque, são anunciados
tempos de paz entre escravizadores, pois os africanos começam a ser
embarcados para o Brasil. Estas contradições dão régua e compasso a todas
as demais, até as mais sutis, como a transformação de um nativo em ator
num auto de Anchieta, falando em latim, ou a filha de Tourinho ser mais
fluente em tupi do que em português. Como os acontecimentos são expostos
na forma dos autos do processo instaurado contra Tourinho, o Latão
encontrou material para ficcionalizar uma das figuras ainda correntes de
trabalhador intelectual entre nós: Camelo ao mesmo tempo é o escrivão do
processo que, formalmente, responde por parte da narrativa e, nas horas
vagas, contratado por Tourinho, prepara um poema épico sobre seus feitos
(COSTA, 2008, p.25)

23
Crítica publicada no jornal Folha de São Paulo em 27 de março de 2002: Inquisição da cordialidade. Acesso
em www.folha.uol.com.br, 13 de agosto de 2013.
49

É interessante notar que a pesquisadora Margarete Maria de Moraes em O Auto dos


bons tratos, da Companhia do Latão: dramaturgia de raízes fincadas na realidade brasileira,
dissertação de mestrado defendida em 2005, aproxime a forma da peça não aos autos do
processo do donatário, como se o texto colocasse em cena os fragmentos de um processo
jurídico, mas aos autos dos dramas litúrgicos. Os autos, conforme a autora, passaram com o
tempo a se coadunar a temas profanos: os espetáculos profanos eram levados em praça
pública, sobre carroças ou palcos improvisados.

As diversas representações dos autos exibem dois aspectos fundamentais. O


primeiro corresponde à mudança de local em que se davam: de início,
encenados apenas nas igrejas e suas imediações – ou seja, em solo sagrado −,
passaram também a ocorrer nas praças públicas, abrindo-se, assim, para os
espaços profanos. O segundo aspecto notável é o progressivo estreitamento
da relação entre os autos e as festas populares, como é o caso, apontado por
vários críticos, das procissões de Corpus Christi, oficializadas em 1624 pelo
papa Urbano VI, que logo se transformaram em concorridas festividades
profanas (MORAES, 2005, p.65).

Continua a autora, então, apresentando a ampliação de elementos cênicos, incluindo


personagens, a mudança de local de apresentações e seus temas populares, que os autos
conquistaram o público entre as camadas pobres. Ainda aproxima Brecht e Gil Vicente, do
ponto de vista formal, e também do padre José de Anchieta24.

Da mesma forma como percebemos o relacionamento Brecht – Gil Vicente,


podemos afirmar um relacionamento Brecht – Anchieta. Mais que qualquer
outro teórico teatral, Brecht propôs um teatro didático. E é por meio dessa
linha teórica que se dá a aproximação dos três dramaturgos. No entanto, uma
diferença tornará completamente diversos os caminhos de cada um. Gil
Vicente está sujeito ao poder político da realiza, e Anchieta está sujeito ao
poder político-religioso da Igreja. Ambos escrevem de forma convencional,
na medida em que estão envolvidos pelo poder que os sustenta e condiciona
(...). Brecht vai se distinguir de ambos pela nova visão incorporada à sua
teoria do distanciamento. Enquanto autor e teórico, o dramaturgo alemão
propõe uma nova postura, a qual chamamos não convencional, pois busca a
eliminação do processo catártico de sua plateia (MORAES, 2005, p.69-70).

Em sua argumentação, num primeiro momento a autora procura ver os rendimentos de


aproximações formais entre o teatro brechtiano e a forma dos autos, religiosos e profanos, e,

24
É interessante notar que, embora Margarete Maria de Moraes apresente questões sobre o teatro épico
(distanciamento) a partir da leitura de Anatol Rosenfeld, não o faça quanto à aproximação do teatro épico e do
teatro medieval. Embora o autor faça uma advertência quanto ao propósito do livro O teatro épico, o de não se
constituir como uma história do teatro épico, Rosenfeld ilustra, como diz, “mediante vários exemplos, alguns
momentos em que o teatro épico se manifestou em toda a sua plenitude: o teatro medieval e as diversas correntes
do teatro épico moderno” (2008, p.11).
50

pelo conhecimento da utilização do método brechtiano pela Companhia do Latão, aproxima-


os de Auto dos bons tratos.
É interessante notar as duas considerações, tanto de que a dinâmica cênica materializa
a estrutura de um processo judicial quanto aos fragmentos – vários cenários e situações − se
insinuando como um recurso cênico que não é limitado a uma forma-política. Tenho, contudo,
a ponderar que como destaca o Latão na publicação do texto, que conta ainda com uma cena
não levada ao palco pela Companhia, o fato de todos os títulos serem anunciados por
narradores, com marcas temporais (por exemplo, a primeira cena após o prólogo de João de
Tiba, um traficante de escravos índios: 11 de novembro de 1545. O capitão e donatário de
Porto Seguro, Pero do Campo Tourinho, invade a igreja, interrompe a missa de São Martinho
e arrasta os homens ao trabalho. No dia seguinte, o vigário Bernard de Aureajac hesita entre
salvar os humildes e abater os ímpios) leve, apropriadamente, à proposta de interpretação de
Iná Camargo Costa.
Como foi observado pela crítica, e também nas referências acima mencionadas, a peça
tem a dizer sobre a formação, em tempos coloniais, da impossibilidade de exercício da
liberdade por qualquer um dos personagens em cena. Ainda segundo Iná, talvez a contradição
mais frutífera, entretanto, se dê naquela que opõe igreja e empreendedores na disputa pela
mão-de-obra de nativos escravizados. No prólogo da peça, temos o enquadramento do que
vem a ser esta afirmação:

Prólogo no teatro

Os atores se põem diante dos espectadores.

ATRIZ – Senhores espectadores, bem-vindos!


Esta peça é uma fábula aos pedaços.
Imaginem um elefante e um rinoceronte
Postos a duelar em praça pública pelo capricho de um rei antigo.
Imaginem agora a multidão de centopeias, minhocas, lacraias
E toda a plebe dos bichos, esmagada sob as patas dos monstros em
luta.
O resultado disso é uma peça despedaçada.
Que a nossa ruína se complete
Com a simpatia de sua imaginação.
(CARVALHO; MARCIANO, 2008, p. 148)

Como um auto, que contém as peças do processo inquisitorial, a apuração das


denúncias contra Pero do Campo Tourinho estarão à disposição do espectador ao longo da
peça, não apenas pela representação dos “fatos” e “atos” cometidos pelo donatário, mas
também pelos diálogos dos demais personagens que narram, a partir de seus pontos de vista,
51

suas ações; assim o espectador, logo na primeira cena, percebe a justificativa do


comportamento violento pela fala do juiz Escorcyo, ou de sua reprovação por parte de João
de Tiba, traficante de escravos índios que teve entre às suas mercadorias quatro escravos
“surrupiados” por Tourinho para o trabalho em seu engenho. Acontece que, como o
espectador acompanha, nenhum ato de Tourinho se assemelha a algo bom: ele é
extremamente violento com todos, de escravos a homens livres que para ele trabalham, ou
ainda com sua mulher, Ignez, e filha, Leonor. A violência de Tourinho, e de toda a escravidão,
pode ser sintetizada numa cena de seu processo de inquirição na qual é lembrada, pelo padre
Bernard de Aujerac, do mando do donatário em cravar uma ferradura nos pés de um índio. O
padre pergunta ao ferreiro Douteiro, “me diga, senhor ferreiro, por que tantas crueldades a
abominações, por que fazer de um homem com alma, um animal quadrúpede?” a que
Douteiro responde: “qual o problema, vigário? Ele serviu de exemplo para que outros não
fugissem. E já era uma besta de carga antes da ferradura”(CARVALHO; MARCIANO, 2008,
p.173). Como é possível observar, a naturalização da violência é dada em chave crítica para a
análise do espectador. Mas então, qual o rendimento de dizer sobre os bons tratos, se em
nenhum momento a peça dá mostras disso, pelo menos através do personagem de Tourinho?
O anúncio, logo no prólogo da peça, para que o espectador perceba “a plebe de bichos,
esmagada sob as patas dos monstros em luta”, parece ser a possibilidade de observação de tal
procedimento. Mas eles também não praticam ou recebem bons tratos, estão, no muito,
tentando arranjar formas de sobreviver. Quando Tourinho está preso, em conversa com Biela,
um empregado de Tourinho, Maria Machado, taberneira, degradada, diz: “não vê que
precisamos da proteção deles? Sem um tipo de Tourinho, capaz de arrancar a cabeça de um
índio na faca, nós seríamos massacrados pelos tapuias. E mesmo se as tribos nos deixassem
em paz, El-Rei mandaria uma esquadra de Portugal para que os canhões nos lembrassem que
é o dono da terra” (CARVALHO; MARCIANO, 2008, p.182). Daí a conclusão de Manivela,
outro trabalhador livre: “vamos para Pernambuco, onde Duarte Coelho governa a ferro e fogo.
Quem sabe ganhamos o seu favor” (CARVALHO; MARCIANO, 2008, p.183). Por essa
abordagem, muito da consideração de Roberto Schwarz sobre a política de favor e as saídas
da malandragem a que estavam condicionados os homens “livres” interfere no material, como
comportamento social para a manutenção da vida, do homem livre, no período escravista.
Como observa Rodrigo de Freitas Costa (2012), o fator essencial valorizado logo no início da
trama diz respeito ao título da peça na primeira cena com João de Tiba. O traficante diz sobre
os bons tratos como a melhor forma de relação entre os poderes na colônia, trato que não é,
afinal, a prática de Tourinho. Utilizando informações do historiador Pedro Puntoni,
52

entrevistado pela Companhia no processo de elaboração da peça e disponível em vídeo 25, a


peça coloca em cena “tecnologias de mando”: de um lado Tourinho tenta instalar uma
perspectiva de mando de fundo protestante, de outro, a forma usual “brasileira”, que faz
mercancia sem usar de violência (CARVALHO; MARCIANO, 2008, p. 148). Duas formas
para a manutenção de poderes, e também, de propriedades. Assim como ocorre nas peças
anteriores, os personagens recebem um tratamento “negativizado” para que o público tenha
condições de verificação quanto a, obviamente improvável, bondade no Brasil colonial. Do
ponto de vista dramatúrgico, a análise requer, entretanto, que se perceba que o personagem de
Tourinho não se apresenta nos termos da cordialidade de Sérgio Buarque de Holanda, muito
pelo contrário. Ele não faz uso da “máscara da bondade”, ou dos bons tratos, como recurso de
mando, o que acaba lhe rendendo o processo de inquisição. Segundo Gabriela Malta “o
personagem de Tourinho é recriado na peça como um reflexo invertido desse conceito, uma
vez que ele não camufla o seu autoritarismo, desafiando as regras cordiais que regem a
sociedade” (MALTA, 2010, p. 46). A formação da cordialidade como forma de exploração
aclimatada ao solo brasileiro é dada, somente, em uma das últimas cenas da peça:

A voz da santa ecoa na cabeça de Tourinho

TOURINHO (Estranha.) − De quem é essa voz?

VOZ DE SANTA LUZIA – Sou eu, Santa Luzia. E vim te dar uma lição,
pois desperdiças no cativeiro a chance de ser novo senhor.

TOURINHO – Gregório, para com isso, maldito.

SANTA LUZIA – Tinhas uma função na vida, mandar em gente. E nela


fracassaste.

Surge a imagem fantástica de Santa Luzia aos olhos de Tourinho.

TOURINHO − Meu Deus.

SANTA LUZIA (Ensina, hierofânica) − Jamais serás um bom senhor se não


aprenderes o trato correto.

TOURINHO – Gregório, tira-a daqui.

SANTA LUZIA - Mistura alívio ao cativeiro, deixa que adorem os santos, e


dá-lhes dias de dança e folguedo.

TOURINHO – Ei, me desculpe, Luzia, eu não fiz por mal.

25
EXPERIMENTOS videográficos da Companhia do Latão. Produção: Companhia do Latão. São Paulo, 2009, 2
DVD.
53

SANTA LUZIA - O bom senhor apazigua a escravaria, com seu humano


coração. E faz com que esta morte em vida se pareça um pouco mais com
vida.

TOURINHO – Meu Deus, ela é sábia. Estou vendo luzes.


(CARVALHO; MARCIANO, 2008, p. 185)

Há que se levar em conta, portanto, que a ideia de encenação que provém de um estudo
do livro de Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, incide no conceito mais conhecido,
o de homem cordial, pelo resultado cênico das personagens livres, e não pelo “protagonista”
Tourinho. O tratamento será invertido na última peça do Latão, O patrão cordial, que será
analisada na seção Epílogo. Vale ressaltar, então, que à época de Auto dos bons tratos o Latão
estudava O sr. Puntila e o seu criado Matti, de Bertolt Brecht, como diz a atriz Helena
Albergaria em entrevista a Gabriela Villen Malta: Eu entrei substituindo na Comédia do
Trabalho e a gente estava trabalhando o Sr. Puntila e o seu criado Mate. Quanto eu entrei,
estava tendo um trabalho de realismo: estudar Stanislaviski e a peça do Sr. Puntila. Aí,
abandonou-se essa ideia do Sr. Puntila para fazer uma dramaturgia própria que voltasse a
pensar o Brasil (MALTA, 2010, p.97).
Para se pensar, nos termos de hoje, a cordialidade - que Anatol Rosenfeld nomeou a
respeito da peça de Brecht, O Sr. Puntila e seu criado Matti, a cordialidade puntiliana − o
Latão recuperou os princípios da formação da sociedade brasileira em sua já entrada como
periferia do capitalismo. Mantinha o interesse em problematizar formas de se fazer a crítica
anticapitalista por meio do ensaio teatral, e talvez, mas não apenas − e isso serve como
especulação, que ademais rende como narrativa para presente estudo −, o grupo “retornará”
ao texto brechtiano em fins de 2012 como processo de trabalho sobre a formação da ideia de
indivíduo, sujeito burguês, em solo brasileiro articulando-o a ideia de cordialidade, mas
fazendo-o de um ponto de vista identificado às ações dos personagens.
A peça O mercado do gozo, estreada em 2002 pela Companhia, se vincula a um novo
procedimento: a de estudos sobre o caráter “estranhável” do narrador; no caso, a fruição do
espectador deve à composição reconhecível dos mecanismos da construção cênica, ou ainda,
na demonstração da manipulação da função narrativa, que de certa forma já aparecera em O
nome do sujeito e Auto dos bons tratos como assunto de estranhamento via “quebra”
dramática. Em O mercado do gozo, contudo, a “indistinção” da narrativa ficcional e do espaço
teatral se dá logo no prólogo. Segundo Iná Camargo Costa,

na condição de figurantes de um filme e da história como um todo, os


espectadores acompanham a difícil construção de uma figura de herdeiro
54

burguês, muito recalcitrante, que aprende a golpes de drogas, experimentos


eróticos e bons exemplos de outros empreendedores, a tomar conta dos seus
interesses. Quanto ao filme, no qual atuamos como figurantes, este conta a
história da prostituta que, ao tentar escapar do controle de seu proprietário,
acabou desfigurada e entregue à luta pela sobrevivência na rua. A mensagem
do filme, legítimo produto da indústria cultural, é clara: no mundo da
mercadoria, o pior que pode acontecer a alguém é não ser mercadoria
(COSTA, 2008, p.27).

Em 2003, Mariângela Alves de Lima em artigo sobre a peça identificou o


procedimento de demonstração da manipulação da função narrativa. Ao iniciar a crítica
lembrando que a história é contada invariavelmente pela ótica dos vencedores, e organizando
o argumento a partir da constatação de que historiadores e artistas estão sempre pesquisando,
resgatando e se esforçando para devolver ao sistema venoso da cultura as epopeias
suprimidas dos movimentos populares, Mariângela sugere que o grupo centra-se não mais no
fato histórico - a greve geral de 1917 na cidade de São Paulo – mas no enquadramento,
reexamimando o modo como se reintegra à consciência coletiva, por meio da arte, o lado
recalcado da história.
Pela sequência das cenas, o lado recalcado da história, a greve geral de 1917, aparece
pela primeira vez na cena 6 – Intermezzo de agit prop: declaração de greve geral, com a
seguinte rubrica

Um coro de atores assiste à projeção de imagens históricas da greve de 1917


em São Paulo. A cena é um corpo estranho na narrativa do espetáculo. Não
deve ser harmonizada ao conjunto. É como se fizesse parte de um estudo
preparatório que foi banido do roteiro do filme.
(CARVALHO; MARCIANO, 2008, p. 220)

Ora, pelo roteiro do filme, o espectador vê em processo de ensaio e filmagem desde o


Prólogo na porta do teatro, que o material da greve não cabe na incursão dramática
cinematográfica. Como se estivesse interessado em produzir um filme, os personagens de O
mercado do gozo vão sendo apresentados para o espectador. Burgó, herdeiro de uma fábrica
de tecidos, em leve crise identitária, mantém relações com o cáften Bubu e com a prostituta
Rosa Bebé, que por sua vez mantém sob seu domínio os desejos de ascensão da empregada
Cafifa e da operária Getúlia. Se retirássemos as inserções que inserem a greve de 1917, o
espectador iria acompanhar, via o roteiro do filme, o “esbanjamento mundano” de Burgó −
que percebe melancolicamente que todos, incluído os espectadores do teatro e os operários de
sua fábrica de tecidos, não passam de bonecos sem fio − mantendo “relações” com
personagens “marginais”, até seu desenlace harmonicamente classista de retomar a direção da
55

fábrica herdada de seu pai após a morte de Getúlia, uma “ex-operária” transformada em
profissional do sexo (antes Getúlia fazia programas ocasionais) pelas mãos de Rosa Bebé.
Dada as circunstâncias do filme em processo de montagem, o diretor/ensaiador, que é intuído
pelas marcas de cena e nunca aparece, vai dando os contornos do ponto de vista de como as
cenas devem ser encaminhadas. Getúlia é a personagem que liga os dois mundos, dos
operários do material rejeitado e da construção da imagem fílmica. Ela é para o primeiro,
contudo, contraditória em suas relações de classe, e, também, pela transformação operada por
Rosa Bebé, dentro do filme, um “espelho” do burguês que contempla, em cena que reproduz a
sessão em um estúdio fotográfico, a manutenção do desejo: quando a mercadoria conhece sua
função ela sabe que àquele que observa “não quer ser tocado, não quer ser saciado, só quer
manter aceso um desejo após o outro” (CARVALHO; MARCIANO, 2008, p.231). É nessa
sentença, dada por Rosa Bebé, que as relações do burguês são construídas com os demais
personagens. Pelo roteiro do filme, então, são dadas as condições de trabalho extremamente
precárias e desumanizadas dos personagens. Acontece que como observou Iná Camargo Costa
o filme, ao final, irá contar a história da prostituta, elemento que será dado em uma das
últimas cenas da peça:

O diretor de cinema agradece o trabalho dos figurantes

Num estúdio de cinema, Burgó, que também é o diretor do filme, dirige-se


ao público

BURGÓ – Serei o melhor dos patrões, conselheiro e guia, padrinho e amigo.


Não cumprimento pessoalmente cada um de vocês, mas sintam-se
colaboradores desse projeto. Nosso objetivo é fazer um bom produto, que
toque o coração do público. Minha assistente fará um resumo. Em três
minutos começamos. (Sai.)

ASSISTENTE DE DIREÇÃO (Afetada.) – Boa noite. Para que os senhores


compreendam o que vai se passar a partir de agora, saibam que é a história
de uma prostituta libertária, que no começo do século, em meio a agitações
políticas, lutou sozinha contra um sanguinário cafetão. O contexto histórico
é apenas pando de fundo para a vida dessa heroína que foi perseguida,
humilhada e queimada. Uma mártir. Os senhores estão aqui para contribuir
com esta obra de arte social. Por favor, me acompanhem: a cena se passa do
lado de fora.
(CARVALHO; MARCIANO, 2008, p. 261)

A cena, portanto, compõe, em atrito, com a fala do Ensaiador ainda no prólogo da


peça, todo o material que foi visto pelo público. Como figurante do processo de ensaio, de
“recolha” e utilização do material que será utilizado no filme, no final, o espetador se dá conta
que restará apenas a imagem melodramática da prostituta libertária perseguida e humilhada.
56

Tudo àquilo que foi dramatizado anteriormente era material de estudo para o filme, desde as
inserções dos coros proletários, antecipadamente rejeitados, às cenas no opiário de Papoula,
ou ainda de espancamento de um mendigo que aceita, no final da cena, as moedas de Burgó.
Cada cena, obviamente, mantém suas próprias relações com o tema da peça – que segundo Iná
demonstra “com extremo rigor a constituição do terreno sobre o qual germina a matéria-prima
da prostituição e de sua exploração em escala industrial, isto é, a indústria cultural, aqui
exposta em sua componente cinematográfica” (COSTA, 2008, p.26) – mas é a partir da
narração acima mencionada que todo o material antecedente pode ser recomposto, a partir da
informação de que o diretor do filme é afinal, Burgó.
Independente de sua ligeira crise, que pode se assemelhar a uma ligeira crise criativa e
de tentativas de narração, o filme assumirá o ponto de vista “na produção de bens de consumo
de massas, que se alimentam do repertório do melodrama” (COSTA, 2008, p. 26) É com essa
imagem, de Bubu queimando o rosto de Rosa Bebé quando esta grita eu sou só tua, que o
espectador deixa a sala. Vejamos, então, que há uma mediação interna, desse material que
está sendo testado para chegar a compor o filme no qual se desdobra a problematização da
manipulação da função narrativa - é claro que com o conhecimento de que o diretor do filme
é o burguês, trata-se de uma função de um ponto de vista de classe. A narrativa cênica vai
operando como se o espectador pudesse julgar as ações de Burgó no registro dramático de
caráter individual, que por parte dos bem intencionados é condenado; nestes termos é de fácil
reconhecimento por parte do público uma construção dramática que é tensionada pelos
registros épicos de recondução da história via inserção dos coros proletários. A construção do
anti-herói burguês, vinda da crítica às suas ações, é feita pelo mesmo registro dramático, que
tem na heroicização de Rosa Bebé, na cena final de filmagem, seu correlato melodramático.
Mas não é por acaso que Valmir Santos, em matéria para o jornal Folha de São Paulo em 13
de agosto de 2003, observa que em O mercado do gozo o espectador tenha o seu próprio
papel colocado sob suspeita. É uma peça radical na relação do palco e plateia que desde o
princípio tensiona o prazer estético ao componente, e uso, como espelho pela indústria da
cultura, onde o desejo se vê e se reconhece como objetivo (HAUG, 1997, p.77).
Muitos dos procedimentos utilizados pelo Latão durante a peça, como o movimento de
interrupção de ações e sua retomada, a partir de indicações dramáticas distintas, que se dão a
conhecer através de rubricas − o que faz com que o espectador veja o procedimento sem lhe
conhecer as “causas” − causa um princípio de reconhecimento, por parte do espectador
familiarizado às peças do Latão, de uma prática teatral feita pela crítica à linguagem; mas há
uma dificuldade maior, colocada pela narração do diretor ao final do espetáculo, pois em jogo
57

está o desejo desse espectador. Tal procedimento, entretanto, não se assemelha a uma prática,
mais ou menos comum, no teatro contemporâneo de embaralhar àquilo que supostamente o
espectador tenderia a esperar e se aproxima muito mais a um experimento sociológico, em
termos brechtianos. A nota é altamente negativa e põe no sentido contrário à manipulação da
função narrativa a expectativa do espectador, numa contradição prática, experiência teatral
que guarda certo parentesco com a peça Ópera dos vivos, objeto do presente estudo, que será
detalhada na análise desta peça.
A peça Visões Siamesas, incluída na seção Cenas de mercantilização junto a O
mercado do gozo, estreou em 21 de outubro de 2004. Segundo nota da publicação, parte do
argumento de Visões siamesas se inspira no conto “As academias de Sião”, de Machado de
Assis (CARVALHO; MARCIANO, 2008, p.327). Além do estudo de Machado de Assis, o
Latão estudou escritos da literatura clássica oriental e utiliza fragmentos de poemas anônimos
de Escadaria de jade: antologia de poesia chinesa: século XII a.c.- século XVIII, entre outros
materiais de pesquisa.

Visões siamesas, produção contemporânea de Equívocos colecionados, em


muitos aspectos dá continuidade às reflexões críticas de A comedia do
trabalho e de O mercado do gozo. Em parte porque, tudo somado, a temática
geral dos trabalhos do Latão é recorrente. Digamos que o objetivo enfocado
é que varia. Como esta peça começou a ser ruminada a partir de uma
reflexão sobre a obra de Machado de Assis, no clima em que se
desenvolveram as pesquisas de Equívocos colecionados, foi quase por
atração temática que se estabeleceu o interesse pelo conto machadiano As
academias do Sião. Constatando nesta obra o alto desapreço do escritor pelos
intelectuais (o poder descobre que, como categoria, os intelectuais se
consideram a luz do mundo e individualmente, acham que todos os demais
são imbecis), o Latão, em sintonia com os tempos que correm, em que
ninguém mais se preocupa com o que eles possam ter a declarar, resolveu
dedicar a estes sacerdotes da ideologia apenas o tempo indispensável para
ridicularizar seu discurso abertamente adesista e confina-los no templo onde
ficarão adorando o deus-capital. E, interessado na esquizofrenia que move a
classe trabalhadora identificada com o discurso hegemônico, aproveitou a
deixa do conto sobre o intercâmbio de almas apara apresentá-las em suas
desesperadas tentativas de evadir-se da miséria. Como a saída é individual, o
resultado é apenas o acúmulo da miséria, sofrimento e morte. Temos então
uma síntese da história da classe trabalhadora brasileira, que entra em cena
quando sai o latifundiário deixando os camponeses a Deus-dará. Forçada a
migrar para a cidade, submete-se aos mais variados tipos de exploração,
sempre movida pelo sonho do sucesso (no caso, cifrado na operação da troca
de alma com o rei). Vai cumprindo a curva descendente, sempre apostando
em melhores dias, até passar pela miséria máxima, literalmente no lixo e,
como última tentativa, a emigração que tem como desfecho a morte no
deserto (COSTA, 2008, p. 28 -29).
58

A síntese da história da classe trabalhadora brasileira, como indica Iná, é dada em uma
das últimas falas de Kinara, talvez a personagem, dentre essas peças, mais “ingênua” do
Latão: Por que só me ensinaram a sonhar no singular? – contudo, o “sonho” de Kinara passa
por um processo concreto, no qual ela vê obliteradas suas chances de composição de um
projeto coletivo, pois suas relações com demais personagens no mundo do trabalho vão
sendo esgarçadas, assim como esse mundo, e a própria dramaturgia.
A peça, como indica a pesquisadora, retoma questões críticas de A comédia do
trabalho e de O Mercado do gozo, mas de certa forma opera uma “surpresa” ao construir uma
fábula que se situa em Sião, onde vive a jovem camponesa Kinara, personagem que será
“acompanhada” em seu desenvolvimento “pseudo” dramático. Segundo Gabriela Malta

Kinara é a heroína às avessas, como não poderia deixar de ser, tendo em


vista a matéria histórica da qual se origina. Ela sonha com a presença
salvadora do rei, figura mítica de sua infância, enquanto acompanhamos a
degeneração de sua existência psíquica e física (MALTA, 2010, p.65)

Cabe, aqui, uma observação em relação à peça: Visões siamesas tem um nível de
exigência de interpretação dos atores, já delineado em O mercado do gozo, que deixa mais
marcas no texto, com grande apuro literário, embora o enredo seja muito simples. As rubricas,
que dizem de ações e também algo da “sensibilidade” das cenas como modelo de atuação para
os atores, são indicações de como se intui a função da ingenuidade, de um lado
potencialmente positivada, buscando sua eficácia teatral na relação com o espectador, embora
o recurso dramático de uma “ingenuidade individual” seja negativizado, uma vez que todas as
ações da personagem só a levam para mais miséria e sofrimento. É precisamente a
ingenuidade na representação de fenômenos simples que dá uma vantagem ao teatro não-
profissional − (profissional no sentido convencional, tradicionalista e não-profissional feito
por atores e encenadores operários, no caso de Wekwerth) (WEKWERTH, 1997, p.37). Ao
tentar escapar da exploração, há um processo de desidentificação a partir da transmutação de
Kinara em Rei Kalafanko, que a princípio, nos sonhos da personagem, a salvaria. Nos
momentos de alucinação nos quais ainda dialoga com o Rei Kalafanko, rei mítico do Sião, o
personagem do Rei é num primeiro momento desempenhado pelo Sr. Tchong, um
latifundiário de arroz, depois pelo Marinheiro, que queria favores sexuais de Kinara e por
Jung, filho de Mamuang, um velho comprador de papel, que na rubrica da peça aparece como
alguém “largado, como tivesse se drogado”. São sobreposições de personagens “perversos”,
que nada têm em comum com o mito do Rei do Sião, embora guardem semelhanças a um
59

registro dramático, ao passo que quando Kinara se transforma no Rei Kalafanko, o próprio
drama se desfaz e a peça oscila entre o registro épico e lírico, como observa Gabriela Malta. A
idealização, de subjetividade lírica e inoperante, se choca com a realidade concreta, de caráter
histórico e social, e que é de conhecimento do público e não da personagem, fazendo com que
a dramaturgia inverta o sentido ideológico da saída individual num sistema capitalista − a
aprendizagem, nesse sentido, é do espectador e não do personagem.
A encenação exigirá do ator o abandono de registros teatrais “tradicionais”, que na
maioria das vezes opera entre a eloquência e a contenção subjetivista-psicanalizada, dada já
pela estrutura do texto. Como assistente de Brecht, Manfred Wekwerth diz sobre a encenação
simples
Todavia, isso exige atores que – pode parecer grotesco – tornem novamente
o teatro mais simples (o que não é fácil). Atores que percebam que o
convívio perceptivo entre as pessoas é mais interessante que a vida interior:
que não mergulhem nos abismos impenetráveis da alma, mas que observem
e representem as relações explicáveis que os homens estabelecem uns com
os outros. Atores que não destilem um tipo sem falhas, mas que representem
simplesmente as rupturas, isto, as contradições de suas ações como elas são:
contraditórias. Atores que se contentem em sugerir os traços que interessem
ao personagem, quando se trata de aludir os grandes traços da fábula. Em
suma: precisamos de atores que compreendam que o ser social determina a
consciência. E que possam, no palco, representar o mundo exatamente desta
forma (WEKWERTH, 1997, p.40-41).

Cabe aqui uma breve digressão quanto ao trabalho de “formação de atores” na


composição das peças do Latão. Os atores, muito ao gênero de “teatro de grupo” não reduzem
seu trabalho à decoração de falas de personagens, ou trabalhos de mesa, ou ainda a
“composição de personagens” numa atitude individualizada, buscando incorporar, ou
construir, a história do personagem de um ponto de vista personalista – questão que pode vir
após o conhecimento histórico da peça, como salienta o ator Ney Piacentini: “os trabalhos
mais individualizados com personagens só ocorrem depois que a base histórica, seus
processos contraditórios, foram debatidos. Aí surgem diálogos mais particularizados entre
atores e direção” (ALBERGARIA; PIACENTINI, 2009, p.93). Os atores do grupo assumem
funções diversas, relacionadas não apenas a composição de figurinos, adereços, cenografia,
mas também como dramaturgos em cena, e, em sala de ensaio. Isso faz com que cada ator,
necessariamente, e ainda que pelo breve tempo em que se incorpora a um processo de
trabalho específico, tenha como processo de aprendizado uma forma de trabalho que exige
uma atitude diferenciada e reverbera na composição de personagens em uma “atitude
realista”. A atitude realista, como Helena Albergaria define, além da percepção de detalhes de
60

composição via abordagem stanislavskiana, que precisa de uma relação real entre os atores
em cena,

é também para mim um componente fundamental do trabalho realista do


grupo. Mas o foco está na personagem, não no “jogo do ator”. E está nas
personagens pensadas em relação às forças políticas que atuam na história da
peça, e dentro dela. Nesse sentido, é muito materialista o modo de pensar o
realismo dentro do Latão. Deve haver essa atitude realista mesmo em
situações de quebra épica, pois você está sempre se relacionando com
alguém. Seguindo a ideia do Brecht de que a mínima unidade política são
dois homens que se encontram, acho que a cena pode também ser pensada
assim. Mesmo a personagem sozinha em cena estabeleceu anteriormente
uma relação. Ou vai estabelecer depois. Além da relação que o ator
estabelece com o público. O foco das relações contribui para que as cenas
nunca sejam pensadas abstratamente, de forma genérica, o que é o mais
importante. Romper com o estado abstrato de representação é um conceito
de Stanislavski. Mesmo Brecht, que nunca trabalhou para o ilusionismo,
detestava abstrações ideológicas (ALBERGARIA; PIACENTINI, 2009,
p.88).

Muito do resultado das peças do Latão precisa do trabalho desalienante do ator em


ensaio; dele advém as relações materiais postas em cena; o personagem teatral, como Anatol
Rosenfeld (2007) afirma, funda, onticamente, o próprio espetáculo (através do ator). Nesse
sentido, diferentemente da abordagem cinematográfica e literária, os personagens teatrais
fundam a ficção na sua objetivação subjetiva, sendo que nas outras abordagens possam até
“desaparecer” por certo tempo; o palco, entretanto, não pode permanecer “vazio”; sem o ator,
obviamente, não existe teatro. Mas também não é “qualquer trabalho” de ator. Quando Helena
Albergaria diz da atitude realista e ainda menciona o estudo de Constantin Stanislavski que se
processa na “formação de atores” do Latão, parece que há algo da observação de Manfred
Wekwerth quanto ao método de Stanislavski

O ator em busca de detalhes realistas deve representar com extrema precisão


as numerosas pequenas ações da fábula, antes de investir pensamentos e
sentimentos. Com isso evita que sejam representados aleatoriamente
quaisquer ideias ou lugares-comuns, em vez das próprias situações
concretas. O que para a vida é o último, para o ator é o primeiro. Por isso ele
deve fazer o contrário do que faz na vida: como personagem, deve agir antes
de pensar (WEKWERTH, 1997, p. 141)

Feito esses apontamentos, o alcance das questões problematizadas nas peças do grupo
estão relacionadas ao “manejo de interpretação” conquistado durante o processo de ensaio e a
cada apresentação do espetáculo. Há que se considerar, portanto, o grande empenho do Latão
na formação de atores-dramaturgos, sem, contudo, fetichizar a relação grupal como “garantia
61

estética”, considerando também o trabalho minucioso de composição da dramaturgia, feita, a


essa época, por Sérgio de Carvalho e Márcio Marciano, principalmente.
A encenação de Visões siamesas, portanto, assim como de outras peças, é um grande
desafio para os atores, pois soam simplórias as sequências dramáticas que parecem flertar
com um pathos trágico, que tem uma parcela de verdade no “movimento esquizofrênico da
classe trabalhadora”.
Há que se considerar que Visões siamesas, assim como Equívocos colecionados, peça
publicada na seção Releituras, e estreada no mesmo ano da primeira, têm em comum o
“sentimento” do grupo quanto ao período histórico, que nas palavras de Gabriela Malta, diz se
não de um pessimismo desesperado, de um grande, enorme, rebaixamento de expectativas.
Sobre Equívocos colecionados, Iná Camargo Costa considera

Equívocos colecionados tem, por assim dizer, um ponto de partida histórico


e três culturais. Historicamente, o Brasil passou a integrar oficialmente a era
da contra-revolução com o golpe militar de 1964. Depois de vinte anos de
contra-revolução armada e, assegurada a fidelidade civil à ordem capitalista,
entramos na era, ainda vigente, da contra-revolução civilizada. Quanto às
referências culturais, a brasileira é o filme Terra em transe, de Glauber
Rocha, e as alemãs são Heiner Müller e a peça didática de Brecht, em
especial A decisão. De olho no pântano sociológico da pequena burguesia, a
matéria prima retirada do nosso clássico da autocrítica do intelectual, do
artista e do sindicalista que fazem política de costas para as reivindicações
da classe trabalhadora, é processada através de recursos formais forjados por
Brecht e explorados por Heiner Müller. A peça instala um tribunal em que as
figuras acima, mas a de um estudante engajado, todos definidos como
cadáveres, ou espectros que continuam nos assombrando, são submetidos a
um curioso processo: na ausência do promotor e do advogado de defesa, eles
apresentam seus próprios argumentos apologéticos. Na ausência de uma
acusação formalizada, os espectros oferecem as mais variadas justificativas
por terem sonhado o que sonharam, por terem aceito as regras do jogo e,
inconscientes de sua condição de espectros, continuam reivindicando o seu
direito a um lugar num mundo onde parece não haver lugar para eles, sem se
dar conta de que estão completamente integrados. A coreografia e o bate-
boca vão se intensificando até culminarem em violenta troca de acusações
quando, instado a se pronunciar, o Juiz (uma suspeita mistura de Brecht e
Chaplin) prefere suspender o juízo, remetendo a sentença para os
espectadores aos quais ainda pede empatia. Nesta peça, é particularmente
relevante a dialética do ser e do nada, pois a ausência de acusação formal
explica o caráter auto-referido dos temas e justificativas e o empenho de
cada um em se defender (COSTA, 2008, p.27 e 28).

Muito do processo de construção dramatúrgica dessas duas peças pode ser recuperado
no texto de Marcio Marciano (2009), Formas de uma dramaturgia do limite: Equívocos
colecionados e Visões siamesas. Gostaria, entretanto, de retomar apenas uma questão
apontada por Iná sobre Equívocos colecionados em diálogo ao que nos conta o dramaturgo:
62

Comparados aos textos anteriores do grupo, podem gerar certa estranheza


(...) Ao leitor desavisado, o roteiro de Equívocos pode sugerir o abandono de
um projeto dramatúrgico pautado pelo princípio de inteligibilidade da cena
como forma de representar criticamente as contradições do método
predatório com que as elites brasileiras vêm impondo à força o que elas
mesmas chamam de nossa “modernização”, com seu corolário supostamente
civilizador e progressista, mas marcado pela pior espécie de degradação
humana que é aquela que subtrai de gerações inteiras seu “direto ao futuro”,
para usar os clichês com que essas mesmas elites se congratulam nos
banquetes da filantropia e do voluntariado (MARCIANO, 2009, p.232-233).

É de total conhecimento do dramaturgo que o público familiarizado com as peças do


Latão estranhe a forma lírica que, com as vozes que em nada se assemelham a uma certa
trajetória cênica, diz respeito às manifestações da inconsciência. Em estudo para a
composição da peça, o pensamento de Heiner Müller foi um gatilho provocativo posto por
Hans Thies-Lehmann quando o grupo participou de uma oficina com o crítico em setembro de
2003 (o experimento estreia em 22 de abril de 2004 no Instituto Goethe de São Paulo e,
segundo Marcio Marciano, foi criado em três semanas, como roteiro para uma leitura
encenada). No debate que encerrou a oficina, com trechos publicados na revista Vintém n.5,
Lehmann diz sobre a poética mülleriana

A alteração poética do tempo tem um papel importante no teatro de Müller


porque sua composição dramatúrgica em forma de “paisagem” instaura um
ritmo de fantasia. Como no sonho, não existe a lógica do tempo linear.
Passado, presente, futuro se misturam. Ele procura produzir essa colagem
temporal nas suas peças. Por isso, seu teatro Müller é comparável a uma
pessoa no momento em que ela acorda e tenta entender o seu próprio sonho.
O texto é o sonho, a cena é a interpretação do sonho. E aí novamente aparece
o diálogo. É uma resistência contra a cultura capitalista que só conhece o
presente, para quem só existe o tempo presente (...) A essa forma de teatro,
que já não é um texto tipicamente teatral, eu daria o nome de um teatro pós-
dramático (VINTÉM, 2005, p.45-46).

Há uma grande inserção do debate, no campo de estudos teatrais, da ideia de uma pós-
dramaticidade. Essa proposta baseia-se em certa medida, do ponto de vista teórico, no
inventário da produção teatral europeia dos anos 1970 aos anos 1990, realizado por Hans-
Thies Lehmann e publicado em livro no Brasil em 2007 (Teatro pós-dramático), no qual a
categoria pós-dramático abarca as experiências cênicas que escapam à construção sobretudo
da fábula e as unidades dramáticas normatizadas pelo drama burguês. Para tentar entender a
aproximação feita pelo crítico na palestra em relação ao teatro mülleriano, recorro a alguns
apontamentos do argumento presente no livro em relação ao pós-dramático.
63

Lehmann considera que o discurso teatral produzido entre os anos 1960 e 1990,
principalmente, se emancipou da literariedade, ou seja, não tem como pressuposto o texto
dramático, se aproximando mais da superficialidade e da velocidade em seus aspectos
cênicos. Daí a ressalva feita por Luiz Fernando Ramos (2010), em O Pós-dramático ou
Poética da Cena?, de que a acepção pós-dramático trata de um novo paradigma que se impôs
ao longo do século XX, que apresenta a tensão entre uma poética do espetáculo e uma poética
do dramático do que propriamente um desenvolvimento histórico do dramático.
Para Lehmann, o teatro não se constitui mais como um meio de comunicação de massa
em um mundo de consumo passivo de imagens e informações, mundo que enfraquece a
capacidade de liberação de energias e fantasias, entendido, talvez, como o rebaixamento da
capacidade imaginativa dos indivíduos. No seu argumento comparece a compreensão de que a
comercialidade e a rentabilidade cultural imprimem grandes dificuldades ao teatro, produto
com especificidades que esbarram na facilidade dos suportes audiovisuais. Para corroborar a
sua argumentação, Lehmann elenca as dificuldades materiais de se produzir teatro:
manutenção de equipamentos culturais, administração de todo o aparato teatral e custos
relacionados ao trabalho dos artesãos. Tendo em vista este cenário, o que está em pauta para o
autor é a investigação das produções que utilizam os signos teatrais em confrontação ou
conformidade com as tendências modernas de autorreflexão, no questionamento mesmo
dessas condições, naquilo que projetam sobre “novas possibilidades de pensamento e
representação para o sujeito humano individual” (LEHMANN, 2007, p.20).
Como processo histórico, as inovações teatrais atenderam a uma necessidade política
de representação e não, exclusivamente, opção estética e é exatamente essa perspectiva que se
apresenta de forma contraditória por Lehmann. Ao final do livro, o autor faz um balanço
sobre a interface teatro pós-dramático e política, apontando que já passou o tempo do teatro
como um lugar em que conflitos de valores sociais e fundamentais eram exibidos e
tematizados (LEHMANN, 2007, p.409). Para o autor, “o conflito político tende a escapar à
apreensão imediata e à representação cênica (...) nessas circunstâncias, a única coisa que
ganha algo como um apreensibilidade direta é a interrupção dos comportamentos
normatizados, jurídicos, políticos, portanto o não-político” (LEHMANN, 2007, p.407- 408).
Segundo Sílvia Fernandes (2010)

na tentativa de encontrar conotações políticas no teatro pós-dramático, o


ensaísta afirma que o político desse teatro é o político da percepção. Seu
engajamento, portanto, não se situa nos temas, mas na revolução perceptiva
que promove com a introdução do novo e do caótico na percepção
64

domesticada pela sociedade de consumo e pelas mídias de informação. A


proposta de depreender o político da hermenêutica das formas, de tendência
eminentemente adorniana, soa como tentativa forçada de alçar o teatro pós-
dramático à categoria de prática revolucionária. O pós-dramático não precisa
dessa justificativa. Mantém-se na integridade de suas formalizações
transgressoras como desejo insistente de superar o teatro. (LEHMANN,
2007, p.30)

Se seguirmos o argumento de Lehmann, de fato, todas as possibilidades de


compreensão do teatro como uma esfera pública foram banidas restando apenas seu lugar
como resíduo de uma prática que outrora teve alguma importância como espaço de reflexão e
debate políticos, se assemelha muito mais a uma prática transgressora do que política, ou
revolucionária, conforme Fernandes. De todo modo, é válida a afirmação de Lehmann de que
não é pela tematização direta que o teatro se torna político (...) “mas como prática, representa
exemplarmente uma ligação de elementos heterogêneos que simboliza a utopia de uma “outra
vida” (...). Portanto, o teatro é virtualmente político segundo a concepção de sua prática”
(p.414).
Problematizando o alcance das iniciativas de teatro político – que parece ser o
incômodo de Lehmann: quando o teatro se autodenomina “político”, ou ainda, revolucionário,
ou ainda tenha alguma pretensão extra-estética, ou que revele que o mundo não se encerra na
arte, muito pelo contrário (em sua época de mais vitalidade, dos agitprops, peças didáticas e
teatro de tese durante a República de Weimar) o autor reproduz o que é de senso comum que
na maior parte das vezes, “o teatro político não passava de um ritual de confirmação para
aqueles que já estavam convencidos” (LEHMANN, 2007, p.409). A afirmação, que pode ser
feita a qualquer tipo ou gênero teatral e literário, pois alia uma convenção estabelecida à
expectativa do público, sem a mediação prática, nega qualquer possibilidade de diálogo
criativo entre público e palco. Deste modo, suas “reservas” se dirigem à produção teatral que
não se furta de explicitar seu ponto de vista no conteúdo tematizado pela forma. Contudo,
para ele, como Brecht também afirma, o que é efetivamente político em teatro está explícito (e
não implícito como quer o autor) no modo de representação. Para Lehmann, o modo de
representar se refere apenas ao espetáculo apreciado pelo público, sua teatralidade − visto que
o seu percurso de construção do inventário de novas formas, por um lado, é o resultado direto
da não problematização da indústria da cultura em sua dimensão espetacular e que pelo
mesmo movimento defende a descentralidade do texto no fazer teatral −, ao passo que Brecht
opera com a representação pela literatura dramática – daí seu debate com Lukács, por
exemplo – e também pelo palco – e são inúmeros exemplos deixados por Brecht em seus
65

escritos teóricos e poemas sobre a arte da representação, dirigidas a atores e diretores e o


espantoso legado dramático, com peças constantemente reescritas para que a composição
dramática pudesse atritar com as expectativas do público em suas convenções, desmontando
as ideologias precipitadas no modo de representar.
Para citarmos mais um equívoco de Lehmann sobre o teatro de Brecht, Maria Silvia
Betti argumenta que no livro Escritura Política no Texto Teatral, publicado no Brasil em
2009, “ele se esquece de um detalhe crucial, que é um fato que o Fredric Jameson trata com
tanta ênfase em O método Brecht, de que o que está alegorizado no trabalho brechtiano não é
a fábula ou o conteúdo da fábula, e sim o raciocínio de análise que se apresenta a partir dela”
(JORNAL TRAULITO, 2010, p.16)
Se no debate com as proposições brechtianas há confusões ainda a serem explicitadas,
e em todo o argumento sobre a capacidade da fabulação responder aos questionamentos
humanos, o que está em pauta, de fato, é a capacidade de inteligibilidade do mundo atual pela
arte e pelo teatro, que necessariamente caso consequente, tem de passar pela crítica à
colonização cultural, para falar com Iná Camargo Costa, promovida pela indústria da cultura.
Invertendo um célebre texto de Brecht, pelo pós-dramático, só poderemos descrever o mundo
atual para o homem atual na medida em que o descrevermos como um mundo sem qualquer
possibilidade de modificação. A estética pós-dramática o faz exemplarmente através de uma
cena que reivindica o ritual religioso ou a presença-performance-a-histórica, na qual há “a
convergência do passado que já se foi, construção de um futuro que virá operando sobre um
presente que se vive. Retomamos a cena como gesto, campo de experiência, que rompe com a
ideia de representação que remonta a algo do passado, a algo dado”26.
Equivocadamente, parece que a ficcionalização só existe como um suporte artístico e
não como uma condição constitutiva do homem que através da linguagem artística, por ser
linguagem, própria do ser humano, constrói uma compreensão da realidade e nisso produz
sentido, manipulado e manipulável, obviamente. Claro está que as formas artísticas são
alteradas na medida em que a realidade também se modifica, contudo, celebrar a incapacidade
de tornar inteligível o mundo só pode estar baseado em uma renúncia de qualquer intenção
produtiva que ademais congratula com a expectativa espetacular mercantilizada. A busca de
algo que é incognoscível e sua celebração pelo teatro mistifica o trabalho artístico, glamouriza
o desconhecimento e a incompreensão e nega a capacidade de algo ser produtivo.

26
Palestra realizada por Carlos Camargos Mendonça no evento Cenas transversais: artes em trânsito, realizado
pela Escola de Comunicação, curso Direção teatral, da Universidade Federal do Rio de Janeiro em novembro de
2012.
66

Especificamente sobre o teatro de Heiner Müller, o crítico diz:

é inconfundível: na hora dos fantasmas se trata do tempo do inconsciente, da


fantasia, do surreal. E assim um tempo que deve estar fora e dentro do
tempo: eu o chamo, com Wener Hamacher, de contre-temps – não tempo.
Assim como o tempo cria consciência, o não tempo marca a retirada dos
significados, que do seu lado também são o deslocamento da chegada do
futuro. Para Müller isto é o tempo da história (LEHMANN, 2009, p.305-
306).

E talvez aqui a observação de Iná quanto à inconsciência das “personagens” da peça


do Latão, de sua condição de espectros que “continuam reivindicando o seu direito a um lugar
num mundo onde parece não haver lugar para eles, sem se dar conta de que estão
completamente integrados”, deva ser lembrada. O que as experiências pós-dramáticas, como
esta estranhada em Equívocos colecionados, não se dá conta é que ela está totalmente
integrada à expectativa da indústria da cultura. Para um teatro dialético, que se pretende fazer
de um ponto de vista historicizado, a maior traição, que é assunto da peça e faz com que as
vozes sejam auto-referentes, é permanecer no imbróglio reificado da “paisagem” e do
“sonho”, sem passado, presente ou futuro. Talvez, por essa questão que fica em aberto em
Equívocos colecionados, faz com aproximadamente seis meses depois, o Latão estreie Visões
siamesas, próxima ao argumento do experimento anterior, que trabalha com restos e vestígios
humanos, mas dramaturgicamente oposta, com uma fábula que se despedaça na medida do
estrangulamento do sujeito, portanto colocando-a como processo, não um estado. O
pressuposto adorniano da impossibilidade de representação é então tensionado com a figura
reconhecível do inumano, em seu desenvolvimento, e, não no seu acabamento. O retorno à
fábula, tortuosamente dramática, é a tentativa de inteligibilidade desse processo e não de sua
reiteração – contudo, o debate com os mortos da história, ou seja, com os vencidos, continuará
como provocação na peça Ópera dos vivos.
Em 2005 o grupo excursiona por 10 cidades do interior paulista apresentando as peças
do repertório, além de manter as atividades de cunho teórico formativo, como a publicação da
revista Vintém. Em 2006 a Companhia recebe suporte financeiro por meio do Programa
Municipal de Fomento ao Teatro na cidade de São Paulo para desenvolver o projeto
Companhia do Latão 10 anos: memória, estúdio, pesquisa. Nesse período o grupo reúne,
organiza e divulga a sua produção teatral, gerando as publicações mencionadas: Introdução
ao teatro dialético: experimentos da Companhia do Latão (2009), Atuação crítica: entrevistas
da Vintém e outras conversas (2009), ambos pela Editora Expressão Popular e Companhia do
Latão 7 peças (2008), editada pela CosacNaify, além do DVD duplo Experimentos
67

videográficos do Latão, contendo oito documentários e experimentos de ficção (2009) e o CD


Canções de cena II (2009) - o primeiro CD com canções do grupo foi lançado em 2004.
Segundo informações disponíveis no site da Companhia,

Por 18 meses, a equipe composta por Sérgio de Carvalho, Helena


Albergaria, Martin Eikmeir, João Pissarra, Márcio Marciano, Ney Piacentini,
Caetano Gotardo, Diogo Noventa, Marco Dutra, entre tantos outros
colaboradores dedicou-se ao trabalho de documentação e criação de
materiais artísticos e pedagógicos capazes de expressar e tornar transmissível
a experiência em teatro dialético do grupo. Essas atividades foram
desenvolvidas no escritório localizado na pequena sede da rua Iperó, que
agora se transfere para novo endereço.

Ainda em 2006 o grupo estreia O Circulo de Giz Caucasiano, de Brecht, no Centro


Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro e também no SESC Avenida Paulista em São
Paulo. Em 2006, o grupo é contemplado, via edital, pelo Programa Petrobrás Cultural e dá
início a pesquisa e estudo que resulta na peça Ópera dos vivos.
A partir de 2006 o grupo intensifica estudos e experimentos em processos de criação
audiovisual; em 2007 inaugura o Estúdio do Latão, uma realização histórica para o grupo. É
um espaço que permite a difusão do Projeto Companhia do Latão 10 anos bem como
condições inéditas para o desenvolvimento de sua pesquisa cênica e estreia o telefilme Srta. L
(Valor de troca) uma co-produção com a TV Cultura de São Paulo. Em 2008 estreia o
experimento Entre o céu e a terra, que combina as linguagens de vídeo, música e teatro.
Segundo informações no site da Companhia:

Sobre a projeção de imagens inspiradas no conto “A cartomante”, uma trilha


sonora é executada ao vivo enquanto os atores do grupo enunciam textos
poéticos e teóricos que comentam a narrativa. Os escritos são baseados
em fragmentos de Machado de Assis e do crítico Roberto Schwarz. Foi
apresentado apenas duas vezes no Teatro SESC Consolação, em São Paulo,
em 22 e 23 de outubro de 2008.Gravado em locações na Vila Maria Zélia, no
Museu da Caixa Econômica Federal e no Teatro SESC Anchieta, o vídeo
"Entre o Céu e a Terra" é um filme mudo que conta com a participação de
mais de 20 atores convidados, entre eles integrantes da Companhia do Latão
e do grupo XIX. Foi todo feito a partir de cenas improvisadas pelos atores,
constituindo-se num trabalho de dramaturgia e direção coletivas, sob
a coordenação de Sérgio de Carvalho.27

27
A informação pode ser consultada em www.companhiadolatao.com.br. Acesso em 07/08/2013.
68

Em 2009, estreia ainda outro experimento audiovisual, Ensaio sobre a crise, uma co-
produção da Companhia do Latão, TV Brasil e Brigada Audiovisual da Vila Campesina. Em
2010 o grupo abre o processo do projeto Opera dos vivos no SESC Santana, em São Paulo,
organizando debates, apresentação de cenas comentadas, e oficina de criação coletiva tendo
como tema o “módulo” televisão de Ópera dos vivos, entre março e abril.
69

OS MORTOS OBSTACULIZAM A FELICIDADE DOS VIVOS

Todo lo que se diga sobre cultura desde um puto de vista más distante, más
genérico, sin tener em cuenta la práctica, no es más que uma idea también y
tiene, por tanto,
que ser comprovada primero em la práctica.
Bertolt Brecht

Quer dizer, ninguém escapa da forma-mercadoria e ninguém pode agir como se estivesse fora dela. As
soluções têm que ser achadas a partir dela e não a partir da ausência dela.
Roberto Schwarz

A peça Ópera dos vivos estreou no Rio de Janeiro em setembro de 2010. Em 2011, fez
temporada na cidade de São Paulo e no mesmo ano, em 2012 e 2013 excursionou por diversas
cidades do país, contando com uma apresentação em Portugal 28. O crítico Luiz Fernando
Ramos considerou a peça a mais ambiciosa da Companhia; ambiciosa por se organizar em
quatro atos com aproximadamente quatro horas de duração, e talvez pelo tema por ele eleito –
ânsia do grupo por uma maior politização do teatro. Para Maria Eugênia de Menezes, Ópera
dos vivos é uma obra bela e necessária, que “estabelece pontos com o cinema, a música
popular e a televisão. Tudo isso para lançar luzes sobre os modos de criação artística e o
impacto que os anos de ditadura militar ainda exercem nessa seara, um espetáculo entre outros
para se guardar na lembrança, e de tempos em tempos, para se revisitar”29. A peça gerou,
ainda, discussões informais e um ciclo de debates promovido pelo SESC Belenzinho e pela
Companhia em sua temporada nessa unidade na cidade de São Paulo. Feita na sala de ensaio,
com Sérgio de Carvalho como dramaturgo e diretor, e em suas apresentações, com amplo
estudo sobre a cultura brasileira no período da ditadura instalada em 1964 (entrevistas com
artistas e intelectuais adensaram o trabalho de pesquisa) a dramaturgia cênica apresenta as
marcas do trabalho coletivizado, de interpenetração da literatura dramática e do convívio dos
atores com o público.

28
Em algumas cidades somente o primeiro ato foi encenado, pelos obstáculos da própria montagem – pelo
menos duas salas são ocupadas. Isso faz com que as observações anotadas por este trabalho precisem ser
mediadas quando se tem a informação que o espectador possa ter assistido apenas ao primeiro ato, ou ainda,
quando a encenação se dê em espaços não-convencionais, como a que ocorreu na Escola Nacional Florestan
Fernandes em 12 de novembro de 2011, na Mostra de Cultura. Nesta ocasião foi encenado o primeiro ato de
Ópera dos vivos.
29
A crítica de Luiz Fernando Ramos foi publicada no jornal “Folha de São Paulo”, em 14 de outubro de 2010.
Maria Eugênia de Menezes escreveu para o jornal O Estado de São Paulo em 26 de dezembro de 2011.
70

O presente estudo buscou problematizar a composição da peça a partir de sua relação


com o público e a alguns aspectos extra-teatrais.30 Assisti a apresentações no Rio de Janeiro
(Centro Cultural Banco do Brasil) e também em São Paulo (SESC Belenzinho e Teatro de
Arena Eugênio Kusnet) – e soma-se como material de análise o texto ainda não publicado
pela Companhia e impressões geradas pela cena. Acentuo esta questão pois ao longo da
trajetória de apresentações, Ópera dos vivos sofreu alterações dramatúrgicas e ajustes,
somados a necessidades distintas de reconfiguração espacial tendo em vista a arquitetura dos
teatros31.
Dadas as condições que geram o presente trabalho, começo com uma questão
evidente: Ópera dos vivos não é um drama tradicional, assim como nenhuma peça do Latão.
Sua forma ordenadora é épica. Afirmar isso faz com que as categorias e aspectos de análise da
forma dramática (exposição, tensão dramática, personagens-sujeitos conscientes em
momentos de decisão e outras formas de abordagem do drama em sua acepção tradicional)
não lhe sejam totalmente “aplicáveis”. Pela organização geral da peça em quatro atos – cada
um utilizando materiais específicos, podendo facilmente ser reconhecidos como “peças”
dentro da peça − procurei adotar como princípio de análise a exposição dos recursos formais
de cada ato e uma possível articulação entre eles. A disposição dos materiais promove os
primeiros apontamentos de análise para que se possa chegar a uma aproximação seu fio
condutor: o trabalho do artista. Do princípio: Ópera dos vivos insinua a encenação de um
gênero teatral que une música, drama e espetáculo. A deixa, antes de exigir a execução de um
gênero através de normas precisas, completa seu sentido ao contrastar com o título dos atos,
que serão aqui compreendidos como “cenas-caso” ou variações de sua ideia geral. À maneira
brechtiana, cada variação se situa em uma dimensão material de relações de trabalho e meios
de produção: televisão/morrer de pé (quarto ato), música popular/privilégio dos mortos
(terceiro ato), cinema/tempo morto: um filme sobre o golpe (segundo ato), teatro/sociedade
mortuária: uma peça camponesa (primeiro ato). A cada ato há a ficcionalização de uma
situação específica – teatro, cinema, show, televisão – no qual a relação central, morte e vida,
é estudada a partir das relações dos personagens como veículo de formação representacional.

30
Em conversas informais, Sérgio de Carvalho reitera que não procura, ao dirigir e ser o principal dramaturgo da
Companhia do Latão, um público de forma abstrata. Mas é necessário reconhecer que Ópera dos vivos, pela sua
engenhosa montagem, exige um espaço teatral tradicional, frequentado, essencialmente, pela classe média. No
caso da Companhia, como demais outros coletivos, há um público assíduo de estudantes e intelectuais, de classe
média, de esquerda.
31
Agradeço à Companhia do Latão, em especial a Sérgio de Carvalho, pelo total acolhimento de minhas
solicitações quanto ao texto e pelos momentos preciosos de conversas e discussões. A versão dramatúrgica
utilizada data de 11 de setembro de 2011. A peça não foi, até o momento, publicada.
71

Não há uma fábula específica que conduza a ação, tampouco personagens desenhados pela
orientação dramática clássica. Não se desenha uma história, mas a história recente do país,
tendo como “protagonistas” os artistas e as formas representacionais. Em última instância, os
personagens de Ópera dos vivos são os próprios integrantes da Companhia do Latão
demonstrando as condições e relações de trabalho em distintos meios de produção, por isso, a
cada ato, são acionadas histórias e personagens que dizem respeito a esses meios. Mas como
não se trata de uma colcha de retalhos, a narrativa cênica trata de tentar conduzir um fio por
fragmentos: a estrutura deixa entrever os expedientes artísticos afetados pelo golpe militar de
1964, como as experimentações do teatro de agitação e propaganda dos Centros Populares de
Cultura, assim como os procedimentos do cinema novo e da canção tropicalista, até chegar à
hegemonia do suporte televisivo. A fragmentação cênica sugere os impasses e contradições do
processo cultural brasileiro e dos posicionamentos artístico-intelectuais frente a novas
condições e formas de produção. Desta forma, a ideia é vinculada pelo assunto (teatro
engajado, cinema, canção popular, televisão) numa narrativa cênica que sobrepõe uma
compreensão histórico-crítica e o questionamento, em cena, de expedientes formais, inserindo
o debate sobre as realizações estéticas, no presente dramático em confluência com o passado
histórico; para utilizar um termo de Paulo Arantes, uma das lições possíveis de Ópera dos
vivos é dar a ver uma “herança sem testamento”, através dos “escombros colecionados”
(2012, p.204). Tal composição produz uma reflexão, num fluxo das formas representacionais,
sobre a coletivização em arte – coletivo compreendido como a articulação entre artistas e
realidade social −; a ruptura de tal processo e a sensibilidade da desobrigação impressa por
novas condições de trabalho geradas pela indústria da cultura. Nessa breve exposição, os
termos de Ópera dos vivos podem ser simplificados, mas haveria algo de falseamento caso
cada módulo não gerasse suas próprias relações. A proposta cênica incide na relação entre o
que é dramatizado e o público, trabalhado como mais um elemento da narrativa; ele, em
última instância é também produtor. “O público é sempre a herança mais decisiva, em
qualquer arte. O modo como as pessoas aprenderam a ver e a reagir é o que cria a condição
essencial para o teatro” segundo Raymond Williams (2010, p.221). Suponho que há um
princípio pedagógico no tema-ideia colado à perspectiva de como as pessoas aprendem a ver e
a reagir, exigindo um espectador produtor das articulações. É na relação espectador e cena
que muito das questões trabalhadas na presente análise irão incidir, relação esta que se dá,
pelos termos apresentados por Williams, a condição essencial para o teatro. Mas tal relação é
problematizada a partir do arranjo cênico, ou seja, por sua forma de narrar o trabalho dos
artistas. Talvez o maior rendimento da peça se apresente em sua modelação: para contar o
72

trabalho dos artistas nas condições atuais, de fragmentação e precarização das relações de
trabalho, foi necessário recuperar o movimento histórico que gerou tal situação. Mas como há
uma concepção material do tempo que perpassa a construção da narrativa, cada ato, e a
organização final da peça, busca apresentar materiais que permitam ao espectador
compreender as condições dadas a cada momento e suas consequências estéticas. Presente
dramático – arranjo cênico em atos – e História narrada − as relações de trabalho dos artistas
– chocam-se como “demonstrações” do trabalho dos artistas. O Latão-narrador retira da
experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada por outros. E incorpora as
coisas narradas à experiência dos seus ouvintes (BENJAMIN, 1994, p.201). É claro que seu
arranjo impõe algumas dificuldades de apreensão e de certa forma, os atos funcionam com
rendimentos distintos quanto à compreensão dramática e a estética gerada pelo momento
selecionado.
Em Sociedade mortuária: uma peça camponesa, epiciza-se o trabalho teatral, em
Tempo morto: um filme sobre o golpe epiciza-se o expediente alegórico cinematográfico. Nos
dois primeiros atos, a autorreflexão, ou estranhamento sobre o recurso utilizado – teatro e
cinema – gera sentidos sobre o trabalho do ator e a relação dos meios de produção; em Música
popular: privilégio dos mortos – o material é organizado para demonstrar a precipitação
ideológica representacional através de um show musical, ou seja, àquilo que foi intuído na
epicização do cinema – o produto final sem participação do espectador – soma-se ao sistema
cultural em termos de imposição de relações de trabalho sem “liberdade” artística, mas ainda
em níveis incompletos. O quarto e último ato, Morrer de pé, põe em curto-circuito a
teorização prática proposta nos atos anteriores, recuperando cenas e imagens, no qual o
trabalho do artista materializa a ideologia da indústria cultural, automatizando-a em sua
relação: a “ideologização”, que se foi adensando através dos suportes eleitos, guarda suas
relações com as condições de trabalho intelectual do período a que se referem ao mesmo
tempo que dizem da ideologia anticapitalista do presente.
Em Ópera dos vivos, o trabalho dos artistas na atualidade é visto pela análise daquilo
que é passado político-histórico, fazendo-o dentro da uma trajetória identificada a uma
formação de esquerda artística e intelectual, epicizando-a – a Companhia do Latão não se vê
herdeira ou mantenedora da trajetória dos artistas de esquerda da década de 60, seus contextos
são diversos – uma herança sem testamento −, mas é possível que algo do projeto de
superação que se depreendia das experiências teatrais do passado alimente parte do
imaginário do grupo no sentido de fortalecimento de seu trabalho teatral – talvez por isso da
indução do comentário de Luiz Fernando Ramos quanto ao objetivo da peça. Quer dizer que,
73

como produtores de um trabalho cultural que não separa arte e política – o projeto ideológico
é estético assim como seu contrário −, e consciente da perspectiva ideológica precipitada na
representação artística, talvez a influência mais decisiva de Brecht no trabalho do grupo, o
Latão em Ópera dos vivos revira nosso passado artístico para pôr em movimento o trabalho
teatral, em termos ideológico-intelectuais, nos termos de hoje. Para falar do estado de coisas –
do fetiche da mercadoria e da reificação em termos sociais e da precarização e fragmentação
do trabalho, incluído o dos artistas − foi preciso recuperar o passado histórico do trabalho
artístico, intuindo que se o fizesse apenas pelo recurso da demonstração da alienação dos
personagens do ponto de vista dramático, numa negativização absoluta do presente, o
fenômeno teatral poderia se constituir como uma forma reificadora e, portanto, a-histórica.
No artigo Para que serve o teatro político?, Maria Elisa Cevasco (2012) inicia suas
considerações sobre a função social do teatro de hoje com a apresentação do ensaio de
Roberto Schwarz Cultura e Política, 1964-1969, descrevendo-o como um estudo
multifacetado que demonstra como se pode ler a História de um período nas suas
manifestações culturais (p.129). A conhecida influência intelectual do crítico na produção do
Latão, em especial nesta peça, produz em Ópera dos vivos um itinerário analítico que parte de
suas considerações sobre as manifestações da época mencionada, 1964-1969, através do
estudo da teoria sedimentada sobre o teatro épico, utilizando como suporte a sua própria
prática, ou seja, é uma obra que tenta ler a História, fazendo convergir no presente cênico uma
consciência de que o tempo obviamente passou e, também não passou, pois muito daquilo que
foi esmagado com o golpe reverbera como ruído para os artistas e mantém contradições
sociais na vida brasileira, potencialmente superáveis antes da ditadura. Na dialética que
aproxima os dois primeiros atos em relação ao terceiro, quando a sociedade do espetáculo se
anuncia e quarto, no qual há um acúmulo do capital que tudo irá transformar em mercadoria,
há uma consciência de que o trabalho teatral precisa ser ressignificado enquanto espaço
formulador de percepção e consciência histórica. Em seu arco geral, o trabalho imaterial de
produção simbólica se desenha como um projeto ideológico anticapitalista de ocupação de
espaços de hegemonia burguesa. Trata-se da tentativa de narrar um processo histórico, com
grande senso prático pra falar com Benjamin, sobre a produção artística engajada de 1960 à
contemporaneidade; dessa forma a peça, como um “balanço” do projeto artístico do grupo,
tem uma dimensão utilitária que enfeixa sua potência na consciência sobre seu lugar no
cenário teatral contemporâneo: com alguma influência entre àqueles que procuram formalizar
artisticamente saídas à mercantilização da cultura e quase inoperante diante da fetichização e
despolitização da arte e do trabalho intelectual, condições obviamente extra-teatrais. Por isso,
74

a aposta se dá no diálogo com o espectador, numa pedagogia estética. O recurso é variado


entre os atos, entretanto, nos três primeiros há maior evidência entre as situações dos
personagens em constante fricção com os modos de produção e as modelagens da forma
social. A análise do trabalho representacional deriva de uma compreensão específica sobre a
realidade brasileira, muito influenciada, também, pela abordagem de Roberto Schwarz quanto
à modernização conservadora operada, com a desfaçatez que lhe é peculiar, também no meio
teatral.
A partir dessas vias de compreensão na análise sobre a peça, em um primeiro
momento, exponho como a narrativa cênica dispõe os materiais a cada módulo. Em
específico, como se apresentam os “personagens em relação”, deixando como resultado a
problematização do assunto atritado à percepção proposta pela encenação. Num segundo
momento, tento apresentar alguns desdobramentos dessa disposição quanto a ideia ordenadora
da peça que, salvo engano, são articuladas pelo último ato.
A categoria de análise, “consciência” dos personagens – o personagem estar em
“conformidade” ou não nas relações e situações propostas pela dramaturgia cênica, ou seja,
como elas agem e se comportam em diferentes situações − está diretamente relacionada à
compreensão teórica do teatro dialético de Bertolt Brecht.
É de amplo conhecimento os estudos de Brecht quanto a teoria marxista. Pela
apresentação do dramaturgo, é possível perceber como a análise da estrutura teatral se
assemelha a observação empírica, nos termos marxistas, em contraposição prática à filosofia
alemã – no caso da do dramaturgo, em contraposição prática à ideologia dramática-
naturalista. Em A ideologia alemã, Marx e Engels consideram:

a produção de ideias, de representações, da consciência, está, em princípio,


imediatamente entrelaçada com a atividade material e com o intercâmbio
material dos homens, com a linguagem da vida real. O representar, o pensar,
o intercâmbio espiritual dos homens ainda aparecem, aqui, como emanação
direta de seu comportamento material. O mesmo vale para a produção
espiritual, tal como ela se apresenta na linguagem da política, das leis, da
moral, da religião, da metafísica etc. de um povo. Os homens são os
produtores de suas representações, de suas ideias e assim por diante, mas os
homens reais, ativos, tal como são condicionados por um determinado
desenvolvimento de suas forças produtivas e pelo intercâmbio que a ele
corresponde, até chegar às suas formações mais desenvolvidas (...). Não é a
consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência.
No primeiro modo de considerar as coisas [a filosofia alemã de Feuerbach]
parte-se da consciência como do indivíduo vivo; no segundo, que
corresponde à vida real, parte-se dos próprios indivíduos reais, vivos, e se
considera a consciência apenas como sua consciência. Esse modo de
considerar as coisas não é isento de pressupostos. Ele parte de pressupostos
reais e não os abandona em nenhum instante. Seus pressupostos são os
75

homens, não em quaisquer isolamento ou fixação fantástica, mas em seu


processo de desenvolvimento real, empiricamente observável, sob
determinadas condições (2009, p. 93-94).

A dramaturgia moderna apresenta a consciência da personagem como dado pois


refere-se a um mundo conformado pelo diálogo, no qual os personagens são circunscritos ao
mundo por ele composto. A abordagem naturalista, que possui conexões históricas íntimas
com o socialismo, segundo Raymond Williams, embora constituída como um movimento
contra versões idealistas da experiência humana,

acabou por ser visto como equivalente ao que ele contestava: uma mera
produção, ou a reprodução como um cenário, como um disfarce, para as
mesmas histórias antigas idealizadas ou estereotipadas. Na prática, havia
coisas que o teatro naturalista, mesmo em seu próprio interesse, não podia
realizar. Quanto mais ele encenava a realidade cotidiana, menos ele podia
mover-se seja para o pensamento não dito, seja para ação além dos locais
selecionados. De forma peculiar, ele foi capturado pela armadilha dos
cômodos nos quais as pessoas olhavam para fora pelas janelas ou ouviam
gritos vindos das ruas.” (2011, p.119).

Segundo Raymond Williams, o naturalismo burguês – a dramaturgia moderna − trouxe


grandes transformações ao incorporar em sua forma o material contemporâneo – em oposição
à matéria lendária ou histórica−; uma forma da fala cotidiana como fundamento para a
linguagem dramática; a extensão social – alargando a caracterização dos personagens que não
eram apenas de “nível social elevado”; e uma exclusão de todas as agências sobrenaturais ou
metafísicas da ação dramática. “O drama deveria agora ser, de modo explícito, uma ação
humana exercida em termos exclusivamente humanos.” (WILLIAMS, 2011, p.77). As
conquistas do naturalismo burguês, como as destacadas pelo crítico, foram incorporadas de
maneira cada vez mais ampla, transformando-se em um hábito naturalista. É interessante
notar, portanto, que para Raymond Williams, ao fazer Brecht a distinção entre o teatro épico e
o teatro aristotélico, esteja este se referindo ao teatro naturalista e sua implicação empática em
relação ao público. De todo modo, fica nítido pela abordagem de Williams que a
transformação histórica passa a ser convenção dramática, e contra esta estabilização do
procedimento que podemos compreender as propostas brechtianas.
No estudo empreendido por Peter Szondi em Teoria do drama moderno [1880-19050],
podemos encontrar a análise de obras sobre a crise da forma dramática nesses termos. Para
Peter Szondi, “o drama da época moderna surgiu no Renascimento. Ele representou a audácia
espiritual do homem que voltava a si depois da ruína da visão de mundo medieval, a audácia
76

de construir, partindo unicamente da reprodução das relações intersubjetivas, a realidade da


obra na qual quis se determinar e espelhar.” (2001, p.29).
Quando o drama passa a ser uma regra de composição, peças “mal sucedidas” eram
equívocos ocasionados por materiais mal escolhidos. O pesquisador irá analisar peças que
funcionam na contradição entre a “regra dramática” e materiais “mal escolhidos” para lançar
luz sobre a “’antinomia interna” que, em cada obra em particular, estabelece-se entre o
“enunciado da forma” e o “enunciado do conteúdo”. Ambos, assim, criticam-se um ao outro,
apontam um no outro os limites próprios, e, dessa forma, reciprocamente se historicizam.”
(PASTA apud SZONDI, 2001, p. 13). Segundo Iná Camargo Costa, “com base nas
especificações de Diderot, pode-se dizer que a criação do drama correspondeu a uma espécie
de expulsão da esfera pública do âmbito do teatro, marca registrada do teatro grego e popular,
e mesmo da tragédia neoclássica (1998, p.62). Então como poderia ser formalizado um
pensamento não dito, uma ação para além dos locais selecionados? Brecht, então, utiliza a
perspectiva científica marxista, estudando as relações dos homens em cena, fazendo com que
a consciência de suas personagens esteja evidenciada a partir de suas relações concretas, ou
seja, restaura a esfera pública mesmo quando o faz de uma perspectiva individual. Dessa
forma,
o teatro épico deduz os caracteres das ações porque, ao invés de olhar o
indivíduo isoladamente, olha para as grandes organizações de que estes são
parte; enquanto o drama se interessa por acontecimentos ‘naturais’, de
preferência situados na esfera da vida privada, o teatro épico tem interesse
em acontecimentos de interesse público (mesmo os da vida privada), de
preferência os que exijam explicação por não serem evidentes nem naturais;
enquanto o drama se limita a apresentar seus caracteres em ação, o teatro
épico transita dessa apresentação para a representação e desta para o
comentário, tudo na mesma cena. (COSTA, 1998, p. 72-73).

Como vimos anteriormente, o drama burguês passa a ser regra de composição teatral –
“expulsando” prólogos e coros, por exemplo − e assim é que seu pressuposto, o amálgama da
classe à consciência da personagem, entrevista como “o” mundo”, é passível de comentário,
de suspeita como expressão ideológica para o teatro brechtiano; uma “forma da crise” se
usarmos a categoria de Szondi. Em 30 de março de 1947, Brecht anota no Diário de trabalho
que no naturalismo a sociedade é vista como um pedaço da natureza, através de pequenos
mundos independentes (família, escola, unidade militar), ao passo que no realismo a
sociedade é encarada historicamente, através dos pequenos mundos que se percebem como
setores de linha de frente nas grandes lutas (2005, p.293).
77

Brecht utiliza a ideia de realismo não como um estilo representacional, mas uma forma
de aproximação da realidade. Quando do debate sobre o expressionismo alemão no início do
século XX, as divergências entre uma arte sem prescrições quanto à estética e à linguagem
aglutinaram intelectuais de esquerda em posições discordantes à vanguarda artística. Nesse
debate, Brecht afirma que “transformar o realismo numa questão formal, ligá-lo a uma e
apenas uma forma (ainda por cima velha) é esterelizá-lo. A escrita realista não é uma questão
de forma. Temos de eliminar todos os aspectos formais que nos impeçam de apreender a
fundo a causalidade social; temos de lançar mão de todos os aspectos formais que nos ajudem
a apreender a fundo a causalidade social” (BRECHT apud MACHADO, 1998: 241).
O dramaturgo lança mão de procedimentos que auxiliem nessa apreensão e não
deprecia procedimentos vanguardistas como faz Lukács (fluxo de consciência,
multiperspectivismo, montagem, estranhamento). Segundo Anatol Rosenfeld, “Brecht rejeita
a doutrina de Lukács porque este associaria o estilo realista a uma forma envelhecida e estéril,
quando o que atualmente se impõe ao realista é fazer uso de todos os processos artísticos que
facilitem a profunda ‘penetração na causalidade social’”. (2012, p.67) 32.
Ao contrário do que se pode supor, portanto, ao utilizar a categoria “consciência” não
se trata de uma análise psicológica de personagens de enquadramento dramático, mas de
construção da narrativa cênica.

El mundo es transformable porque es contradictorio. Em las cosas, gentes y


sucesos, hay algo que los hace como son y, al mismo tempo, algo que los
hace diferentes. Porque cosas, gentes y sucesos evolucionam, no
permanecem estáticos, se transforman hasta volverse irreconocibles. Y las
cosas tal cual son ahora continenen em si – así, em forma “irreconocible” -,
otras cosas, anteriores, em pugna com las actuales (BRECHT, 1970c, p.195)

Como o teatro épico não trata de ideias, mas de comportamentos, de relações


humanas, o ponto de partida de análise é o personagem em relação. Nele deve se perceber
algo de estranhável, de incompleto. Tudo começa pelo estudo do assunto da peça. No
fragmento Estudio del papel, o autor salienta:

El personaje surge de la suma de sus relaciones com otros personajes. El el


arte dramático de la vieja escula, el actor creaba el personaje para luego

32
Ainda no texto publicado no Suplemento Literário de O Estado de São Paulo, em 3 de fevereiro de 1968,
Rosenfeld chama a atenção para o fato de que Brecht não publicou as suas observações sobre as teses de Lukács
no período do debate: “Brecht não desejava provocar um conflito aberto numa ocasião em que a vitória do
fascismo impunha uma atitude discreta para não aumentar as divergências no campo antifascista.” (2012, p.69).
78

estabecer su relacioón com las demás figuras. De ese personaje inventado


extraía luego los festos y la forma de pronunciar las frases. La figura surgia
de la visión panorâmica de labora. Em el teatro épico se procede de manera
diferente. El actor épico no se preocupa por el personaje. Parte de cero.
Conduce todas las situaciones de la manera más espontânea y pronuncia las
oraciones uma después de la outra, pero como si cada uma de ellas fuese la
última. Para encontrar el gestus – es decir la actitud essencial que subyace
em toda grasse o alocución – que apoya las frases, ensaya otras frases, más
vulgares, que no dicen exatamente lo mismo que disse el texto, pero que
contiene el gestus... (...) Al mismo tempo que muestra la fidelidade de um
personaje, puede mostar sua ambición; puede conferir um tinte de sabiduría
al egoísmo de outro; puede exponer las limitaciones del amor a la libertad de
um terceiro. De esa manera, al construir su personaje, va creando los puntos
de contradicción que el personaje necessita (BRECHT, 1970b, p. 13-14).

Vejamos que estas são lições para um ator que está estudando uma dramaturgia
“acabada” que deve receber um tratamento diferenciado para demonstrar o ponto de vista que
se precipita na forma. Está na mira do dramaturgo peças dramáticas “naturalistas” – de um
modo geral, no caso do drama, a consciência das personagens está em conformidade à posição
que ocupam na estrutura social − que serão modeladas conforme interesses épicos. Como é de
conhecimento, as peças do Latão se fazem na sala de ensaio com tratamento da dramaturgia
no processo de composição, e, também, com os ajustes finais do dramaturgo. Dessa forma,
supõe-se que já em sala de ensaio a peça Ópera dos vivos, assim como as demais obras, foram
pensadas, antes mesmo da conclusão dos estudos, de forma a buscar esses elementos. Isso faz
com que a engrenagem da obra, ou seja, a relação entre atores ↔ personagens ↔ situações
dramáticas ↔ cenário ↔ figurinos ↔ dramaturgia cênica ↔ espectadores seja o terreno a ser
considerado para o presente estudo como a demonstração do projeto ideológico se fazendo
estético33.

33
Não é demais reforçar que este é um esquema interpretativo proposto pelo presente estudo. Se tivéssemos
outros objetivos em relevo, como o trabalho de formação de atores no interior do grupo do Latão e métodos
utilizados para tal procedimento, ou ainda, as estratégias usadas, individualmente, para produzir “uma narrativa
do personagem” que auxilia a fábula, haveria de considerar, por exemplo, o texto Kusnet hoje de Ney Piacentini
sobre a utilização do método de formação proposta por Eugenio Kusnet. Segundo Ney Piacentini: “Kusnet foi,
segundo o depoimento de todos os profissionais que entrevistei para a pesquisa, um ator rigoroso consigo mesmo
e aplicado, dentro e fora das salas de ensaios e espetáculos. A partir destas constatações não tive como não
mudar o meu comportamento em relação ao trabalho, tentando melhorar a minha disposição para os ensaios e
apresentações, aproveitando melhor o tempo dedicado aos processos. Passei a estudar em casa o máximo
possível de referências sobre o tema em processamento, escrevendo sobre os personagens sob minha
responsabilidade, refletindo acerca dos papéis, não apenas sobre as cenas da dramaturgia que vinham ganhando
vida ao longo do projeto de Ópera dos Vivos, mas também sobre os episódios que estariam antes das ações
vividas no espaço cênico, como uma espécie de preparo para que as cenas da peça contivessem mais elementos
quando fossem executadas. Para mim, retomar o hábito de imaginar e escrever outras cenas, além daquelas
mostradas ao público, só fez aumentar o meu envolvimento com o contexto dos personagens e da fábula
propriamente dita. Como exemplo, relembro a cena do começo de Sociedade Mortuária, primeiro módulo de
Ópera dos Vivos, no qual um dos meus personagens da obra, o latifundiário Capitão Quirino, vai ao encontro dos
filhos de um seu empregado recém falecido. Além de repassar cotidianamente – antes de se iniciarem as sessões
79

Ópera dos vivos propõe um estudo em cena; a dramaturgia cênica foi pensada a partir
da demonstração de tais contradições tendo em vista uma relação nova com o público.
Exatamente no seu arranjo contraditório que se impõe certa atitude do espectador,
necessariamente interessada. O conhecido efeito-d, efeito de distanciamento, ou ainda de
estranhamento foi o instrumento teorizado por Brecht e por ele praticado em suas peças para
distinguir momentos nos quais o espectador identifica-se com determinado personagem,
através da empatia causada pelo arranjo cênico e dele se distancia para compreender as
situações que circunscritas pelo palco fazem referência a relações extra-estéticas, ainda que
participantes, contraditoriamente, da própria fábula. Tal procedimento também deve ser
adotado pelos atores na composição de personagens e, em atitude interessada, pelo
espectador. Brecht registra em 2 de agosto de 1940 que o efeito de distanciamento é um
efeito artístico e também redunda numa experiência teatral. Busca-se mudar a natureza da
relação entre palco e plateia; entre o entretenimento, a diversão, o novo espectador também se
coloca como produtor, assim como os atores. Tanto no palco quanto na plateia “repete-se o
ato original de descoberta” (p.98), buscando um teatro que tenha no “argumento dialético” um
potencializador de apreciação e intervenção do público. Brecht pretendia que seu teatro, o
teatro dialético, fosse uma teoria praticada. No Diário de trabalho, Brecht faz a seguinte
anotação em 20 de dezembro de 1940

Claro que o teatro do distanciamento é um teatro da dialética. No entanto, até


agora, não vi nenhuma possibilidade de usar o material conceitual da
dialética para explicar esse teatro: seria mais fácil para a gente de teatro
entender a dialética aproximando-se dela por meio do teatro do
distanciamento do que entender o teatro do distanciamento partindo da
dialética. Por outro lado, provavelmente será quase impossível exigir que a
realidade seja representada de maneira a poder ser dominada, sem indicar o
caráter contraditório e corrente de condições, acontecimentos, figuras, pois a
realidade só pode ser dominada se se reconhece sua natureza dialética. O
efeito-d possibilita representar essa natureza dialética, é para isto que ele
existe; isso é o que o explica. Mesmo quando se tem de decidir sobre os
títulos que determinam a organização dos blocos, não basta, por exemplo,
exigir apenas uma qualidade social; os títulos devem também conter uma

para o público – o episódio em que Quirino justifica sua ausência no velório do pai de Aristeu e Marivaldo,
inventei um fragmento no qual o Capitão conversaria com a sua esposa – que sequer se sabe se existe, pois está
ausente na encenação – sobre porque ele deveria ir cumprimentar os filhos de seu ex-marceneiro José. Para
Quirino, ter que dar explicações aos filhos de um empregado, mesmo morto, era desnecessário, afinal ele era o
senhor das terras e de tudo que acontecia no engenho. No diálogo imaginário com a mulher eu ouvia coisas do
gênero: “Além de não ter comparecido ao velório, não vai dirigir uma palavra sequer aos filhos do morto?”.
Atendendo à mulher, mesmo contrariado, o Capitão deixa a casa da sede da fazenda e se dirige à marcenaria para
ter com os jovens. Aí então se inicia a cena da peça. Para mim, aquecer-me, fazendo esta pré-cena, deixou-me
melhor preparado para “entrar” na ficção. Ao longo das temporadas, continuei a me exercitar neste sentido,
inspirado no exemplo de Kusnet.” In: Revista do Centro de Pesquisa de Experimentação Cénica do Ator,
ECA/USP, maio/outubro, 2012.
80

qualidade crítica e anunciar uma contradição. Devem ser plenamente


adaptáveis; assim, a dialética (contraditoriedade, o elemento do processo)
deve poder se tornar concreta. Os mistérios do mundo não são solucionados,
são demonstrados. (BRECHT, 2002, p.151)

Em Ópera dos vivos, a principal amarração prática, advinda do estudo sobre as


relações de trabalho dos artistas, reflui em seu ensaio teatral teorizante sobre as manifestações
artísticas engajadas da década de 60 fazendo trabalhar as consciências e discursos que as
forjaram e que ainda operam no imaginário coletivo sobre as relações entre o artista e a
realidade, arte e política, pensamento e ação − de crítica anticapitalista. Passo, então, a expor
os elementos que me permitiram pensar as questões acima apresentadas.
No primeiro ato a cenografia sugere um teatro em obras; o público está bem próximo
ao espaço reservado para encenação e desde o princípio o aparato teatral está à mostra. Os
atores entram em cena; estão todos de frente para o público. Vestem o personagem Pai. O
público está diante da encenação de um velório. O ato, Teatro, Sociedade mortuária: uma
peça camponesa, delineia o processo de organização de trabalhadores rurais para a formação
das Ligas Camponesas. A encenação da peça camponesa funciona, numa primeira mediação,
como alusão sobre os embates colocados ao teatro produzido na década de 1960, quando a
sociedade em ebulição e os posicionamentos políticos e ideológicos repercutiam, nas
experiências estéticas, o imediatismo proto-revolucionário.
No passado, a disputa pela hegemonia mundial durante a Guerra Fria e sua “versão
brasileira”, o golpe de 1964, significou para muitos artistas brasileiros, entre 1950 e 1960,
posicionamentos e engajamentos na disposição de orientar a cultura politica do país. Segundo
Roberto Schwarz

Unindo o que a realidade separa, a aliança de vanguarda estética e cultura


popular meio iletrada e socialmente marginal, além de mestiça, é um
programa antigo. Ensaiada pelo modernismo carioca nos anos 20 do século
passado, em rodas boêmias, e retomada pela bossa nova nos anos 1950, ela
ganhou corpo e se tornou um movimento social mais amplo, marcadamente
de esquerda, nas imediações de 1964. Sob o signo da radicalização política,
que beirou a pré-revolução, o programa tinha horizonte transformador. Em
especial as artes públicas – cinema, teatro e canção – queriam romper com a
herança colonial de segregações sociais e culturais, de classe e raça, que o
país vinha arrastando e reciclando através dos tempos, e queriam, no mesmo
passo, saltar para a linha de frente da arte moderna, fundindo revolução
social e estética (...) Estimulada pelo avanço da luta de classes e do terceiro-
mundismo, uma parte da intelligentsia passava a buscar o seu sentido – e o
salto qualitativo em seu trabalho intelectual – na associação às necessidades
populares. Orientada por esse novo eixo e forçando os limites do
convencionado, a experimentação avançada com as formas tornava-se parte
81

e metáfora da transformação social iminentes, que entretanto viria pela


direita e não pela esquerda (SCHWARZ, 2012, p.56).

O agitado período não permitiu aos que estavam minimamente interessados em uma
inserção no debate esquivas numa tarefa modeladora no campo cultural e foi, com a lucidez
do momento, anterior e posterior ao golpe civil e militar que os artistas brasileiros se
envolveram calorosamente na discussão sobre a função da arte. O estudo de Iná Camargo
Costa em A hora do teatro épico no Brasil esquadrinha os avanços e recuos formais da
dramaturgia brasileira. Em específico sobre a produção do Teatro de Arena de São Paulo e do
CPC, analisa peças como Eles não usam black-tie, Revolução na América do Sul e A mais-
valia vai acabar, seu Edgar, respectivamente de Gianfrancesco Guarnieri, Augusto Boal e
Oduvaldo Vianna Filho. À época, os artistas de teatro assumiam como tarefa descobrir e
compreender a realidade brasileira elegendo temas populares e com isso questionaram as
ferramentas formais de que dispunham para problematizar a realidade – foi quando as
primeiras experiências deixaram visíveis os limites do drama burguês praticado. Segundo Iná,
“a novidade era que Black-tie introduzia uma importante mudança de foco em nossa
dramaturgia: pela primeira vez o proletariado como classe assume a condição de protagonista
de um espetáculo” (1996,p.21), entretanto o novo protagonista foi “enformado” por uma
estrutura dramática, incapaz de comportar um assunto épico como uma greve, tema
articulador de toda a peça (de acordo com o estudo, apoiando-se em depoimento do autor, a
dramaturgia parecia não apresentar, inicialmente, nenhum caráter partidário-programático que
a subsidiasse, embora a autora chame a atenção ao fato de ser, Guarnieri e também Vianinha,
militantes do Partido Comunista Brasileiro e que Black-tie, por sua composição em curto-
circuito entre forma dramática e assunto épico, “registra, com mais verdade do que seria de
supor, o vigoroso ascenso das lutas dos trabalhadores ao longo dos anos 50 (...) ascenso que
significou a ocupação pelos trabalhadores organizados de importantes espaços na cena
política e social do país, acompanhado das dificuldades dos artistas e intelectuais (...) que não
estavam esteticamente à altura do momento histórico” (p.38)). Em sua análise, a autora busca
compreender as obras teatrais em um movimento historicizante, retomando as condições de
sua produção e suas possibilidades estéticas em atrito com a matéria social.
Registro da procura em fundir revolução social e estética e do embate dentro do
próprio campo de esquerda pode ser identificado nos textos de intervenção de Oduvaldo
Vianna Filho e Augusto Boal, artistas do Teatro de Arena de São Paulo. Vianinha, no mesmo
82

ano de estreia de Eles não usam black-tie, escreve, em 1958, Momento do Teatro Brasileiro34,
provocando os demais artistas na busca de uma definição para o teatro. Seu incômodo quanto
às positivas e novas realizações cênicas alcançadas no período alia-se ao desejo de ver “a
ligação imediata do teatro com a vida” (1983, p.24). O artista percebia um movimento
contraditório entre as realizações cênicas melhoradas e a diminuição de suas pretensões. Para
Vianinha Eles não usam black-tie era o símbolo de todo um movimento de afirmação do
teatro brasileiro. Seus textos, reunidos no livro Vianinha: teatro, televisão, política,
organizado por Fernando Peixoto em 1983, compõem um importante e imprescindível
depoimento das questões em pauta e do intenso debate que agitava o meio teatral e político.
Como o organizador apresenta, os textos revelam posturas individuais que se confundiam, em
alguns casos, com o projeto dos grupos artísticos que o dramaturgo participou, em especial,
do Teatro de Arena e do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC
da UNE). As experimentações teatrais em busca de um teatro nacional que refletisse
demandas populares, em estética pautada pela agitação e propaganda, foi radicalmente
proposta pelos cepecês distribuídos pelo país, tendo como centro “aglutinador” o CPC do Rio
de Janeiro.

O movimento criado pelo CPC da UNE mobilizou centenas de jovens em


todo o país, não ficando restrito ao seu núcleo mais famoso no Rio de
Janeiro. Havia cepecês em diversos estados, como Alagoas, Sergipe, Bahia,
Minas Gerais, São Paulo, Ceará, ligados à União Estadual dos Estudantes
(UEE). Eles integravam um movimento mais amplo que envolvia também
universidades, governos estaduais, municipais e mesmo o governo federal,
por meio do Ministério de Educação e Cultura. Até a Igreja, com o
Movimento de Educação de Base (MEB), participava de um grande esforço
nacional para “educação e conscientização” das camadas populares.
Finalmente, os analfabetos e excluídos são chamados a ocupar de fato a cena
principal da política brasileira (CAMENIETZKI, 2006, p.64)

A interrupção do amplo movimento pela transformação social se deu com o golpe e


não foram poucos estudos e críticas das décadas seguintes que tentaram identificar a
ingenuidade de um imediatismo político que produzia arte sem mediações, transpondo
questões do campo econômico e político para a cultura, como um fator ideológico que
obliterou a percepção do quão distante estavam os sonhos emancipatórios.

34
Segundo Fernando Peixoto, organizador do livro Vianinha: teatro, televisão e política, compilação de textos de
Oduvaldo Vianna Filho, certamente o texto destinava-se a publicação, contudo nada confirma sua edição.
Entretanto é relevante observar que o Teatro de Arena mantinha grande discussão interna sobre sua produção
dramatúrgica e interpretativa, e a perspectiva do autor em muito contribuía para sua formação e debate com
outros dramaturgos. Utilizamos o texto mais como registro da época, de um debate interno, do que
necessariamente de algo público, embora outros textos publicados corroborem as problematizações do autor.
83

Pois bem, parte do material utilizado no primeiro ato busca a sensibilidade e impulso
emancipador anterior ao golpe militar e tem a função de introduzir o tema da peça. A
utilização da peça camponesa35 como conteúdo dá suporte ao esquema geral pois a totalidade
dramatúrgica sempre faz referência à fratura e incompletude do processo iniciado e
interrompido nesse período, do ponto de vista da história do país e de sua especificidade na
luta de classes e serve de apoio para o debate sobre a aprendizagem política necessária ao
fortalecimento de uma demanda coletiva, como manifestação social e artística. A condução
narrativa do primeiro ato é dada pela composição da personagem Professora e, desempenhada
pela mesma atriz, a Narradora. A Professora é personagem central para demonstrar o
conteúdo: no velório, a comunista, da classe média urbana, se apresenta ao grupo de
campesinos e os convida para o ingresso na Sociedade Mortuária, organização de ajuda
mútua dos trabalhadores, além de ser a responsável pela alfabetização dos camponeses através
do método de Paulo Freire. A ação dramática é interrompida pela indicação, em cenas
narrativas, de que estamos diante de um ensaio de um grupo que se questiona sobre a forma
de representação e de politização do teatro e que utiliza as experiências e temas do passado se
perguntando até que ponto são, ainda, válidas. Nas palavras de Roberto Schwarz (2008), no
citado ensaio Cultura e Política, 1964-1969, havia um princípio de síntese no método Paulo
Freire no qual a oposição entre os termos, arcaísmo da consciência rural e a reflexão
especializada de um alfabetizador, não era insolúvel, ou seja, pelo menos o impulso se
direcionava para a superação da modernização conservadora, assim como as experiências
teatrais poderiam intuí-la. Representar o momento em que esta situação se colocava, pelo
menos, supostamente superável, e sua interrupção, parece ser o princípio organizador do ato
revelador da “função interessada” do espectador.
Na peça camponesa, através do tema trabalhadores do campo o grupo problematiza
as condições de produzir arte pelos trabalhadores da cultura. O ato se organiza como se fosse
um ensaio teatral: cenas da peça em montagem são entrecortadas por narrações sobre o
ensaio ou ainda sobre o enquadramento adequado de personagens. As relações de trabalho
coletivizadas do primeiro ato são as que o próprio Latão experencia em sua prática −
constroem juntos o mundo ficcional. A modelagem da ideia central, entretanto, poderia estar
atrelada a qualquer outra peça em ensaio pelo grupo de atores. Uma questão que importa,
portanto, como primeiro movimento da obra, é reconstruir um imaginário político sobre a luta
de classes que tinha na relação camponeses e proprietários de terra sua definição e outra, por

35
A peça camponesa, principalmente pelas personagens de Élia e a Mãe, se dá por uma estrutura dramática que
tende ao clássico, fazendo com que as personagens avancem, conscientemente, conforme a ação.
84

ela conduzida, é fazer trabalhar, incluindo os artistas, as representações tributárias dessa luta e
demonstrar suas ideologias, no passado e no presente.
Funcionalmente, todas as personagens da peça do primeiro ato representarão um gesto
de aprendizagem: é um grupo de camponeses que começa a se organizar para exigir condições
de trabalho e logo enfrenta violenta repressão. A Cena da Professora sintetiza o processo de
aprendizagem: a suposta detentora do conhecimento amplia as dificuldades desse processo,
compartilhadas que são com o público, que também está ali em uma posição de aprendiz para
uma montagem que exige sua participação.
O espectador, ainda àquele que não tem um repertório “informativo” sobre os Centros
Populares de Cultura, o método alfabetizador de Paulo Freire ou sobre as Ligas camponesas −
procedimento comum ao teatro épico, já que as interferências se dão para além do mundo
representado − é inserido na trajetória desses personagens, atores do drama, como aprendizes
e interlocutores. O trabalho, categoria central para se pensar a peça camponesa, é figurado
materialmente; é posto em cena, como atividade dos trabalhadores rurais; somado ao trabalho
dos atores durante o ensaio teatral, e, se propõe, simbolicamente, em relação ao espectador
nos momentos nos quais os artistas interrompem o drama camponês e se questionam sobre as
possibilidades de representação. O gesto que define o posicionamento do espectador no
primeiro ato é o movimento do aprendizado:

A CENA DA PROFESSORA
Um banco a frente. Atriz entra com um vaso de flores. Senta-se de costas
para o público, vira-se para falar

PROFESSORA – Eu sou uma professora, devo alfabetizar homens adultos.


Mas antes de ensinar o alfabeto, quero que entendam que são sujeitos, que
estão no mundo e com o mundo, aprendendo com ele e transformando-o com
seu trabalho. Quando do barro fazem um vaso, transformam a natureza, e
quando têm a necessidade de enfeitá-lo com flores continuam a transformá-
lo, produzindo cultura. Por isso, o vaso, a flor, as letras devem ser de todos.

Dois atores se aproximam da professora.

PROFESSORA – (para os alunos) O mundo é seu também. O seu trabalho


não é a pena que você paga por ser homem, mas um modo de amar, de
ajudar o mundo a ser melhor.

ATRIZ QUE FAZ A GRÁVIDA – Senhora, para que meu trabalho seja
amor e não pena, eu tenho que melhorar as condições dele e dividir os frutos
dele com todos. Para isso nós precisamos aprender a confrontar aqueles que
se dizem donos do nosso trabalho. Isso a senhora pode ensinar?
85

PROFESSORA (para o público) – Eu olhei para ela e assustada pensei: o


que eu ainda devo aprender?

ALUNO – Uma lição.

Todos se juntam. Professora à frente segura a lousa com o desenho de dois


homens fazendo um vaso de barro virado para o público.

MARIVALDO – Eu sei fazer um vaso igual a esse aí, mesmo sem a


giradeira, dá para fazer a forma na mão com o barro cru, depois é só
queimar.

PROFESSORA – Olha bem a imagem. Você acha que eles fazem o vaso
para quê?

MARIVALDO – Pela alegria.

VITORINO – Mas as caras dos homens estão sérias.

MARIVALDO – Então é para vender. Se fosse para eles mesmos estavam


rindo.

VITORINO – Mas vender pode ser alegre.

MARIVALDO – Deve ter um patrão escondido dentro, por isso ninguém


pode abrir a boca.

Todos se despedem da Professora e saem. Dona Élia se aproxima.

VITORINO – Até logo Professora.

DONA ÉLIA – Esse negócio de ler e escrever é bom para menino. Eu


aprendi tudo no juízo. Um lápis na minha mão pesa mais que uma enxada.

Ao virar-se para o público, a Professora, ao interpelar o espectador, o coloca na


mesma situação da personagem, assim como esta personagem está na mesma situação dos
camponeses (a Professora não é uma intelectual que está ali para organizar os trabalhadores,
mas está junto deles; ela não ganha nem doa nada, aprende. É o trabalho do ator que ainda
pode gostar do que faz). Em nenhum momento a Professora dá respostas mas faz o público
trabalhar numa atitude básica de quem se dispõe a aprender. A consciência, coletivizada, é
trabalho, processo. Conciliado à representação adotada, conteúdo se precipita na forma. A
consciência dos personagens quanto à sua opressão avança conforme o progresso da ação
dramática; a ação dramática caminha de um problema familiar para um conflito coletivo.
As imagens se acumulam para recompor o processo de organização: Aristeu, que
desde o início desconfia da Sociedade Mortuária, próxima às Ligas Camponesas (A eleição
das Ligas Camponesas como pano de fundo orienta a história sobre as lutas de classe no
86

Brasil) na cena Advertência avisa que o Capitão Quirino determinou seu fim. Destelhamento
de casas e morte de animais ameaçam os trabalhadores. A ação é interrompida para o
confronto final, quanto Marivaldo e Aristeu vão à casa do Capitão e o drama camponês
mostra de forma não dramática a morte de Aristeu pelo Filho do Capitão. Não há a encenação
do destelhamento das casas, tampouco da morte de Aristeu. As cenas epicizadas são
exatamente as que poderiam envolver sentimentalmente o espectador convencendo-o da
inevitável derrota. Nesses instantes a parcela de futuro que foi enterrada com os mortos se
presentifica, se torna imagem praticável do mundo através do trabalho coletivo historicizado:
cena que nega a dramatização para deixar o público construir, simbolicamente, outro mundo.
Não há confinamentos fatalistas: o mundo é seu também; pode ser mudado. A cena A reunião
camponesa implica ainda mais o público nessa construção e é um índice importante para o
desenvolvimento da peça.

ATRIZ (narra)– Dona Odete ocupa o centro da sala com um papel na mão.

MÃE – (mulheres se juntam) Uma pessoa sozinha nesse mundo não vale
nada. Quero pedir licença para ler uma carta que eu e as outras mulheres
escrevemos na escola.
(abre o papel)
Nós, mães, esposas e filhas
De Bom Jardim
Em nome da Associação de Lavradores
Antiga Sociedade Mortuária de Bom Jardim
Aprendemos no último ano
Uma coisa que sabíamos desde sempre
Que somos explorados
Mas só aprendemos o que já sabíamos
Quando dissemos a palavra em voz alta
Explorados
Agora o que nós queremos saber dos aqui presentes
É quem está conosco na hora sem volta
Que ergam os braços.

Dona Odete ergue a mão, as mulheres a seguem. Em seguida os homens


acompanham.

CANÇÃO EU NÃO SOU DAQUI

MÃE – Essa terra é minha, essa terra é sua


Eu não sou daqui
Eu quero que o senhor me diga
Onde foi que eu estava ontem
Onde foi que eu estava ontem

CANÇÃO DA FOME DE MÁRIO DE ANDRADE

Fome de fome
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Fome de justiça
Fome de equiparação
Fome de pão
Fome de pão

VITORINO – É a hora do tombo do pau.

NARRADORA – Nós gostaríamos que as transformações que se reclamam


em praça pública
Se processassem de maneira pacífica,
Mas a reação daqueles que têm tudo é violenta
A reação dos donos dos grandes latifúndios
Dos bancos
Das fábricas
Dos comércios
E dos meios de comunicação
É isso que nos leva ao desespero
E nos chama para uma luta nova.
Francisco Julião, 1963.

MARIVALDO – Organizaremos uma marcha, uma multidão, somos muitos,


temos bocas, temos olhos, somos feitos da matéria da terra.

Os atores, perfilados e de punhos cerrados, interpelam o público diretamente, num


gesto de co-responsabilização. A música se intensifica a partir da canção Eu não sou daqui,
porém a narração ao localizar temporalmente o fato, 1963, suspende, ainda que também por
instantes, o presente dramático e alivia a tensão, recolocando o espectador numa posição
distanciada, consciente que se trata de uma encenação. O ato termina com uma narração que
quase resume a peça camponesa

No tempo em que a acumulação de riqueza


Conheceu seus limites nas zonas mais atrasadas do país
A burguesia do Nordeste, sob o influxo do capitalismo mundial,
Expulsou os camponeses de suas terras
E aumentou o valor de seu sobre-trabalho na tentativa desesperada de elevar
a taxa de lucro.
Foi nesse contexto que a ordem agrária entrou em colapso
E aquele semicampesinato se tornou o principal ator político
Da história da luta de classes no país, com o nome de Ligas Camponesas.

Dramaturgia e encenação, princípio narrativo e técnica teatral são complementares. A


perspectiva dramática clássica não suporta os aspectos históricos e é estranhado pela narrativa
sobre o ensaio teatral; o drama não é negado mas problematizado. Primeiro ato, portanto,
exemplar na construção do teatro épico: os camponeses como citações dos atores, mediação
interna, avançam a imagem para a atualidade teatral sem deixar de indicar os momentos e
processos históricos diversos. Durante a narração, os atores se posicionam como se
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estivessem rompendo uma cerca, na alusão do enfrentamento interrompido pela cena da morte
de Aristeu. A atualidade aqui, e o distanciamento crítico, é a lembrança da imagem do
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra registrada por Sebastião Salgado. A imagem
é desfeita e o ato termina com uma canção em coro, com os atores de frente para o público:
Está/O que não estava lá/A palavra faz ver/O olho produz/O novo nome /Do barro/É vaso/O
novo nome /Do buraco /é flor/Está/O que não estava lá/Até ser nomeado /O nome produz.
A exposição do primeiro ato nomeia as classes no Brasil ao falar sobre o latifúndio e
sua inscrição na ordem capitalista e os trabalhadores rurais, que ainda numa tentativa de
organização, se não expulsos das áreas produtivas, foram assassinados, e identifica o sistema
escravista como a origem da luta de classes brasileira, com todos os contornos da cordialidade
como tecnologia de mando. Figura, ainda, a identificação do trabalho manual do camponês ao
trabalho artesanal dos atores, ainda num momento em que estes são detentores dos meios de
produção, afinal estão num ensaio teatral definindo os rumos do seu processo, condição de
alguns grupos teatrais contemporâneos. A carpintaria do trabalho camponês é análoga ao
trabalho crítico e intelectual, numa sensibilidade singular na criação de imagens empáticas à
identificação do público sem prejuízo do olhar estranhado. Na relação com o espectador, que
pode estar esperando pelo conflito final, reverberam os impasses e dúvidas, dialetizando suas
expectativas, num movimento de contenção e questionamento sobre o futuro dessas
personagens, atores do drama.
O desenvolvimento da peça camponesa lembra algo do processo de conscientização
de Pelagea Wlassowa de A mãe (1931) de Brecht. Em Notas sobre a peça A mãe, Brecht
informa que esta foi escrita no estilo das peças didáticas, mas que ao contrário de suas peças
de aprendizagem, exige em sua encenação, atores. “Esta arte dramática, empenhada em
ensinar ao espectador um determinado comportamento prático, com vista à modificação do
mundo, deve suscitar nele uma atitude fundamentalmente diferente a que está habituado”
(2005, p.47). É claro, portanto, uma positivação da experiência de aprendizagem coletiva para
a formação do movimento cultural e político. Mas voltemos a uma observação crucial para a
composição das variações e rendimentos: como ilustração, a peça demonstra as condições
sociais que influenciam na vida das personagens, e numa mediação historicizante, na vida
política do país36. Sem essencializações na composição das personagens, sem definição do

36
As personagens do drama são estranháveis, o que colabora para a ausência de celebração e virtudes
messiânicas: Alice, a voluntária americana dos Corpos da Paz, é um pouco ingênua e insatisfeita com o modo de
vida estadunidense – o antiimperialismo raivoso não comparece, é ironizado; Marivaldo, àquele que enuncia
com mais consciência a opressão dos trabalhadores e apresenta o ímpeto em querer saber sobre o mundo e,
sobretudo, saber compreendê-lo, entre frases bíblicas, sonha com Nova Iorque, porque lá é uma cidade que fala,
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conflito intersubjetivo, a peça camponesa é um exercício de teatro épico e ao mesmo tempo a


demonstração dos limites de tal militância cultural em sua vertente de agitação e propaganda.
Lembremos que no momento de maior solicitação de “envolvimento” – ou identificação − do
público, quando todos os atores estão de punhos cerrados e demandam uma posição do
espectador, suspende-se tal agitação pela lembrança de época. Seguindo o argumento de Iná
Camargo Costa em A hora do teatro épico no Brasil, após a análise das condições sociais e
políticas que geraram tanto o acúmulo de consciência crítica quanto às formulações estéticas
do Teatro de Arena e do CPC da UNE como a estarrecedora autocrítica realizada por parte de
seus integrantes quanto à validade de suas propostas, ao tratar de um modo geral dos
momentos do teatro de agitação e propaganda em situações diversas, como na União
Soviética, Alemanha, França, Inglaterra e Estados Unidos, o caso brasileiro, longe de
desautorizar a experiência, passa de um interesse de estudantes e intelectuais simpatizantes
da causa socialista para a derrota, sem ter conhecida e levada a cabo o segundo momento: os
trabalhadores das mais variadas profissões aderindo em grupos e se multiplicando
geometricamente (1996, p.96). Os dois momentos, como é possível observar, estão
explicitados na análise crítica do ato. Foi necessário recorrer ao passado, em chave
problematizada, pois não está em cena uma peça do CPC ou do Teatro de Arena, para
repensar o trabalho teatral atual.
A refinada dramaturgia cênica epicizante demostra as atuais conquistas técnicas e
estéticas, mas qual situação social lhe é correspondente? O Latão parece apresentar a
afirmação de Brecht quanto à eficácia do teatro épico que pressupõe um certo nível técnico e
um poderoso movimento social que esteja interessado em discutir problemas vitais. No
primeiro ato, os recursos estéticos podem gerar estranhamento temático e distanciamento
crítico para o drama camponês, integrando-o à memória das lutas coletivas e diante de um
certo acúmulo como o observado no cenário teatral paulista, tais recursos ainda funcionam e
oferecem modelos para aqueles que estão formulando o imaginário coletivo, mas o poderoso
movimento social requisitado comparece como miragem – a cerca rompida pelos camponeses.
Por questões do aparelho teatral, a “agitação e propaganda” é suspensa e permanece o
“desejo de superação” como como aprendizado estético, ademais consciente do não
imediatismo político. Assim, tentando sistematizar os termos que percorrem o trabalho teatral

conversa, é vida; a Professora, a líder comunista, embora sem situação definida após o destelhamento de casas -
ARISTEU – Eu tinha avisado, Mãe. (Representa a cena da Professora.) A professora tinha colocado a cabeça
cortada da cabra no chão, começou a cavar com as mãos. Dona Élia ajudou, fez piada com sangue nas mãos.
Porque eu não ajudei? Porque vocês acham que eu não ajudei? Pensam que agora a professora está lá, lendo
jornal com as mãos brancas cheias de sangue. Nossa casa destelhada. O céu devassado. Será que vale a pena? –
demonstrava sinais de cansaço.
90

do primeiro ato: a relação com o espectador, feita por cenas não dramáticas, resultado de um
trabalho teatral épico, implica sua imaginação na construção de uma imagem praticável de
uma luta “comum”, advinda de uma relação produtiva cenicamente coletivizada:
subjetividades que se objetivam e objetivam o mundo e feito isso, como experiência estética
que apela à simbologia do gesto, pelo sinal inverso dado pelo conteúdo ficcional, o do teatro
em construção/teatro épico, cai por terra certa ilusão – ou seria ideologia? − de um mundo
real compatível a expectativas estruturantes coletivizadoras, que ademais estão circunscritas
pelo aparelho teatral, não correspondente, portanto, ao momento histórico caso o próprio
teatro épico falseie essa relação. A peça camponesa, primoroso exercício épico, amplia a
percepção histórica da luta política derrotada, inserindo-a na memória coletiva sem pretensões
edificantes, analisando-a e estudando-a. A pedagogia estética é a demonstração do trabalho
coletivo como uma narrativa positivada, desdramatizada, principalmente, a possibilidade de
seu consumo – que é o impulso atual. Tal elemento é fundamental para a continuidade da peça
e dos elementos reflexivos que ela aciona, afinal, os atos seguintes irão incidir exatamente no
refluxo do trabalho coletivo e no domínio da técnica, especialização das funções e
equipamentos como constructos da realidade.
Na “segunda variação”, o ato Tempo morto, o espectador se dirige a outra sala para
sua audiência. Durante o trajeto depara-se com a projeção de imagens da União Nacional dos
Estudantes (UNE) incendiada. A intimidade propiciada pela aproximação plateia-palco como
ativador da desdramatização é desativado pela apresentação de um filme. Experiências
distintas colocadas em sequencia ampliam o atrito e trazem para a experiência, inconveniente
e necessária, a sensação de ruptura. A sequência do filme pode ser assim resumida:

Bloco 1: Júlia numa ponte. Sons e ruídos. Apresenta-se o filme. Em sequência apresenta-se a
imagem de Paulo Funis em frente a um mural, reproduzindo o gesto da pintura. A câmera
registra a entrada de Governador Magano e Bárbara. Ela toma nota do discurso do
Governador que parece ser a justificação de uma decisão política.
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Bloco 2 – Inicia-se o fragmento com a legenda: Cabedal, nação periférica. Um ano antes do
golpe. Paulo olha para um imenso relógio que registra a data: 12 de março. Paulo, Bárbara e
Magano confraternizam. Brindam a abertura da nova agência bancária e a decisão de Paulo
por comandá-la. Ele assume seu compromisso matrimonial com Bárbara. Paulo segue por
uma rodovia a caminho da província de Santo Mar. Imagens da mata tropical. Logo em
seguida anda por um cais carregando uma imagem religiosa com a mão decepada. Pequeno
altar na praia. Bárbara dá um escapulário a Paulo. Ele passeia pelos corredores do banco.
Focam-se mãos de trabalhadores do banco.
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Bloco 3 – Com a legenda O banqueiro financia os meios de comunicação, apresenta-se Paulo


Funis visitando a gráfica do Jornal O Todo para negociar com o jornalista Ribeiro sua
sociedade com empresários americanos para a formação da TV O Todo. Quando Paulo chega,
Ribeiro está inquirindo seus funcionários sobre as Ligas Camponesas. Conversam sobre a
situação do país, que segundo o jornalista está sendo ameaçado pelos comunistas. Para ele, é
necessário tomar uma posição. Jornais são impressos. Em seguida, Paulo tranquiliza o
jornalista quanto à negociata com os empresários norte-americanos e à situação política de
Cabedal.
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Bloco 4 – Anuncia-se a cena com a legenda: Um grupo de teatro politizado. Chega Júlia. Os
atores cantam a canção Tempo morto: O capital é trabalho morto/que só se reanima/sugando o
trabalho vivo/à maneira de um vampiro/que sangra da veia/seu tempo limite/ e tanto mais o
morto é vivo/quanto mais trabalho suga. A atriz, olhando diretamente à câmera – tendo uma
legenda que a identifica: Júlia, uma atriz - declama um texto retirado de Pedagogia da
Autonomia de Paulo Freire.
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Bloco 5 – Paulo Funis conhece a atriz, segundo a legenda. A atriz, incomodada, tentará
vender o filme ao banqueiro. Segundo seu produtor/diretor o filme é um épico terceiro
mundista. Os artistas exibem o filme para o banqueiro nas dependências do banco Patriota. A
produção necessita do investimento do banqueiro para sua circulação. Paulo Funis questiona:
Você acha que essa forma de imagem atinge o grande público? Para a atriz, mais do que
96

pensar se o filme atinge o grande público, interessa saber as questões por ele levantadas – a
violência de classe.

Bloco 6 – O cenário é um bar. Artistas cantam Odete. Ao iniciar a letra, apresenta-se a cantora
através da legenda Miranda, uma cantora. Paulo acompanha Júlia e seus companheiros. Os
atores, junto com o banqueiro, conversam sobre Cuba e alfabetização de adultos.
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Bloco 7 – Imagens do encontro entre Funis, Ribeiro, Mr. Hobarth e o Embaixador dos EUA
são entrecortadas com cenas de Bárbara e Grã-fina tentando convencer os empresários de
Cabebal a financiarem o golpe militar. Há também a inserção, ao final da cena, da imagem de
empresários tentando convencer o Governador Magano a intervir e se aliar aos militares no
golpe. Todo o bloco é altamente teatralizada e finaliza com um discurso dirigido diretamente
à câmera por Magano: falta realismo nesse melodrama de armas e sangue. (para Industrial).
Não haverá golpe. O presidente é um João bobo. Apenas balança de um lado ao outro.
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Bloco 8– A câmera foca no cantor da canção Babalú, que canta para Júlia. Estão no teatro. No
cenário, baldes suspensos como luminárias, assim como aconteceu no fragmento 4. Júlia e
Paulo conversam sobre o ensaio do grupo teatral. Há a problematização sobre a concepção
dramática de personagens. Os dois estão sentados em uma escadaria.

Bloco 9 – Com a indicação da legenda a alta sociedade se organiza para a luta sons de tiros.
Mulheres da “alta sociedade”, numa piscina vazia, praticam tiro ao alvo, conduzidas pelos
militares. A trilha sonora, assim como aconteceu no fragmento 7, parece uma valsa patética.
Com a mudança da trilha, imagem de uma grande torre de televisão é projetada. A cena
termina com Ribeiro falando diretamente à câmera sobre seu possível fuzilamento. Funis está
ao seu lado e discursa, também diretamente à câmera: temos que confiar nas forças que regem
as contradições. Após uma dança coreográfica de Mr. Hobarth, Ribeiro olhando de cima para
toda a cidade, exclama: é meu!
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Bloco 10 – Apresenta-se a legenda: O último carnaval. Fevereiro de 1964. Um homem negro,


posto em close, canta a canção de Waldick Soriano, Eu também sou gente. Atrás dele, dois
cartazes. Um com a frase: Batucada do povo brasileiro, o outro é a imagem conhecida de Che
Guevara.
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Bloco 11 – Funis venda os olhos de Julia com as mãos. Segue o seguinte diálogo:
Funis: Eu sou uma idealista porque sou uma atriz e tudo posso transformar na minha
imaginação (ele retira as mãos, ela continua de olhos fechados).
Julia: Posso usar a minha voz, as minhas mãos, todo o meu corpo no que imagino (abre os
olhos), acredito, desejo. Mas isso não pode ser um privilégio de classe.

Bloco 12 – Carnaval de Rua. Júlia está mascarada e com Paulo acompanha o bloco de rua. A
câmera a foca e ela aparece, como no fragmento 10, diante do cartaz de Che Guevara, em
transe. Paulo observa o desfile do bloco.
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Bloco 13 – Paulo e Júlia estão no apartamento do banqueiro. Há algo de teatralizado no


comportamento dos dois, como se esperassem a aproximação da câmera para iniciar o
diálogo. Paulo e Júlia declamam o trecho inicial de A flor e a náusea de Carlos Drummond
de Andrade. A câmera acompanha Bárbara que chega ao apartamento. Ela exige que Paulo
assuma seu compromisso de classe. O fragmento termina com Bárbara discursando
diretamente à câmera: a luta de classes existe, imbecil, de que lado você está?
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Bloco 14 – Novamente se projeta a imagem de Júlia na ponte. Ela faz um discurso,


diretamente à câmera, sobre o erro ideológico da conciliação de classes. A trilha sonora é de
cantos africanos misturados ao som de violinos. A imagem é encadeada por cortes que
inserem outras imagens: Júlia discursando – observada por Paulo -, um funcionário da gráfica
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de Ribeiro mostra uma imagem, carnaval na praça. Paulo e Bárbara, num salão escuro com
velas espalhadas encerram o seguinte diálogo:
Paulo: Me ajude. Serei outro.
Bárbara: Já és outro. Que morra o outro para viver o mesmo. Promete?
Paulo: Prometo que vivo.
Bárbara: Pois então morre.
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Bloco 15 – Um monomotor em vôo é a primeira imagem do fragmento, com a legenda: Os


proprietários de Cabedal apoiam o golpe. Magano e militares estão em um hangar. O
Governador ainda tem dúvidas quanto ao golpe e é assediado pelos militares. Está planejando
uma fuga. Em outra cena, Bárbara e Paulo se encaminham para o encontro com o
Governador. Ele, com uma arma dada por seu motorista, segue pela estrada com Bárbara
saudando o golpe. Encontram-se no hangar e após um longo abraço no tio Governador, a
câmera detém-se em Bárbara, de um ângulo contra plongèe. Paulo se posta ao seu lado com
a arma em punho, para o alto. Corte para close de Júlia.
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Ainda que esta breve descrição do filme – para a exposição em fragmentos utilizei
mudanças na trilha sonora e informações dadas pelas legendas das cenas − auxilie em sua
compreensão, são necessários alguns apontamentos: o espectador, no início, não tem
informações sobre o personagem que dita o discurso, ou mesmo sobre Paulo Funis ou
Bárbara. Eles serão apresentados somente quando estiverem juntos, num grande salão,
confraternizando a nomeação de Paulo como vice-presidente do banco Patriota. É Magano
quem os apresenta, pelo diálogo, para o espectador. As informações sobre a estória de Tempo
morto e seus personagens se dão quase em saltos narrativos para construir a diegese sobre o
golpe num país denominado Cabedal. Pela sua condução, quase não há avanço narrativo em
relação ao primeiro ato, mas a ele se soma na composição dramatúrgica.
Tempo morto, como acima descrito, narra a estória de acontecimentos e dos agentes
envolvidos na concretização de um golpe de Estado. Elege como protagonista um banqueiro e
trabalha para demonstrar as forças envolvidas na conspiração golpista. Segundo Maria Elisa
Cevasco, “ele traz, ainda, ecos do sentido que se dá ao termo em cinema e em jogos
eletrônicos, como o momento da narrativa em que nada acontece, um tempo em que foi
barrada uma continuidade narrativa” (2012, p.143-144). Estabelece-se uma relação com o ato
anterior, interrompida a narrativa e também como proposta independente, aproximando-se
referencialmente do filme Terra em transe (1967), de Glauber Rocha e evidenciando ainda
mais as problematizações formais de Ópera dos vivos. Nas duas vias de diálogo, eleitas aqui
como elementos de análise sobre a composição teatral do filme, Tempo morto torna
problemática a montagem alegórica. A tensão se dá internamente pelo conflito abordado pela
narrativa e sua forma e entre essa composição e a linguagem do primeiro ato. Segundo Ismail
Xavier (2005), em A alegoria histórica

Desde o início dos anos 1970, quando as ideias de Walter Benjamin sobre a
modernidade ganharam papel proeminente na teoria literária e nos estudos
cinematográficos, a reavaliação da alegoria – não apenas como um tropo
linguístico, mas, sobretudo, como uma noção central na caracterização da
crise da cultura na modernidade – tornou-se um importante tópico de
pesquisa e debate cultural. A teoria contemporânea estabeleceu uma relação
essencial entre a alegoria e as vicissitudes da experiência humana no tempo.
(...) A cultura moderna, perseguida por uma noção radical de instabilidade,
parece condenada a explorar as implicações do fato de que os significados –
notadamente nos novos contextos culturais de combinação de signos −
podem ser esquecidos, deslocados e retorcidos em face das forças históricas
e sistemas de poder. Essa nova consciência da instabilidade reforça uma
antiga percepção do caráter problemático dos processos de significação –
percepção que atualmente nos distancia do paraíso perdido das linguagens
transparentes. A alegoria ficou em evidência, e uma das principais razões
para seu ressurgimento nos tempos modernos é o fato de que ela sempre
111

constituiu o processo de significação que mais se identifica com a presença


da mediação, ou seja, com a ideia de um artefato cultural que requer
sistemas de referência específicos para ser lido, estando, portanto, distante de
qualquer sentido do “natural”. (...) As alegorias normalmente surgem de
controvérsias (XAVIER, 2005, p. 339-340).

Parece ser a alegoria recurso linguístico que permite representar uma sensibilidade
moderna de indeterminação do sujeito diante da história. Como recurso, formaliza as tensões
e choques entre tradições, tradição e modernidade, razão e sensibilidade, representação e
verdade, identidade e alteridade. Problematiza-se ao demonstrar a percepção linear da
história, dada amplamente pelo discurso vencedor. Como o autor sublinha, a noção de
alegoria é muito versátil, que muda de definição e valor de acordo com o contexto cultural
(XAVIER, 2005, p.344). O conceito, então, assume diversas feições quanto as suas
consequências: como recurso narrativo que oculta intencionalmente um significado poderá
implicar em uma complexidade de decodificação que é dada somente a iniciados, protegendo
a “verdade” (tal rendimento é analisado, principalmente, na teologia), ou ainda em momentos
de censura em conjunturas específicas (XAVIER, 2005, p.355). Ainda segundo Ismail Xavier

Nos tempos modernos, os críticos vêem com suspeita a utilização de


alegorias calculadas quando elas resultam em fábulas didáticas e óbvias, das
quais o leitor pode derivar facilmente uma lição moral convencional. Sua
objeção à alegoria é ainda mais forte quando o disfarce e a opacidade são
vistos como uma mera questão de retórica que não oferece nenhum desafio
ou dificuldade. Com exceção daquelas ocasiões nas quais um motivo político
claro justifica tal tipo de alegoria como uma forma de resistência à opressão,
o feito da mensagem codificada se enfraquece, particularmente nos casos em
que a única intenção óbvia é o ornamento. Distante dos desafios imediatos
da arena política, a retórica da alegoria pedagógica corre o risco de reduzir a
arte a uma ilustração esquemática, embora elegante, de ideias
preestabelecidas, um objeto que mobiliza nossos sentidos para então
comunicar ideias desgastadas ou teorias abstratas (XAVIER, 2005, p.355).

Como é possível observar, a forma alegórica na cultura moderna é dada pelo seu uso
ou rendimento. Na presente análise corresponde ao uso adotado por Ismail Xavier em seu
estudo sobre o cinema moderno no Brasil, em específico o de Glauber Rocha de Terra em
transe. Tal escolha advém, como já mencionado, da explícita referência a esta obra em Tempo
morto.
O cinema novo, principalmente o de Glauber Rocha, muito se valeu dessa organização
formal para responder ao processo político nas décadas de 60 e 70 e da crise cultural, em
âmbito nacional, além, obviamente, de se constituir como movimento estético decorrente da
112

consciência das condições de produção cinematográfica no Brasil. Segundo Ismail Xavier


(2012) em Alegorias do subdesenvolvimento: cinema novo, tropicalismo, cinema marginal

os filmes do período entre 1967 e 1970 tiveram, em comum com o teatro e


as artes visuais, o senso de uma provocação ao espectador, a ruptura com o
regime de contemplação (museológica) ou de consumo (industrial) das
imagens e encenações, afirmando o imperativo de participação que, nas artes
visuais, significou uma ruptura com a superfície da tela, a passagem ao
gesto, a provocação comportamental, desconcertos. No teatro, rompe-se o
contrato da “boa condução” do espetáculo e da delimitação clara dos
contornos da obra. O cinema, que tinha de trabalhar dentro dos limites da
tela-superfície, define novas relações e requer novos modos de constituir
seus efeitos apoiados na fragmentação, colagem, justaposição e nos gestos
que quebram o protocolo, desorientam (XAVIER, 2012, p.30-31).

Foi um momento no qual se desenhou, para a sensibilidade das perdas mas também
das esperanças alimentadas no início de 60, a provocação do espectador por meio do
distanciamento como ato agressivo; a necessidade de reposicioná-lo era urgente para um dos
cineastas mais expressivos dessa época, Glauber Rocha. O cinema novo − e seu mais
reconhecido cineasta −, determinado pelo desenvolvimento da produção cinematográfica e do
contexto de seu surgimento, impregnou o imaginário cultural, e também a “crítica
especializada”, como recurso exemplar para demonstração das contradições sociais, culturais,
políticas, econômicas e psicológicas.
Segundo Ismail Xavier (2012) o princípio formal de Terra em transe, que governa a
narração, é dado pela montagem que expõe a subjetividade do poeta Paulo Martins
interpolado por uma presença externa, expresso pela operação da subjetiva indireta livre

A rigorosa organização do flashback ao longo do filme reforça a presença de


uma instância externa que atua por trás da consciência agonizante e que se
vale da mediação do poeta na recapitulação, mas se reserva o direito de
operar, quando interessa, por conta própria (...) Parcialmente identificadas,
as duas mediações – Paulo e a instância exterior – interagem de modo a
impedir que se diga com precisão quando e onde começam e terminam os
movimentos de subjetividade do protagonista ou os comentários “externos”
(aqui se encaixam os desmascaramentos, os flashes reveladores). Do início
(antes do flashback) ao final (incluído o epílogo), Terra em transe exibe uma
uniformidade de textura essencial para a interpenetração que observo, pois
seus efeitos dependem do fato de haver entre as duas instâncias atuantes uma
identificação de perspectiva diante do processo político e uma identidade de
tom, de estilo, de sua abordagem (XAVIER, 2012, p.80)

Terra em transe propõe um princípio de coerência, de identificação, entre a


subjetividade do protagonista Paulo Martins e da instância externa, que, ressalvado pelo
113

autor, não o identifica com Glauber, mas como instância narrativa imanente ao próprio filme,
uma invenção entre outras do cineasta (p.81).
Tempo morto, visto como ato independente, é pastiche ou paródia do estilo de Glauber
pois demonstra uma crítica quanto à textura alegórica como expressão consequente da cultura
contemporânea e na distensão da imprecisão procura um caráter de precisão quanto à
ideologia da narrativa horizontal em conflito com a ideologia da narrativa vertical; não usa
como recurso o discurso indireto e procura tirar proveito do choque entre dois discursos
“diretos”: o do das imagens e sons (narrativa vertical) e do discurso de seu protagonista
(narrativa horizontal). Tal crítica se materializa, na diegese do filme, numa operação que
coloca de um lado a ordem do vencedor, o protagonista “essencial” – o golpe burguês e não a
subjetividade do protagonista – aproximando-se e também interpelando a instância externa,
que é, em última análise, o outro narrador e o espectador que por ela é perscrutado. Esse
dado é crucial para identificar as aproximações, mas também os distanciamentos em relação
ao “modelo” de Tempo morto. Se por um lado o filme adota a textura da fala alegórica – o
traço que Fletcher acentua como próprio à alegoria é o caráter descontínuo da organização das
imagens. Segundo ele, o discurso tipicamente alegórico apresenta brechas, lacunas, e tal
particularidade “tende a colocar o receptor numa postura analítica em que qualquer enunciado
fragmentado assume a aparência de mensagem cifrada que solicita o deciframento”.
(XAVIER, 2012, p.446). −, ao retirar a instância subjetiva uniformemente identificada ao
protagonista – instância que desmascara mas também que se aproxima e revela formalmente
as contradições, que no caso de Tempo morto seria a do burguês − , estuda a relação entre
assunto e forma, pois em última instância é a narrativa que se observa na operação da câmera
que é problematizada. Nesse sentido, Tempo morto não internaliza formalmente o ponto de
vista subjetivo do protagonista e o faz, principalmente, por um registro quase documental –
assim como o fez o cinema novo −, permitindo que a consciência de pertencimento a uma
classe, na estilização das cenas do burguês, ou a câmera na mão das cenas populares-
carnavalescas, organize a história num processo que caminha para um fim, afinal, apresentado
no início do filme: o golpe direitista em Cabedal.
A consciência dos personagens, revelado por suas falas, organiza suas ações e a
narrativa cênica. Paulo Emílio Salles Gomes (2007) em A personagem cinematográfica
salienta “que durante os primórdios do cinema falado, a tendência foi empregar a palavra
apenas objetivamente, isto é, sob a forma de diálogos através dos quais as personagens se
definiam e complementavam a ação” (p.108). Na composição horizontal, da ação dramática,
vão se delineando os comportamentos dos personagens diante da situação do conflito
114

iminente: qual posição irão assumir no momento do golpe. Numa composição vertical, feita
de imagens e sons, esses comportamentos são ora demonstrados, ora tensionados até mesmo
pela fala dos personagens. Os vetores que conduzem o filme chocam-se, se contradizem, para
que a narrativa fílmica seja desmontada em seu princípio e é na articulação com um tempo
ficcional idêntico ao do primeiro ato que residem seus maiores rendimentos.
O filme começa com a imagem, em plano médio, de Júlia, a atriz politizada: sons de
trem correndo nos trilhos. Ela está em uma ponte olhando para o horizonte. O espectador tem
como referência a lembrança da Narradora e Professora do primeiro ato, interpretada pela
atriz Helena Albergaria. Em contraste com a imagem, e com a trilha sonora, muito mais
incisiva, a figura do banqueiro Paulo, interpretado por Rodrigo Bolzan, Aristeu da peça
camponesa. De braços para o alto, como que carregando algo em suas costas, está em frente a
uma tela de trabalhadores com enxadas e sacos nas mãos. A montagem é fundamental: Paulo
Funis assumirá como sua a tarefa de construir o futuro da nação, é a burguesia nacional, e do
ponto de vista dramatúrgico é a reivindicação do “herói melodramático” em alinhar sua ordem
ao destino da nação – sua certeza se revela em frases como já no final do filme, no longo
abraço dado em Magano: o raio ordenador nos atingiu e o melhor é transmiti-lo a terra para
que cesse a febre e o mundo pare de tremer sob os nossos pés. Menos do que estabelecer um
gênero, questão que não está em pauta quando se trata das interpenetrações textuais e cênicas
no teatro épico, a caracterização do herói com tintas melodramáticas funciona como
antagonismo cênico à caracterização de Júlia e dos artistas de esquerda37.
Voltando a sequencia inicial do filme, a câmera se aproxima e incide sobre o
Governador Magano ditando um discurso que Bárbara, a militante de direita, toma nota. É o
discurso que justificará o golpe no país imaginário:

Por influências de inspirações estranhas e propósitos subversivos, são


revertidas a hierarquia e a disciplina necessárias ao progresso econômico.
Não podemos permitir, entretanto, que as reformas sirvam de pretexto para

37
Jean-Marie Thomasseau (2005) apresenta em O melodrama imprescindível contribuição sobre as
características do gênero e seu desenvolvimento, buscando desconstruir os enganos e preconceitos erigidos pela
“crítica especializada” quanto a esta forma popular. Para a afirmação de que Paulo Funis caracteriza-se como
um “herói” melodramático, adoto a seguinte observação: Quando a história literária fala do melodrama e de
suas origens, ela o faz, frequentemente, m termos de esclerose e decadência, explicando certas vezes o
nascimento do gênero como uma degenerescência da tragédia. É verdade que a tragédia, sobre a qual Voltaire
tentou provocar e teorizar as transformações, pouco a pouco, ao longo do século XVIII, abandonou suas
dimensões metafísicas, substituídas por conflitos psicológicos e debates morais, e escolheu uma estrutura
romanesca mais patética que trágica (p.18). O autor também não deixa de ressaltar seu parentesco com a teoria
do drama burguês. Sentimentalidade e apagamento da luta de classes rendem nas teorizações sobre o drama
burguês, como observou Sérgio de Carvalho no prefácio para Teoria do drama burguês, de Peter Szondi (2004).
Paulo Funis movimenta, em sua composição, elementos sentimentais atrelados ao destino trágico.
115

as ameaças à paz pública. Inquietação, desordem, erosão do regime


democrático. As radicalizações ideológicas, sobretudo quando a ideologia
inspiradora é incompatível com o que há de mais entranhado na formação do
povo. A resistência ao comunismo, nessa área do mundo, é decisiva para o
próprio destino do mundo.

O discurso inspira-se na declaração de 30 de março de 1964 do então Governador do


Estado de Minas Gerais, José de Magalhães Pinto, um dos articuladores do golpe brasileiro.
Em seguida, no flashback que retorna um ano a narrativa, Paulo percorre corredores do
banco, com uma voz em off de Magano brindando à brisa da manhã! A voz se conecta a
imagem dos três – Paulo, Bárbara e Magano – confraternizando a posição de Paulo como
vice-presidente do banco do tio-governador e de Bárbara como sua futura esposa. Enquanto
Paulo solicita a Magano sua permissão para dirigir o banco na Província de Santo Mar, sua
fala será reiterada por imagens de santos.

Eu agradeço muito, com inquietude sincera do meu coração, mas preciso


fazer um pedido meu tio. Santo mar, a agência planejada, ali o banco vai
expandir seu horizonte, inaugurar um instante novo. A cultura do país está
toda ali. O senhor mesmo já deu esse passo ao se encaminhar para a política.
O banco só vai deixar de ser regional se conquistar Santo Mar. Temos um
país por inventar. É a nossa missão. Fica sob nossa responsabilidade
conduzir a luz.

A trilha sonora grave o acompanha em quase todas as suas aparições enquanto ele
ainda não conheceu a atriz Júlia. O banqueiro circula entre os funcionários do banco e, por
um corte com uma legenda sobreposta à tela, indica-se que o banqueiro irá financiar os meios
de comunicação. Não há a voz over em off de Paulo como que relatando os acontecimentos,
como aparece em Terra em Transe. As cenas são montadas para que o espectador acompanhe
por diferentes enquadramentos as forças empreendidas no golpe: aliança do poder econômico
controlado por Paulo, dos meios de produção midiática-ideológica, controlada por Ribeiro,
dono do Jornal O Todo em negociata para a formação da TV O Todo e o poder político,
representado por Magano, orquestrado pelos interesses do Embaixador Americano, dos
Industriais e Militares. Junto a isso, recupera-se a tentativa de produção artística da esquerda
e a imagem do grupo teatral ensaiando a peça camponesa. O tempo é como que restaurado
para o ensaio do grupo teatral do primeiro ato. Os dois fragmentos – ensaio do grupo e as
imagens de Paulo, em montagem alternada − são complementares temporalmente e
acumulam uma leitura sobre a desigualdade das forças em luta; não à toa em uma das cenas
no apartamento de Paulo, Júlia ameaça os militares com um vaso e logo é ameaçada com uma
arma, aspecto que tem rendimento para esclarecer a narrativa cênica e também para “avaliar”
116

uma suposta isenção de ponto de vista do trabalho documental: assim como a câmera
acompanha Paulo na “sociedade de conchavos” também está presente nos momentos de
ensaio do grupo teatral. É interessante notar que a equiparação do tempo através do ensaio do
grupo dentro do filme e da demonstração, pelo outro lado, do arranjo conservador entre a elite
econômica e política de Cabedal coloca em fricção uma dialética temporal que tem na
posição do espectador alguns frutos, afinal não é o tempo fictício do enredo que organiza sua
participação, mas o tempo empírico que também está ali formalizado. Durante o ensaio teatral
do filme, Júlia olha diretamente à câmera e declama trechos do livro A Pedagogia da
Autonomia de Paulo Freire com a indicação de que se trata da problematização do futuro. Para
o educador, ensinar exige a consciência do inacabamento; “meu destino não é um dado mas
algo que precisa ser feito, cuja responsabilidade não posso me eximir. Gosto de ser gente
porque a História em que me faço com os outros e de cuja feitura tomo parte é um tempo de
possibilidades e não de determinismo. Daí insista tanto na problematização do futuro e recuse
sua inexorabilidade” (2002, p.22). A realidade do golpe – história conhecida e formalizada
pela eleição do banqueiro como protagonista – e o discurso de problematização do presente
do grupo teatral que é dado como campo de possibilidades atrita-se com as imagens da tela
que pelo outro lado mostram a articulação do golpe. No movimento oposto, a legenda, a
problematização do futuro, diz respeito ao tempo ficcional instalado pela narrativa − a do
passado – e, também, do tempo atual. É um fragmento que dialoga diretamente com o
espectador, apelando para sua consciência no presente.
Tempo morto perscruta na ficção, quando utiliza a autorreflexão sobre o filme terceiro
mundista levado pelo Cineasta e por Julia para o banqueiro buscando sensibilizá-lo para o
financiamento para sua circulação, sobre a própria produção cinematográfica, também
condensada em seus resquícios amadores, artesanais, num movimento que deixa evidente a
carência de recursos, negando as exigências do cinema nos moldes industriais. Glauber Rocha
em Revolução cinematográfica, publicado em Revolução do cinema novo, apresenta as
condições necessárias para que seja possível um cinema revolucionário, opondo-o ao cinema
americano, hegemônico na educação moral e estética. Parte de que o cinema é um método e
uma expressão internacional e portanto “a luta dos verdadeiros cineastas independentes é
internacional (...) a finalidade dos cineastas independentes deve ser a de conquistar o poder da
produção e da distribuição em todos os países” (2004, p.101). A distribuição é o ponto
pernicioso de qualquer produção cinematográfica e identifica que para que ocorra um cinema
revolucionário os cineastas precisam se transformar em produtores e distribuidores. Opõe-se
no filme à necessidade do Cineasta recorrer ao Banco Patriota. O diálogo em Tempo morto
117

demonstra a “ingenuidade” do Cineasta, tentando convencer o banqueiro quanto ao alcance


do filme para o grande publico – desmentido por Júlia − e a intenção do banqueiro, mais
interessado na circulação da mercadoria e introduzindo o equivalente na representação da
imagem televisiva. O filme “terceiro mundista” produzido pelos atores está aprisionado ao
caráter mercadológico da produção de imagens.
Retornando aos rendimentos estéticos do filme, ao ficcionalizar um momento histórico
brasileiro a partir de um ponto de vista ambíguo, pois ainda que o protagonista seja o
banqueiro ele é “ironizado”, somado ao acúmulo de discussões críticas sobre o período que se
fizeram no decorrer dos anos, demonstra a representação alegórica em oposição à proposta
realista do teatro épico do primeiro ato. Com o golpe, a força da coletivização derrotada e do
avanço das reformas socialistas é absorvida pela estratégia alegórica; esta, contudo, entendida
apenas em sua estrutura formal, garante uma resposta lúcida quanto à experiência
contemporânea? Como bem observou Ismail Xavier,

Quando inserido numa perspectiva política, enquanto manifestação de


conflito de poderes em circunstâncias históricas determinadas, o caráter
cifrado da alegoria é astúcia diante da censura, solução de compromisso para
dizer, com todo cálculo, o proibido sob o manto do permissível. Nesse
particular, os exemplos são inúmeros e as estratégias variadas, os agentes da
intenção podem ter diferentes naturezas conforme o nível em que se dá o
jogo e o conflito de forças (XAVIER, 2012, p.447-448).

Deve-se ter em conta, portanto, que o estudo em Tempo morto sobre o procedimento
alegórico insere-se em condições distintas em relação ao procedimento engendrado nas
condições políticas das décadas de 60 e 70. Há que se reforçar, entretanto, que ao parodiar o
filme de Glauber faz uma “retomada avaliativa” da experiência alegórica dos cineastas desse
período deslocando seu rendimento para a produção cultural atual.
Os personagens de Tempo morto não são releituras ficcionais de Terra em transe,
embora retirem deles aspectos performativos. Paulo Funis, assim como Paulo Martins,
constitui a ponte entre as diferentes ordens que atuam no processo político (XAVIER, 2012,
p.108) e assemelha-se em um certo idealismo político, com sinais opostos. Não é o poeta em
crise que se percebe em meio ao jogo, mas o banqueiro que representa uma classe e no
momento de crise a ela se alia para a concretização do golpe. A contradição comportamental
de Martins o inscreve no descaminho das mudanças estruturais de Eldorado, ao passo que é o
destino de Cabedal que, parece, estar nas mãos de Funis, embora para ele não esteja
implicado agir ou não agir, e sim aprovar ou não aprovar. Numa imbricação de Julio Fuentes,
118

Paulo Martins, Vieira e Porfírio Diaz, Paulo Funis, ao mesmo tempo em que se aproxima,
sentimentalmente, de Júlia e financia um filme experimental de esquerda, avaliza e articula o
golpe civil que se materializa no golpe militar.
Os fragmentos apresentam o percurso de Paulo Funis, através de montagem alternada,
e mostram como ele, e a câmera, habitam e circulam entre dois mundos, assim como
apresentado no programa da peça: por razões sentimentais, ele se aproxima da arte
anticapitalista num momento de acirramento da luta social. Torna-se um mecenas de
esquerda, ao mesmo tempo em que financia parcerias internacionais para a fundação de uma
televisão. A ligeira crise afetiva e pessoal serve para acentuar o compromisso com sua
própria classe. Torna-se, assim, um militante do processo de modernização conservadora que
se materializa no golpe militar. Para Sérgio de Carvalho, tal enquadramento do personagem é
responsável pelo teor crítico quanto à retórica lírica derramada do burguês, que num
idealismo individual legitima o golpe. O recurso que torna patético seu protagonista é
utilizado como alegoria ilustrativa, assim como a relação com outros personagens – Ribeiro e
não Marinho, proprietário do Jornal Todo, e não Globo. A alegoria da narrativa interna é
retórica e bem humorada e por isso deliberadamente óbvia e facilmente assimilada, e registra
um modelo explicativo sobre a sociedade brasileira: ausência de uma burguesia-civilizatória
forte, capaz de ser classe dirigente (CHAUÍ, 1983, p.66). Embora apareça como retórica, de
fato, na diegese de Tempo morto, seu cinismo individual irá colaborar para a efetivação dos
anseios de ordenação, incluindo-o a uma ordem cósmica − na cena do bar, um dos atores
comenta sobre Paulo Funis: Rei Midas, tudo que ele toca vira ouro. Com um olhar um
pouquinho mais cuidadoso, a ordem cósmica é o capital que coordena suas peças conforme
um jogo de xadrez. No caso brasileiro, o patético dos banqueiros é acreditar que como
indivíduos (personagens) podem suspender ou não o avanço do capitalismo. É pela militante
de direita, Bárbara, no apartamento de Paulo Funis, enquadrada no centro da imagem, que
fala diretamente à câmera, que as forças em luta estão postas: a luta de classes existe imbecil,
de que lado você está? A personagem de Bárbara, portanto, ganho os contornos mais nítidos
do idealismo burguês.
O evidente discurso político interpela o narrador vertical (imagens e trilha), e a
reboque, o próprio espectador. A cena do bar, no qual confraternizam o banqueiro e o os
artistas de esquerda, dá mostras do trabalho cultural nessa chave

É como o momento que a lua nova e a lua velha não se distinguem. Elas se
misturam. É isso! Enquanto a gente não entender isso, a gente não vai
compreender o sentido da palavra contradição.
119

A fala e o enquadramento da imagem colocam a Estudante de Dialética em primeiro


plano e ao fundo o burguês banqueiro Funis, Júlia, os Cineastas Brasileiro e o Cubano
alegremente conversando. A fala da estudante comenta a imagem e por ela é, ambiguamente,
legitimado. A constatação goza a indistinção e o movimento da câmera com ela se identifica;
está livre, fluida, assim como a trilha que retoma a canção Odete do primeiro ato. Os atores
riem, brincam, brindam e Funis apresenta o desconforto quando é confrontado com sua
suposta traição de classe ao se relacionar com Júlia e patrocinar o filme de esquerda. Nesse
pequeno fragmento a imagem comenta e reforça o discurso. Na entrevista realizada pelo
Latão com o crítico Ismail Xavier em 2006, publicada no livro Atuação crítica, a posição do
grupo quanto ao recurso alegórico fica evidente pelo teor provocativo dos entrevistadores.
Perguntado quanto à reflexão histórica abstrata presente na experimentação alegórica de
Glauber, além de uma ambiguidade que poderia revelar um caráter ideologicamente
regressivo, os entrevistadores perguntam: “você não acha que isso está na base do
procedimento alegórico: esse descolamento da história põe a forma numa zona de indefinição
trans-histórica, que pode endossar uma imagem de imutabilidade das condições, gerar
fatalismo melancólico?”(CARVALHO, 2009b, p.71). O fatalismo melancólico e a
imutabilidade das condições foram deslocados para a composição do burguês pela narrativa
horizontal; a paródia do filme de Glauber, apresentada em tom jocoso busca demonstrar a
reificação da textura de fala alegórica, mas como salienta Ismail Xavier na citada entrevista,

Existe uma consciência muito forte no cinema novo de que a representação


de certos problemas sociais já tratados pela literatura ganha um impacto
diferente pelo próprio fato de surgir na imagem cinematográfica. O cinema
seria um fator diferencial no que se refere ao significado político imediato,
criando a possibilidade, ainda que assumida então de forma ingênua, de
atingir os espectadores a quem aquele debate dizia respeito. A convicção de
que se conseguiria alguma coisa de efeitos políticos imediatos animou Deus
e o diabo. Já em Terra em transe, Glauber não tem mais a mesma ilusão: é
um filme feito para um público específico do cinema novo, estudantes
universitários, professores, público urbano, e aí ele prefere adensar a
violência simbólica dirigida a uma plateia de esquerda – um convite à
autocrítica (CARVALHO, 2009b, p.73).

Em tempo outro, o filme do Latão não tem o rendimento crítico semelhante ao tempo
de Glauber pois não leva às últimas consequências uma especificidade de Terra em transe, a
saber, o solavanco provocativo – que é dado pela voz over de Paulo Martins − , pois ironiza
120

antecipadamente o público burguês − sem um sistema de referência específico − que


frequenta o teatro, embora o sentido do tom degradado se justifique confrontado ao primeiro
ato38.
Nos termos básicos do conflito até agora apresentado, a fratura golpista não permite
que a narrativa avance, como já intuído pelo espectador entre os atos. Ao manter essa chave
de análise – a “comparação” do conteúdo com o filme de Glauber −, ao burguês caberá o
chavão melodramático, mas ainda falta seu “antagonista” – o povo. Segundo Gilda de Mello e
Souza,
o povo de Glauber, dentro de seu processo habitual de caracterização da
personagem, já apontado, é ao mesmo tempo plural e singular. É a massa
compacta que ovaciona Vieira e que a câmara apreende em panorâmicas
estupendas; mas é sobretudo o pobre operário (ou posseiro?) a que Flávio
Migliaccio empresta a sua fisionomia torturada. A concepção cruel e
desmistificadora está aqui bem longe da que Boal-Guarnieri utilizam em sua
última peça. A do teatro, personificada em Tiradentes, procura elevar à
categoria artística o chavão patriótico dos livros de leitura e do quadro de
Bernardelli. É o povo na sua concepção mais melodramática, eu diria mesmo
a mais Kitsch, de herói, que renasce eternamente das suas mil mortes. A
concepção de Glauber é a do deserdado, do João Ninguém (MELLO e
SOUZA, 2008, p.236)

O filme inverte a caracterização e aplica ao burguês o chavão patriótico e heroico:


Paulo e Bárbara estão num salão iluminado com velas, logo após a decisão dele de retornar à
Extração para convencer Magano quanto à inevitabilidade do golpe. O diálogo pressupõe o
eterno retorno do herói: Paulo: Me ajude. Serei outro. Bárbara: Já és outro. Que morra o
outro para viver o mesmo. Promete? Paulo: Prometo que vivo. Bárbara: Pois então morre. E
qual caracterização é reservada ao operário-trabalhador (não é o povo em abstrato que
comparece em Tempo morto)? Em sua apresentação, logo após o negócio entre Ribeiro e os
empresários norte-americanos ser concretizado (fragmentos 10, 11 e 12) sua imagem pode ser
assim descrita:
O último carnaval. Fevereiro de 1964. Em off: Amanha eu vou embora,
vou por este mundo afora percurando um grande amor.

38
Como apresentei no início do estudo, a avaliação sobre as conquistas estéticas do Arte contra a barbárie
deveria percorrer a produção cênica dos grupos envolvidos na construção da crítica anticapitalista. Apontado
anteriormente, não me foi possível percorrer este itinerário. Se o fizesse, a título de nota, penso que o maior
rendimento da discussão sobre o recurso alegórico, e o fato do Latão problematizar este expediente, está na
observação de Ismail Xavier: a paródia de Glauber convida demais grupos de esquerda à autocrítica. Parece que
muito do que vem sendo produzido em teatro por parte dos grupos paulistanos utiliza o expediente alegórico,
com rendimento trágico ou tropicalista, como recurso que em si contém a crítica, sem mediações históricas.
Evidencio, portanto, que as consequências sobre a ideologia representacional presente tanto no segundo ato
como no terceiro residem, essencialmente, no debate com a produção de outros coletivos teatrais, em especial,
aos signatários do Arte contra a barbárie.
121

Imagem de um homem negro. Atrás dele, dois cartazes: “Batucada do povo


brasileiro” e de “Che Guevara”.

O homem, não numa fisionomia torturada, mas empobrecida, canta: Toda gente nesse
mundo tem direito a ser feliz, porque que eu não sou. Nem que morra de tristeza, nem que
morra de saudade, vou fugir deste lugar para ver alguém no mundo, desprezado que nem eu,
um alguém para amar. Eu também sou gente, eu também mereço, eu também sou gente para
encontrar alguém para amar.

Cena de Júlia e Funis. Ele venda os olhos dela com as mãos.


Funis: Eu sou uma idealista porque sou uma atriz e tudo posso transformar
na minha imaginação (ele retira as mãos, ela continua de olhos fechados).
Julia: Posso usar a minha voz, as minhas mãos, todo o meu corpo no que
imagino (abre os olhos), acredito, desejo. Mas isso não pode ser um
privilégio de classe.

Batucada. Ela mostra um relógio pra ele.

Bloco de rua de carnaval. Os dois estão pulando. Ela está mascarada.Corta


para imagem de Júlia, aparentemente bêbada, em frente ao pôster de Che
Guevara, assim como o homem que canta. Corte para tamborins, Funis ao
fundo da cena.

Há, também, uma inversão na cena conhecida de Terra em transe. Ao invés de tapar a
boca do sindicalista Jerônimo, os olhos da atriz são vendados. A aparição do “povo”
representado pelo ator Flavio Migliaccio não se dá após uma provocação agressiva como feita
por Paulo Martins (está vendo quem é o povo? Um imbecil, um analfabeto, um despolitizado.
Já pensaram Jerônimo no poder?) ou seu enforcamento, mas logo após a negociata de Ribeiro.
Ele está na mesma posição de Júlia (em frente aos cartazes) e no mesmo ambiente
carnavalesco, “empobrecido”, como disse anteriormente, junto com uma esquerda em transe.
A cena é seguida do fragmento 13, no qual Paulo e Júlia discutem:

PAULO - Você e eu somos da mesma classe


JÚLIA - Não, eu não sou dona de nada.
PAULO - É uma artista que idealiza o povo.
JÚLIA - Eu não idealizo, eu trabalho, por minha conta.
PAULO - Você acredita mesmo nisso?
JÚLIA - E você, idealiza o quê?

Ao tapar os olhos da atriz, bloco 11, a crítica se concentra quanto às idealizações da


esquerda em sua “construção de uma arte nacional e popular” e Júlia será aquela que
122

discursará sobre seus desenganos. Em 1980, em suas considerações sobre o “nacional” e o


“popular” na cultura brasileira, Marilena Chauí, analisando as publicações Cadernos do Povo
Brasileiro e o Manifesto do CPC, indica que

quem relê os atos do Congresso, jornais, livros, discursos e panfletos dos anos
de 1961 a 1964, encontra em abundância duas expressões: “a vontade do
povo” e “os magnos interesses da Nação”, ou suas variantes, “a consciência
popular” e os verdadeiros interesses nacionais” (...) e todos reivindicam o
direito de serem “os legítimos representantes do povo” e dos “legítimos
interesses da nação”. (CHAUÍ, 1982, p. 63-64).

Antes de iniciar sua análise sobre as publicações, consideradas representações da


conjuntura e portanto, fatos históricos, a autora faz breves comentários sobre a política de
Juscelino Kubischek – de caráter desenvolvimentista nacionalista anticomunista, no qual o
subdesenvolvimento decorre da desigualdade entre nações e não como determinação interna e
portanto a garantia da ordem (progresso) se daria com forte ligação com o capital
internacional, de Jânio Quadros – de caráter desenvolvimentista nacionalista anticolonialista,
no qual uma ideologia terceiro-mundista interpreta que a miséria interna se dá pela
dependência externa (EUA) e desenvolve uma política voltada para reformas institucionais
que beneficiem a coletividade, embora esta ainda não alcançada pela incapacidade de
mediações representativas (partidos, facções) de organizar o “povo” e de João Goulart − de
caráter democrático popular, ou de um “nacionalismo populista”, tentando conciliar os
interesses do capital nacional-internacional e os direitos dos trabalhadores − o governo de
João Goulart recebia críticas da direita, por sua guinada comunista e à esquerda, por seu
reformismo continuísta.
Ao analisar e indicar a heterogeneidade dos Cadernos, Marilena Chauí conclui que o
“povo” não comparece concretamente nas discussões pois a consciência lhe viria
necessariamente de fora, tornando a massa em uma força material (1982, p.85) e sobre o
Manifesto do CPC − que de teor maniqueísta não percebe que as obras culturais são também
esforços de compreensão da experiência ou ainda circunscritas a campos também por ela
definidos − demonstra apenas o jovem herói do CPC (p.92). A filósofa indica que num país
como este, “o fato que por um breve momento os dominados tivessem feito uma aparição na
cena da “grande política”, criou à direita e à esquerda a expectativa da revolução – a primeira
para reprimi-la, a segunda, para dirigi-la”. (CHAUÍ, 1982, p.66).
Em O cinema novo e a aventura da criação, Glauber Rocha (2004) identifica no
impulso dirigente nossa cultura caudilhista – o texto foi escrito em 1968− típica das chamadas
123

artes nacionalistas, idealizadora de tipos populares e produtora de uma arte facilitada,


empenhada na comunicação, quando, por outro lado, o cinema novo está preocupado e discute
o problema da criação. Para o cineasta a revolução operaria quando o criador aprende
enquanto faz e
o público, que sabe ver outro tipo de cinema, se vê acossado na sala de
projeção, obrigado a ver um novo tipo de cinema: tecnicamente imperfeito,
dramaticamente dissonante, poeticamente revoltado, sociologicamente
impreciso como a própria sociologia brasileira oficial, politicamente
agressivo e inseguro como as próprias vanguardas políticas brasileiras,
violento e triste, muito mais triste que violento, como muito mais triste que
alegre é o carnaval (ROCHA, 2004, p.133).

Logo após a cena de Bárbara, Júlia ocupa a tela, na imagem da ponte do início do
filme em sua construção de um povo imaginário, pronto para a revolução. Seu discurso
também se dirige à câmera: Chegamos ao auge da esperança reformista baseada na
conciliação de classes. Isto é um equívoco. (atrás dela, um cartaz: O Petróleo é nosso).
Dessa burguesia que aí está não se pode esperar nada. São nacionalistas de ocasião, pregam
sempre uma revolução pelo capitalismo. Estamos vivendo um erro ideológico, mas antes que
o nosso tempo acabe, passemos à luta. Morte à conciliação! Viva a revolução popular anti-
capitalista! Alegres na vanguarda! E aqui a dramaturgia cênica surpreende o espectador.
Reaparece o discurso de Francisco Julião do primeiro ato, feito agora por Júlia em praça
pública; ela assume a luta armada. Um coro proletário acompanha o discurso e tensiona uma
leitura psicologizante do personagem − sua fala desencantada ocorre logo após o rompimento
do romance − afinal o filme tematiza o conflito de classes no qual procura implicar a
aproximação dos artistas ao trabalhador.
Há, na composição, algo da sensibilidade de Sérgio de Carvalho que a “retomada” do,
assim chamado, teatro de grupo em meados da década de 90, “tem pouquíssimas ou nenhuma
ligação com o antigo projeto de arte nacional-popular e de teatro coletivo dos anos 1960 e
1970; o antigo desejo de aproximar o experimentalismo e “pesquisa de uma arte nacional-
popular” pouco sobreviveu à enxurrada liberal-conservadora dos anos 1980” (2008, p.157-
158) e parece que a produtividade da “paródia” da fala alegórica diz mais da percepção de um
certo formalismo integrante do sistema de artes no Brasil.

A internacionalização do capital financeirizado – com base em mais um


ciclo de crises, foi contemporânea de uma onda de importação cultural nos
países periféricos: por aqui foram copiados os modelos dos grandes
encenadores artistas plásticos, aqueles praticantes das chamadas tendências
pós-dramáticas, reprodutores da ideologia do pós-estruturalismo artístico,
124

artistas de ares neo-expressionistas mas com temática universalista,


mitizante, abstracionista, enfim, baseadas numa recusa a qualquer conteúdo
social manifesto ou em formalizações baseadas em narrativas críticas
(CARVALHO, 2009a, p.158)

A “porta de entrada” do capitalismo financeirizado já está dada pelo tema do filme, e a


“alegoria trágica” se presta, atualizada, a uma funcionalidade cultural: dar ares de paralisia
diante da História, ou ainda de uma percepção da vitalidade de fim de linha, para usar a
expressão de Paulo Arantes sobre a renovação do “teatro de grupo” em meados da década de
1990.
Tentando sistematizar os termos até o momento apresentados: Tempo morto é um
filme de “tese” que procura dar conta de uma crítica quanto à textura da fala alegórica e para
isso utiliza dois níveis de narração: horizontal, no qual o drama é dado pela ação e conflito do
seu protagonista e vertical, com a composição de imagens e da trilha; os dois níveis se
estranham e deixam entrever a desconfiança quanto seus próprios discursos. A forma do filme
como um operador de sentido carrega um ponto de vista e o espectador pode a ele aderir ou
dele desconfiar. Em alguns momentos, as imagens que comentam os discursos se faz como
expressão no qual a lógica dos vencedores se efetiva como explicação histórica irresistível
pois está inteiramente à vontade com o princípio narrativo, representacional: Funis, em suas
ações, é enquadrado diante da mata tropical, dos edifícios da cidade. Na cena da possível
vitória golpista, em câmera baixa, Bárbara e Paulo são quase monumentos. Em
contraposição, em seu discurso final, Júlia aparece em primeiro plano, sem nenhuma
multidão, quase sem interlocutores. A autocrítica implicada na configuração de Terra em
transe é revista pelo teor melancólico da cena, condizente com o afastamento do artista e
“povo” em tempos atuais, o que traz como consequência uma despolitização da cena. Esses
enquadramentos são friccionados nas imagens do grupo de teatro, ou ainda na cena do bar,
que por retirarem sua força do passado remete o espectador ao tempo ficcional do primeiro
ato buscando aí sua historicidade dado pela fricção.
Na dialética entre primeiro e segundo ato há contradição na unidade. Há no primeiro
ato a problematização do teatro épico e no segundo, da alegoria trágica. É somente na relação
com o seu contrário - causado pelo estranhamento proporcionado pela paródia em tom jocoso
− que a afirmação positivada do primeiro ato encontra seu pleno sentido. Na fricção dessas
duas formas de representação se movimenta o trabalho da cultura ao lado da recepção, pois
em última instância é o espectador que faz suas articulações. O relógio balançado por Júlia
125

em frente a Paulo revela a pergunta, afinal, que horas são? Brecht (2005), exilado na Suécia,
faz a seguinte anotação em seu Diário de trabalho, em 07 de dezembro de 1939

Aqui há constantes discussões estéticas acerca de estilo e conteúdo nos


suplementos literários. Não compreendem que não se pode isolar efeitos
estéticos. Estes podem emanar das combinações mais díspares. Por outro
lado, jamais ocorrem sem alguma mistura de matéria inartística.
Cientificamente se obtém a melhor solução quando se observa a atitude da
pessoa que está dando forma, narrando, cantando, fazendo música, atuando.
O relacionamento, por exemplo o relacionamento que o narrador tem (e
pensa que tem) com os seus ouvintes, o nível cultural em que se acha toda
pessoa participante do ato de contar história etc. A noção do ato artístico é
em si mesma muito produtiva. Se eu opto por uma certa atitude narrativa
(talvez fosse melhor dizer: se me vejo compelido a adotar uma certa atitude
narrativa), então só certos efeitos muito precisos me são franqueados, meu
assunto se organiza espontaneamente numa determinada perspectiva, meu
material verbal e meu material imagético estendem-se numa determinada
linha, procedentes de um determinado acervo, uma certa quantidade (e não
mais) da imaginação do meu ouvinte está ao meu dispor, compete a mim
apelar para suas experiências até um ponto específico, suas emoções podem
ser disparadas nesta ou naquela direção etc. A atitude, é claro, não é uma
coisa unificada, ou constante, ou destituída de contradições. (BRECHT,
2005, p.48-49)

E ainda, em 31 de janeiro de 1940: “Está na hora de se começar a deduzir a dialética


da realidade, em vez de deduzi-la da história das ideias, e usar exclusivamente exemplos
selecionados da realidade” (p.61)
Na dialética primeiro e segundo ato, a verdade do compromisso entre artistas e
movimento social, é validada pelo seu contraditório, das forças contrárias e nesse processo
busca-se retirar exatamente da realidade já conhecida e esquadrinhada os aspectos
contraditórios que culminaram no golpe de 1964. Tais aspectos já se fizeram conhecidos
através de amplos estudos sobre a modernização brasileira no período, na qual uma possível
superação do atraso advindo do passado escravista, identificado como aspecto arcaico, se
daria pelo desenvolvimentismo operado no fortalecimento da indústria, num nacionalismo
simples da modernização. Segundo Roberto Schwarz

Sumariamente, era o seguinte: o aliado principal do imperialismo, e portanto


o inimigo principal da esquerda, seriam os aspectos arcaicos da sociedade
brasileira, basicamente o latifúndio, contra o qual deveria erguer-se o povo,
composto por todos aqueles interessados no progresso do país. Resultou, no
plano econômico-político, uma problemática explosiva mas burguesa de
modernização e democratização; mais precisamente, tratava-se da ampliação
do mercado interno através da reforma agrária, nos quadros de uma política
externa independente. No plano ideológico, resultava uma noção de “povo”
126

apologética e sentimentalizável, que abraçava indistintamente as massas


trabalhadoras, o lumpenzinato, a intelligentsia, os magnatas nacionais e o
exército (SCHWARZ, 2008, p.76)

Como o acúmulo de críticas já sedimentou, a tentativa de superar o arcaico-rural


através do moderno-urbano – ressalto a ressonância de tal procedimento na eleição de
camponeses para a composição do drama do primeiro ato em contraste com o meio urbano do
segundo − contribuiu para o processo de modernização conservadora. O engano de grande
parte do marxismo partidário-oficioso, mais anti-imperialista do que anticapitalista, povoou a
pauta do presidente João Goulart e se constitui como um vasto movimento ideológico e
teórico (SCHWARZ, 2008, p.75). A leitura desdentada do marxismo, operado em grande
medida pelo Partido Comunista Brasileiro, também foi a chave ideológica de muitos artistas
do período − talvez a peça que apresente com mais consequência essa questão seja Revolução
na América do Sul (1961), de Augusto Boal. Visto desarticulado, como filme independente,
Tempo morto reforça uma perspectiva formalmente ideológica, como toda representação;
complementares, os atos buscam identificar as forças sociais e formas representacionais que
gestadas no passado operam na cultura e na política atual brasileira; agem diretamente na
percepção do espectador sobre os meios de produção representacional – artistas, relações de
produção e suporte estético. Em Diário de trabalho, em 27 de março de 1942 há uma
anotação de Brecht muito interessante sobre como o público interfere na produção teatral e o
quanto o cinema prescinde dessa relação. O dramaturgo deixa registrado que o espectador de
teatro regula a representação e nisso ajusta o trabalho do ator. Ao contrário, o espectador de
cinema está diante de um produto final, “realizado em sua ausência” (2005, p. 82). A oposição
do ensaio teatral do primeiro ato, necessariamente processo de produção e o filme do segundo
conformam-se ao assunto: coletivização do trabalho em bases mais ou menos artesanais e sua
supressão diante do aparato industrializado do cinema. Tal condução da peça coloca em
sequência dois veículos de produção cultural que têm modos de produção não equivalentes,
sendo que o cinema acentua a inserção da discussão que passará a organizar a narrativa da
peça. Como observou Maria Rita Khel39 em texto publicado pela Revista Traulito n.4,

quando eu saí do teatro e discuti com pessoas que mal tinham compreendido
do que se tratava, eu disse: “mas a peça não é nem sobre o campo, nem sobre
a ditadura.” A minha impressão geral é que Ópera dos vivos é uma reflexão

39
O texto publicado na revista foi editado a partir da apresentação de Maria Rita Khel no Ciclo de debates Opera
dos vivos, organizado pelo SESC Belenzinho de São Paulo, em parceria com a Companhia do Latão. Foram
quatro encontros ocorridos nos dias 16, 17, 23, 24 de fevereiro de 2011, durante a primeira temporada paulistana
do espetáculo.
127

sobre o trabalho de representação. Do ator, do teatro. Do que é possível


ainda dizer na medida em que o Brasil fez esse caminho, a partir dos anos
1960, desde o momento pré-golpe militar, quando ainda era possível haver
uma mobilização no campo de baixo. (REVISTA TRAULITO, 2011, p.11)

Pelo conteúdo, os dois primeiros atos fazem referência ao movimento cultural


histórico de artistas interessados em tematizar e influenciar a realidade social, embora os
resultados estéticos apresentem suas diferenças. As oposições vão para além dos suportes –
teatro e filme – e da eleição, por parte da narrativa cênica, dos pontos de vista. Do primeiro, o
ponto de vista da superação via coletivização, do segundo, da paralisia diante da derrota,
funcionando, portanto, como partes contraditórias no encadeamento da peça, revelando
aspectos do mesmo processo, quando a produção cultural mobiliza do ponto de vista
ideológico a subsunção do indivíduo; quadro que ficará mais evidente com a encenação do
terceiro ato, Privilégio dos mortos.
O show narrativo se abre, então, por detrás da tela e começa com atores ao lado do
público. A primeira fala demonstra o contínuo ambíguo do processo (tempo morto este em
que a ditadura não acaba, nunca acaba, de passar), mas agora a peça se volta para a canção
popular. Numa caracterização formal sintetizadora das amarrações estéticas engendradas, o
discurso do Comitê de Caça aos Comunistas é feita junto ao espectador:

CCC - Estamos à espera que o espetáculo chegue ao fim, para atravessarmos


o palco, invadirmos os camarins e espancarmos os atores.
CORO – A peça nos parece suja. Vivência dos contrários
CCC – E estamos trêmulos com a expectativa do combate, atentos à carne
dos atores. Temos barras de ferro escondidas e armas de fogo no peito.
CORO – Devíamos arrebentá-los já, à vista de todos.
CCC – Mas nosso ato performático precisa da plateia vazia, depois dos
aplausos.
CORO – Desordem!

O cenário surge “magicamente” e a assunção dos atores na cena estabelece um salto


no qual o período histórico refere-se ao pós-golpe (informação dada pela canção inicial), no
qual se estabilizou uma representação, deixando para os atores uma escolha performativa.
No terceiro ato, Miranda, cantora de protesto que aparece no filme, ficou três anos em
coma, e reaparece em um show em sua homenagem. Os cantores estão mais interessados no
entretenimento do que em um discurso politizado e o estranhamento se dá pela incompreensão
128

de Miranda quanto à situação de seus companheiros, imprimindo no recurso formal − o coma


− o estranhamento da nova situação política. É pela contradição entre Miranda e o
Apresentador/Benzinho, seu companheiro, que o Privilégio dos mortos será conduzido.
Quando o ato começa, Miranda, como um espectro, canta: Vultos distantes/Teatro em
obras/Atores com armas na mão/Braços pra cima/De punhos fechados/Enxadas, caixotes,
ação/Mas daqui onde estou/Eu ouço apenas /Uma canção feliz/Perna de pau, uma atriz
mascarada/Cartola estrelada, Tio Sam/Na madrugada, assembleia/Meninas, cartazes/Guevara,
nação/Mas daqui onde estou/Eu ouço apenas/Uma canção feliz/Virada de março/Rajada de
fogo/Acordo de um golpe no chão/Barricada, incêndio/O céu do Aterro/Uma faixa estendida:
Revolução. Revolução.
A letra da canção lembra o grupo de atores do primeiro ato, principalmente a atriz
Júlia (uma atriz mascarada), agora desaparecida política – homenageada em outra canção − e
as imagens do incêndio criminoso da sede da União Nacional dos Estudantes, situada no
Aterro do Flamengo do Rio de Janeiro, em um dos primeiros atos do golpe militar. Miranda
e os dois atores, uma Militante e o Ator desempregado, que estão junto à plateia, moribundos
e derrotados, “ouvem uma canção feliz”. O apresentador, Benzinho, irresistivelmente canalha,
anuncia que o show é uma homenagem à Miranda; Miranda, essa cena é sua, eu nada fiz que
não fosse em seu benefício. Ouviu minha querida, com você voltamos à luz. Receba a
homenagem dos seus amigos. O cenário é composto por uma escadaria no final do palco,
tecidos pretos e painéis de cores fortes, luzes, microfones, amplificadores, guitarras, bateria –
luz fria para forma ultramoderna − e uma vitrolinha, no proscênio – foco em tom âmbar −,
acionada bem no início do ato pela Militante. Miranda usa um vestido branco, os cantores do
grupo Os Intactos, Lot, Maní e Cao, usam roupas brilhantes, Luiz Flávio, sapatos de salto
alto. Durante o show dos Intactos, Lot e Mani farão sua performance com parangolés. A
composição contrastada, Miranda e Os Intactos, busca afirmar tempos e contextos diversos.
Ela, dona da cena, está completamente deslocada neste cenário, assim como seus fãs, o Ator e
a Militante, que estão na plateia, junto ao espectador. Todo o aparato do show é de um novo
mundo que se estrutura sobre o velho. A figura ainda em “transição”, Bebelo, amigo de
Miranda e parceiro antigo em canções de protesto, veste uma camisa em tom pastel, calças de
veludo, sandálias de couro e colares de miçangas. Ele, ideólogo do novo momento cultural no
qual os Intactos são seu resultado, traz em seu figurino a marca de seu passado, no qual
Miranda é apenas espectro que insiste em reaparecer. Cenários e figurinos imprimem o
espetáculo da cultura de massa, eletrônica e industrialmente real. Os artistas são produto
dessa engrenagem que pouco podem diante dela. A consciência dos personagens −
129

organizadas pela narrativa cênica e por ela conduzida como ocorreu nos dois primeiros atos –
começará a se mostrar “inoperante” diante da engrenagem e das novas relações de produção –
e de fato acomodada à nova situação cultural – se no primeiro ato as consciências vinham de
uma prática emancipadora, a consciência dos personagens do terceiro estão “à vontade” com a
indústria cultural, principalmente para Os Intactos. As tentativas de Miranda – e cabe ao
espectador perceber sua incompreensão, uma autoconsciência desarticulada que é a
contradição da nova situação − em manter um discurso articulado e coerente com o que pensa
e sente sobre a nova situação política e cultural será constantemente interrompido por
Benzinho para que o show continue. Atua em Privilégio dos mortos a alternância entre uma
quase ação dramática – o diálogo entre Bebelo, a Militante de esquerda e o Ator
desempregado, e a narrativa cênica − o discurso de Miranda e as canções, ora de Bebelo ora
dos Intactos.
O show abre com Bebelo e Os Intactos exaltando a oportunidade de voltar para uma
revolução de corações individualmente sujos. Miranda assume o palco e declara: o meu
benzinho não queria que eu cantasse nada de protesto, mas eu sei que vocês estão aqui
porque gostam de mim, do que eu sou ou me tornei. Então eu insisti para começar com uma
velha canção.

Desperta antes da noite aberta


Acorda antes da hora escura
Volta, querido, vai e volta logo
Toma um pedaço do meu tempo torto
Juntos fazemos
Muitas coisas mais
Antes, depois, vai e volta logo
Chacoalha, respira por conta própria
Acorda agora de um sono forçado.

Eu tenho pena de morrer, deixar Odete


Eu tenho pena de Odete me deixar.
Eu tenho pena de morrer, deixar o mundo
Quando eu morrer o mundo pode se acabar.

Quando tu dormes com a boca aberta


A traição procura seu momento
E se faz caso da vida ainda,
Luta, agora, luta, agora, luta.
Nem todo grito encontrará ouvido
Nem todo esforço modifica a história
Mas como a vida sopra e ultrapassa
Nosso destino precisa de nós.
Nosso destino precisa de nós.
130

A canção, do passado de Miranda, também solicita o espectador do presente, ele


também é espectador de um show no qual a cantora se tornou um vulto de valor simbólico. A
canção Odete, introduzida no primeiro ato e reiterada no segundo lembra que aquele mundo
acabou. E agora, resta algum ouvido? Pela dramaturgia cênica, Privilégio dos mortos é o ato
mais dolorosamente festivo – voltarei à significação desta operação − ; certo da engrenagem
hegemônica dos mass media e perverso em relação às figuras espectrais, demonstrando uma
funcionalidade dentro da temática da peça através de sua fachada caricatural.
Tanto a canção que abre o terceiro ato quanto sua narrativa pode caracterizar o
período dos festivais musicais da TV Record na década de 1960 – e é impossível não deixar
de pensar na canção Alegria, Alegria, de Caetano Veloso, divulgada em um festival em 1967.
Nessa leitura, muito das impressões do terceiro ato assentam na figura mais emblemática do
tropicalismo musical, Caetano Veloso, e todas as discussões que em torno de sua persona
habitam a cultura brasileira; tal encaminhamento também dado pelos nomes dos personagens
e do grupo musical – Cao (Gal e Caetano) e Os Intactos (Os Mutantes). Embora a
dramaturgia cênica promova a leitura do ato na direção de identificação precisa quanto ao
momento “inaugural” da canção tropicalista, Maria Rita Khel sugere que o terceiro ato
comenta um momento posterior, no qual seu “desbunde” deu a tônica à cultura brasileira.
Penso que a aproximação de Privilégio dos mortos, do ponto de vista histórico, se dê
com a significação do desenvolvimento, no meio teatral, de uma cena “engajada” em outros
termos, no qual o contrário do burguês para fins de contestação política não se materializou
no “personagem” proletário, e sim no “artista” boêmio, como identificado por Iná Camargo
Costa. Resgatando um pouco do argumento da autora, em 1967 o teatro Oficina estreia a peça
de Oswald de Andrade, O rei da vela. Não cabe aqui retomar as discussões sobre o texto de
Oswald de Andrade, que nas palavras de Iná, é um panfleto stalinista, mas deixar anotado a
publicidade gerada em torno de sua estreia pelo Oficina

a estreia do Rei da vela foi cercada de uma espalhafatosa campanha


publicitária, contando até com anúncio no jornal O Estado de São Paulo que
prometia “três estilos num só espetáculo: realismo, revista, ópera e ainda
Missa Negra para exprimir o surrealismo brasileiro” (...) Assim foi vendido e
assim foi comprado O rei da vela. Produziu-se na critica uma tal
unanimidade em torno dos avanços por ela introduzidos no teatro brasileiro
que as poucas vozes discordantes (Décio de Almeida Prado e Alberto
D’Averssa) mal se fizeram ouvir e, quando ouvidas, foram rápida e
levianamente descartadas (COSTA, 1996, p.170)
131

Para Iná Camargo Costa, o texto de Oswald materializou em 1967 no Oficina a


identificação destes com o ponto de vista dos vencedores golpistas pela inversão acima
menciona – boêmios no lugar de proletários. Articulando o texto e cena teatral da década de
50 e 60, a autora faz o seguinte comentário:

Arena conta Tiradentes dera início à temporada de críticas ao suposto papel


conspirativo desempenhado pelas esquerdas em 1964. Aproveitando a deixa,
O rei da vela, reivindicando para o Oficina aquela revolução teatral iniciada
em 1958 (Black-tie) e sustada por um incêndio em 1964 (Os Azeredos mais
os Benevides)40 deu muitos passos nesse novo caminho. Ao se resolver por
encenar uma peça cujo arcabouço dramático é constituído por um social-
democrata armando às escondidas um golpe para derrubar um “comunista” e
ocupar o seu lugar nos negócios e na família burguesa, tudo temperado por
aquele tipo de humor tão bem diagnosticado por Alberto D’Aversa, o Teatro
Oficina cumpriu rigorosamente a agenda da reação intelectual em andamento
no país. Identificando-se aos vencedores, o Oficina tripudia grosseiramente
sobre os vencidos (cena adicionada ao texto original) depois de tê-los
responsabilizado pela própria derrota. (...) O Teatro Oficina e seus fãs,
adotando e exacerbando a perspectiva áulica da peça, acreditavam-se um
grupo de “marginais” criticando a sociedade burguesa. (COSTA, 1996,
p.174).

Para não deixar dúvidas quanto ao valor cultural dado ao momento histórico por
alguns protagonistas desse movimento, reproduzo depoimentos: soma-se à encenação já
citada de O Rei da vela, a exposição de Hélio Oiticica, Tropicália, e a exibição de Terra em
transe de Glauber Rocha. Caetano Veloso anota em Verdade tropical que depois de assistir ao
Rei da Vela, Zé Celso se tornou um artista

grande como Glauber (...) A peça continha os elementos do deboche a


mirada antropológica de Terra em transe. (...) Eu tinha escrito “Tropicália”
havia pouco tempo quando O Rei da vela estreou. Assistir a essa peça
representou para mim a revelação de que havia de fato um movimento
acontecendo no Brasil. Um movimento que transcendia o âmbito da música
popular. (VELOSO, 1997, p.244)

Reproduzo a percepção de Zé Celso registrada por uma entrevista de 1968:

o grande aspecto novo, quem percebe é quem está criando arte neste país.
Assim, o pessoal do cinema novo, da música brasileira vê e revê O rei da
vela, incorpora a nossa experiência em suas realizações, sem seus projetos.
Eu ouço as músicas, vejo e revejo os filmes e vou descobrindo que alguma
coisa nova está nascendo no país (MARTINEZ CORRÊA, 1998, p.112).

40
A peça de Oduvaldo Viana Filho estava em processo de montagem pelo CPC da UNE do Rio de Janeiro
quando o prédio foi incendiado.
132

Em outra entrevista, ainda, mas de 1980, Zé Celso constata:

nunca houve um “movimento tropicalista”. Isso foi o jeito que encontraram


para batizar a revolução cultural que se impunha. O que houve mesmo foi
toda uma série de recusas sociais, uma série de manifestações sociais que
foram entrando no corpo da gente, como no corpo dos outros, baixando uma
coragem imensa. A coragem de O rei da vela, a da guitarra elétrica, a da
câmera de um jeito que ninguém tinha feito antes (...) A gente se sentia
ligado no mesmo pólo, ou melhor, a gente foi se sentindo ligado no mesmo
pólo (MARTINEZ CORRÊA, 1998, p.305).

O entrevistador de 1980, José Arrabal, cita então uma crítica ao projeto de Zé Celso
feita por Anatol Rosenfeld, considerando a encenação de Roda viva feita pelo diretor como
uma experiência que leva o público ao conformismo. Sem identificar tal citação à peça de
Chico Buarque, em O teatro agressivo, Anatol Rosenfeld (2009) expôs as semelhanças e
diferenças entre Bertolt Brecht e o teatrólogo Antonin Artaud, conhecido pelo seu empenho
em imprimir um teatro “como espelho do inconsciente coletivo, capaz de libertar os recalques
a ponto de, tal como a peste, impelir o espírito para a fonte originária dos conflitos” (p.49).
Em ambos há uma tendência em refutar o teatro culinário e estabelecer uma nova relação
palco e plateia. “O que, no entanto, os separa radicalmente é o racionalismo crítico do
primeiro e o irracionalismo incandescente do segundo. Brecht criou um teatro sócio-político,
de tendência imanentista, Artaud imagina um teatro essencialmente metafísico” (p.49).
Continua o crítico, em sua exposição sobre o teatro agressivo, exemplificado pela encenação
O rei da vela, e por entrevistas e manifestos do diretor, que este pretende “um teatro
anárquico, cruel, grosso como a grossura da apatia em que vivemos” (p.50). Tal concepção,
iniciada por Zé Celso no período com certa influência do pensador francês, dá a tônica de suas
realizações até os dias de hoje. À época, Anatol considerou, a despeito de sua noção de justiça
e pathos de sinceridade presente em sua cena e em seus manifestos,

reconhecer a eventual viabilidade estética de um teatro agressivo e violento,


assim como os motivos frequentemente justos da sua manifestação, porém,
não implica, acreditar, desde logo, no seu valor geral e na sua eficácia
necessária, no sentido de abalar o conformismo de amplas parcelas do
público. O mérito de José Celso no terreno artístico é indiscutível. Mas fazer
da violência o princípio supremo, em vez de apenas elemento num contexto
estético válido, afigura-se contraditório e irracional. (ROSENFELD, 2009,
p.56).
133

Conclui Anatol, que a despeito de José Celso conseguir efetivar o que ele pretende em
seus manifestos teóricos, que este teatro não passaria de neoculinário, pois a violência em si
se torna clichê, constituindo-se de fato como descarga gratuita, aliviando o público e o
confirmando em seu conformismo, uma vez que este paga para se colocar em uma situação
sadomasoquista; “agradavelmente esbofeteado, purificado de todos os complexos de culpa e
convencido de seu generoso liberalismo e da sua tolerância democrática, já que não só
permite, mas até sustenta um teatro que o agride” (p.57).
Para Zé Celso, tanto as observações de Anatol Rosenfeld quanto de Roberto Schwarz
registradas em Cultura e política – “ao que pude observar, passa-se o seguinte: parte da
plateia identifica-se ao agressor, às expensas do agredido. Se alguém, depois de agarrado, sai
da sala, a satisfação dos que ficam é enorme” (SCHWARZ, 2008,p.104) −, não passam de
críticas acadêmicas, e reserva ao segundo o comentário de que o crítico não entende de teatro.
Quanto à Anatol, o próprio Zé Celso retirou seus óculos em uma apresentação. O encenador
não viu uma violência à pessoa, mas ao retirar os apetrechos de uma personagem – como
óculos e o guarda-chuva – retirava, também, sua máscara.
Retomando, então, o argumento de análise de Privilégio dos mortos, este se faz,
incrivelmente, dolorosamente festivo para seus fãs. Muito dessa percepção deve à
compreensão crítica de que após o golpe os primeiros resultados artísticos “festejaram”, no
espaço reservado ao teatro, uma percepção histórica que não mais correspondia à realidade
social. Parte dessa discussão foi apresentada no ensaio mencionado de Roberto Schwarz,
Cultura e política, e retomado por Nicholas Brown (2007) em Tropicália, pós-modernismo e
a subsunção real do trabalho sob o capital da seguinte maneira:

A meu ver, existem duas formas de avaliação dessas experimentações


completamente ambíguas. O critério da primeira seria brechtiano: a
superação da atitude contemplativa, que caracteriza a corrente dominate da
estética europeia, em favor do valor político da solidariedade de classe.
Dessa perspectiva, a coesão política mínima mantida pelas produções do
Arena é preferível à completa “desintegração da solidariedade” do Oficina.
O critério da segunda é a verdade (no sentido adorniano): a “mônada sem
janelas” que incorpora as estruturas sociais sem necessidade de representá-
las. Sob esse ponto de vista, a abordagem do Arena se torna simplesmente
uma mentira – a continuição de uma ideologia populista de esquerda após a
ilusão que a sustentava ter deixado de fundar em aparências -, enquanto as
produções do Oficina, em toda a sua brutalidade, de fato prevêem a
brutalidade realda da ditadura (e o pior dela ainda estava por vir), bem como
a complacência generalizada diante dela. O ponto aqui não é escolher entre
uma ou outra. Tal, escolha, de todo modo, não poderia ser absoluta, mas
deveria depender da situação política de cada um e de como ela é
interpretada (BROWN, 2007, p.297-298).
134

Vejamos o procedimento de Privilégio dos mortos: há a dura crítica quanto aos


expedientes tropicalistas, encenados de forma “estereotipada”, que ao contrário do que
Nicholas Brown afirma considerando os rendimentos históricos, produz, hoje, no lugar de
uma dessolidarização41 de classe, o seu contrário. Aquele espectador de Ópera dos vivos,
ligado mais à esquerda, não deixa de regozijar-se, assim como fez o público do Teatro de
Arena no show Opinião, ao que é posto em cena (!). Trocam-se os expedientes artísticos para
a permanência do valor político, atualizando pelo resultado a sensibilidade da época e se
acompanharmos a crítica de Nicholas Brown, também esta sensibilidade no presente. Penso
que outros materiais teatrais da época auxiliam essa percepção, do ponto de vista do
espectador quanto à sua posição e também à crítica quanto ao processo cultural levado em
cena. Enquanto ocorre a performance dos cantores no palco, a Militante de esquerda distribui
panfletos à plateia. Em um: Lutar com palavras/parece sem frutos/ Não têm carne e
sangue.../Entretanto, luto, de Carlos Drummond de Andrade; no outro: Há fases em que os
sonhos/não se convertem em planos/nem as intuições em conhecimentos/nem a nostalgia nos
incita/a nos movimentarmos./Esses são maus tempos/para a arte, de Bertolt Brecht.
Durante a encenação de Roda Viva, de Chico Buarque, caracterizada como comédia
musical em dois atos, encenada pela primeira vez no Teatro Princesa Isabel no Rio de Janeiro
em janeiro de 1968, com direção de José Celso Martinez Correa (e não com os integrantes do
grupo) panfletos também eram jogados no público, mas com teor diverso: Todos ao palco!!
Abaixo o conformismo e a burrice – PEQUENOS BURGUESES! Tire a bunda da cadeira e
faça uma guerrilha teatral, já que você não tem peito de fazer uma real, PÔRRA!!! 42 Tentando
tirá-los da passividade burguesa e confrontando-os aos seus valores, o Teatro Oficina
realizava uma proposta agressiva e solicitava seus espectadores no mesmo diapasão. Ora, os
textinhos do terceiro ato não tem nada de agressivo, muito pelo contrário. Privilégio dos
mortos não joga com a “agressividade” tropicalista, joga com o espectador e sua percepção

41
A marca na dramaturgia sobre o processo de dessolidarização é dada na seguinte passagem: logo após a
discussão entre Bebelo e o Ator desempregado, inicia-se a cantiga com a melodia ao fundo: Oi quem tem pemba/
Risca agora/ Maré, maré/ Maré, maré/ Os companheiros/ Vão embora/ Maré, maré/Maré, maré. MILITANTE –
O quadro atual: intervenção nos sindicatos, terror na zona rural, rebaixamento geral dos salários, expurgo nos
baixos escalões das forças armadas, inquérito na universidade, invasão da igreja, economia em alta, garantindo a
expansão da forma mercadoria. Isso não é luta de classes? No palco. Coreografia da Maré dos Parangolés.
Entra Miranda conduzida. APRESENTADOR – Vamos chamá-la. Senhoras e senhores, enquanto funcionem
nossas vísceras, com vocês a voz e a carne de Miranda.
42
Em A reificação do teatro político: Roda viva, Asdrúbal Trouxe o trambone a gênese do besteirol, Rafael
Litvin Villas Bôas coloca em epígrafe o conteúdo da filipeta jogada pelo Oficina. O texto integra a publicação
Revista Cerrados, do Programa de Pós-graduação em Literatura do Departamento de Teoria Literária e Literatura
da Universidade de Brasília, vol 19, n.29.
135

quanto ao momento de inserção decisiva da lógica pós-moderna na cultura brasileira. Roberto


Schwarz (2012) em Verdade tropical: um percurso de nosso tempo apresenta a sugestão de
Nicholas Brown quanto às implicações da vitória da contrarrevolução em 1964-70

com a decorrente supressão das alternativas socialistas, [a vitória golpista]


havia propiciado a passagem precoce da situação moderna à pós-moderna no
país, entendida esta última como aquela em que o capitalismo não é mais
relativizado por um possível horizonte de superação. Em linha com esse
esquema, a bossa nova seria um modernismo tardio, e a tropicália um pós-
modernismo de primeira hora, nascido já no chão da derrota do socialismo
(SCHWARZ, 2012, p.79-80).

A narrativa cênica de Privilégio dos mortos retoma através de seu arranjo a inserção
decisiva, nestes termos, do pós-modernismo:

MANI - Vocês querem o quê? Rimar horário com o operário? Patrão com
exploração? Isso aqui é poesia, é a dimensão estética.

ATOR DESEMPREGADO– (na plateia) Isso não é poesia, é purgante para


as elites!

LUIZ FLÁVIO – É preciso acabar de vez com as imagens de um tempo que


já não nos diz respeito.

CAO – Vamos superar a utopia revolucionária e o luto por suas derrotas.


Unhas e dentes, diante da oportunidade que nos é dada a brilhar dentro do
desencanto.

MANI – Alguém aqui atingiu o socialismo, adentrou na Era de Aquarius,


ascendeu ao reino do Espírito Santo?!

CAO – Precisamos aprender a encarar a ditadura como uma expressão


profunda deste país.

De todo modo, portanto, interrompidas as condições sociais que promoviam uma


ligação outra entre artistas e compromisso social, o compromisso do teatro passa a ser
dirigido, nesse caso, a contestar a “validade” e complacência burguesa de seu público
frequentador, em bases estéticas distintas ao trânsito palco e plateia. A agressividade da
ditadura é dirigida, nos mesmos termos, ao público, burguês, do teatro. Recuperando, em
parte, a significação desse período, recusando entretanto este efeito teatral – da agressão se
passa à felicitação −, Privilégio dos mortos mantém a brincadeira de salão tal qual as grandes
agências nacionais venderam a Tropicália como sinal de época, fazendo coincidir o momento
de produção artística à esfera de consumo do espectador.
136

Num diálogo entre Perene e Bebelo, quando esse deixa o palco, o sinal de um
inconformismo impotente é claro:

PERENE – Ei Bebelo, acho que agora eu entendo, você ainda é um


subversivo, está fazendo agora essa música vulgar porque não pode mais
cantar à porta das fábricas.

BEBELO – Aquilo era uma fase ilusória.

PERENE – Compreendi a estratégia, por dentro da arte comercial veicular


conteúdos da luta social.

BEBELO – Estúpido. A velha política da luta de classes, da esquerda e da


direita acabou. Vai ser como na América, minorias lutando por direitos civis.
Este é o quadro atual.

MILITANTE DE ESQUERDA: O quadro atual: intervenção nos sindicatos,


terror na zona rural, rebaixamento geral dos salários, expurgo nos baixos
escalões das forças armadas, inquérito na universidade, invasão da igreja,
economia em alta, garantindo a expansão da forma mercadoria. Isso não é
luta de classes? (Enquanto narra, é acompanha pela cantiga Maré: Oi quem
tem pemba/Risca agora/Maré, maré,/Maré, maré/Os companheiros /Vão
embora/Maré, maré/Maré, maré).

Claro que o diálogo pretende esclarecer os pontos de vista e também provocar o


espectador e “na superfície assistimos à irritação e à luta entre as personagens, que entretanto
– olhando melhor – estão todas expressando diferentes aspectos de um mesmo processo”
(SCHWARZ, 2012, p.196). A citação, retirada da análise que Roberto Schwarz faz do ensaio
Teatro ao sul de Gilda de Mello e Souza sobre a peça A moratória de Jorge Andrade cabe
perfeitamente à caracterização dos personagens de Privilégio dos mortos. A ensaísta ainda
define na peça de Jorge Andrade, que tematiza as mudanças estruturais no Brasil de 1930
através da decadência econômica de um grande proprietário de terras e os conflitos familiares
gerados pela nova situação econômica, que “pai e filho não se opõem propriamente, antes se
complementam: são a mesma personagem tomada em dois momentos diversos da história do
grupo” (p.138). Difere da peça de Jorge Andrade a realização num mesmo cenário, sem o
artifício de dois planos, dado em Ópera dos vivos pelos primeiros atos, o que embaralha,
dramaticamente, e ao mesmo tempo acentua, narrativamente, o processo. Assim como Bebelo,
como a figura que carrega as marcas do passado, ele também artista do projeto coletivo
emancipatório, quando era possível mudar profundamente a ordem das coisas (primeiro ato)
percebe que a atualidade não mais corresponde e tenta se salvar; continuou compondo,
apresentando-se em shows, fazendo novas parcerias. O Ator, num diálogo com a Militante,
137

ainda não fez essa “passagem”, mas sabe que se não trabalhar para a televisão será esquecido,
não terá outra possibilidade de trabalho. Situação terrivelmente dolorosa para os artistas sem
lugar nesse novo mundo, agarrado por outros que viam nele sua nova tarefa. Como Júlia,
alguns artistas encaminharam-se para a luta armada, viveram clandestinos, como a Militante,
outros se adaptaram forçosamente e outros, ainda, confortavelmente. Como a narrativa cênica
irá demonstrar, a engrenagem começa a operar prescindindo da consciência dos personsagens
dando sinais de sua impotência; após esse diálogo, o cantor retornará à cena apenas no final
do ato, dando voz à sua posição. Ficam no palco Miranda e Os Intactos, esses produtos da
indústria cultural e da lógica pós-moderna.
A via mais facilitada para o espectador é dirigida à crítica à engrenagem ideológica
neoliberal e, assim como ocorreu nos dois primeiros atos, Privilégio dos mortos encena as
contradições da época para fazer trabalhar a ideologia representacional. Encena a
ambiguidade do ponto de vista do espectador de hoje (!) do “aderir, criticando; criticar,
aderindo” e do ponto de vista da cena, nos termos de Schwarz em Notas sobre vanguarda e
conformismo43: produzir consumindo, consumir produzindo, (...) o aspecto-mercadoria passa
para o primeiro plano e tende a governar o momento da produção (p.49). O show feito para a
transmissão televisiva é a apresentação do processo de produção da mídia da brincadeira de
salão – lembro de todos os apetrechos dos Intactos e a inoperância e impotência das
oposições – e a máquina de produção de ídolos que se traduz pelo tratamento caricatural.
Em A compra do latão, Brecht (1999) indica algumas possibilidades de utilização da
caricatura pelo teatro épico: a caricatura é a forma em que aparece a crítica na
representação que pretende a identificação. Nela o actor faz a crítica da vida, e o espectador
identifica-se com a sua crítica e avalia que o procedimento avança quando as caricaturas
aparecem então como máscaras num baile de máscaras representado no palco, mostrando o
ato de caricaturar.

Uma vez que cada manifestação de cada figura é acentuada, é também


necessário que a representação flua, progrida, se movimente em frente (mas
sem arrastar o espectador), que sejam acentuados também o decurso, as
relações e os processos subjacentes a todas as manifestações. Uma
verdadeira compreensão e uma verdadeira crítica só são possíveis quando se
podem compreender e criticar tanto o particular como o geral, e também,
para cada situação, as relações entre o particular e o geral. As manifestações
dos homens são necessariamente contraditórias; é portanto necessário
dispormos da contradição por completo (BRECTH, 1999, p.112).

43
Agradeço a professora Iná Camargo Costa pela sugestão de leitura do artigo de Roberto Schwarz.
138

Em Privilégio dos mortos, a lógica da indústria da cultura, afinal trata-se de um show,


agride Miranda e tudo o que ela representa (projeto coletivo derrotado, impulso dialético de
superação) e festeja os performers; os performers são colocados por dentro da situação
dramática conscientes de sua função: diversão é o nosso negócio. Caberá ao espectador a
percepção da contradição dada pelo código cênico cínico dos performers e pelo registro
sincero de Bebelo. O efeito de tal procedimento no espectador, que se identifica com
determinado personagem dada à provocação inicial da ação dramática (o diálogo entre Bebelo
e Ator desempregado) que tem seu valor ao demonstrar a impotência do discurso no
encadeamento da ação – afinal, o show, o aparelho não se importará muito com o debate dos
artistas − pôde ser sentido através das críticas especializadas. À época da estreia da peça
Bárbara Heliodora44 fez o seguinte comentário:

Composto por quatro unidades independentes, o mais recente espetáculo da


Companhia do Latão, “Opera dos vivos”, é voltado para a política e a crítica
social, como todo o seu trabalho desde que o grupo foi criado, há mais de
uma década. O primeiro segmento é o mais bem armado, e reflete a imensa
influência do teatro épico de Erwin Piscator e Bertolt Brecht sobre sua
concepção cênica, sua estrutura e seu conteúdo, composto fielmente sobre o
modelo dos Lehrstücke de Brecht, com a ação situada no período final do
conflito de 1914-18 e no pós-guerra, com ênfase na politização. Se o
resultado é um tanto rígido, isso é parte do modelo em si. A segunda etapa,
em que se realiza um filme, teria intenções semelhantes, mas é muito menos
clara e, além do mais, depende de um domínio ainda precário da linguagem
cinematográfica, sofrendo por não alcançar a qualidade da cena anterior. O
mais fraco dos quatro elementos componentes é o terceiro, que busca
ambiente e roteiro circenses e, na verdade aquele em que o conteúdo político
se apresenta de forma mais fraca. O último episódio volta a uma posição
crítica clara, porém em tom de ressentimento, com alvo específico que
fragiliza o que seria o conceito básico que orienta o grupo.

Comentário elucidativo do quanto está distante o raciocínio dialético na crítica


brasileira, e que é muito revelador para a composição geral da peça. O discurso altamente
ideologizado dos personagens impulsiona e tem alto valor de mobilização para o espectador.
O terceiro ato, “circense”, é aquele em que o espectador ri e diverte-se com o conteúdo
explicitamente ideológico e ao confrontar-se com a sua identificação, com um pouquinho
mais de trabalho, percebe àquilo que lhe cabe. O ato mais ideologicamente provocativo é
aquele que está interessado, à maneira brechtiana, de dividir o público, fazendo-o de um ponto
de vista moral, deixando evidente, por um lado, o antagonismo de classe, e por outro, para
àqueles que se identificam à esquerda, o gosto amargo de um “todo coletivo” – o que já

44
A crítica de Bárbara Heliodora foi publicada no jornal “O Globo” em 18 de outubro de 2010.
139

observamos no primeiro ato – que se limita à autocelebração de uma “vitória”, entretanto,


ideológica.
Na análise da caricatura tropicalista, a dualidade arcaico e moderno, nasce “dessa
tendência de superar nosso subdesenvolvimento partindo extamente do elemento ‘cafona’ da
nossa cultura, fundido ao que houvesse de mais avançado industrialmente, como as guitarras e
as roupas de plástico”, segundo Caetano Veloso (apud FAVARETTO, 1996, p.24); os
diálogos mais explicativos tentam desmonstrar a caricatura programada tropicalista de então,
o que implica numa intenção de tornar familiar o debate da época pelo seu discurso, revelando
“que progresso técnico e conteúdo social reacionário podem andar juntos” (SCHWARZ,
2008, p.47). É com notável consciência, que fez parte do discurso tropicalizado, que o ex-
artista-de-esquerda-agora-músico-tropicalista, Bebelo, fala da situação geral e de seu
propósito ao final do ato: são mais frequentes do que se imagina os casos em que ser
mercadoria salva!, que em muito lembra o discurso de Gilberto Gil sobre a relação do
tropicalismo com a indústria da canção

na verdade, eu não tinha nada na cabeça a respeito do tropicalismo. Então a


imprensa inaugurou aquilo tudo com o nome de tropicalismo. E a gente teve
que aceitar, porque tava lá, de certa forma era aquilo mesmo, era coisa que a
gente não podia negar. Afinal, não era nada que viesse desmentir ou negar a
nossa condição de artista, nossa posição, nosso pensamento, não era. Mas a
gente é posta em certas engrenagens e tem que responder por elas.(GIL apud
FAVARETTO, 1996)45

Assim como ocorreu nos outros atos, é possível uma leitura de Privilégio dos mortos
como ato independente, que age pela caricatura para dar contornos precisos à polarização
ideológica dos artistas e peça articulada que tem nas condições da sociedade do espetáculo
sua “forma exemplar”. Na performance dos Intactos, com Bebelo exibindo seu corpo magro
para o público, Cao narra: A única chance do subdesenvolvido é negociar o espetáculo de sua
miséria. Era criança, quando chegou em minha cidade o faquir Elói. Num armazém de secos
e molhados, ele exibia a glória de seu corpo desprovido de carnes. E sempre me pareceu de
genial desfaçatez que, num país de famélicos ele cobrasse, ainda que pouco e de poucos, pelo
espetáculo de sua fome, deliberada.
No ato performático enterra-se a projeto coletivo do início da década de 60 e sob seus
escombros nasce a nova realidade, sem nenhuma pretensão de síntese, “que se reproduz em

45
Depoimento de Gilberto Gil em Historia da Música Popular Brasileira, São Paulo, Abril Cultural, 1971,
fasc.30, p.10. Apud Favaretto, p. 21.
140

lugar de extinguir” (SCHWARZ, 2008, p.91). Fixa a imagem reificada, que registra a
condição de periferia do capitalismo, que mesmo Caetano Veloso tem consciência: “era a
não-explicação do inexplicável” (apud Favaretto, p.80), “operando com os resulados do golpe
de direita, indicando o escândalo, de forma interessante e importante, mas (que) não buscava
formas de superação”, segundo Roberto Schwarz em trecho de entrevista publicado no
programa da peça. Segundo Caetano Veloso (2005) a tropicália

derivou seu nome de uma instalação do artista plástico Hélio Oiticia,


inspirou-se em algumas imagens do filme Terra em transe, de Glauber
Rocha, dialogou com o teatro de José Celso Martinez Corrêa, mas centrou-se
na música popular. A canção-manifesto “Tropicália”, homônica da obra de
Oiticica, termina com o brado “Carmen Miranda da-da-dada”. Tínhamos
descoberto que ela era nossa caricatura e nossa radiografia. (VELOSO, 2005,
p.75)

Os reconhecidos avanços comercialmente estéticos do movimento tropicalista da


década de 60 em busca da modernidade deslocaram os temas para os processos construtivos
da canção, “numa relação entre fruição estética e crítica social” (FAVARETTO, 1996).
Celso Favaretto em Tropicália, alegoria, alegria, desenvolve a argumentação a
oposição entre música de protesto (que pode ser pressentida, na peça, pela presença de
Miranda) e canção tropicalista nos seguintes termos:

Surpreende-se na canção de protesto uma separação da forma e conteúdo;


não se percebem nela exigências quanto à linguagem para que se supere a
distância entre intenção social e realização estética; esta distância é suprida
pelo envolvimento emocional do ouvinte (...) Em suas intenções
conscientizadoras, a música de protesto não passa de fala-para-o-operário.
Ao falar da miséria proletária, esses artistas, através de um jogo de espelhos,
afirmam-se em sua condição, de modo que a música resulta em mecanismo
de compensação (...) A este fenômeno pode-se aplicar a expressão de
Caetano Veloso: “folclorização do subdesenvolvimento” (...) Essa
caracterização da música de protesto ressalta por oposição a atitude de
ruptura do tropicalismo. Este, superando a dicotomia forma-conteúdo, a
intencionalidade e a expressividade, instaura uma nova forma de canção
ainda não praticada no Brasil (FAVARETTO, 1996, p. 128-130)

Nos termos de Caetano, o tropicalismo não merece a importância que lhe atribuem.
Em Diferentemente dos americanos do norte 46, conferência de Caetano Veloso realizada em
26 de outubro de 1993 no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, o músico busca
construir um discurso revisor quanto à perspectiva crítica, sedimentada, do viés pessimista do

46
Agradeço o prof. Walter Garcia pela sugestão de leitura do referido artigo.
141

tropicalismo, reafirmando como uma verdade da época – nós, os tropicalista, éramos


pessimistas, ou pelo menos namoramos o mais sombrio pessimismo (p.50) – porém com
resultados estéticos que escaparam, também à época, de sua própria percepção. Caetano,
então, relata um encontro ocorrido em 1969 em Portugal, a convite de um amigo, Roberto
Pinho, a um “alquimista”, responsável pelos cuidados de um castelo medieval de Sesimbra. O
amigo solicitou que cantasse Tropicália ao português e para a surpresa do músico, “tudo na
letra era tomado ao pé da letra e valorado positivamente (...) Nenhum traço de ironia era
notado, nenhum desejo de denúncia do horror que vivíamos então” (p.52). Na imagem
propositadamente paradoxal que constrói Caetano sobre sua persona, em seguida afirma

Naturalmente, eu entendi que ele estava certo de conhecer melhor as


intenções da minha composição do que eu. Isso não era novidade para mim:
eu já sabia então que as canções têm vida própria e que outros podem
revelar-lhes sentidos de que seu autor não teria suspeitado. E, mais que isso,
eu não era inocente do fato de que toda paródia de patriotismo é uma forma
de patriotismo assim mesmo. (VELOSO, 2005, p.53)

Em seu depoimento segue a lembrança de que o interesse que unia Roberto Pinho e o
suposto alquimista era o professor português Agostinho da Silva, responsável pela
disseminação de um “sebastianismo erudito de inspiração pessoana” (p.54). Reproduzo o
trecho para estruturar o argumento:

Não foi sem pensar neles que eu inclui a declamação de um poema de


Mensagem, de Fernando Pessoa, no happening que foi a apresentação da
canção “É proibido proibir” num concurso de música popular na televisão
em 1968. Um dos pontos mais ricos em sugestões para o estudo do
tropicalismo foi essa apresentação de uma composição primária em que eu,
por sugestão do empresário Guilherme Araújo, repetia a frase que os
estudantes franceses do maio de 68 tomaram aos surrealistas, acompanhado
do conjunto de rock mais moderno do Brasil de então (e o mais e melhor
influenciado pelos Beatles) – os Mutantes -, com uma introdução planejada
pelo músico erudito Rogério Duprat inspirada na música de vanguarda. Eu
usava uma roupa de plástico brilhante verde e preta e colares de correntes e
tomadas, e meu cabelo parecia uma mistura do de Jimi Hendrix com o dos
seus acompanhantes ingleses no Experience; no meio do número, eu gritava
o poema de Pessoa:

Esperai! Caí no areal e na hora adversa


Que Deus concede aos seus
Para o intervalo em que esteja a alma imersa
Em sonhos que são Deus.
Que importa o areal e a morte e a desventura
Se com Deus me guardei?
É O que eu me sonhei que eterno dura,
É Esse que regressarei.
142

Mas eu não tinha embarcado na viagem desses sebastianistas, bem como


estudioso nem como, digamos assim, militante. Apenas me parecera
interessante que houvesse gente falando no Reino do Espírito e numa futura
civilização do Atlântico Sul numa época em que todo mundo falava em
mais-valia e nas teses científicas de transformar o mundo através da classe
operária. Essas coisas me atraíam não por místicas (tenho um espontâneo
horror de misticismo), mas por excêntricas. (VELOSO, 2005, p.55)

O excêntrico (de) Caetano buscava produzir uma distinção identificatória ao que ele
reconhecia como uma esquerda festiva boba e buscando salvar (!) àqueles que ele considerava
bobos mas ao menos artísticos, de sua própria derrocada, parodiava-os: “nós queríamos trazer
a tudo que disse respeito à música popular a luz da perda da inocência e, para isso, fizemos
muitas caretas e usamos muitas máscaras” (VELOSO, 2005, p.49). Após um grande apanhado
de referências, a palestra retoma o tom

Depois de tanto falar, e com tanta pose, fica-me faltando explicar por que
disse ter sido ou ser o tropicalismo superestimado (...) Uma vez,
respondendo a uma minha provocação irresponsável, José Guilherme
Merquior nos chamou, a mim e a todos os componentes do mundo do
espetáculos, de subintelectuais de miolo mole. Sempre achei essa expressão
bem cunhada. A meu ver ela não perde sua força cômica por eu ser capaz de
escrever assim. Mas o que me leva a reafirmar que houve uma
superestimação do tropicalismo é a certeza de que, apesar da boutade de
Merquior, há um consenso hoje, no Brasil, a respeito da grandeza do que
fizemos quando nada fizemos além de chamar atenção para o fato que temos
um dever de grandeza. (VELOSO, 2005, p.72)

Ora, não é do “dever de grandeza” que Privilégio dos mortos tece sua crítica,
reforçadora do mito tropicalista – O mytho é o nada que é tudo./O mesmo sol que abre os
céus/É um mytho brilhante e mudo/O corpo morto de Deus,/Vivo e desnudo (Fernando
Pessoa, Mensagem) – na qual a exibição do corpo magro de Bebelo deixa evidente a crítica
quanto à mitificação artística. Certo que o ato acentue, entretanto, o lugar privilegiado da
canção como movimento estético que aglutinou o debate pós-64 relativizada pelo sentido
político de uma nova expressividade.
E por motivos óbvios, o próprio Caetano abre mão em sua autobiografia, Verdade
tropical, do “impulso negativo” da Tropicália. Roberto Schwarz, no ensaio já citado, conclui

Escrito com distância de três décadas, em plena normalização capitalista do


mundo nos anos 1990, Verdade tropical recapitula a memorável
efervescência dos anos 1960, em que o tropicalismo figurava com destaque.
Bem vistas as coisas, a guerra de atrito com a esquerda não impediu que o
143

movimento fizesse parte do vagalhão estudantil, aanticapitalista e


internacional que culminou em 1968. Leal ao valor estético de sua rebeldia
naquele período, Caetano o valoriza ao máximo. Por outro lado,
comprometido também com a vitória da nova situação, para a qual o
capitalismo é inquestionável, o memorialista compartilha os pontos de vista
e o discurso dos vencedores da Guerra Fria. Constrangedora, a renúncia à
negatividade tem ela mesma valor de documento de época. Assim, a melhor
maneira de aproveitar este livro incomum talvez inclua uma boa dose de
leitura a contrapelo, de modo a fazer dele uma contraposição histórica: de
um lado o interesse e a verdade, as promessas e as deficiências do impulso
derrotado; do outro, o horizonte rebaixado e inglório do capital vitorioso.
(SCHWARZ, 2012, p.109-110)

O recurso caricatural de Privilégio dos mortos, antes de se constituir pela negação dos
expressivos resultados estéticos do tropicalismo de 67 e 68 se aproxima dos expressivos
resultados mercantis no passado e, também, no presente e se faz necessária sua leitura, assim
como observou Roberto Schwarz sobre o livro Verdade tropical, a contrapelo – material
estudado pela Companhia durante o processo de ensaio, como salientou Helena Albergaria.
Assim, a ironia do ato, que tem sua verdade explicitada em relação ao projeto anticapitalista
de Ópera dos vivos, se assemelha a uma motivação identificada por José Antonio Pasta Júnior
sobre a Ópera dos três vinténs, de Brecht.

Brecht trabalhou deliberadamente na Ópera uma superposição entre o que


chama caráter culinário do teatro e a crítica desse mesmo caráter. Isto
aparece em suas “notas sobre a Ópera dos três vinténs” como uma proposta
de apresentar ‘uma espécie de relatório do que o espectador deseja ver na
vida do teatro’ e assim ir ao encontro da demanda do espectador e “saciá-
la”, mas, ao fazê-lo, levando-a à liquidação, à hipérbole, à derrisão, ao
esgotamento; em suma, criticando-a ao mesmo tempo que a satisfaz. (p.61)

O “escandaloso”, e programado, caricatural do ato, recupera para o momento de


produção o inventário do gosto-dramático do público, propondo-se a criticá-lo, incorporando
como um elemento essencial seu caráter de mercadoria. Se o espectador cair na tentação de
tentar identificar os personagens no seu correlato histórico, buscando os traços pessoalizados
dos músicos tropicalistas, é garantido o reconhecimento, e julgamento, de um ponto de vista
moral, sobre as opções “ambíguas” dos artistas de esquerda após o golpe de 64, reforçando
desse lado, “o modo como as pessoas aprenderam a ver e a reagir”, para lembrar Raymond
Williams. Nesse caso, a “alegoria tropicalista”, recurso que se assentou como regra no campo
das artes no Brasil, de crítica anticapitalista, é saboreado pelo espectador, a partir de sua
expectativa dramática. Assim é que o uso da ironia – que foi tão bem assimilada pela
144

indústria da cultura, como salienta Vladimir Saflate47 − invade o ato na última fala: se você
não juntou as partes até agora não desista. Tudo fará sentido em: Morrer de pé. Não se
preocupem com o carro no estacionamento, não se preocupem com o horário do metrô, não
se preocupem a radial alagada, não se preocupem com a fome, com a distribuição de renda
(os atores saem). Nesse sentido, os diálogos abertos pelo Privilégio dos mortos se dão ora
com o espectador que observa e interage com o show, consumindo-o em seu momento
explícito de produção, num movimento de prazerosa desresponsabilização (afinal não se
preocupem com nada, nem com a fome ou a distribuição de renda; afinal a contradição está aí
explícita), como elemento que só pode ser pensado a partir dos expedientes cênicos
engendrados pelo próprio ato, ordenado pela brincadeira programada e pela liberdade nova
(lembro que o distanciamento e a textura em preto e branco do filme Tempo morto se opõe ao
colorido e engraçado caricatural de Privilégio dos mortos) e na confluência com os atos
anteriores e o último e quarto ato.
Ressoa em Privilégio dos mortos a desobrigação do artista e da nova liberdade trazida
pelo tropicalismo. Para o primeiro, os Intactos constituem um núcleo muito divertido,
inocente e inocentado pela nova conjuntura, que por seu lado faz com que a plateia se divida
quanto a um suposto revanchismo. Na articulação com os atos anteriores, de tematização
sobre a relação entre artistas e povo, ou demandas populares, e do tenso envolvimento entre
artista e política que resultou no desaparecimento de Júlia e no golpe, o espectador também
vivencia uma nova liberdade − algumas plateias vaiam e jogam papeizinhos no palco. Tudo é
permitido, do anunciado espancamento dos atores ao riso do espectador e nisso mesmo a
plateia “politicamente engajada” que se vê identificada à crítica quanto aos “personagens
tropicalistas” é tratada como cúmplice da derrota sofrida.
Em Sociedade mortuária a consciência dos personagens entra em acordo com o
avanço da narrativa cênica, coerente entre àquilo que representam e a estória que narram, o
enunciado formal corresponde ao enunciado do conteúdo; em Tempo morto, as forças em luta
se abrigam na textura alegórica da narrativa vertical, ao mesmo tempo em que expõe seu
conteúdo ideológico; a partir do terceiro ato, a forma representacional conduzirá o enunciado
do conteúdo, ou seja, os personagens irão, aos poucos, introjetar a ideologia da forma em seu
comportamento, e o discurso passa a ser cada vez mais ideologizado. Em Privilégio dos
mortos a automação ainda é recusada por Miranda e problematizada por Bebelo, em Morrer
de pé, entretanto, é devastadora e deixa apenas “vestígios humanos”.

47
SAFLATE, Vladimir. Cinismo e falência da crítica. São Paulo: Boitempo, 2008.
145

Muito do exposto sobre a análise de Ópera dos vivos, como dito anteriormente, exige
um espectador interessado. O espectador solicitado por Brecht, “que aprecia ver o homem em
situações que não resultam lógicas e claras à primeira vista” (1970a, p.56), teve à sua
disposição materializações de compreensão e distanciamento crítico, cenas em que pôde
comparar os pontos de vista dos personagens, de ligação com um mundo e intenções
derrotadas, estranhamento de formas e procedimentos culturais habituais. No desencontro, nos
atritos encenados, a articulação dos atos e das narrativas cênicas buscou representar a
trajetória da cultura brasileira de forma clara, com calma épica. Foi recuo necessário para que
a negativização do último ato não fosse apanhado como mera reiteração de uma tese
conhecida, tese anunciada pela primeira fala da Narradora:

No tempo em que as mercadorias desenvolveram alma, conheceram também


o medo da morte. Música épica. (entra trilha Fassbinder ao piano) Ato final
da Ópera dos Vivos. Um teatro de nômades, de gente em trânsito para gente
que vagueia, feito para um tempo que é dinheiro. Ele será breve,
reconhecível, espetáculo da mutilação intelectual. Não deixará ninguém
doente, porque estamos em fuga, de sintoma para sintoma 48.

O homem tem que se desumanizar para continuar vivo. Simples. Não há nada de novo.
Na operação, Morrer de pé é aparentemente dispensável por representar questões
consensualmente comuns, de integração entre o trabalho alienado da indústria televisiva,
relações de trabalho hierarquizadas, empregos subalternos destinados aos negros. Dito no
início deste estudo, o último ato articula uma ideia da peça: o trabalho de artistas, mas é claro
que Morrer de pé é o mais vazio e mais lúcido quando se verifica a impotência das
consciências desalienadoras em um momento de total alienação. O ponto de vista do Latão
sobre a narrativa cênica chega ao mais alto nível de solicitação dos atores no último ato: o tom
irônico de algumas falas, as nuances entre a representação e a narração crítica não se faz
através de ferramentas clássicas, mas na modulação de gesto e fala. Exige-se dos atores que a
contradição entre o que está sendo dito e encenado e o ponto de vista crítico sobre o material
se dê para além dos grandes engenhos da dramaturgia. Apuro técnico que advém do trabalho
dos atores como, também, dramaturgos e demonstração, em cena, de que o teatro épico não é
um estilo representacional, mas um trabalho coletivo de composição. Escreve Brecht em
Diário de trabajo, em 25 de dezembro de 1952

48
O texto é retirado dos Diários de Trabalho de Bertolt Brecht, nos anos 1942, quando estava exilado nos
Estados Unidos e registra seu grande desconforto com a vida estadunidense.
146

visto en forma objetiva, eso que yo he llamado actuación épica es una forma
de actuar en la cual la natural contradicción entre el intérprete y el personaje
teatral representado por él se expresa de una manera muy precisa. entra em
juego la crítica (social) del intérprete respecto a la figura que él, por cierto,
debe materializar de manera cabal. porque las opiniones, las pasiones, las
experiencias y los intereses del personageje no son los del intérprete, y éste
también debe manifestar los suyos en su representación. (!eso ha sucedido
siempre, en forma espontanea, aunque por lo general insconsciente!).en este
aspecto, como en tantos otros, la introducción de la dialétictica en el teatro
ha provocado una evidente conmoción, aun en quienes admiten la dialéctica
en otros terrenos. (BRECHT, 1979, p.329)

Em Morrer de pé o espectador se dirige a outra sala – não somente há uma disposição


diferenciada, mas em virtude dos recursos cênicos do quarto ato, é necessário seu
deslocamento. O cenário representa um estúdio de televisão. Interessante notar que o público
é disposto em ambos os lados, conectados pela grande tela ao fundo da cena. O corredor
produzido por essa disposição, espaço da representação, confronta o público, produzindo uma
sensação de que somos observadores privilegiados nos bastidores de um programa televisivo.
Se nos momentos anteriores ao golpe civil-militar havia alguma forma de vivência
coletiva para que as transformações exigidas em praça pública fossem efetivadas, tendo
como suporte articulador o empenho de intelectuais e artistas, os sintomas não deixam
dúvidas de que o presente não mais carrega tal percepção.
A teatralização do último dia de gravações de um caso especial sobre a relação
amorosa entre uma estudante, irmã de uma militante torturada, e um delegado é entrecortada
por cenas de outros programas televisivos. Perene, o Delegado, propõe uma mudança para o
fim de seu personagem na minissérie; há um embate entre a recusa do suicídio como final
dramático, que se vale também da experiência do ator militante durante a ditadura militar, e a
incompatibilidade de mudança em virtude do roteiro pré-estabelecido. A incompreensão da
equipe de filmagem não se dá por uma opção consciente das questões levadas à cena, a
ditadura e a possibilidade de um torturador se arrepender de seus atos, que no caso televisivo
teria até respaldo por uma verossimilhança dramática bem construída − imagem que pelo
outro lado reorienta o romance entre Júlia e o banqueiro Paulo dentro do filme
“cinemanovista” do Latão do segundo ato, um exemplo por dentro das possibilidades de
representação e ainda retorna, tematicamente, à crítica quanto a realidade tropical que
apresenta os conflitos de forma insuperável que se esboçou no terceiro ato −, mas pela linha
de produção que deve ser mantida como engrenagem da produção televisiva.
A possibilidade de compreensão dos sentidos do último ato é apanhada em contraste
com as representações anteriores:
147

NARRADOR – Oh grande tela, revelai seus segredos intactos. Belo neste


mundo é tudo o que pode ser reproduzido pela câmera. Que se veja uma
gigantesca torre e se intua seus sinais invisíveis convertendo-se em ideais no
céu da cultura. Inicia-se a jornada de trabalho na maior emissora do país: a
TV Todo. (os atores preenchem o espaço segundo suas funções, tal como
estátuas clássicas) Maquinistas, maquiadores, carregadores de cenário,
enroladores de cabo, rebobinadores de fitas magnéticas, seus músculos, suas
veias e pelos eriçados nos aparecem como numa batalha campal. Que se
vislumbre mais ao fundo a estrutura de uma cozinha industrial. Abrem-se as
portas de uma grande geladeira frigorífica. Na cozinha, reparem, uma mulher
observa a própria imagem refletida na superfície de numa panela de aço
inox.

A batalha campal, suspensa, do fim primeiro ato, de camponeses em luta por melhores
condições de trabalho, foi aprisionada pela imagem (estátuas clássicas) do mundo da
mercadoria. Claro está que a maior emissora do país, a TV Todo, é a TV Globo; alusão feita
no segundo ato, Tempo Morto. Na trama do filme realizado pelo Latão, a ditadura militar e a
formação de um conglomerado midiático não deixam dúvidas quanto aos elementos que
promoveram o sucesso golpista: dinheiro estrangeiro para fortalecimento do bloco capitalista
na América do Sul e conservadorismo nacional diante da ameaça vermelha. Não há lugar para
todos em uma sociedade capitalista e através da peça arma-se uma consciência histórica sobre
as anomalias sociais do país como elemento indispensável à expansão capitalista. A memória
recuperada no primeiro ato é o esquecimento necessário no quarto. O colapso da
modernização, como bem salientou Maria Elisa Cevasco (2012) devastador no campo da
cultura, institui uma “linha de produção” que engole qualquer debate criativo, resquícios de
utopia, possibilidades de mudança.

o comentário mais sugestivo, porque deixado inteiramente a cargo do


espectador que precisa atar os fios da peça, é o da presença de D. Elia,
personagem feita pela mesma atriz do primeiro ato. Agora D. Elia trabalha
na cozinha e é humilhada pela responsável pelas refeições. A mesma atriz
faz a figurante da cena do suicídio. Em resposta ao técnico que lhe pede que
passe seu texto para testar o aparelho de som ela diz: “Eu não tenho fala”. A
distância que move o que nos disse D. Elia no primeiro ato dá mais uma
medida do rebaixamento das possibilidades abertas aos de baixo em nossos
dias. Mas é a atriz que faz Elia que tem a última frase da peça. Ela nos conta
que a moça da cozinha espera por um ônibus que não vêm possivelmente por
ter sido queimado em protestos noticiados pela TV. Ela lembra uma canção
antiga, que fecha a peça: Mesmo sem vento/O remo empurra/Contra a
maré/A maré/Canoa boa/A onda cruza/Contra a maré/A maré. (CEVASCO,
2012, p.148)
148

No primeiro ato a personagem Élia fala de seu processo de alfabetização - eu digo que
o que eu aprendi já mudou o meu corpo, que os meus olhos já fazem falar as letras, que o
destino do meu esforço me pertence enquanto seguirmos juntos, como uma forma de
resistência à ameaça dos donos da terra. Maria Elisa confronta essa perspectiva aos dados de
pesquisa de Walquíria Leão Rego sobre camponesas nordestinas que receberam o bolsa-
família:

Maria Lucia Matias da Silva, casada e mãe de 7 filhos e com marido


desempregado, uma das 12 milhões de chefes de família que recebem o
auxílio governamental fala dos seus benefícios: “Acho ótimo. Ave Maria, eu
acho muito bom. Porque é uma ajuda pra gente. E para muitos que
necessitam. Para mim foi muito bom ter esse dinheiro. Se acabar isso, não
tem mais jeito da gente viver nesse mundo. É uma ajuda grande”. Desse
ângulo fica evidente o rebaixamento dos horizontes. (CEVASCO, 2012,
p.140)

Os atos, na composição dialética porque concentram contraditoriamente e buscam


sintetizar as experiências artísticas brasileiras, são montados por uma estrutura que revela o
processo de nossa formação cultural na mesma chave de análise da acumulação capitalista e
seu processo desigual e combinado, montando e desmontando a ideologia que lhe serve de
antagonista. Se como disse Michael Löwy em A teoria do desenvolvimento desigual e
combinado, não foi possível a discussão de tal consideração teórica, nesses termos, em Marx
pois ele não tinha condições de analisar a expansão mundial do capital

Pode-se encontrar, no entanto, em alguns de seus escritos, pistas


interessantes sobre a maneira pela qual uma forma de produção dominante
exerce a sua hegemonia sobre as outras. É o caso, notadamente, de uma
célebre passagem da Introdução à crítica da economia política (1857): “Em
todas as formas de sociedade, é uma produção específica que determina
todas as outras, são as relações engendradas por ela que atribuem a todas as
outras o seu lugar e a sua importância. É uma luz universal onde são
mergulhadas todas as outras cores e que as modifica no seio de sua
particularidade. É um éter particular que determina o peso específico de toda
a existência que aí se manifesta”. (LÖWY, 1995, p.73)

Nos termos da encruzilhada de se produzir teatro crítico na esfera capitalista, quais


procedimentos estéticos se valem os artistas para representar a realidade e como, esses
procedimentos, revelam a própria compreensão da esfera ideológica se seus valores e
importância são determinados por essa produção?
No quarto ato, a forma fria de entusiasmo e de ênfase brechtiana, que de início
procura afastar qualquer sentido fatalista ao que se produzirá em cena, sublinha a questão: os
149

ideais no céu da cultura apresentam o grau máximo de acumulação de capital, tornadas


imagens, conforme a análise Guy Debord sobre a sociedade do espetáculo, pois belo nesse
mundo é tudo o que pode ser reproduzido pela câmera. Na situação atual, a desumanização
das peças da engrenagem televisiva reafirma os limites anteriormente arrolados e representa
as relações fetichizadas. Num momento de inocente desmascaramento da lógica capitalista,
apresentam-se os bastidores de gravação de um programa infantil, Jardim das finanças, dando
potência à crítica quanto ao aspecto reificador de graça irônica dos mecanismos de
“formação” capitalista para o público, o consumidor potencial. A apresentadora do programa
se entusiasma por estar contribuindo: é como se nos tivéssemos uma responsabilidade moral:
preparar os homenzinhos para a realidade do mercado de capitais, muito diverso da
responsabilidade da Professora da peça camponesa: Eu sou uma professora, devo alfabetizar
homens adultos. Mas antes de ensinar o alfabeto, quero que entendam que são sujeitos, que
estão no mundo e com o mundo, aprendendo com ele e transformando-o com seu trabalho.
Quando do barro fazem um vaso, transformam a natureza, e quando têm a necessidade de
enfeitá-lo com flores continuam a transformá-la, produzindo cultura. Por isso, o vaso, as
flores, as letras têm de ser de todos) e suas ferramentas de composição do mundo.
A potência de todo ato está em formalizar o impasse, os percursos de representação
no esforço de alcançar o movimento do real. O realismo da peça é operado pelo
estranhamento da fragmentação, “buscando um meio mais totalizante de ver o fenômeno”
(JAMESON, 2010, p.261). O salto no último ato se faz a partir da aproximação com os atos
anteriores que jogam o espectador para dentro da montagem, pois não há como não comparar
o imediatismo político que impregna a composição artística e social nos diálogos do primeiro
ato e a falta de propósito no mundo atual. Um novo realismo, que parece ser a resposta
estético-produtiva do Latão, na acepção dada por Jameson (1999) que desconfia do hábito da
“nova” estética em “recompor uma razão dessacralizada ou desumanizada” (p.262). A
operação lembra muito as considerações de Jameson (2010)

Uma vez que a estrutura fundamental da “totalidade social” é um conjunto


de relações de classe- uma estrutura antagônica de tal modo que as diferentes
classes sociais definem a si mesmas em termos daquele antagonismo e por
oposição umas em relação às outras – a reificação necessariamente
obscurece o aspecto de classe daquela estrutura e é acompanhada não apenas
por anomia, mas também por uma crescente confusão com relação à
natureza ou mesmo à existência de classes sociais, o que pode ser observado
em larga escala em todos os países capitalistas “avançados” hoje. Se o
diagnóstico estiver correto, a intensificação de uma consciência de classe
será menos uma questão de exaltação populista e operária de uma classe
150

específica por ela mesma, do que uma questão de reabertura enérgica de


acesso a um sentido de sociedade como totalidade e de reinvenção das
possibilidades cognitivas e perspectivas que permitem ao fenômeno social se
tornar mais uma vez evidente, como momentos de uma luta entre classes.
(JAMESON, 2010, p.262)

O quarto ato registra, porque o espectador pôde acompanhar o desenvolvimento


histórico, precisamente a totalidade histórica. Logo após o Narrador, na cena seguinte,
quando toda equipe está posicionada, o Diretor da minissérie pergunta: estamos por quem? A
resposta pode se abrir, de um lado, caso a pergunta seja interpretada como “estamos
esperando por quem”, afinal a cena é nomeada “Á espera do ator Perene”, pelo artista. Perene
é a resposta, mas ele não responde aos chamados de telefone e afinal, chega atrasado. Ao
comparecer, como Perene faz quando finalmente chega à gravação, é a caricatura do artista
vencido, com uma peruca ridícula que provoca riso no público. Mas se a imagem não fosse
recomposta pelos questionamentos de Perene, muito pouco, ou quase nada sobraria para o
projeto teatral e, em consequência, para o trabalho dos artistas. Verdadeira ao não falsear as
condições de fazer arte no tempo presente, melancólica ao constatar e apresentar essas
condições, historicizante porque antes do último ato foi possível compreender os processos e
forças implicadas no estado de coisas geral, Morrer de pé contribui para desmistificar o
trabalho artístico e desmente, por sua própria existência, qualquer sentimento fatalista quanto
ao sentido histórico. O movimento espiralado suprime o negativo da imagem derrotista do
quarto ato, mesmo que reconheça os limites de tal movimento. Perene, afinal, cometerá o
suicídio: por um lado, há a representação do drama social no qual o indivíduo impotente
encontra como saída sua morte, por outro, num rendimento político, pois o espectador
acompanhou a trajetória do artista derrotado, não há heroicização da esquerda, tampouco dos
artistas. Mas, voltemos à condução da narrativa cênica: a pergunta do Diretor fica sem
resposta imediata e assim que a faz, conforme a rubrica da cena, os atores fazem um vocalize
que se confunde com o barulho de uma sirene e acompanha a imagem projetada da Moça da
Cozinha.
A Moça da Cozinha é aquela que apenas aparece como imagem, sem sustentação
dramática, e que mantém, também, a estrutura funcionando. São os operários retirados,
barrados de um espaço público – é um momento da luta de classes − que terão na composição
de Anita, a Assistente, algum elemento de “sobrevida” dentro da narrativa cênica, embora seja
ela que produza, com mais precisão, o fetichismo do capital. Continua a rubrica: são
interrompidos pelo sinal da Assistente.
151

ASSISTENTE – Sou a assistente. Os técnicos montam o cenário. Último dia


de gravação de um caso especial sobre o amor entre um delegado e uma
jovem estudante nos anos 1960. É véspera de carnaval. Eu caminho pelo
Estúdio e percebo a equipe inquieta com o fim do processo. Quando alguém
pergunta estamos por quem, eu sempre penso que estamos por mim.

A cena solicita uma identificação por parte do público com a Assistente – lembro que
anotei que os espectadores estão nos bastidores da emissora, talvez esperando para entrar em
cena. Nas palavras de Schwarz (2008) em sua compreensão sobre as diferenças entre o
princípio organizador de síntese de Paulo Freire e a alfabetização de camponeses ou ainda o
impulso revolucionário que produziu alguns dos melhores filmes brasileiros, pouco antes e
pouco depois do golpe, a oposição entre os termos não é insolúvel, assim como o princípio
que parece organizar o Latão que busca sua força e modernidade na etapa presente da vida
nacional, compondo uma cena humanizada, através da apresentação em contraste de imagens
que alfabetizam, ora pelo avesso, negativizando a representação mistificada que através de
expedientes cênicos paralisantes em busca de uma sensibilidade diferenciada a aprisionam no
absurdo da representação. Nos termos: Perene chega para gravar. Ele reconhece que não tinha
lido o roteiro e discorda quanto ao final de seu personagem, o suicídio. Para ele, não se deve
humanizar um torturador. A Assistente narra: nessa crise haverá reviravolta. O
desenvolvimento dramático resulta da ação imediatamente anterior, e não da ideia do todo.
O Diretor mantém o diálogo com o Ator dizendo que a minissérie é um caso de amor, fala de
pessoas e não de ideias. A esquerda e a direita são duas pontas de uma mesma ferradura,
portanto o torturador é mostrado da mesma forma que os guerrilheiros. O Ator pergunta por
Dora Helena, sua companheira de cena. Ela saiu para tomar um remédio. A Figurante avisa
para a Assistente que irá embora assim que terminar seu horário/diária. O Ator então
improvisa, ensaia, sua fala com a Assistente. Ela fica extremamente irritada e lembra que
todos estão esperando por ele decidir fazer a cena. A Assistente nega a sugestão do Ator
quanto a mudar o final da minissérie, assim como o Diretor, o Câmera e o Contra-regra.
Ficam em cena a Assistente, o Câmera e o Contra-regra. O Câmera narra para o publico:
artistas acham que é preciso ter amor pelas coisas. Por acaso uma fábrica precisa do amor
dos operários? Retorna o Ator. A Assistente está no centro do palco. Segue o seguinte
diálogo:

ATOR – Anita, eu conheci sua mãe. Era a melhor atriz que eu já vi no palco.
152

ASSISTENTE – O senhor não quer mesmo fazer a cena?

ATOR – Júlia era uma aparição, se ela tivesse continuado no teatro não teria
sido presa. Arte é uma coisa, política é sempre arriscado.

ASSISTENTE – Eu estou francamente cansada dessa conversa, ditadura,


repressão, tortura.

ATOR – Era um tempo em que tudo podia acontecer, um raio podia cair de
um céu azul.

ASSISTENTE – Termina logo com isso.

ATOR – Você não entende. Não entende.

ASSISTENTE - (para o público) Eu não suporto a melancolia dessa


geração. Sempre o passado era melhor. Tem nostalgia de uma ideia. Me
olham como se eu não estivesse fazendo a minha parte, como se nós
fôssemos sombras, como se eu fosse conformada. Só que eu não sou
conformada, sou estupidamente sozinha. Não sou?

Canção Vultos Distantes ao piano. O Ator dá as costas. Júlia aparece como


um espectro:

MÃE - Filha, por que você está sempre à espera? Aqui, é preciso ser mais
Brecht do que Stanislavski. Não podemos só sentir, temos que tentar
compreender. Você tem que exagerar a dor que sofre. Em parte será verdade,
em parte fingimento. Exagera, viu? E não confesse nada. Tem gente que
confessa um pouquinho pensando que vão parar com a tortura, mas o
pouquinho só piora. O melhor é não confessar nada. Você me entende? Já
tomou café?

O foco é retirado de Júlia- Mãe. A luz cai, mostra-se novamente um vídeo da Moça da
cozinha cortando carne. Todos os atores estão em cena. Começam a fazer gestos
desencontrados. Uma das atrizes, no microfone, diz sobre a utilização da arte para a criação
de animais: Veja bem, vivemos numa época insensível. Todos nós precisamos de
“experiências” intensas. Se o porquinho está relaxado na hora da morte, distraído com a
projeção de um bom filme – o que importa são as imagens em movimento – sua carne fica
mais molinha. O problema da sociedade ocidental é que não estamos preparados para a
morte.
O fragmento é didático: a interrupção de Anita fala de como se encadeia um drama
clássico: as ações limitam o reconhecimento do espectador no mundo conformado. Uma coisa
leva a outra. Além disso, o Diretor anuncia como as personagens são compreendidas:
interessa seu comportamento individual e não as situações e relações que a eles
correspondem. Por outro lado, encena-se uma representação “pós-moderna”: uma paisagem
153

lírica dada por comportamentos desconjuntados, aleatórios, indicando muito mais o estado
interior das personagens. A forma dramática não sustenta a realidade atual e apela-se para o
expressionismo subjetivista. Ambos, independentes dos estilos fixados, dizem de formas
representacionais que ora apelam para a sentimentalidade ou por ela expressam a inadequação
dos sujeitos. Entre elas, o diálogo de Perene e a Assistente e a aparição da Mãe. Pelo
programa da peça, sabe-se que sua narração inspira-se numa passagem do livro de Augusto
Boal sobre sua prisão e tortura, Milagre no Brasil. Boal relata, possivelmente, o encontro com
sua assistente, Heleny Guariba, quando os dois foram presos em 1971. Segundo ele, a amiga
queria amenizar seu sofrimento e lhe disse aquelas palavras antes de desaparecer. A narração
aprofunda a compreensão sobre a ditatura militar brasileira, toda a barbárie cometida em
nome de uma suposta ordem e ilumina ainda mais o processo alienador atual, na qual a
desumanização produz apenas vultos, como Anita, que ao contrário de se ver como
conformada, se vê sozinha. Àquela que mais rigorosamente explicitou os mecanismos de
produção da sociedade atual – Anita é esquecimento em ato e é Odete sozinha, Júlia
despolitizada, Miranda conformada – é a personagem restrita à operação da máquina,
articuladora dos demais personagens (e também o próprio espectador, que alimenta a
engrenagem).
O diálogo entre Perene e Anita é dramático: divergem pois ele fala do passado, ela do
presente e convergem no presente da ação (tempo e lugar); a cena é interrompida por uma
memória involuntária – a narração da Mãe : o passado, então, se introduz por uma esfera além
do diálogo intersubjetivo, como uma interrupção da própria possibilidade de diálogo entre o
passado e presente. Não só Anita assiste o passado, mas o espectador, no tempo presente,
como uma reminiscência incorporada à forma épica. Reminiscência ordenada pelos atos
anteriores, pelo projeto interrompido que não pode ser recuperado pelo drama, mas retorna
como ação dos atores em convulsão. Duas elaborações, portanto: a primeira, a aparição de
Júlia, fruto da repressão de Anita – do tempo presente, preenche a reposição infinita de
posições antagônicas, impondo sua presença reveladoramente constrangedora; memória viva
daqueles que sofreram diretamente a repressão militar. A segunda, a cena de ação convulsiva,
é ato, repetição nauseante em que se mostra a tentativa desesperada dos artistas por uma
“experiência intensa” e reatualiza verdadeiramente a função dramática em tempos pós-
dramáticos, produto do processo interrompido dentro do esquema proposto por Ópera dos
vivos como percepção da desobrigação e morte do compromisso coletivo.
Citado por Jeanne Marie Gagnebin (2010) em O preço de uma reconciliação
extorquida, Adorno, quando retorna de seu exílio imposto pelo nazismo, escreve uma
154

conferência intitulada O que significa: elaboração do passado. Para ele, segundo Jeanne
Marie, as tentativas forçadas de esquecimento do passado alemão estimulou um otimismo sob
o manto do sucesso econômico (semelhanças com o presente brasileiro?). Adorno não
advogará, porém, pela “comemoração incessante nem uma heroicização das vítimas, mas uma
atividade comum de esclarecimento, isto é, em termos mais freudianos, um trabalho de
elaboração e de luto contra a repetição e o ressentimento” (GAGNEBIN, 2010, p.183).
Perene decide realizar a cena do suicídio. A última cena da peça é a imagem projetada
no telão de Perene, Dora Helena e o Moço da Cozinha no lugar da personagem empregada,
pois a Figurante foi embora assim que sua diária terminou. Lélia dos Santos, a cozinheira,
que interpretaria a empregada se recusou a entrar em cena. Retomo o diálogo:

DORA HELENA – Lélia dos Santos. Você vai gostar disso aqui. Todo dia
uma novidade. (o Contra-Regra oferece um café à Atriz) Tira esse café da
minha frente. (para o Ator) No neo-realismo italiano eles adoravam misturar
gente do povo com atores de verdade, pena que eles já não existem.

PERENE – Quem? O povo?

DIRETOR – Estamos por quem?

ASSISTENTE – Falou alguma coisa? (para a Maquiadora) Põe logo a tiara.

Ritualização da entrada da tiara (com música): a maquiadora traz a touca


como se fosse uma coroa.

LÉLIA – Eu não vou colocar isso.

ASSISTENTE – Calma. Você não precisa fazer nada. É só abrir a porta.

LÉLIA – Eu não quero aparecer desse jeito.

ASSISTENTE – Por quê?

LÉLIA – Tenho trinta quilos de carne para temperar. Eu vou embora (Sai
correndo).

ATRIZ – Imoral! Imoral!

A pergunta do Diretor retorna: estamos por quem? Aproxima-se a imagem da peruca


de Perene à tiara da Empregada (ressalto a rubrica: a maquiadora traz a touca como se fosse
uma coroa). Se não estamos esperando pelo artista-herói, tampouco é o “povo” romantizado −
embora com sinais trocados, pois se contrapõe o ridículo da peruca de Perene ao
constrangimento doloroso de Lélia. Ouvimos o estampido do tiro e não sua representação. O
155

mundo já desmoronou, pelo menos para àqueles que não se veem desobrigados de alguma
tarefa de alteração das coisas, que Roberto Schwarz nomeou como dessolidarização social.
Como ato independente, visto desarticulado, a constatação melancólica, feita em parte
por uma consciência autoirônica, fica procurando formas de representar tal situação, próxima
a uma observação naturalista, na qual “o estabelecimento da causalidade social tem início
com descrições de situações em que todas as ações humanas são puras reações” – a memória
involuntária e as ações desconjuntadas não passam de reações e como correlato o drama
social da minissérie −; “o meio social tem o caráter de um fetiche, é destino” (BRECHT,
2002, p.150). Há que se levar em conta, portanto, que Morrer de pé se mantém no limite da
autoidentificação com as figuras automatizadas, pois ao mesmo tempo que demonstra a
alienação artística não deixa de identificar os mecanismos por onde ela opera e o elemento
ativo se introduz a força. Parece que a fresta, idealmente composta e exigente de uma
condição extra-teatral, está na sobreposição do projeto artístico e da matéria social, na última
cena da peça:
Vê-se os três em plano aberto. Ouve-se o tiro. Sai projeção da cena. Entram
imagens de um ônibus pegando fogo e do camponês Marivaldo.

NARRAÇÃO – A Moça da Cozinha, numa rua vazia, a espera de um ônibus


que não vem, relembra uma cantiga de sua avó.
Canção
Mesmo sem vento
O remo empurra
Contra a maré
A maré
Canoa boa
A onda cruza
Contra a maré
A maré.

A projeção que traz Marivaldo, camponês, do primeiro ato, o ônibus em chamas,


sobrepostas aos atores perfilados reconhecem que o projeto do Latão apenas é virtualmente
alcançado. Segundo Sérgio de Carvalho49

A recusa do ator Perene em filmar a cena de morte motivada por um


idealismo fora de lugar (ou por um mínimo de coerência dramática),
perturba um aparelho produtivo exaurido e à beira de uma crise gerada pelo
esfolamento da mão de obra. A abstração das relações é completa. E o
estrago pessoal é enorme, ao mesmo tempo em que uma luta interna pelo
não-esquecimento é travada, em bases ambíguas. Anita é filha da atriz Júlia
e Perene se formou no teatro político do passado. E até mesmo o Produtor
oculto da emissora. Mas ninguém pode se juntar, pois não há mais lugar,

49
Blog de Sérgio de Carvalho. www.sergiodecarvalho.com.br. Acesso em 22 de abril de 2013.
156

nesta modalidade de trabalho de cultura, para o aprendizado político, para a


história, para a relação desalienante. Resta o tiro no ouvido, quando, a rigor a
peça acaba. Por rigor artístico deveria acabar ali, na imagem do suicídio. A
canção ambígua do Contra a maré, apresentada como epílogo, faz lembrar o
primeiro ato. Dialetiza-se ao surgir na voz da Moça da cozinha, personagem
à espera de um ônibus que não vem. Dialetiza-se pela imagem do fogo no
veículo, supostamente queimado num protesto na favela. Renova seu
sentido, ainda ao se aliar à imagem projetada do grande artista João das
Neves, participante do CPC, que surge na representando o camponês
Marivaldo na velhice. Mas a rigor, é uma canção ideológica. Por quê?
Porque o grupo de artistas da Companhia do Latão, sabendo que Ópera dos
Vivos é também uma peça sobre o futuro, assim escolheu, numa assembleia.
Porque era preciso, nesse caso, em favor da verdade que se realiza fora do
palco, idealizar.

Interessante notar que Sergio de Carvalho reitere que a peça é sobre o futuro. A
estética praticável está na consciência da impraticabilidade do imediatismo político, sem
obliterar a capacidade de autodeterminação do homem (lembremos Anita: quando perguntam
estamos por quem sempre penso, estamos por mim).
A idealização contida no epílogo afirma que a verdade, para o Latão, se opera no atrito
e trânsito da composição simbólica entre palco e plateia. A aposta dialética está na
experiência coletiva − como afirma Fredric Jameson em O método Brecht (1999), no trabalho
do dramaturgo alemão “intelectual” gradualmente vai se transformar em “coletivo” − e no
movimento da análise crítica das formas utilizadas, historicamente e atualmente, para a
compreensão do mundo e por isso, portanto, Ópera dos vivos vai buscar nas representações do
passado – no teatro, no cinema e na canção – formas para compreender o presente e projetar o
futuro. Muito se deve à perspectiva brechtiana de buscar uma forma que não “enforme” uma
experiência, mas que a dialetize, no desmonte da lógica de qualquer representação. A
notoriedade da proposta do Latão, apropriação brechtiana, é também de deixar exposta a sua
própria lógica. A fricção entre os procedimentos estéticos estimulam um olhar distanciador,
não mais circunscrito à constatação de que a injustiça é social, e não natural (esclarecimento
dualista da mola econômica), operação por demais desgastada como bem observou Schwarz
(1999), mas de que as formas deixam ver, também, historicização (atividade, trabalho vivo) e
que são, elas mesmas, produção ideológica.
Suponho que na articulação dos atos e principalmente na encenação do quarto ato, há a
vibração das considerações de Brecht (1970a, p.187) sobre dialética e distanciamento

1. Distanciamiento como compreensión (compreender - no compreender


– compreender), negación de la negación.
157

2. Acumulación de lo incompreensible, hasta que se abre passo la


compreensión (transposición de lo cuantitativo y lo cualitativo).

3. Lo especial em lo general (el processo em sua calidad de único,


original y, al mismo tempo, típico).

4. Momento del desarollo (el passaje de unos sentimientos a sentimientos


de carácter opuesto, posición crítica e identificación a la vez).

5. Paradoja (¡este hombre es estar circunstancias, estas consecuencias de


esta actitud!)

6. Lo uno se comprende a través de lo outro (la escena, cuyo sentido em


primera instancia es independiente, a traés de sua relación com otras escenas
resulta ser parte de outro sentido).

7. El salto (saltus naturae, el desarrollo épico se cumple a saltos).

8. Unidade de las contradicciones (em la unidad se busca la contradición;


madre e hijo constituyen una unidad hacia afuera, pero lucham entre sí por el
salario em La Madre).

9. La practicabilidad de la sabiduría (unidad de teoria y prática).

É na relação com o seu contrário que a aprendizagem política coletiva é positivada


através da consciência de seus limites. A superação da contradição apenas avançará ao
estabelecer uma nova consciência, que não é dada pela peça, mas pelo desenvolvimento da
sociedade. Ambas possuem suas contradições internas que não deixam de carregar, mediados
por aquilo que foi visto em cena, uma verdade: do projeto ideológico anticapitalista como
princípio do projeto estético, que apenas consegue, nos termos atuais, mobilizar
simbolicamente o espectador. Retomando um argumento exposto no princípio dessa análise,
de que Ópera dos vivos “retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a
relatada por outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes”; a
sabedoria – o lado épico da verdade – conforme Benjamin (1994), demonstra sua
praticabilidade.
O último ato de Ópera dos vivos mostra as obras políticas como politicamente mortas,
“onde se funde a ideia de impotência com a consciência crepuscular da paralisação em riste da
política” (ADORNO, 1991, p.71), mas o pensamento é reorientado, afinal a essa paralisia é
que desfere o epílogo da peça, associando apenas na imagem final, com atores em cena e o
passado projetado, na reconstrução de uma história política.
Roberto Schwarz teceu um comentário em uma conversa sobre Ópera dos vivos: do
ponto de vista do espectador, o problema maior é como articular os quatro atos, e isso faz
158

que a ideia da peça seja inteiramente não dogmática, porque a peça não diz nada de como
articular os quatro, isso cabe inteiramente ao espectador, então é uma concepção de
conjunto que sugere a formação de uma consciência histórica sem dar nenhuma dica sobre
como formar, então realmente é uma coisa muito não dogmática, e muito acertada em
relação ao estado geral da consciência contemporânea. Então, você dá parte de um processo
dos últimos cinquenta anos e o espectador é que se arranje pra pegar esse significado. Então,
mal ou bem, a coisa mais exigente da peça é discutir um pouco essa evolução.50
Hipoteticamente, a articulação pode se dar pelo assunto – o golpe de 1964 e a derrota
do projeto emancipador da esquerda – ; pelo drama – afinal a peça começa com um grupo de
teatro ensaiando e aos poucos ele desaparece da narrativa, assim como Júlia; pelas
manifestações artísticas – diferenças entre teatro, cinema, show; e os pontos de vista que as
modelam. Ópera dos vivos é uma obra irregular e desarticuladora, o que lhe garante seus
maiores efeitos. Num arco geral, o espectador mais “capacitado”, ou melhor dizendo,
frequentador de teatro, fica obliterado pelo discurso ideológico do segundo e principalmente
do terceiro ato que através da paródia dá mostras de como se constitui um pensamento
hegemônico, não afeito às materialidades, tampouco à relações extra-teatrais, que quando são
feitas, não passam de reiterar conceitos que às formas hegemônicas teatrais correspondem, o
que deixa mais evidente o antagonismo de classe. As críticas publicadas em jornais foram
elogiosas, e imprecisas, restritas a considerações sobre a peça, sem articulações com o sistema
teatral ou do país. A peça gerou encontros informais, como o realizado por um grupo de
intelectuais e professores de São Paulo do qual extrai a observação de Roberto Schwarz acima
apresentada e entre eles, um dos participantes perguntou: o que a peça prova? Espremendo a
laranja, qual seria o propósito de Ópera dos vivos?
Certamente a questão não deveria ser dirigida apenas a uma peça do Latão. Como um
grupo de intensa atividade dramaturgicamente pedagógica, Ópera dos vivos deveria ser
articulada, em relação aos seus rendimentos, a trajetória do grupo e a como, de certa forma,
ela revisa e põe acentos no percurso de estudos da Companhia. Iniciei o presente estudo com a
pretensão em desenvolver uma análise pormenorizada das peças do grupo em seus 13 anos de
atividades (quando Ópera dos vivos estreia) que deveria buscar estabelecer um, entre outros
possíveis, propósito pedagógico no “desmonte” moderno das ideologias representacionais
que, com nuances várias, se apresenta em todas as suas peças. O desejo inicial, infelizmente,
não se concretizou – o que pode ser percebido pelas resenhas apresentadas anteriormente

50
Agradeço o prof. Roberto Schwarz por autorizar a gravação da conversa, bem como a utilização de trechos no
presente trabalho. A transcrição e edição foram realizadas pela autora.
159

sobre as outras peças do grupo. Mas como nota diante da provocação da pergunta sobre a peça
e tendo, ainda que reduzida, a pretensão de análise exaustiva, sou tentada a respondê-la tendo
em vista uma aproximação àquela que nomeou a Companhia, Ensaio sobre o latão.
Ensaio sobre o latão estreou no Teatro de Arena Eugênio Kusnet em agosto de 1997 51
e fez parte do projeto Pesquisa em teatro dialético. Publicado em Introdução ao teatro
dialético: experimentos da Companhia do Latão, o texto é apresentado, junto a O grande
circo da ideologia, na seção Peças teorizantes. Utilizou-se como material de pesquisa o texto
teórico A compra do latão, de Bertolt Brecht, escrito entre os anos 1939 e 1955, além das
observações dos integrantes do grupo nas ruas do centro de São Paulo. Em 12 de fevereiro de
1939, Brecht faz a seguinte anotação em seu diário

Um bocado de teoria em forma de diálogo em Der Messingkauf [A compra


do cobre] (estimulado a usar essa forma pelos Diálogos de Galileu). Quatro
noites. O filósofo insiste no teatro do tipo-p (tipo-planetário, em vez do tipo-
c, tipo-carrossel) simplesmente para fins didáticos, movimentos de pessoas
(também mudança de emoções) organizados como meros modelos para
finalidades de estudo, a fim de que a sociedade possa intervir. Os desejos
dele se transformam em teatro, já que podem ser executados no teatro. A
coisa toda concebida de modo a poder ser realizada, com experimentos e
exercícios. Centrada no efeito-d. (BRECHT, 2002, p.24)

De caráter teórico, os textos reunidos também poderiam ser encenados, assim como se
propôs em seus diálogos. O Filósofo, que inicialmente vai à procura dos atores interessado
nos comportamentos humanos que por eles são representados, sugere exercícios cênicos para
demonstrar sua “teoria”. Àquilo que começa como sugestão teórica, passa a ser esteticamente
experimentação52. Os textos de Brecht, segundo os tradutores da versão portuguesa, Urs
Zuber e Peggy Berndt

foram escritos e deixados em quatro maços, o primeiro e o segundo em


envelopes de tamanho médio que contêm folhas estreitas e recortadas, o
terceiro e o quarto em pastas de cartolina de tamanha maior; todos
identificados com etiquetas com o título “A compra do latão”; o quarto maço
adicionalmente com a referência “peças individuais/folhas individuais”
(1999, p.178).

51
Direção de Sérgio de Carvalho e Márcio Marciano, com música e preparação musical de Walter Garcia,
Lincoln Antonio e Fernando Rocha, iluminação de Wagner Pinto e Paulo Heise, cenografia e figurinos criados
coletivamente, com os seguintes atores: Edgar Castro, Gustavo Bayer, Maria Tendlau, Ney Piacentini, Otávio
Martins, Vicente Latorre. Particpações eventuais de Deborah Lobo, Francisco Bruno e Georgette Fadel, e Heitor
Goldflus na temporada de 2000 (CARVALHO, Sérgio (org). Introdução ao teatro dialético, São Paulo:
Expressão Popular; Companhia do Latão, 2009, p 265).
52
O Berliner Ensemble encenou A Compra do latão em 1963, como Noite brechtiana n. 3.
160

Percebe-se, portanto, a estrutura fragmentada dos escritos, feita em “fases” distintas de


trabalho. Essa forma gera uma dificuldade de compreensão ao mesmo tempo que revela o
incessante trabalho de revisão, acréscimo, modificações de Brecht em seus materiais. De todo
modo, como afirma os tradutores, o princípio estruturante nas diferentes fases de trabalho
são as quatro noites (p.178). Compõe o diálogo os personagens:

O filósofo deseja utilizar sem limitações o teatro para os seus fins. Este deve
fornecer imagens fiéis dos processos entre os homens, e permitir uma
tomada de posição dos espectadores.
O actor deseja expressar-se. Quer ser admirado. É para que lhe servem a
fábula e os caracteres.
A actriz deseja um teatro com uma função social de caráter educativo. Ela é
politizada.
O dramaturgista põe-se à disposição do filósofo e propõe-se pôr as suas
capacidades e conhecimentos à disposição para a conversão do teatro no
taetro do filósofo. Espera uma revivificação do teatro.
O maquinista do teatro representa o público novo. É o operário e está
descontente com o mundo. (p.12)

Durante as quatro noites o Filósofo irá contrapor o seu ponto de vista sobre arte às
expectativas e pontos de vista dos demais personagens, esclarecendo seus propósitos e
opiniões sobre o naturalismo, realismo, marxismo, técnicas de representação. Temas e
assuntos vários que se dão por meio de diálogos e também demonstrações. Segundo Brecht, o
Pequeno organón para o teatro é um breve resumo da A compra do latão

tesis principal: que um determinado aprender es el mayor placer de nuestra


época, de modo que debe desempeñar um papel importante em nuestro
teatro. de esa manera pude tratar el teatro como uma empresa estética, lo
cual me facilita la descripción de las diversas novidades. queda borrada así la
mácula de abstracta, negativa, no-artística, que la estética imperante há
impresso a esa actitude crítica respecto al mundo social. (BRECHT, 1979, p.
163)

A estrutura teatral de A compra do latão é mantida na peça do Latão, assim como


trechos dos diálogos, com algumas alterações; os personagens da peça brasileira são:
Dramaturgista, Diretor, Ator-Hamlet, Atriz-Ofélia, Ator-Polônio, Assistente de televisão,
Iluminador e Sandra. Como no material de Brecht, logo no início do texto, a rubrica expõe
os traços dos personagens.
Em Ensaio sobre o latão, ainda no saguão do teatro, o espectador é concebido como
ator. Convidado pelo Dramaturgista, o público entra no teatro. Em cena o Diretor dá marcas
de encenação ao Ator-Hamlet. Interrompe o “ensaio” e diz ao público
161

Senhores novos atores, bem-vindos. Nesta primeira noite de ensaio espero


que não estranhem nosso método de trabalho, embora deva ser estranhável.
Dentro de algumas semanas, vamos estrear um espetáculo, baseado num
texto clássico, empreitada para a qual necessitamos da colaboração dos
senhores. Os experimentos que vamos realizar durante o período de ensaios
diferem um pouco desse, que os senhores acabaram de presenciar, e serão
nossa matéria de transformação até o dia da estreia.

DRAMATURGISTA – Senhor, que tipo de experimentos vamos fazer?

DIRETOR - Todo tipo.

DRAMATURGISTA – Antigos e novos?

DIRETOR – Antigos e novos.


(CARVALHO, 2009a, p.269)

E assim se encadeia a peça: ensaiando Hamlet, as cenas são comentadas e ideias são
explicadas. Algumas narrações dão conta da passagem do tempo e, como consequência, dos
ensaios, que invariavelmente terminam com discussões entre os personagens. É possível uma
leitura com a seguinte estrutura: na primeira noite de ensaios o público espectador da peça é
convidado a ser também ator. Quando entra no teatro o espectador é confrontado com a cena –
em ensaio – cena II, do ato I de Hamlet. Muda-se a luz para a narração do Ator-Polônio
“naquela primeira noite de ensaio, os atores da companhia realizaram uma série de
experimentos com personagens clássicas. O Diretor, não satisfeito, insistia na importância dos
acontecimentos, o que gerou uma reação por parte de alguns atores” (CARVALHO, 2009a,
p.272) O Diretor, após o debate com o Dramaturgista e o Ator-Polônio, dá a explicação do
experimento (tanto dos ensaios, quanto do Ensaio).

DIRETOR – Imaginem um comerciante de latão que um dia vai visitar uma


banda de música. [Tira som do objeto de bronze.] Ele vai lá, não para
comprar um instrumento, mas o latão. O instrumento é feito de lata, mas há
pouquíssima chance do instrumentista querer vende-lo pelo preço do quilo
do latão. Eu, assim como esse comerciante, estou aqui à procura da matéria
dos acontecimentos que se produzem entre os homens (...) Tenho uma
curiosidade infinita pelo homem. Vê-lo, ouvi-lo. Me interessa a forma com
que os homens se tratam. O modo como vendem cebolas, como planejam
suas guerras, como decidem seus casamentos. Como observam o céu. Como
se enganam, como se exploram, se julgam. Porque me pergunto como devo
eu me comportar para ser tão feliz quanto possível. E sei que isso depende
também da forma com que os outros se comportam. Por isso me interessa
também a possibilidade de influir sobre os demais. (CARVALHO, 2009a,
p.273)
162

Na segunda noite, anunciada pelo Ator-Hamlet como tendo passado semanas, em


ensaio, a cena é confrontada com material de pesquisa de rua, quando o Fantasma do Rei
Hamlet, da Dinamarca, pai de Hamlet equipara-se a um catador de latas numa praça. Pelo
diálogo, não se “misturam” o material clássico e a observação de rua e um elemento entra em
choque com o outro. A cena I, do terceiro ato de Hamlet sofrerá o mesmo tratamento, quando
a Atriz-Ofélia e o Ator-Hamlet são aproximados a uma adolescente vulgar e um rematado
canalha53. A Atriz-Ofélia narra pedagogicamente ao público: “do ponto de vista de uma bola
que está num jogo qualquer, as leis do movimento são praticamente inconcebíveis”
(CARVALHO, 2009a, p.278). Nessa pequena declaração, presente no texto de Brecht Poderá
o mundo de hoje ser representado pelo teatro?, no qual o dramaturgo afirma, mais uma vez, a
necessidade de não mais representar o homem como uma vítima, como objeto passivo de um
ambiente desconhecido, imutável, reforçando que a reprodução do mundo pelo teatro é de
ordem social, o mundo é concebido como suscetível a modificação, a narrativa prepara o
espectador para a cena em pantomima, de rua54. Nela, os pontos de vista são modificados e do
atropelamento de um ancião trôpego passa a ser encenado outra possibilidade de compreensão
do ocorrido – de trôpego ele é apresentado mais “libidinoso” e outros personagens entram em
cena demonstrando os seus pontos de vista. Tudo acontece em cena, sem palavras, com os
gestos dos atores. Ao final o Diretor explica:

Esse teatro de todos os dias, que tem na rua o seu palco! [Ouve-se a banda
de música oriental, com a qual ele dialoga.] O homem na calçada, vejam:
está mostrando como o acidente ocorreu. Ele submete o motorista à sentença
da multidão, pela maneira como vai ao volante. E agora faz o papel do
atropelado, pelo visto um ancião. De um e de outro ele só diz o
indispensável. E dá a entender que ambos poderiam ter evitado o acidente. E
o acidente é compreendido embora incompreensível, pois tanto um como
outro bem poderia ter agido de outra forma. Em seu testemunho ocular ele
não atribui a sorte dos mortais a estrela alguma, mas às próprias falhas.
(CARVALHO, 2009a, p.281)

53
No texto, quando há a inserção de falas retiradas diretamente do clássico Hamlet, o personagem é assim
identificado. Quanto há alterações, o personagem é identificado como Ator-Hamlet, assim como os demais
personagens.
54
No ensaio, Brecht coloca a questão a partir de sua experiência no Berliner Ensemble e das transformações em
operação na Alemanha Oriental. Acho oportuno deixar registrada a passagem: Já há muitos anos que venho
mantendo esta opinião, e moro atualmente num país onde está se efetivando um esforço gigantesco para
modificar a sociedade. Podem condenar os meios e os processos – espero, aliás, que os conheçam de fato, e não
por intermédio de jornais -, podem rejeitar este ideal específico de um mundo novo – espero também que o
conheçam -, não hão, porém de pôr em dúvida que, no país onde vivo, se trabalha para a modificação do mundo,
para a modificação do convívio dos homens. E talvez concordem comigo em que o mundo de hoje precisa de
uma transformação (2005, p.21).
163

A narrativa é esclarecedora pois afirma que a forma de se contar uma história implica
o público em determinado julgamento; se a encenação mostra um motorista desatento é
possível à multidão atribuir-lhe uma sentença (nesse primeiro contato com o Brecht se
anuncia uma forma de trabalho que estará presente nos demais espetáculos da Companhia: a
encenação precisa demonstrar que está apresentando ao espectador um ponto de vista).
Embora demonstrada, ainda o Ator-Polônio questiona os propósitos do Diretor. A terceira
noite é anunciada pelo Dramaturgista: haverá um teste de elenco com os atores, feito pelo
Assistente de televisão, procurando tipos que representam o padrão nacional. Os testes que
procuram o physique du rôle para os personagens televisivos são feitos pelos atores utilizando
o material clássico, numa outra experimentação do curto-circuito de materiais e expectativas.
Após os testes, penso que a principal sugestão de Ensaio sobre o latão, insinuada já no início
do espetáculo, é explicitada. O Assistente de vídeo deixa a cena: a música do gamelan encerra
a sequencia de testes. O espaço é preparado para mais um debate.

ATOR-POLÔNIO [Narra] Naquela terceira noite de ensaio, após os testes,


os atores se envolveram em mais uma discussão.

DRAMATURGISTA [Em crise] O nosso espetáculo está à beira de estrear e


eu me pergunto: para quê?

ATOR-POLÔNIO – Como para quê?

DRAMATURGISTA – O espectador de hoje não está satisfeito com o que


assiste. O teatro perdeu a capacidade de convencimento.

ATOR-POLÔNIO – Sempre existiram espectadores descontentes.

DIRETOR - Eu não tenho a menor dúvida que é para eles que nós devemos
nos dirigir: aos descontentes.

DRAMATURGISTA – Talvez a saída seja retornar ao que é exclusivo do


teatro: um homem em cena representando para outro homem.

ATOR-POLÔNIO – Nesse momento eu digo a ele que não tenho dúvida


disso. É preciso retornar ao essencial, aos valores eternos do ser humano.

DIRETOR – Eu não acredito.

ATOR – Em quê?

DIRETOR – Nesses valores eternos.

ATOR-POLÔNIO – E acredita em quê?


164

DIRETOR – Que tudo se transforma e é próprio apenas de seu tempo.


Acredito nas sentenças dos homens efêmeros, nos acontecimentos da
história.

ATOR- POLÔNIO – Lá vem ele com os tais acontecimentos.

Diretor – Representados como se pudéssemos escrever a data em cima.


Mesmo o que se passa agora, quando nós conversamos, deveríamos
considerar como um quadro, como um quadro histórico. [Pausa. Faz-se um
silêncio mais profundo.]

DRAMATURGISTA – Eu então pergunto ao diretor; Como perceber nos


acontecimentos seu caráter histórico? Como fazer para traçar o sentido dessa
confusão em que vivemos?

DIRETOR – E eu respondo: a primeira coisa que nós atores devemos


aprender é a arte da observação. A observar, atentamente, o rosto de cada
um. E esse aprendizado deve começar lá fora. Na rua, em casa, no metrô.
Observar o estranho como se fosse conhecido, o conhecido como se fosse
estranho. Para observar é preciso comparar. E para comparar, é preciso já ter
observado. Mas a arte da observação, aplicada aos homens, é só um ramo da
arte de agir sobre os homens. E é nisso que estamos interessados: na arte de
agir sobre os homens.

ATOR-HAMLET [Anuncia como um narrador] Quarta noite de ensaio:


véspera da estreia. Os técnicos do teatro fazem os últimos ajustes na
iluminação. O olho produz. Belo é resolver dificuldades.

ILUMINADOR [Representada pelo mesmo ator que fez o Assistente de


vídeo, ele manipula uma escada] Sou o ator que vai representar o
iluminador, mas vou logo dizendo que não tenho todo o tempo do mundo
para fazer essa luz
(CARVALHO, 2009a, p.291-292).

No debate busca-se esclarecer o espectador quanto ao ponto de vista desse coletivo


teatral, que começa a construir um projeto estético: o Latão não parece ser um grupo que
buscará levar a cena “valores eternos” e possivelmente, nessa escolha, não atingirá
espectadores “contentes”. Como pretende fazer isso? Assim como exige de seus atores a “arte
da observação”, o espectador que se aproxima do ator também é solicitado a observar, em
comparar, em estranhar àquilo que é lhe familiar e fazer familiar àquilo que lhe estranho. Para
esse espectador descontente, belo não é ver uma cena bem-feita, acabada, mas estar
disponível para “resolver dificuldades”. Qualquer cena, ou peça, se propõe a isso?
Obviamente que pela assunção do Assistente de vídeo como Iluminador, na última noite de
ensaios, está claro que não. A nomeação do personagem determina uma função na produção
cultural e esta é, ou não, desempenhada por àquele que a assume. Entrar em contradição com
aquilo lhe é designado como função e a dificuldade, limites, obstáculos de formação de tal
165

ambiguidade, de uma certa forma, será o assunto das peças da Companhia. É a modelação
mais madura por permitir observar as contradições do processo cultural, pois não incide num
julgamento individualizante e moralizador ao mesmo tempo que abre a percepção para a
historicização!
O Iluminador, no Ensaio, é uma personagem contraditória, que no topo da escada,
observando a cena do ensaio de Hamlet e marcando os momentos passo a passo, dando a eles
o tom desejado, sofrerá um “choquinho de 220 volts”. Como observou Marcelo Coelho na
crítica da peça publicada na Folha de São Paulo em 15 de setembro de 1999, o Iluminador é

autoritário, objetivo, técnico, ele quebra não só a dramaticidade do texto


shakespeariano como também as inquietações teóricas em que se debate a
companhia. Naquele momento, ele rege o espetáculo. Seu repentino poder se
choca, entretanto, com a materialidade do ofício: ajustando uma lâmpada,
sofre um acidente cômico. (CARVALHO, 2009a, p.213-14)

Com o black-out, os atores começam a encenar, narrativamente, um material de rua,


uma conversa em um bar com uma prostituta. Após a cena de Sandra, feita pelos atores Ator-
Polônio, Ator-Hamlet e Diretor, exercício cênico de alto grau de estranhamento, o
Dramaturgista anuncia a noite de estreia. Na estreia, ainda, o Diretor muda uma cena da peça
e retira o estilo heroicizante de anúncio do exército de Fortimbrás e altera seu sentido. O
Ensaio tem seu fim com uma fala do Ator-Iluminador: [Para a cabine] Iluminador, um pouco
mais de luz sobre o palco. Nós precisamos de espectadores despertos e atentos. Faça-os
sonhar em pleno dia (p.300).
Vamos aos termos, retomando o rendimento do Iluminador, a partir do comentário de
Marcelo Coelho: como primeiro experimento do Latão como coletivo, esboça-se uma
compreensão sobre o método de Brecht: o teatro épico não é um estilo de cena, tampouco uma
técnica – o Iluminador pode ser autoritário, objetivo e técnico – mas um exercício de
composição que busca retirar de um sentido, que deve estar explícito para o espectador – a
mudança da compreensão do exército de Fortimbrás (retirado o tom heroico percebem-se uns
maltrapilhos em busca de pão) – sua consequência esclarecedora. A técnica,
pedagogicamente realizada na cena de Sandra, deixa, por sua vez, um efeito técnico, ainda
que pela exímia execução a humanidade da personagem se deixe perceber pela performance
de três atores – em plena atividade a consciência da linguagem. Em paralelo, uma cena
distanciada executada com muita precisão (no vídeo Brecht na Companhia do Latão é
possível recuperar o exercício) e outra que deixa em relevo a alteração a partir da
compreensão da equipe sobre o seu sentido – em plena atividade a consciência política. Não
166

se quer evidenciar com o paralelismo a melhor escolha para a composição do teatro dialético,
mas são exercícios diferentes que produzem, obviamente, resultados que lhe correspondem.
Se tomo “apenas” o trabalho técnico do estranhamento, questão muito comum em cursos e
oficinas teatrais para atores e também recorrente na crítica e análise acadêmica, o rendimento
estará na esfera da realização cênica, com alguns comentários sobre o ineditismo ou não da
proposta ou o virtuosismo dos atores; se tomo o trabalho dialético como um exercício de
produção de sentido, ou sensibilidade, ou ainda de produção simbólica, muito provavelmente
o rendimento será de ordem social, ou nas palavras de Brecht, com sexto sentido para a
história. Ambos são frequentemente usados pela Companhia e por outros coletivos que se
aproximam de Brecht e é curioso que no primeiro experimento do Latão estejam apresentados
em sequência. Cabe aqui uma última nota sobre a e A compra do latão, antes de comentar a
aproximação de Ensaio sobre o latão e a Ópera dos vivos,
Na quarta noite, entre os diálogos do Filósofo, Actor e Dramaturgista sobre a
pertinência de representação de velhas obras-primas, o Filósofo apresenta a seguinte imagem

A atitude clássica mostrou-ma um velho operário de uma fábrica de fiação


que uma vez viu, em cima da minha secretária, uma faca muito antiga, parte
de um faqueiro de camponeses, que utilizava como corta-papel. Pegou o belo
objeto com a sua mão e enorme e cheia de gretas, examinou de olhos
semicerrados o pequeno cabo de madeira dura incrustado de prata e a lâmina
fina, e disse: Então já naquele tempo, em que ainda acreditavam em bruxas,
foram capazes de fazer uma coisa assim. Vi perfeitamente como sentiu
orgulho por este trabalho cuidado. Hoje em dia já fazem aço melhor,
continuou, mas como nos fica na mão! Hoje fazem facas que parecem
martelos, já ninguém equilibra o cabo e a lâmina. É verdade, se calhar
alguém trabalhou nisto durante dias. Hoje em dia fazem-nas em menos que
nada, só que o resultado poderia ser melhor. (BRECHT, 1999, p.112)

Para Brecht, a representação necessariamente prazerosa é aquela que “cabe na mão” e


produz, tem utilidade para também um público “determinado”, o Maquinista do teatro, aquele
que representa o público novo, o operário que está descontente com o mundo. O realismo
brechtiano é feito para este público. Na terceira noite se dá o seguinte diálogo que pode
esclarecer minha afirmação:

ACTOR – Estás a compreender, o público vê acontecimentos perfeitamente


íntimos sem que ele próprio seja visto. É exatamente como se alguém
observasse pelo buraco da fechadura uma cena entre pessoas que não têm a
mínima ideia de não estarem sós. É claro que, em realidade, arranjamos tudo
de tal maneira que tudo possa ser visto sem dificuldade. Simplesmente, este
arranjo é ocultado.
167

FILÓSOFO – Ah, sim, então o público admite tacitamente que não se


encontra no teatro, uma vez que aparentemente sua presença não é
registrada. Fica a ilusão de estar em frente do buraco de uma fechadura. Mas
então deveria esperar e só bater palmas quando estivesse no bangaleiro.

ACTOR – Mas o público, com as suas palmas, confirma exatamente que os


actores conseguiram representar como se ele não estivesse presente!

FILÓSOFO – Temos mesmo necessidade deste complicado acordo secreto


entre ti e os actores?

MAQUINISTA – Eu não preciso dele. Mas talvez os actores?

ACTOR – Acha-se que é necessário para uma representação realista.

MAQUINISTA – Eu sou a favor da representação realista.

FILÓSOFO – Mas também é uma realidade que se está num teatro e não em
frente de um buraco de uma fechadura! Como pode ser realista escamotear
este facto? Não, queremos deitar abaixo a quarta parede. O acordo fica então
sem efeito. No futuro, não tenham problemas em mostrar que tudo é
arranjado para nos facilitar ao máximo a compreensão.
(BRECTH, 1999, p.110)

O primeiro desmonte deve partir da cena. A encenação é a produtora primeira da


relação e se os seus produtores desconhecem tal relação apenas reproduzem o aparato técnico
do qual fazem parte sem saber que o fazem – próximo à ação do Assistente de vídeo. A partir
do momento que compreendem que mantém uma relação “romantizada”, ou automatizada,
como no caso do Assistente, passa a se ter um real interesse pela verdade das coisas. A
mudança, ainda no Ensaio, está em processo, e, em experimentação e me parece que o Latão
desconfia, também, da sua capacidade de iluminação. É a contradição posta em cena, sem as
certezas que Brecht depositava no Maquinista do teatro; mas é claro que o Iluminador,
operador do capital, pode recuperar o sexto sentido para história.
Como estudo do material de A compra do latão, o projeto estético do Latão se
esboçava em torno da perspectiva de trabalho poético de Brecht: incluir a crítica estética à
linguagem representacional utilizada − o teatro brechtiano não é um teatro não dramático, não
cômico, não operístico ou qualquer negação outra que se queira delimitá-lo; é um teatro
dramático, cômico, operístico quando lhe convém e que deixa à mostra sua funcionalidade em
cena. Ensaio sobre o latão é um experimento sobre a forma, devedora muito dos temas da A
compra do latão: as cenas de rua e a relação com os clássicos. Para a primeira, algumas falas
reproduzidas acima dão conta da compreensão de Brecht sobre o “material de rua”; sobre os
“clássicos”, numa conhecida passagem de Brecht em A obra clássica intimidada
168

Cada vez mais, a bem dizer por desleixo, tomba maior quantidade de pó
sobre as grandes obras da pintura antiga, e, quando se fazem reproduções
delas, reproduzem-se também, mais ou menos diligentemente, as manchas
de pó. Perde-se, assim, sobretudo, a frescura original da obra clássica, o
caráter que possuía outrora, surpreendente, novo, criador, e que era uma das
suas características essenciais. A forma de representação tradicional
coaduna-se ao comodismo dos encenadores, dos atores e do público,
simultaneamente. Substitui-se a profunda emotividade das grandes obras por
um mero temperamento dramático, e o processo de cultura a que se submete
o público, é, em contraste com o espírito combativo dos clássicos, tíbio,
acomodatício e com fraco poder de intervenção. (BRECHT, 2005, p.122)

Penso que a mesma postura solicitada por Brecht em relação aos clássicos é assumida
pelo Latão em relação à Brecht, o que faz com que o acione exatamente para compor uma
cena não conformada, que apresenta problemas e não soluções.
Aproximei Ensaio sobre o latão à Ópera dos vivos por alguns motivos óbvios: alguns
materiais são revisitados, com outros enquadramentos, como o questionamento de Júlia em
conversa com Paulo Funis sobre os motivos que levam os atores a encenar personagens
clássicos (segundo ato), ainda quando um dos panfletos jogados a plateia no show narrativo
foi retirado de A compra do latão (há fases em que os sonhos/não se convertem em
planos/nem as intuições em conhecimentos/nem a nostalgia nos incita/a nos
movimentarmos./Esses são maus tempos/para a arte), ou ainda quando, no diálogo da quarta
noite, se diz sobre as condições do trabalho dos artistas que se não percebem como
trabalhadores também se alinham ao que resta de ilusório: o amor ao trabalho. Na Compra do
latão o Maquinista do teatro é o único a ter certeza que essa é uma exigência ruim. Em
Ópera dos vivos ela é dada, com algumas alterações, por Dora Helena quando esta conversa
com o Moço da cozinha: NARRAÇAO – Na cozinha. DORA HELENA – (sobe no cubo, do
lado oposto à imagem, com uma cenoura na mão) Isso é para o Ivan? Ivan? É um cavalo
marrom, com uma estrela branca na testa. MOÇO DA COZINHA – (do lado oposto à Atriz,
junto com a Moça da Cozinha com uma faca) Mais um copinho? DORA HELENA– Não, eu
estou bem. (tapa os olhos com medo) Moça, você não tem medo de cortar o dedinho na faca?
É, é o seu trabalho... E você é feliz com ele? Quem é, não é? Tanta gente trabalhando. A gente
esquece que para as coisas funcionarem precisa de tanta gente. Mas seria bom que todos
amassem o que fazem. Quem ama, não é? MOÇO DA COZINHA – (para a Moça) Ela é
esquisita, mas é viva).
Se no Ensaio sobre o latão, a encenação deixava compreensível uma postura
solicitada ao espectador pela sua “identificação” como atores, mas ainda distanciada pois os
mecanismos eram, passo a passo, exemplificados e explicados, desmontando-os de um ponto
169

de vista formal, nesses anos de estudo e experimentos cênicos, que Ópera dos vivos é uma
“avaliação”, o espectador é posto pra dentro da encenação, como se não bastasse mais a
apresentação dos pontos de vista formais; o espectador precisa tomar parte do processo da
cultura e perceber os pontos em que ela também é produção ideológica que se faz com a sua
participação. Em Ópera, narra-se a história do país e ao fazê-lo, da forma como elegeu o
Latão, o espectador necessariamente precisa fazer parte como trabalhador (lembro que na
Compra do latão o Maquinista é o público descontente, o operário; no Ensaio sobre o latão,
o Iluminador é o ator e o Latão não o compara com o público); de um certo “didatismo”
necessário no primeiro Ensaio, o espectador de Ópera é, antecipadamente, àquele que
“opera”, materializa também a cena e tem todas as condições de compreender sua posição.
Tal mudança, obviamente, minimiza a dúvida quanto à função “esclarecedora” que cabe,
também obviamente em parte, ao trabalho teatral. Como se na fala do Moço da cozinha
também estivesse uma verdade sobre o Latão: ela é esquisita, mas é viva. Retomo, então, o
comentário de Roberto Schwarz: As quatro partes são independentes, como vocês mesmo
dizem no programa, cada uma é muito elaborada (...) Do ponto de vista do espectador, o
problema maior é como articular os quatro, e isso faz que a ideia da peça seja inteiramente
não dogmática (...) Então é uma concepção de conjunto que sugere a formação de uma
consciência histórica sem dar nenhuma dica sobre como formar (...) e muito acertada em
relação ao estado geral da consciência contemporânea. Então, você dá parte de um processo
dos últimos cinquenta anos e o espectador é que se arranje pra pegar esse significado. Então,
mal ou bem, a coisa mais exigente da peça é discutir um pouco essa evolução. E aí eu acho
que tem um pouquinho o problema, porque como vocês explicam no programa também, as
peças não são sobre a realidade, as peças são sobre a linguagem. É arte sobre arte, não é
arte sobre processo histórico, é arte sobre arte e através do arte sobre arte há uma sugestão
do que seria realmente o processo histórico. (...) E isso faz também com que o espetáculo seja
muito intelectualizado, porque ele requer para uma boa apreciação alguma reflexão sobre
todas essas matérias que foram tratadas por outros artistas. De certo modo, a melhor
maneira de ver a peça requer que se saiba o que foi o CPC, que se saiba o que foi Terra em
Transe, quer dizer, a matéria não se apresenta de maneira imediata; a matéria se apresenta
através do tratamento que outros artistas deram dela. Como é muito acertado a peça não
falar do arco geral dos últimos cinquenta anos e deixar para o espectador, onde ela trabalha
mesmo sobre a linguagem, se coloca um pouco a questão: e o que eu aprendo?
Busquei na análise de Ópera dos vivos traçar os rendimentos da “dialética de
superação”, da “paródia glauberiana”, da “caricatura tropicalista” e do “fragmento televisivo”
170

como formas ideológicas em operação em contraste com as condições extra-teatrais (como


disse anteriormente, penso que há uma provocação incisiva à outros coletivos e grupos
teatrais, signatários do Arte contra a barbárie, ou simpatizantes a seus pressupostos, que
utilizam os recursos alegóricos e tropicalistas como modelações per si críticas. O trabalho da
linguagem, em certa medida, dialoga com estes grupos. No presente estudo, priorizei o
diálogo com o espectador). Tentei analisar o que eu aprendi ao ser confrontada com esses
“pastiches” e talvez caiba aqui uma última observação de tentativa de compreensão da forma
de Ópera dos vivos e que de fato é sua ideia ordenadora.
A primeira “dimensão” da peça é a do enfrentamento entre proprietários de terras e
trabalhadores rurais, a última, no quarto ato, a do fetichismo do capital. Tanto a primeira
quanto a última são apresentadas de formas estéticas negativas − aliás os atos são todos
“negativos” em sua composição dramática, pois revelam a todo instante os seus limites: da
alegoria trágica, e mesmo do teatro épico. Parece que o percurso representacional de Ópera
dos vivos formaliza as condições mesmas do capitalismo atual, no qual o jogo é a “dinâmica
destrutiva e excludente do fetichismo do capital” (SCHWARZ, 1999).
No prefácio ao livro de Robert Kurz, O colapso da modernização, Roberto Schwarz
faz o seguinte apontamento

a crise do capitalismo se aguça no momento mesmo que a classe operária já


não tem força para colher os seus resultados. A versão última do
antagonismo não será dada pelo enfrentamento entre burguesia e
proletariado, mas pela dinâmica destrutiva e excludente do fetichismo do
capital, cuja carreira absurda e m meio aos desabamentos sociais que vai
provocando pode ser acompanhada diariamente pelos jornais. O movimento
vai em direção de uma nova idade das trevas, de caos e decomposição,
embora o processo produtivo, considerado em sua materialidade e
envergadura planetária, e apartado da carapaça concorrencial, exiba os
elementos de uma solução, que o autor valentemente chama pelo nome de
comunismo. (SCHWARZ, 1996, p.14)

Na peça do Latão acompanhamos um desenvolvimento “dramático”, das relações


entre os personagens, análogo ao de decomposição, como uma sugestão do que seria o
processo histórico. Por este prisma crítico, conforme Schwarz, “o Marx da crítica ao
fetichismo da mercadoria será mais atual que o da luta de classes” (p.15).
Lembro, então, que a crítica de Roberto Schwarz foi escrita em 1992, quando o livro
foi publicado no Brasil. Na versão publicada em Sequencias brasileiras, o texto que serviu
como prefácio ao livro inclui um trecho de outro trabalho: Ainda o livro de Kurz, de 1993.
171

O livro de Kurz procura adivinhar e construir o movimento do mundo


contemporâneo, que trata de colocar em forma narrativa. Esta se vale de
operações intelectuais díspares, sem nada de épico em si mesmas, das quais
entretanto depende a força do andamento de conjunto – como aliás ocorre no
romance moderno (...) Por um lado, a multiplicidade dos procedimentos,
cada qual dependente de disciplina intelectual e estilo literário próprios,
atende a esta noção de um presente complexo. Por outro lado, ela configura a
promiscuidade (no bom sentido) em que vivem o jornalista, o filósofo, o
economista, o historiador, o literato, o agitador etc. no interior do sujeito que
busca fazer frente à experiência do tempo, por escrito e para uso do próprio.
Diferentemente da epopeia de Marx, que saudava a abertura de um ciclo, a
de Kurz é inspirada pelo seu presumido encerramento. Se em Marx 55
assistimos ao aprofundamento da luta de classe, onde sucessivas derrotas do
jovem proletariado são outros tantos anúncios de seu reerguimento mais
consciente e colossal, em Kurz, cento e cinquenta anos depois, o
antagonismo de classe perdeu a virtualidade da solução, e com ela a
substância heroica. A dinâmica e a unidade são ditadas pela mercadoria
fetichizada – o anti-herói absoluto – cujo processo infernal escapa ao
entendimento de burguesia e proletariado, que enquanto tais não o
enfrentam. (SCHWARZ, 1999, p.188)

A representação teatral materializa a perspectiva crítica sobre o impasse no avanço da


luta de classes, a que sustenta que a crítica deve ser feita a partir do fetichismo da mercadoria.
Parece ser esse também o movimento da peça, e a “solução” dada pelo epílogo, idealmente e
ideologicamente composta, é o contraponto a essa perspectiva, o que não deixa de confrontar,
sem solucionar, as formas da crítica anticapitalista na atualidade; a dramaturgia cênica, que
materializa o processo histórico como a desintegração do antagonismo de classe rumo ao
fetichismo da mercadoria, é confrontada, com o epílogo “extra-teatral”. A poética alcança a
crítica da ideologia próxima aos termos do método da crítica à religião em Marx: a alienação é
compensada por uma ilusão de um ser, Deus, que objetiva as qualidades humanas, fazendo,
entretanto que sucumba a essa ilusão, sem deixar de ser uma expressão da miséria real.
Segundo Peter Bürger

O modelo marxista da crítica dialética da ideologia foi transposto, entre


outros, por Georg Lukács e por Theodor W. Adorno para a análise de obras
individuais e de conjunto de obras. (...) Aquilo que Lukács e Adorno adotam
do modelo de Marx é a análise dialética do objeto ideológico. Este é
apreendido como contraditório, sendo tarefa da crítica expressar essa
contraditoriedade em conceitos. No entanto, pelo menos duas diferenças
essenciais podem ser constatadas com relação ao procedimento do jovem
Marx. Para ele, crítica da religião e crítica da sociedade coincidem de modo
geral. (...) A relação entre crítica da ideologia e crítica da sociedade é, em
Lukács e Adorno, francamente diversa da encontrada no jovem Marx. (...) A
análise crítico-ideológica de obras se distingue ainda do modelo de Marx

55
Roberto Schwarz, em passagem anterior, aproxima a composição narrativa do livro de Robert Kurz ao 18
brumário de Luís Bonaparte, de Karl Marx.
172

num outro aspecto: pela ampla renúncia à apreensão da função social do


objeto ideológico. Enquanto Marx, além do caráter contraditório da religião,
discute ainda o caráter contraditório da função social da religião (que é
consolo e, com isso, ao mesmo tempo impede a ação transformadora da
sociedade), na análise individual, tal como a exercitam Lukács e Adorno, a
problemática da função social desvanece-se consideravelmente. Esse
desvanecimento requer com mais razão ainda uma explicação, se
considerarmos que o aspecto da função é inerente ao modelo de Marx. A
renúncia de Lukács e Adorno a uma discussão da função social da arte torna-
se compreensível, ao nos darmos conta de que ambos fazem da estética da
autonomia – não importa quão modificada – o ponto de fuga de suas
análises. Ora, na estética da autonomia está implícita uma determinação da
função da arte. Ela é concebida como aquela esfera social que se destaca do
cotidiano burguês, ordenado segundo a racionalidade de fins, achando-se,
justamente, por isso, em posição de criticá-lo. “É social, na arte, seu
movimento imanente contra a sociedade, não sua tomada manifesta de
posição [...]. Tanto quanto se possa predicar das obras de arte uma função
social, esta só pode ser sua carência de função 56” (BÜRGER, 2012, p.31-34)

Na medida em que a peça avança de um ponto de vista histórico a acompanha a crítica


anticapitalista que se faz a partir do fetiche da mercadoria. De certa forma, a dinâmica da
peça estrutura o reconhecimento do fetichismo da mercadoria se repondo conforme a
“neonaturalização” do capital, portanto, a imagem espetacular que a montagem deixa
acumular se revela como a objetivação do fetiche da mercadoria – e também revela sua
função social −, esta uma representação ideológica crítica, contudo, para o Latão, uma “falsa
consciência” – vejamos, então, que o Latão está mais próximo do jovem Marx do que de
Adorno e Lukács. Em Morrer de pé, por exemplo, a alienação é compensada – é consolo
também do ponto de vista crítico − pelo reconhecimento do espectador: temos consciência
que a telenovela e os subprodutos televisivos são ideologicamente orientados; temos
consciência que os negros ocupam postos subalternos; temos consciência que o mundo do
trabalho produz sujeitos doentes. Para Brecht, “basta perguntar: o momento de realidade em
questão está suficientemente exposto ao exame causal ou não?”. (BRECHT, 2002, p.161),
porém, mesmo em Brecht, o que fazer quando não houver mais nada para desmascarar...
Usando a sugestão de Peter Bürger sobre a coincidência entre a crítica da religião e
crítica da sociedade, a crítica à ideologia anticapitalista sobre o fetichismo se fez coincidindo
à organização do trabalho produtivo e produção de mercadorias, se tornando a ideologia
principal anticapitalista no mesmo movimento da ideologia principal do capitalismo moderno,
segundo Roberto Schwarz (2008, p.141). O que essa “ideologia conceitual”, a que derrota a
luta de classe como possível superação, diz aos artistas do Latão no início do século XXI?
Jorge Grespan, em entrevista realizada pelo coletivo em 2007, foi assim questionado:
56
Citação feita pelo autor de Teoria estética, de Theodor Adorno.
173

A ênfase no tema do fetichismo, tal como feita por parte da escola de


Frankfurt, quando diz que somos todos funcionários do capital e que o “o
sujeito está esmagado” não pode levar, no limite, a uma neonaturalização do
capital, àquela perspectiva fatalista de que nada se pode fazer em relação aos
processos capitalistas? (VINTÉM, 2007, p.19)

A rigor, se a peça acaba com o suicídio de Perene pelo movimento da crítica


anticapitalista advinda da ideia de fetichização da mercadoria, cabe uma outra análise crítica
no sentido de problematizar, materialmente, os conceitos utilizados pela crítica – e a verdade
épica de Ópera dos vivos é problematizar, depurar, e, principalmente, funcionalizar a crítica
anticapitalista. Em última análise, a formalização se contrapõe à crítica dos ideólogos do “fim
da luta de classes”. O procedimento demonstra um “sistema ideológico” do ponto de vista de
outro, que subjaz à toda a peça, mas que é retomado como força deslocada através do epílogo.
A contradição das duas construções analíticas, harmonizadas, é a contradição de base de
Ópera dos vivos, no seu movimento histórico. Salvo engano, se em Ensaio sobre o latão – e
em demais peças − como afirmei anteriormente, é a construção de personagens em
contradição com sua função que permite a historicização o mesmo procedimento é utilizado
em Ópera dos vivos para a funcionalidade da crítica anticapitalista. A questão é que a crítica
ao fetiche da mercadoria produz, no máximo, o “aborto” de qualquer tentativa de
desalienação. Para lembrar Roberto Schwarz: “quer dizer, ninguém escapa da forma-
mercadoria e ninguém pode agir como se estivesse fora dela. As soluções têm que ser achadas
a partir dela e não a partir da ausência dela”.
Como “síntese” do trabalho do Latão, pelas palavras de Sérgio de Carvalho:

Como alguém interessado nas particularidades vivas do mundo real, como


alguém que encontra no trabalho coletivo de arte um indício simbólico da
realização de uma vida menos alienada e pré-determinada, eu não consigo
achar que vale a pena uma perspectiva crítica em que o rigor analítico não se
conjuga ao gosto pela produção viva, em que a lucidez sobre o que é não
mobiliza a invenção do que podia ser. E não considero verdadeira uma visão
de mundo que parece estabilizar o processo da dominação capitalista ao
decretar como absoluto o esmagamento do sujeito, desconsiderando o
sentido político da contradição entre as forças produtivas e as relações de
produção. Já vi, no campo da arte, isso redundar em neonaturalização do
capital (convertido na famosa imagem da “máquina-cega”) ou um fetichismo
estético, que aposta no simbolismo da liberdade criativa em abstrato, como
se a arte fosse um lugar do puro sensível que não se contamina pelas
formalizações da vida (CARVALHO, 2009a, p. 47-48).
174

Mas é claro que há no “desenvolvimento teatral” a percepção da ausência de um


“correlato social” que “assuma” o epílogo como o personagem-sujeito histórico, por isso ele
apenas comparece como idealização – que não encerra no palco, nem através do epílogo,
muito menos nos atos, uma verdade completa. Muda-se a função convencional do teatro, nos
termos de hoje acomodada entre fruição e consumo, alterando, também, a função do
espectador. Mas o que esperar dessa burguesia – essa que frequenta o teatro? Seu limite está
no limite de ordem social. No atrito do palco-plateia, a peça-estudo sintetiza o movimento da
ideologia de crítica ao capitalismo, como que apontando para a continuidade histórica que se
dá via a contradição entre as forças produtivas e as relações de produção – por isso das
imagens sobrepostas ao final do espetáculo.
Há que se reforçar, então, a nota quanto à “eficiência simbólica” de Ópera dos vivos: o
estudo implica na análise das formas culturais de produção ideológica: teatro, cinema, canção
e televisão são meios pelos quais se produz e reproduz uma sensibilidade sobre a realidade.
Assim, estão dispostas, como estudo, em suas materializações. O estudo de Paula Kropf, em
Poderá ser o mundo de hoje representado pelo teatro? – algumas experiências no Brasil,
dissertação de mestrado defendida em 2011, sobre a Ópera dos vivos reforça essa chave de
análise. No primeiro ato a disposição do teatro épico trabalha, assemelhado ao período em que
relata, um modo de pensar questões coletivas. O filme, no segundo ato, “mostra um
movimento de expansão dos meios de divulgação e produção cultural, a esfera da circulação,
a partir do grupo de teatro comunista, do jornal, o filme e os shows em bares” (KROPF, 2011,
p.123). O terceiro, a partir de uma observação de Roberto Schwarz sobre o Tropicalismo, na
qual a “ambiguidade análoga aparece na conjugação de crítica social violenta e comercialismo
atirado, cujos resultados podem facilmente ser conformistas, mas podem também, quando
ironizam o seu aspecto duvidoso, reter a figura mais íntima e dura das contradições da
produção intelectual presente” (SCHWARZ, 2008, p.89), faz com que parte do público,
novamente semelhante ao período evocado, julgue-o e o considere “escandaloso”, não pelo
seu lado irreverente, mas deliberadamente político. E no último e quarto ato:

Ao expor ao público os bastidores do funcionamento da emissora, se


evidencia igualmente as relações de trabalho no marco de um capitalismo
maduro. A dimensão coletiva do trabalho cultural, presente no momento
anterior, se enfraquece ao longo dos anos e se dissipa, sucumbindo aos
princípios de uma lógica dominante (KROPF, 2011, p.126)

Inserindo o estudo, em cena, sobre pesquisa estética e política, a peça registra formas
operativas dentro do campo crítico de projeto anticapitalista, percorrendo a encruzilhada de
175

produzir representações que desarticulam as ideologias, ressaltando as condições sociais


mesmas que lhe eram, e, são correspondentes. Nesta demonstração de como as produções
culturais manipulam conteúdos ideológicos, a crítica à ideologia representacional se
assemelha a um experimento sociológico – nos termos apresentados por Brecht em Processo
dos três vinténs − reapresentando transformações sociais e de critério quando, olhado pela
atualidade, o teatro épico, a alegoria “trágica” ou ainda “tropicalista” – e o arranjo em atos é o
achado para tal perspectiva, pois o desenvolvimento da história se deixa ver em fragmentos –
nos conta a história dos vencidos e, também, dos vencedores.
Do estudo a que me propus, de tentar demonstrar os mecanismos e procedimentos
pelos quais o Latão equilibra, ou articula, o projeto ideológico ao projeto estético, a encenação
de Ópera dos vivos é exemplo de como reverbera o estudo sobre a produção ideológica
cultural e a realidade, num amplo experimento nos quais as práticas culturais estão à
disposição para a observação do espectador, arriscando e confrontando-o às suas próprias
expectativas. A semelhança à significação do que foi a filmagem e conflito com a empresa
“detentora dos direitos” de a Ópera dos três vinténs, dramatizado como observou José
Antonio Pasta em O processo de três vinténs, o Latão põe em causa o seu próprio trabalho,
levado a uma situação-limite de produção na esfera capitalista, que tem como recurso último a
aguda demonstração de que se constitui, também, como prática ideológica. Já em Ensaio
sobre o latão, a ambiguidade do Iluminador, que de tão tecnicamente perfeito precisou levar
um choque de “materialidade” indicou em seu projeto estético a consciência de tornar o
projeto ideológico uma ferramenta de trabalho e inserção no campo acirrado de formação
simbólica e talvez nenhum outro coletivo em atividade no teatro brasileiro a anuncie com
tanta lucidez em suas encenações.
176

EPÍLOGO

Soube que vocês nada querem aprender


Então devo concluir que são milionários.
Seu futuro está garantido – à sua frente
Iluminado. Seus pais
Cuidaram para que seus pés
Não topassem com nenhuma pedra. Neste caso
Você nada precisa aprender. Assim como é
Pode ficar.
Havendo ainda dificuldades, pois os tempos
Como ouvi dizer, são incertos
Você tem seus líderes, que lhe dizem exatamente
O que tem a fazer, para que vocês estejam bem.
Eles leram aqueles que sabem
As verdades válidas para todos os tempos
E as receitas que sempre funcionam.
Onde há tantos a seu favor
Você não precisa levantar um dedo.
Sem dúvida, se fosse diferente
Você teria que aprender.
Bertolt Brecht

Ao iniciar este estudo, ambicionava comparar o projeto estético do Latão em duas


frentes, opostas, porém. De um lado, a uma certa “cena contemporânea” que tem na
construção de uma “nova dramaturgia”, baseada mais nos clichês e lugares comuns do gênero
dramático uma estética acabada e bem-feita e, desta forma, acomodada em seu fetiche como
mercadoria, ou por oposição, mas com o mesmo sentido político, as experimentações
performáticas que guardam distante semelhanças a um certo gosto expressionista subjetivista.
Possivelmente, contudo, renderia muito mais uma outra “intuição” inicial do presente estudo:
comparar a produção do Latão a outros grupos, ou peças, com semelhante pressuposto
ideológico, em seus rendimentos estéticos. Assistindo a peças de companhias e artistas que
assumem em seu discurso um projeto anticapitalista, percebo – e são, de fato, impressões −
um registro esteticizado que se basta como crítica, como se, diante da neonaturalização do
“sem sentido”, os expedientes estéticos reiterassem os limites da constatação e estarrecimento.
Por esse vetor comparativo, as paródias da alegoria trágica e tropicalista – que se servem
alguns coletivos teatrais − que estão presentes na composição de Ópera dos vivos
sustentariam a análise sobre seu uso em experiências contemporâneas, muito próximo ao que
observou Anatol Rosenfeld sobre a poesia de Brecht no uso da paródia: quando a inovação
transforma-se em “tesouro nacional” seu sentido é coagulado, “sem sentir-lhe o significado”
177

(2012, p. 63). Mas também como é muito fácil verificar, não foi possível resgatar, estudar, os
projetos estéticos de outros grupos ou artistas, questão que este estudo se ressente. Nessa nota
final, não pretendo recuperar o que foi discutido nas seções anteriores de forma
pormenorizada. Espero que pelo andamento por mim proposto, tenha esclarecido os termos
pelos quais analisei as peças do Latão; em específico Ópera dos vivos, com o projeto
ideológico de crítica anticapitalista se fazendo forma pela condução da narrativa durante os
quatro atos, bem como, numa outra mediação, pelo assunto do primeiro e do último, e em
uma terceira mediação, ainda, das abordagens “alegóricas” com resultados mais curtos no
filme e evidentemente mais expressivos no show narrativo, como formas de estudo e ensaio
quanto à prática teatral (e da obra de arte na esfera da mercantilização) – por essa via, o
expediente alegórico é posto em tensão com o projeto anticapitalista e registra, em oposição,
seus limites.
Recuperando o comentário feito no início desta tese: a) o grupo trabalha através da
consciência do teatro como resultante de experiências coletivizadoras – experiências
experimentadas em sala de ensaio e principalmente, na relação com o público que é
convidado a participar ativamente da construção simbólica da fábula; b) consciência da
necessidade de participação do intelectual na vida do seu tempo – participação feita por meio
do próprio fazer artístico, com peças apresentadas como ensaios, e ensaios críticos,
intervenções públicas, publicações de dramaturgia e crítica como formas de intervenção na
realidade brasileira; c) consciência da função social da arte – função compreendida como o
tensionamento entre o aparelho teatral e a expectativa por ele gerada, como espaço de
produção simbólica em desacordo com aquilo que lhe corresponde e d) consciência da obra de
arte como fato estético – exigente, portanto, do mais alto nível da consciência da linguagem.
A última seção deste trabalho se volta para as impressões da última peça do grupo, O
patrão cordial57, que estreou em julho de 2013, após várias apresentações e estudos cênicos
conduzidos desde agosto de 2012, no Rio de Janeiro no Centro Cultural Banco do Brasil, que
parece novamente tensionar a relação palco e plateia nos termos “suspensos” e abertos por
Ópera dos vivos.
Como “trabalho em processo”, baseada no texto O Sr. Puntila e seu Criado Matti, de
Bertolt Brecht, escrito em 1940, a peça é uma montagem que expõe o procedimento de
trabalho do Latão sobre teatro dialético, tanto na leitura do assunto ligado à luta de classes,
quanto na crítica à ideologia da forma dramática. O roteiro de O Patrão cordial, ainda

57
Agradeço a Companhia do Latão por fornecer o texto, inédito, de O patrão cordial. Utilizo a versão datada de
julho de 2013.
178

segundo o programa da peça, foi escrito a partir da improvisação dos atores e se baseia,
também, no estudo do livro Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda. A estrutura
dramatúrgica de O Sr. Puntila e seu Criado Matti é mantida e busca na identificação da
propriedade – sugerida pela inversão do O Homem cordial de Sérgio Buarque de Holanda,
mais próxima, portanto, do próprio Brecht – o motor da cordialidade, que dá o tom às relações
de trabalho na realidade brasileira. Segundo Anatol Rosenfeld, tratando da peça de Brecht

Seu motivo central, ao mesmo tempo jocoso e profundo, já fora explorado


anteriormente por Chaplin (Luzes da Cidade) a quem Brecht muito
admirava. Não é portanto novo o caso dos dois caracteres de Puntila, homem
afetuoso quando embriagado, homem egoísta enquanto sóbrio. Nova é a
maneira de como Brecht aproveita a curiosa duplicidade que desintegra a
personalidade do fazendeiro. A partir dela analisa a dialética inerente às
relações entre senhor e criado – tão bem exposta por Hegel – e,
concomitantemente, procura elucidar certos aspectos da sociedade de
classes. (BRECHT, 2008, p.167)

Segundo Anatol Rosenfeld, Brecht constrói uma peça episódica, “sem unidade de
ação, continuidade de intriga a desenvolver-se até o desenlace final” (ROSENFELD, 2008,
p.167). É saboroso o modo como apresenta Puntila, de modo hilariante e irônico, “com uma
ordem puntiliana que consagra a desordem, já que o seu comportamento humano, em vez de
fazer parte da normalidade das instituições, surge apenas como capricho pessoal, como
adorno que enfeita a dura realidade” (ROSENFELD, 2008, p.172).
A relação com seu motorista, “Matti, criado cético, solidário com os seus colegas, que
tem a sabedoria e um pouco a esperteza dos oprimidos” (ROSENFELD, 2008, p.173), é de
desconfiança, embora embriagado tenda a tratá-lo, como demais empregados, de forma
“humanizada”.

Brecht não visa a apresentar com Puntila um homem mau ou um homem


bom, mas simplesmente um fazendeiro que, para ele, representa uma
organização social. É um “modelo” proposto para demonstrar
exemplarmente a atitude do superior que, não importa se com sinceridade ou
para disfarçar a realidade, “concede” ao inferior ocasionais benefícios,
enquanto de fato, como vimos, tudo fica na mesma (ROSENFELD,
2008,p.172)

Na comédia do Latão, de certa forma a relação Puntila-Matti é mantida, e é


considerável a complementação cênica, que agora incide também na relação Puntila-Eva,
filha de Puntila na igual tentativa de deixar expostos aspectos da sociedade de classes. Eva
179

(Vidinha, no Patrão) é apresentada, pela encenação, com contornos dramáticos, assim como
Cornélio. Ambos estão “em constante contradição consigo mesmo, produzindo na própria
pessoa o distanciamento”, como diria Anatol Rosenfeld sobre Puntilla, exigindo dos atores
capacidade crítica daquele que se deixa mostrar como intérprete.
As situações de personagens de cunho dramático estão em tensão com a matéria social
e com isso quero dizer que está em cena o próprio reconhecimento de que a forma dramática é
devedora de uma compreensão sobre a autonomia do sujeito, que entretanto, pela peça, é
sempre posta em questão uma vez que esta ideologia não corresponde às situações concretas
da vida. Por isso a personagem de Vidinha para escapar à sua função como proprietária
romantiza e idealiza o amor, em registro sincero, e mesmo Cornélio utiliza do álcool como
forma duvidável de se desvincular de sua função de classe. Ambos são determinados por
condições reais que não escapam obviamente em uma sociedade dividida em classes, da
divisão do trabalho.
O estrago do capitalismo, posto materialmente em cena, diz sobre as formas de
representação da vida privada, tanto de trabalhadores quanto de patrões e pelo mesmo
movimento alça a explicação sociológica sobre a cordialidade em termos concretos. Mas é
claro que a peça não trata apenas da consciência da forma representacional. O problema deste
ângulo, naturalmente, é refuncionalizar o aparelho teatral burguês, passando pelo escrutínio
da própria expectativa deste aparelho e do seu espectador.
A Vivi, ou Vidinha, de O patrão cordial sugere a relação que pode se estabelecer com
o espectador caso haja alguma identificação deste com a personagem. No início da peça, há a
seguinte narração: No Brasil não foi formado o individuo moderno. Mas só quando existe
diálogo entre indivíduos é que a desigualdade aparece como resultado da dominação de
classe.
É preciso determinar, junto ao rendimento da peça, um sentido para a narração inicial.
Mesmo quando Cornélio, a exemplo de Puntila, utiliza a embriaguez como forma de
“escapar” de sua função como proprietário, operando a conhecida “cordialidade”; a violência
da estrutura capitalista está à mostra nas situações dos personagens. Assim como observou
Anatol Rosenfeld sobre a peça de Brecht, “o problema levantado pela obra não é o “bom
patrão” ou o “mau patrão”, mas o patrão, simplesmente” (p.168).
As relações entre patrões e empregados ganham completa demonstração na encenação,
que também se desdobra com os demais personagens da peça: empregados na fazenda de
Cornélio e trabalhadores “livres” que o servem em outros ambientes, como no bar ou no
Mercado de Trabalhadores.
180

A situação fica um pouco mais complicada quando se observa as relações entre pai e
filha, que se dão também, no eixo da propriedade. O sentimentalismo de Vidinha, que não está
interessada em seu noivo Hélio, mas no motorista Vitor é uma das chaves para perceber o
estrago das relações de propriedade que se faz em âmbito individual. Na cena 5, intitulada: Na
fazenda, a necessidade do escândalo, muito do efeito hipnótico do teatro tradicional enreda o
espectador, embora a cena comece com uma narração de Vivi: Um aposentado grego de 77
anos se suicidou ontem nas proximidades da parlamento do país, dizendo ser esse o único fim
digno possível para ele, numa Grécia que atravessa severa crise. “Não quero deixar dívidas
para os meus filhos” gritou segundo testemunhas, antes de atirar na própria cabeça, debaixo
de uma árvore. Escreveu num bilhete: antes de começar a procurar comida no lixo.
A narração é entrecortada com a chegada de Luís Carlos, ex-trabalhador da fazenda,
demitido por ser comunista e que retorna à fazenda, no momento “cordial” de Cornélio. A
“imagem” do aposentado grego vai se desfazendo na medida em que a cena avança e tenta ser
“re-ativada” pela apresentação de outras relações da “fábula”: nela acompanhamos, via
narração, a surra que Descalcinho leva do patrão, que estando sóbrio desfaz os acordos
prévios com o novo trabalhador, ou ainda acusa Vitor de roubo, por este estar com sua carteira
quando foi o patrão que lhe deu quando ébrio. Vidinha observa a cena e pergunta a Vitor:

VIVI: Por que não se defendeu? Todo mundo sabe que quando papai bebe dá
a carteira pros outros, para não ter que mexer com dinheiro.

VITOR: Os patrões não gostam de quem se defende.

VIVI: Santinho do pau oco. Já me bastam os meus problemas.

VITOR: O noivado é amanhã, né? Bonito.

VIVI: Quem te pediu opinião!

VITOR - É bom, quando a noiva e o noivo tem afinidade.

VIVI - O Hélio é uma pessoa sensacional, o problema é ser mulher dele.

VITOR: Quem escolheu foi a senhora.

VIVI - É, uma coisa que nem todos têm, livre arbítrio, (Vinheta musical,
todos ficam de pé) sabe o que quer dizer: capacidade de decidir a própria
sorte. Eu sempre tive, papai me disse que, se eu quiser me caso com
qualquer um, até com você (Vinheta musical. Dançam pelo espaço e se
posicionam). Mas não podemos romper o noivado. Papai não é homem de
voltar atrás com a palavra. “o pico do Itatiaia pode...”Ah é isso.

VITOR - É, uma boa encrenca.


181

VIVI - Não sei por que eu me abro em assuntos tão íntimos.

VITOR - Isso de se abrir demonstra humanidade

VIVI – O que eu faço, você pode me ajudar. (Vivi se joga aos pés de Vitor)

Foco para Descalcinho e Hina que comentam a cena

DESCALCINHO – Tudo é tão delicado, me ajuda? E ele disse: mostre ao


noivinho que você é uma mulher perdida, que trata um empregado como eu
com uma intimidade perigosa.

HINA – Eles se beijaram?

DESCALCINHO – Os dois entraram juntos no banheiro. (Casal corre para


o banheiro ao fundo da cena. Descalcinho olha pela fresta)

VIVI – .. uma mulher perdida, uma ordinária, uma vagabunda?

VITOR – é preciso organizar o escândalo.

VIVI – Tudo bem, eu topo. Mas não abusa de mim. (Ele mostra o baralho)
Pra que o baralho?

VITOR – (Embaralha as cartas) A coisa pode demorar, melhor manter as


mãos ocupadas.

VIVI – Eles nunca vão acreditar que estamos fazendo essas porcarias a essa
hora do dia.

VITOR – Ah, vão, é só gemer bem alto. Pode cortar.

Acompanhamos nessa cena como a violência das relações de trabalho vão deixando o
terreno para a construção da necessidade do escândalo, que do ponto de vista dramatúrgico
coincide com a construção da ação dramática. Nenhum dos personagens que estão sendo
coagidos e violentados pelo patrão está em registro sentimentalmente “dramático”, ao passo
que quando começa a falar de sua infeliz vida, Vivi começa a conduzir a história e o
espectador é enredado na ficção esperando a solução do escândalo: se o noivo ficará ofendido
ou não, se desmanchará o noivado ou não. Mas o que será mais escandaloso para o
espectador: saber do suicídio de um trabalhador pois considerava indigno comer restos de
comida ou ver a construção de uma farsa sexual – ser falsamente abusada pelo Motorista –
para desfazer um casamento? O que é mais usual na construção teatral: a tentativa de
esclarecimento quanto às relações que determinam, de fato, a vida dos sujeitos e como estes
se movimentam diante desta ou daquela situação ou o enredamento nas situações dramáticas
cotidianas, sem contudo, articuladas às relações que as condicionam? É claro que o
182

encadeamento da cena de forma cômica faz com que, pelo sentimentalismo de Vidinha na
narração, a boa consciência, que pode ser até empregada pelo drama social, possa muito
pouco por colocar um problema que se estrutura do ponto de vista individual.
Em O patrão cordial, em Vidinha – e é muito interessante o modo como o realismo
psicológico fica a meio caminho, sendo o achado para a problematização da cordialidade − é
o recurso que permite a interpenetração do estudo épico e dramático, no qual a luta de classes
fica explícita pela ameaça de que o empregado compartilhe, ou “barbaramente invada” o
espaço do patrão, derrubando qualquer véu ideológico, como posto pela cordialidade e em
consequência formal, pela ótica dramático-burguesa. E o recurso dramatúrgico-cênico
presente em O Sr. Puntila e o seu criado Matti, mantido pelo Latão em O patrão cordial é
muito potente: quando de fato se avizinha a intimidade, o tapa dado por Vitor na bunda de
Vivi após uma cena na qual ela tenta convencê-lo de que é um “bom partido” para o motorista
novamente retoma o eixo da propriedade através do “gestus” (VIVI − não te autorizo a me
encostar um dedo). Segundo Fredric Jameson

O gestus envolve claramente todo um processo no qual um ato específico –


na verdade, um fato particular, situado no tempo e no espaço vinculado a
indivíduos concretos específicos – é assim identificado e renomeado,
associado a um tipo mais amplo e mais abstrato de ação em geral, e
transformado em algo exemplar. (JAMESON, 1999, p. 143)

É exemplar, portanto, que a representação diga a todo momento das relações de


propriedade a partir de situações de trabalho, e também familiares. É assim que esta chave é
retomada com a cena de strip-tease de Vivi para o pai, quando ela canta:

Enquanto se divertem na quadra de bocha


Talvez ainda faça um jogo diferente
Mas quando eu fizer não me siga não
Pois meu coração pertence - ao papai
Se eu convidar um garoto uma noite
Fazer uma boquinha e chubirubirubi
Mesmo que seu tamanho me satisfaça
Mas o meu coração pertence ao papai

O tema da propriedade é levado até a última cena, numa sensibilidade derramada de


Cornélio (muito próxima a cena do monte Hatelma em Brecht, que segundo Anatol Rosenfel,
dá a medida da suspeita do amor à natureza). Segundo Anatol Rosenfeld
183

Só depois de estabelecida a justiça social podem revelar-se o amor e a


bondade na sua pureza e autenticidade. Toda a ênfase de Puntila é
humanista. No horizonte da obra, não visível mas onipresente, espécie de
imagem sugerida no universo ambíguo da peça, pressente-se um mundo mais
generoso em que Puntila pode ser bom e Matti, seu amigo. (ROSENFELD,
2008, p.176)

O mundo generoso de Brecht, tal como pressentido por Anatol Rosenfeld, é


pressentido ambiguamente na peça do Latão, por isso da observação final de Luís Carlos:
Quando virá o tempo em que um realismo do tipo que a dialética poderia viabilizar será
realmente possível? Temos a todo instante que idealizar, já que a todo instante temos de
declarar nossa posição, e portanto fazer propaganda.
A peça retoma uma característica das peças didáticas brechtianas. Em Notas sobre a
peça A mãe, que tenta apresentar características do teatro épico pensado em sua composição,
como também em sua primeira encenação ao lado da “desastrosa” experiência realizada pelo
Theatre Union em Nova Iorque, Brecht faz a seguinte observação:

A estética aceita hoje em dia, ao exigir um efeito imediato, exige também, da


obra de arte, um efeito que supere as diferenças sociais e as restantes
diferenças que existem entre os indivíduos. Este efeito de superação dos
antagonismos de classe é ainda conseguido atualmente por dramas de
dramática aristotélica, se bem que os indivíduos cada vez tenham mais
consciência das diferenças de classe. E mesmo quando o antagonismo de
classes é o tema desses dramas, ou quando neles se toma posição em favor
desta ou daquela classe, tal efeito não se deixa de produzir. Seja qual for o
aso, cria-se entre os espectadores um todo coletivo, surgido a partir do
“humano universal, comum a todo o auditório, durante o tempo da fruição
estética. A dramática não-aristotélica, do tipo da de A mãe, não está
interessada na produção deste gênero de coletivismo e, muito pelo contrário,
divide o seu público (BRECHT, 2005, p.62).

A título de exemplificação sobre esta questão e como ela é trabalhada em O patrão


cordial, reproduzo a crítica de Bárbara Heliodora e a observação de quem sofre as
“intempéries” do mundo do trabalho:

Norteada pelas obras de Piscator e Brecht, tudo isso resulta, em “O patrão


cordial”, em uma obra antiquada, de ideologia e estética claramente da
primeira parte do século passado, que não leva em conta tudo o que mudou –
e se tornou muito mais complexo – no mundo real.58

58
Crítica da especialista Barbara Heliodora publicada no Segundo caderno do Jornal O Globo, em 07 de julho de
2013. Acesso em institutoaugustoboal.org em 09 de agosto de 2013.
184

Ao contrário do texto de Brecht, que se passa na Finlândia, “O Patrão


Cordial” se situa no Brasil, no Vale do Paraíba, nas encostas da Serra da
Mantiqueira, no início dos anos 1970. Mantendo como foco principal as
relações cordiais entre patrão e empregados, dentro de uma família não
muito convencional em seus comportamentos sociais e afetivos, convida os
espectadores a buscar uma reflexão própria sobre a peça que quebra as
expectativas produzidas de acordo com o padrão estabelecido e cristalizado
por nossa sociedade (...) Destacamos cada abordagem apresentada na peça,
presente e viva nos tempos atuais. Em nosso trabalho diário, Leonardo,
guarda-municipal, percebe a aproximação da população, após cometerem
infrações no trânsito, solicitam retirar tal infração, em troca de favor. Thiago,
corretor de seguros, recebe diariamente vários e-mails do diretor, que
trabalha em outro Estado, com palavras ofensivas e xingamentos,
direcionados a ele e a outros funcionários no Brasil. Porém, logo depois, o
diretor os trata como se nada tivesse ocorrido, como uma troca, em que uma
imposição crie expectativas de melhores resultados. Walter, funcionário das
forças armadas, é constantemente abordado pelo seu superior, que chega
com cordialidade para impor, que aceite trabalhar em dia de sua folga já
acordada. Ou seja, o tema abordado na peça (há anos atrás ) e o que vivemos
hoje, mostra uma dualidade que não se opõe, coloca-se em evidência o elo
entre a tradição e a modernidade, diretamente relacionada em nossa
sociedade.59

Vê-se, portanto, a eficácia do teatro épico em desmontar a homogeneização que pode


percorrer uma encenação quando ela é feita para tal fim.
O patrão cordial, pela quase ausência de recursos cênicos e pela disposição do grupo
em apresenta-la em escolas e cooperativas de trabalhadores retoma a perspectiva funcional do
teatro épico, embora o grupo tenha consciência de que o faz em termos outros do período no
qual Brecht atuava. Brecht anota em Diário de trabalho em 15 de março de 1942

Ontem à noite na casa de Bergner após conversa iniciada à tarde sobre teatro
épico. Ela é a mas bem-sucedida expoente do teatro reinante. Por isso
interessa conhecer sua reação. Ela gosta de Um homem é um homem e
detesta as notas que acompanham a peça. Desaprova Wedekind que
determinava que uma pai tivesse algo a dizer ao filho o dissesse à plateia.
Trato de explicar que Wedekind apenas precisava de um efeito-d e o criou de
modo um tanto primitivo. O principal obstáculo, obviamente, reside no fato
de que ela não vê a plateia como um conjunto de pessoas que desejam mudar
o mundo, escutando o informe sobre o mundo. Assim o tom básico desse
tipo de teatro lhe é estranho, o gesto de começar, o entusiasmo por um novo
milênio, a paixão pela pesquisa, a vontade de desencadear a criatividade de
todos. Ela vê a coisa toda como um novo “estilo”, uma questão de moda, um
capricho, e não reconhece que o que ela mesma faz é apenas um “estilo” etc
(...) (BRECHT, 2005, p.70).

59
Reflexão apresentada por alunos do curso noturno da Faculdade de Letras/UFRJ, na disciplina Fundamentos
da Cultura Literária Brasileira, após assistirem ao espetáculo. Agradeço Leonardo Ferreira, Thiago Machado e
Walter Neto por autorizarem a inclusão da reflexão neste trabalho.
185

Não é gratuita, portanto, a última observação da peça, logo após Descalcinho dar um
sugestivo chute em Vítor quando este decide ir embora da fazenda de Cornélio:

LUIZ CARLOS – Se estivéssemos num teatro, eu veria o público como um


conjunto de pessoas que quer mudar o mundo para melhor. Mas não é teatro.
É vida e dura pouco.
186

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PEIXOTO, Fernando. Vianinha, teatro, televisão, política. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1983.

RAMOS, Luis Fernando. Pós-dramático ou poética da cena? In: GUINSBURG, Jacó e


FERNANDES, Silvia (orgs). O Pós-dramático. São Paulo: Perspectiva, 2010.

ROCHA, Glauber. Revolução do cinema novo. São Paulo: CosacNaify, 2004.

ROSENFELD, Anatol. Literatura e Personagem. In: A personagem de ficção. São Paulo:


Perspectiva, 2007. p. 9-49.

_____. Prismas do teatro. São Paulo: Perspectiva, 2008.

_____. Teatro moderno. Organização: Nancy Fernandes e J. Guinsburg. São Paulo:


Perspectiva, 2008.

_____. Brecht e o teatro épico. Organização Nanci Fernandes. São Paulo: Perspectiva, 2012.

SCHWARZ, Roberto. Que horas são: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
191

______. Um livro audacioso. In: KURZ, Robert. O colapso da modernização. Da derrocada


do socialismo de caserna à crise da economia mundial. 4ª edição. Tradução Karen Elsabe
Barbosa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.

______. Sequências brasileiras: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

______. O pai de família e outros estudos. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

______. Martinha versus Lucrécia: ensaios e entrevistas. São Paulo: Companhia das Letras,
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SOUZA, Gilda de Mello e. Teatro ao sul. In: Exercícios de leitura. São Paulo: Duas cidades;
Ed. 34, 2008. P. 131- 140.

SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno (1880-1950). Tradução: Luiz Sérgio Repa. São
Paulo: CosacNaify, 2001.

THOMASSSEAU, Jean-Marie. O melodrama. Tradução: Claudia Braga e Jacqueline Penjon.


São Paulo: Perspectiva, 2005.

VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

____. Diferentemente dos americanos do norte. In:____ O mundo não é chato. Organização
Eucanaã Ferraz. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 42-72.

XAVIER, Ismail. A alegoria histórica In: RAMOS, Fernão Pessoa (org.). Teoria
contemporânea do cinema. Vol. 1. Pós-estruturalismo e filosofia analítica. São Paulo: Editora
Senac Sâo Paulo, 2005, p. 339-379.

____. Alegorias do subdesenvolvimento: cinema novo, tropicalismo, cinema marginal. São


Paulo: CosacNaify, 2012.

WEKWERTH, Manfred. Diálogos sobre a encenação. Um manual de direção teatral.


Tradução: Reinaldo Mestrinel. 3ª ed. São Paulo: Editora Hucitec, 1997.

WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura. Trad. Wlatersin Dutra. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1979.

____. Drama em cena. Trad. Rogério Bettoni. São Paulo: Cosacnaify, 2010.

____. Política do modernismo. Trad. André Glaser. São Paulo: Editora UNESP, 2011.
192

ANEXOS
193

ANEXO 1

Apresentação de Sérgio de Carvalho no 14º International Brecht Society Symposium.


O evento ocorreu entre os dias 20 e 23 de maio de 2013 em Porto Alegre.
Transcrição da apresentação inicial. Gravação e edição da autora.

A primeira coisa importante pra nós e talvez seja um conceito brechtiano de fundo de
experiência do Latão é a ideia de que para um grupo como o nosso, o trabalho é mais
importante do que a obra. A gente trabalha com a ideia de trabalho em processo artístico em
que o trabalho não é só o espetáculo teatral, mas um conjunto de atividades. Essa ideia está na
origem do próprio grupo. A Companhia do Latão nasceu de um estudo do Brecht chamado A
compra do latão. De início era um grupo de artistas que se reuniu pra estudar esse texto e
tentar fazer uma encenação a partir do material teórico. O primeiro trabalho do Latão é uma
peça-ensaio. Ensaio no sentido teatral e teórico filosófico. Essa peça ensaística foi uma peça
que aconteceu entre a teoria e a prática e ela estabeleceu uma primeira referência pra gente: o
trabalho sobre contradições formais. Eu diria que esse foi o primeiro ponto importante de
contato com o Brecht: perceber que a forma é produtiva na medida em que ela expõe suas
contradições e ela instaura um trabalho no espectador. Essa questão da contradição formal se
dá em todos os níveis e pra nós tem um aspecto central. Qualquer aproximação útil e atual
sobre Brecht não tem que se aproximar de um estilo brechtiano. Interessa nele uma atitude do
trabalho, e essa atitude nasce do desenvolvimento das contradições, que incidem também nas
formas. O que passou a ser importante para nós: examinar as tendências formais dominantes
no nosso trabalho teatral, anterior ao nosso contato com Brecht. A gente, a título de
contradição, na sala de ensaio começou a praticar uma busca realista. O grupo estava
interessado em desmontar a tendência à abstração da mesma forma quando percebíamos que
em nós existia uma tendência ao drama; isso era combatido com experimentações com a
dimensão narrativa. Isso era importante, pois rompia com o drama social que por vezes
aparecia no nosso trabalho. Um segundo passo, além dessa primeira influência brechtiana, foi
perceber que a atualidade de Brecht exigia uma consciência do que significa o capitalismo na
versão brasileira. É como se fosse importante adotar o ângulo da periferia do capital e das
suas formas de representação dominantes para poder entender qual o sentido de uma crítica
anti-dramática na atualidade. O que eu quero dizer é o seguinte: no Brasil, um país de passado
escravista tão recente, em que os modelos da racionalidade burguesa ocorre em padrões
distintos dos modelos de racionalidade burguesa europeia a ponto de uma forma como o
drama não existir na tradição literária brasileira até os anos 60 do séc. XX – é como se o
194

drama fosse uma forma impossível desde sempre no Brasil na medida em que você não tem o
conceito de indivíduo formado do ponto de vista social – nesse sentido passava ser importante
compreender que feições a racionalidade burguesa assume na estruturação das formas
dominantes de representação. Os trabalhos seguintes da Companhia do Latão são trabalhos
que enfrentam em dois níveis a questão brasileira: no nível das formas de representação e no
nível da tentativa de representar o aburguesamento contraditório que ocorreu na nossa
história. E lidando com esse fato fundamental que a ideia de individuo é uma ausência
histórica até muito recentemente no imaginário coletivo. Um terceiro aspecto importante foi
pensar que era necessário, além de estudar as contradições formais e de tentar descolar o
campo para um olhar sobre o capitalismo brasileiro atual, passava a ser importante também
fazer a crítica da representação dentro do campo da cultura. O que eu quero dizer com isso é o
seguinte: era importante fazer peças em que fosse temático a crítica ao próprio conceito de
cultura e de arte. Parte dos trabalhos do Latão começou a tratar da questão da representação e
da ideologia da representação, como tema. A própria questão do artista, a função do artista
como abastecedor do aparelho da cultura nos termos que o Brecht já descreveu no passado, na
atualidade. Passou a ser importante a partir daí descobrir formas atuais de representar isso, e o
Latão iniciou uma pesquisa sobre a ideia de um narrador desconfiável. Nós começamos a
fazer peças que o espectador deveria desconfiar do espetáculo e da ideia de espetáculo. É
como se a ideologia fosse um problema a ser enfrentado pelo espectador.
195

ANEXO 2

Imagens retiradas da gravação em vídeo realizada por Luiz Gustavo Cruz do primeiro ato da
peça Ópera dos vivos, Sociedade mortuária – uma peça camponesa.

O VELÓRIO DO MESTRE CARPINTEIRO

Palco vazio. Contra-regragem nas lateriais. Dois cavaletes segurando uma estrutura de madeira do
lado direito. Atores entram e se espalham pelo espaço. O ator que representa o Morto ocupa o centro
da cena. O Funcionário da prefeitura com um caixão ao fundo. Entra Aristeu.

MARIVALDO – Começo de canto é assobio. (Segue assobiando. Entra música).

Uma menina veste o Morto.


(...)
ARISTEU – Mãe!

MÃE – Então, filho.

ARISTEU – Não teve jeito.

MÃE – O que ele disse?

ARISTEU – Bati na porta, disseram que o Capitão está doente, agarrado ao lençol, não pode.

MÃE - Ele gostava de seu pai, elogiava o serviço.

ARISTEU – Mandou os pêsames.

MÃE – Disse que você mesmo construía?


196

ARISTEU – Nem me recebeu, mãe.

MÃE – Só umas quatro tábuas.

ARISTEU – A serraria está fechada. De luto. (Olha o pai) Pelo Mestre.

Marivaldo assopra o crucifixo do rosário da mão do Morto.

NARRADORA – Podem lembrar os feitos, podem esquecer os feitos. Não podem ajudar um homem
morto.
***

A CENA DA PROFESSORA

Um banco a frente. Atriz entra com um vaso de flores. Senta-se de costas para o público, vira-se para
falar.

PROFESSORA – Eu sou uma professora, devo alfabetizar homens adultos. Mas antes de ensinar o
alfabeto, quero que entendam que são sujeitos, que estão no mundo e com o mundo, aprendendo com
ele e transformando-o com seu trabalho. Quando do barro fazem um vaso, transformam a natureza, e
quando têm a necessidade de enfeitá-lo com flores continuam a transformá-la, produzindo cultura. Por
isso, o vaso, as flores, as letras têm de ser de todos.

Dois atores se aproximam da professora.

PROFESSORA (Para os alunos) - O mundo é seu também. O seu trabalho não é a pena que você paga
por ser homem, mas um modo de amar, de ajudar o mundo a ser melhor.
197

ATRIZ QUE FAZ A GRÁVIDA – Senhora, para que meu trabalho seja amor e não pena, eu tenho que
melhorar as condições dele e dividir seus frutos com todos. Para isso nós precisamos aprender a
confrontar aqueles que se dizem donos do nosso trabalho. Isso a senhora pode ensinar?

PROFESSORA (Para o público) – Eu olhei para ela e assustada pensei: o que eu devo aprender?

ALUNO – Uma lição.

Todos se juntam. Professora à frente segura a lousa com o desenho de dois homens fazendo um vaso
de barro virado para o público.

MARIVALDO – Eu sei fazer um vaso igual a esse aí, mesmo sem a giradeira, dá para fazer a forma na
mão com o barro cru, depois é só queimar.

PROFESSORA – Olha bem a imagem. Você acha que eles fazem o vaso para quê?
(...)
***

A FESTA DA SOCIEDADE MORTUÁRIA.

Cena do teatro de mamulengo. Os três atores que fazem os bonecos se preparam ao fundo e seguem
até o palco, representado por um pano segurado pelos dois atores que fazem as falas.

Canção Odete
Eu tenho pena de morrer
Deixar Odete
Eu tenho pena de Odete
Me deixar
Eu tenho pena
De morrer
Deixar o mundo
Quando eu morrer
O mundo pode se acabar.
198

ATOR: Me dá uma bitoquinha, vesguinha!

OUTRO ATOR - (a parte) Tenho dúvidas sobre isso.

ATOR - Um cheirinho só!

OUTRO ATOR - Algo bole dentro de mim.

ATOR - Ô vesguinha! Me aconchega!

Barulho de batida na porta.

OUTRO ATOR - Ô de casa!

ATOR - Quem é?

OUTRO ATOR - Sou eu, o capitão! (Atriz que representa o boneco coloca e tira a cabeça de dentro do
pano.)

ATOR - Ih! O capitão já veio. O capitão vem chegando. Senhor capitão, fez boa viagem?

OUTRO ATOR - Fiz. Como é que está a situação do trabalho?

ATOR - Ah, capitão, a situação do trabalho está boa. Botei foi dois moradores para fora. Ah! Ah! Ah!
Foi pau! Mas deixaram foi tanta coisa para nós capitão! Deixaram mandioca, milho e outras
leguminosas, deixaram tudo plantado. Estamos no lucro, capitão.

OUTRO ATOR - Mas quem mandou fazer isso, seu truculento? (Coronel bate na cabeça do empregado
e lhe arranca o chapéu.) Agora eu sou o presidente de honra da Sociedade Mortuária.

ATOR - Vixi Maria, capitão mais os pobres!

Atores desmancham o teatro de bonecos. A professora, Marivaldo e Vitorino penduram a faixa da


Associação dos Lavradores de Bom Jardim à esquerda, atrás. Aristeu conserta a cruz a frente. Odete
e Dona Élia atravessam o palco em diagonal.

MÃE – Quer ajuda aí, professora?

PROFESSORA – Eu dou conta.

DONA ÉLIA – É mungunzá que não acaba mais. Está precisando namorar, hein, Odete. Quem tem
veia, tem pulsação.

MARIVALDO – Festa de rico é luxo. Festa de pobre é bucho.

VITORINO – Associação não é uma palavra esquisita, professora?

NARRADOR – Os atores procuram um realismo que seja ruptura. Discutem se é possível imitar um
mundo que desmorona. Experimentam com formas populares e descobrem novas relações de trabalho
em arte.

ATOR – Por que tratar desse assunto tanto tempo depois?

ATRIZ – Porque os mortos dessa luta estão vivos.


199

CEGO – (sentado num caixote à direita do palco, fala a Vitorino. Músicos acompanham)
Nunca estive nessa igreja
Nunca teve a porta aberta
Qual a reza benfazeja
Que pagou a vossa festa

VITORINO – (do alto da escada.) É a Sociedade Beneficente dos Mortos, Seu Cego. Inspirada nas
Ligas Camponesas. E será batizada hoje: (lê a faixa.) Associação dos Lavradores de Bom Jardim.

CEGO – E por que é que batem o martelo, moço?

ABDIAS – É a nova cruz, doada pelo Capitão. Tem uma faixa no alto. A igreja vai ser reformada.
Tudo conquista nossa.

VITORINO – Conta para ele como foi a entrega da carta ao capitão.

ABDIAS – Fomos em cinco ao Bom Jardim, engenho do capitão Quirino. Eu e Vitorino na frente. O
rascunho da carta está com a senhora, professora?

PROFESSORA – Está aqui.

ABDIAS – Lê a senhora para o cego.

PROFESSORA (lendo) – Prezado Capitão: A Sociedade Mortuária de Bom Jardim pede vênia para
comunicar a Vossa Excelência que em sua Assembleia Geral, com o comparecimento de 123
associados..

CEGO – 123? É gente!

PROFESSORA – Por unanimidade de votos foste eleito presidente de Honra da Sociedade Mortuária.

ABDIAS – (interrompe a leitura) Quando eu vi nós cinco no pé daquela varanda, o homem lendo a
nossa carta, nervoso com a nossa presença, alguma coisa estava mudando. Vamos representar!
Marivaldo e Vitorino, venha cá. Vocês fazem a gente. Eu faço o capitão. (Para o cego) Assiste dali,
Seu Cego.

Abdias representa o Capitão com a carta na mão. Dá dois passos, entra música.

MARIVALDO – Mas o cego não está vendo nada!

ABDIAS – Ele imagina.

***
200

PROCURA DO BARRO

O SOL EM PERNAMBUCO (JOÃO CABRAL DE MELO NETO)

O sol em Pernambuco
Leva dois sóis
Sol de dois canos de tiros repetidos
O primeiro dos dois
O fuzil de fogo
Incendeia a terra
Tiro de inimigo
Tiro de inimigo

O segundo dos dois


Um fuzil de luz
Revela real a terra
Tiro de inimigo

Transição para translado da estrutura do cenário. Marivaldo, Dona Odete e Dona Élia fazem um
coro, virados para a plateia: Revela real a terra. Tiro de inimigo.

Dona Odete, a Professora e Marivaldo. Dona Élia observa a cena do fundo a esquerda.

MÃE – Aqui é o açude, professora. Podemos pegar mais barro. (Professora agacha, com a cabeça
entre as mãos. Dona Odete a observa.) O que a senhora tem professora?

PROFESSORA – Nada. Estou cansada. Só isso.

MARIVALDO – Dá para passar o cansaço para uma pedra. Unta de saliva, esfrega no calcanhar e joga
para trás bem longe, sem olhar. Vai tudo para a pedra.

DONA ÉLIA - Ô, atoleimado. Professora, depois eu faço um chá de ervas.


201

Mãe caminha em direção ao açude.

PROFESSORA – Não se incomoda Dona Élia. A senhora vai entrar na água?

MAE – A gente não entra!

MARIVALDO – Naquela casa de pedra, os pretos eram jogados no açude.

PROFESSORA – Os escravos?

MARIVALDO – Os escravos. As águas são pesadas, puxam para o fundo. É por isso que não se pode
nadar aí.

ATRIZ – Ele riscava no ar desenhos que ela não entendia. Dava explicações mais complicadas do que
os enigmas de que falava.

DONA ELIA (canta para Marivaldo) – Vou me embora pra Luanda


Que a vida lá é melhor.
Escalé de doze remo,
Meia lua e meio sol.

MÃE – Meu marido, o finado José, me dizia: “Odete seja mansa, tua raiva com os senhores não leva a
nada”. Ele não me deixaria freqüentar escola, quanto mais participar de política.

MARIVALDO – Todas as coisas deste mundo falam, mas ninguém compreende.

***

A REUNIÃO CAMPONESA

Canção Eu não sou daqui. Sons de assembleia. Vitorino entra correndo na frente, os outros com um
sino nas mãos.

VITORINO – Vamos minha gente. Eles exigem o fim da associação. Deram vinte e quatro horas. E o
recado veio com assalto, destelhamento, lavoura arrasada.

ATRIZ – As pessoas chegam aos grupos para a reunião. É preciso representar a dificuldade de
estarmos juntos.

Ator se senta ao lado da cena e assiste a tudo insatisfeito.

ABDIAS – Quando eu entrei na sociedade era por melhoria: escola, reforma da igreja, posto de saúde.
Não era por propriedade, não sei se nos temos força para isso.

ATRIZ – Ensaiávamos discutindo a diferença entre a nossa situação e a dos artistas dos anos 1960,
retomávamos um tema que foi deles nos perguntando até que ponto ainda é nosso.

ABDIAS – Bem que eu queria nessa vida um pedaço de mundo. Mas não é assim.

MARCELINO – Eu vim travar conhecimento. Acho bom criticar, mas eu não dou um passo contra a
lei.

GRÁVIDA – Essa lei é deles, não é nossa.


202

ATOR – Eu acho justo saber para que nós estamos aqui.

VITORINO – É nosso direito nos juntarmos para fazermos o que quisermos. Enterrar morto, jogar
cartas, ir para a escola, ninguém tem que se intrometer nisso.

GRÁVIDA – Quem não estiver aqui para lutar pela Associação pode pegar as coisas e ir embora. Mas
quem permanecer deve mexer os braços e fechar a boca.

DONA ÉLIA – Se estiver precisando de ajuda, eu tenho uma panela cheia de mungunzá que eu posso
enfiar goela abaixo.

ATOR (que estava sentado) – Eu me sinto desconfortável com uma demarcação tão nítida do conflito.
Para mim o teatro devia ser para unir.

ATRIZ – Uma atriz lembra das cinco dificuldades de se dizer a verdade, de Brecht. A primeira: ter
coragem para dizer a verdade.

DONA ÉLIA – Eu digo que o que eu aprendi fez mudar o meu corpo. Os meus olhos já fazem falar as
palavras. O meu destino e o meu esforço me pertencem enquanto seguirmos juntos.

MÃE – O que nós fizemos não pode morrer.

ATRIZ (Narra) – Dona Odete ocupa o centro da sala com um papel na mão.

MÃE – (Mulheres se juntam) Uma pessoa sozinha nesse mundo não vale nada. Quero pedir licença
para ler uma carta que eu e as outras mulheres escrevemos na escola. (Abre a carta.)

Nós, mães, esposas e filhas


De Bom Jardim
Em nome da Associação de Lavradores
Antiga Sociedade Mortuária de Bom Jardim
Aprendemos no último ano
Uma coisa que sabíamos desde sempre
Que somos explorados
Mas só aprendemos o que já sabíamos
Quando dissemos a palavra em voz alta
Explorados
Agora o que nós queremos saber dos aqui presentes
É quem está conosco na hora sem volta
Que ergam os braços.

Dona Odete ergue a mão, as mulheres a seguem. Em seguida os homens acompanham.

CANÇÃO EU NÃO SOU DAQUI

MÃE – Essa terra é minha, essa terra é sua


Eu não sou daqui
Eu quero que o senhor me diga
Onde foi que eu estava ontem
Onde foi que eu estava ontem
Essa terra é minha essa terra é sua

CANÇÃO DA FOME DE MÁRIO DE ANDRADE


203

Fome de fome
Fome de justiça
Fome de equiparação
Fome de pão
Fome de pão

VITORINO – É a hora do tombo do pau.

NARRADORA – “Gostaríamos que as transformações que se reclamam em praça pública


Se processassem de maneira pacífica,
Mas a reação daqueles que têm tudo é violenta
A reação dos donos dos grandes latifúndios
Dos bancos
Das fábricas
Dos comércios
E dos meios de comunicação
É isso que nos leva ao desespero
E nos chama para uma luta nova.” Francisco Julião, 1963.

MARIVALDO – Organizaremos uma marcha, uma multidão, somos muitos, temos bocas, temos
olhos, somos feitos da matéria da terra.

***
204

IMAGEM DO GRUPO DE TRABALHADORES


Todos em cena. Imagem da cerca sendo derrubada.

NARRADORA – No tempo em que a acumulação de riqueza


Conheceu seus limites nas zonas mais atrasadas do país
A burguesia do Nordeste, sob o influxo do capitalismo mundial,
Expulsou os camponeses de suas terras
E aumentou o valor de seu sobretrabalho na tentativa desesperada de elevar a taxa de lucro.
Foi nesse contexto que a Ordem agrária entrou em colapso
E aquele semicampesinato se tornou o principal ator político
Da história da luta de classes no país, com o nome de Ligas Camponesas.

Desfaz-se a imagem da cerca. Todos os atores de frente para o público cantam a Canção da
professora

CANÇÃO DA PROFESSORA
Está
O que não estava lá
A palavra faz ver
O olho produz
O novo nome
Do barro
É vaso
O novo nome
Do buraco
é flor
Está
O que não estava lá
Até ser nomeado
O nome produz
205

Cena do filme Tempo morto – um filme sobre o golpe, segundo ato de Ópera dos vivos.

Bloco 7
Corta para torre de antenas.

FUNIS - Eu avalizo. Cabedal tem uma elite atrasada, mas que justamente por isso honra suas
dívidas.

Corta para Bárbara.

GRÃ-FINA em off – A tradição dos setores industriais é a participação.

BÁRBARA – A democracia precisa de verba. Doutrinação. Propaganda em jornais, televisão.

Corta para a torre.


RIBEIRO – Não é só dinheiro Paulo. É ordem. Ordem.

Corta para Bárbara.

BÁRBARA – É infinito o trabalho de repor o idealismo no cenário político e criar um clima


propício à intervenção militar.

Corta para Industrial e Empresário de Extração e Governador Magano.

EMPRESÁRIO (para o Governador) – O futuro político de Cabedal é que permitirá definir


ao homem de empresa se ele deve ou não entrar em novos negócios.

Corta para ajudante de Ribeiro, fumando um cigarro.


206

INDUSTRIAL DE EXTRAÇÃO em off – Essa incerteza, insegurança.

EMPRESÁRIO – Empresário: hiper-inflação, estatização, reforma agrária.

Corta para Industrial e Empresário e Governador.

EMPRESÁRIO- A salvação é o estado. Intervenção.

MAGANO: Mas por quê? A propriedade privada está longe de ser ameaçada.

INDUSTRIAL: Problema sindical. Invasão de fábricas. Depredação de máquinas.

EMPRESÁRIO: O mercado tem medo. Estamos inseguros.

MAGANO: Parecem todos marxistas! Sempre o primado do dinheiro. Há um ano que se fala
no golpe dos esquerdistas e do nosso contra golpe. Todos os dias. (para a câmera) Falta
realismo nesse melodrama de armas e sangue. (para Industrial). Não haverá golpe. O
presidente é um João bobo. Apenas balança de um lado ao outro.
207

Imagens retiradas da gravação em audiovisual realizada por Luiz Gustavo Cruz do terceiro ato
da peça Ópera dos vivos, Música popular – privilégio dos mortos.

CANÇÃO
Vultos distantes

Vultos distantes
Teatro em obras
Atores com armas na mão.
Braços pra cima
De punhos fechados
Enxadas, caixotes, ação.
Mas daqui onde estou
Eu ouço apenas
Uma canção feliz.
Perna de pau, uma atriz mascarada
Cartola estrelada, Tio Sam
Na madrugada, assembleia
Meninas, cartazes
Guevara, nação.
Mas daqui onde estou
Eu ouço apenas
Uma canção feliz.
Virada de março
Rajada de fogo
Acordo de um golpe no chão.
Barricada, incêndio
208

O céu do Aterro
Uma faixa estendida:
Revolução.
Revolução.

No palco.

APRESENTADOR – (ao microfone) Ela não morreu. Está viva como nunca. O terrível espetáculo do
seu internamento acabou. Era o tempo da espera. Ela imóvel num leito de hospital, sua carne
atravessada por aparelhos, e eis que ela se ergue no terceiro ato, depois de três anos em coma. (a
Miranda) Miranda, essa cena é sua, eu nada fiz que não fosse em seu benefício. Ouviu minha querida,
com você voltamos à luz. Receba a homenagem dos seus amigos.

Entra Bebelo entra e toma o microfone.

BEBELO – Eu vim aqui hoje, como vocês, para celebrar a volta de uma grande alma. Devo a ela...
Tão diferente de mim, ter me tornado um artista. E nossa história teve o seguinte começo...

Cao, a frente de Bebelo, começa a dança de forma casúlica, e aos poucos se transforma na atriz da
grande tela. Parangolés indicam o casulo de Cao. Continuam dançando nas laterais do palco.
209

***
210

Canção
Humanamente Real

Humanamente real
Eu estou me tornando.
Humanamente real
Eu estou me tornando.
Os mitos caíram.
Eu estou me tornando...
(Queira a metamorfose)
Despojadamente
Sintético
Real...
Eu estou me tornando.

CAO – Alacasam. Xasam. Evoé. Sem cor, sem linhas, sem forma, sem nada.

BEBELO – A história dessa música: um dia, durante o coma de Miranda fui visitá-la e percebi em sua
palidez cadavérica a conexão entre os aparelhos hospitalares e a carne. A velocidade da máquina
deixava a água escorrer, e era preciso um faxineiro que limpasse o chão. No mesmo movimento, o
arcaico e o moderno. Cheguei ao estúdio para gravar e olhei para o alto e vi um espírito, e foi a Cao
quem me falou.

CAO – Sabe esse fantasma que você vê atrás das paredes envidraçadas?

BEBELO – O que é?

CAO – O espírito do subdesenvolvimento. Fuja, seja real.


211
212

***

***
213

Canção
Júlia

Foi quando uma aparição


Júlia
Sobre o teto do automóvel
Seu punho contra o ar
Gritou ignorada voz
Reconheço essa cara
Júlia
Nos andaimes de um teatro
Na peça de um homem desmontado
Tomba agora na calçada
Júlia
Sou eu
Espancada e arrastada
Eu corro atrás
Eu perco a vista
Seu corpo, meu corpo
Seu corpo, meu corpo.

APRESENTADOR – Agora uma cançao mais alegre, voltada para o futuro.

Ela dá as costas à platéia por alguns instantes. Quando volta, toma o microfone e começa a discursar.

MIRANDA – O benzinho para eu não discursar, mas eu não gosto desse sapato. (Miranda senta no
palco e tira o sapato) Dá para parar um pouco. (Para os músicos) Esse negócio de televisao, toda essa
estrutura, e a gente meio que vai virando parte dela. Sabe o que é, a nossa voz é o nosso instrumento
de luta, por isso... (Pausa) Tá bom, vamos cantar...(Retomam a música) Era para eu dançar nessa
hora.

Miranda canta.

Música
Na metade esprimida da laranja
Eu vejo a feira
Dois por um
Dois por um
Eu vejo a feira
214

***

***
215

***
216

Imagens retiradas da gravação em vídeo realizada por Luiz Gustavo Cruz de Morrer de pé,
quarto ato de Ópera dos vivos.

***

***
217

***

(...)

CAPTADOR DE SOM – (Para a Figurante) Você pode passar o seu texto para mim?

FIGURANTE – Eu não tenho fala.

CAPTADOR – Isso é bom. Dos quietos será o reino dos céus.

***
218

NA COZINHA

Projeção de cenas da cozinha. Trilha da Cozinha ao piano. Assistente de direção acompanha com
vocalize. Atores narram de posições diferentes do palco.

CONTRA-REGRA – (Na frente da tela, para o público) – Oh grande tela, mostrai-nos agora seu
movimento contínuo. Pois só a vitória universal da produção e reprodução é a garantia de que nada
neste mundo surgirá que não seja capaz de se adaptar. Que se veja o fogo aceso da cozinha operária
(aparece a imagem) As panelas fumegando, a matéria prima das carnes e plantas à espera da
transmutação.

MOÇA DA COZINHA – (Do lado oposto a imagem) – Carne, peixe, frango, tanto faz. O conteúdo
não importa. Igual novela.

Entram o Moço da Cozinha e Dona Morita do lado oposto à Moça.

MOÇO DA COZINHA – Eu falei para ela: “já tem frango xadrez para a mistura, não descongela outra
coisa sem consultar.” Mas vai dar tudo certo.

MOÇA DA COZINHA – A senhora falou: “carne”.

DONA MORITA – Você acha que eu tenho dinheiro para jogar fora? (Para o público) Algum
funcionário aqui me ouviu falar a palavra “carne”?

MOÇO DA COZINHA – Eu ouvi frango.

MOÇA DA COZINHA – A senhora podia lembrar a ordem que dá.

DONA MORITA – Eu vou lembrar: só vai sair daqui quando tiver refogado, desfiado e colocar tudo
na geladeira lá de baixo. Ouviu, Dona Élia? Ninguém é bonzinho comigo, ninguém. Para quem não
quer trabalhar tem uma fila aí fora. Eu vou passar o carnaval pensando nessa carne. Eu vou sonhar
com ela apodrecendo. (Sai)

MOÇA DA COZINHA – Quem não precisa trabalhar?

MOÇO DA COZINHA – Você é teimosa demais. Enquanto não aprender a se adaptar, a vida vai ser
dura com você. Nunca ouviu falar do karatê? Se o sujeito não se dobra como a vara de um bambu, ele
quebra a espinha.

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* **

CAPTADOR – Me faz um favor, me ergue? Deixa eu subir nas suas costas?

CÂMERA – Está doido?

CAPTADOR – Depois eu te deixo ouvir, vale a pena.

CÂMERA – Vai (Captador sobe) Está ouvindo?

CAPTADOR – Quieto. Sumiu. (pausa) Espera.

Projeção de João das Neves.

Off - Foi encontrado vagando na fronteira do Chile, o trabalhador rural brasileiro Marivaldo dos
Santos, natural de Bom Jardim, Pernambuco. Dado como desaparecido há dois anos, ele declarou que
sua intenção era voltar a pé para Havana, segundo ele “uma cidade que fala, conversa, é vida.

CÂMERA – Então?

CAPTADOR – Um camponês, na fronteira. Igual o Homem que enfrentou o capeta quarenta dias no
deserto.

(...)
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A DECISÃO

Projeção do olho do cavalo, depois, rosto do Ator. Paredão de técnicos ao lado do Diretor na frente
da imagem.

DIRETOR – Olha só a cara dele: nenhuma beleza, mas a imagem parece bela. Será que ele não
percebe que isso não é um troço feito em série. (Para a Assistente) Anita, o que você faria no meu
lugar?

ASSISTENTE – Chamaria as instâncias superiores.

FIGURANTE – (para o Câmera) Você me conhece, não conhece? Há quantos anos eu faço figuração
aqui? Depois vão dizer que eu não sou profissional.

DIRETOR – O que deu nele?

ASSISTENTE – De repente, se lembrou dos mortos.

DIRETOR – Não, é uma criança. De manhã, na cama, a cabeça pesa, ele luta para organizar o dia, mas
só encontra desordem. Quando chega a noite, ele se mete num canto de bar, enche a cara de uísque,
porque aí ele espera a desordem, mas o que vê é o tempo passar uniforme nas risadas e caretas da
mesa ao lado. Eu entendo, sou um pouco assim. Mas eu vou mudar, eu sei, eu tenho tempo.

O Diretor se separa do Coro e caminha em direção ao Ator e para em sua frente.

ATOR – O diretor me diz: eu te entendo, nós artistas somos sensíveis.

CORO – Nós artistas somos sensíveis.

O Diretor joga o roteiro no chão e se ajoelha.


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ATOR – Todos temos nossos calabouços e masmorras.

CORO – Todos temos nossos calabouços e masmorras.

ATOR – E eu respondo a ele: “por que é tão difícil mudar uma história?”

O Coro se aproxima do ator.

CORO – É difícil mudar uma história.

CAPTADOR - Sons de armaduras rangendo.

Todos olham para o alto. Sons acompanham. O Produtor, de terno e chapéu, passeia pelas ameias do
teatro acompanhando de sua secretária.

CÂMERA - No alto, vemos a silhueta do produtor caminhando sobre as ameias do estúdio. Todos
olham para o alto atônitos.

FIGURANTE - Ouçam agora o que a figurante pensou e não disse: “este bloco sai sem mim, o meu
não”

DIRETOR – Dr. Lamaso, tudo bem com o senhor? Quanta elegância hein. (o Produtor o faz sinal
para que o Diretor suba) O senhor quer que eu suba? Desculpa senhor, eu não entendi. (o Produtor
sai, a secretária faz o último sinal) Entendi.

Diretor sai. Ator volta ao estúdio. Todos sentados assistem a cena.

ATOR (a Assistente) – O Lamaso, produtor, fez teatro comigo e com a sua mãe. Ela dizia dele: “esse,
tem o senso da adequação” Será que ela se orgulharia de mim e de você aqui?

ASSISTENTE – Ela se orgulharia de eu pagar as minhas contas.

ATOR – Desse jeito?


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ASSISTENTE – De que jeito?

ATOR – Esquecendo.

ASSISTENTE – Eu entendo o que você quer dizer, mas isso não muda nada. Eu não me junto a você.
(vai sair, e volta.) E para de falar da minha mãe.

A Assistente chora. O Contra-Regra a consola. Atriz canta o choro ao fundo.

CARLINHOS – Calma Anita. É só um trabalho.

A Atriz entra pela porta do cenário. Ao longo a fala os atores se levantam, conforme sua fala os
inclui.

ATRIZ - Eu vi o cavalinho, você é igual a ale, a mesma recusa, o mesmo não. Eu que sempre disse
sim, agora entendi a jogada toda. Para que representar? Para falar o quê? Seu gesto é lindo. Você se
revoltar aos 60 anos porque viu que eles precisam de nós. Com etiqueta e tudo. Podem pegar outras
máquinas de carne, pôr rugas em volta dos olhos, mas só um velho tem o olhar de um velho.

ATOR – O que você está dizendo?

ATRIZ – Eles vão te respeitar, não vai te faltar papel. Se fosse uma mulher era mais difícil lutar
contra... (chora) Uma atriz velha não vale nada, mas um homem é um homem. Não pode ser
desmontado. Você é um símbolo de resistência ao sistema.

ATOR – Cala a boca! Eu não sou nada. (Para todos, decidido) Anita.

ASSISTENTE – Fala Perene.

ATOR – Eu vou morrer. Chama o diretor. Eu vou fazer a cena. Quero pedir desculpas a todos por não
saber onde estou.

O Ator pega a arma e põe a peruca à espera da preparação do set.

ASSISTENTE – Ele vai morrer, ele vai morrer! Vamos gravar!

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EPÍLOGO

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