Você está na página 1de 92

CENTRO UNIVERSITÁRIO BELAS ARTES DE SÃO PAULO

Curso de Arquitetura e Urbanismo

Luan Henrique Linhares Vieira

ESCULPINDO O TEMPO: Linguagens Visuais, Espaço e Cidade

São Paulo
2020
LUAN HENRIQUE LINHARES VIEIRA

ESCULPINDO O TEMPO: Linguagens Visuais, Espaço e Cidade

Trabalho Final de Graduação apresentado ao


curso de Arquitetura e Urbanismo do Centro
Universitário Belas Artes sob orientação do
Professor Dr. Ademir Pereira dos Santos.

São Paulo
2020
DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho aos que se foram e aos


que ainda virão.
AGRADECIMENTOS

Agradeço ao meu orientador Ademir Pereira dos Santos pelas conversas, desenvolvimentos e
tantas influências literárias, midiáticas, culturais e outros tantos fatores aqui inexpressáveis.

Aos demais, amigos, professores e familiares que me incentivaram e mantiveram minhas


estruturas consistentes para que eu conseguisse suficiente investimento nas pesquisas e
obtenção de dados importantes para este trabalho.
RESUMO

ESCULPINDO O TEMPO: Linguagens Visuais, Espaço e Cidade

O objetivo desse trabalho é, inicialmente, explorar as relações entre o tempo e as artes visuais
com foco no espaço, especialmente na arquitetura e na cidade. Serão estudados autores e
obras que permitem abordar a questão da temporalidade ou que utilizaram o tempo como
recurso de linguagem em diferentes escalas. Serão estudadas imagens e trechos de filmes nos
quais pontos de vista individuais de personagens, ambientes, arbitrários a atitudes e escolhas
e, por fim, alusivo à cidade e sua dinâmica usual. Num segundo momento serão discutidas
obras e autores que permitem estabelecer conexões entre tempo, espaço e as reflexões sobre a
linguagem e os meios para sua representação. O resultado final consiste na análise da
abrangência da percepção da temporalidade na representação pictórica e gráfica em diferentes
ambientes e amplitudes.

Palavras-chave: Tempo, Espaço, Arquitetura, Filosofia, Artes


ABSTRACT

SCULPTING TIME: Visual Languages, Space and City

The objective of this work is, initially, to explore the relationships between time and visual
arts with a focus on space, especially architecture and the city. Authors and works that allow
addressing the issue of temporality or who used time as a language resource at different scales
will be studied. Individual points of view, environments, arbitrary attitudes and choices and,
finally, allusive to the city and its usual dynamics will be studied. In a second step, works and
authors will be discussed that will allow establishing connections between time, space and
reflections on language and the means for its representation. The final result is the analysis of
the comprehensiveness of the perception of temporality in pictorial and graphic representation
in different environments and amplitudes.

Keywords: Time, Space, Architecture, Philosophy, Arts


RELAÇÃO DE FIGURAS

Figura 1 - Rembrandt Rindo ..................................................................................................... 10

Figura 2 - Autorretrato com Boina e Corrente de Ouro ........................................................... 10

Figura 3 - Autorretrato .............................................................................................................. 12

Figura 4 - Autorretrato .............................................................................................................. 12

Figura5 - Reflection With Two Children ................................................................................. 14

Figura 6 - Reflexão ................................................................................................................... 15

Figura 7 - BilmurBilmur ........................................................................................................... 17

Figura 8 - Chloë ........................................................................................................................ 18

Figura9 - I Could be Who You Wanted ................................................................................... 19

Figura10 - Bobby Jones With a Driver ..................................................................................... 21

Figura 11 - Menino Correndo ................................................................................................... 22

Figura 12 - Pratos ..................................................................................................................... 24

Figura 13 - TruthIs The Lie ThatWeTellToOurself ................................................................. 28

Figura14 - But the Sun Is Eclipsed by The Moon .................................................................... 29

Figura15 - The Lonesome Crowded Mind (Oh Theseus)......................................................... 31

Figura 16 - Nu Descendo uma Escada, n°2 .............................................................................. 34

Figura 17 - Mulher Descendo as Escadas ................................................................................. 35

Figura 18 - Man Walking ......................................................................................................... 36

Figura 19 - Nude Descending a Stair........................................................................................ 37

Figura 20 - Ema (nude onstaircase) .......................................................................................... 38

Figura 21 - Nude Descending a Staircase! ............................................................................... 39

Figura 22 - Noga ....................................................................................................................... 43

Figura 23 - nome indefinido ..................................................................................................... 47

Figura 24 - nome indefinido ..................................................................................................... 48


Figura 25 - La Jetée .................................................................................................................. 52

Figura 26–Nostalgia - composição da estalagem de Andrei .................................................... 55

Figura 27–Nostalgia - estalagem de Andrei ............................................................................. 56

Figura 28–Nostalgia - casa de Domenico ................................................................................. 57

Figura 29–Nostalgia - Cena de um sonho em "O Espelho" ..................................................... 59

Figura 30–Nostalgia - Andrei Gorchakov em frente à casa de Domenico ............................... 60

Figura 31–Nostalgia - Cena pós morte de Andrei Gorchakov ................................................. 61

Figura 32 - Nostalgia - plano sequência da travessia da piscina com uma vela ....................... 62

Figura 33 - Nostalgia - espaço frente à morte de Domenico .................................................... 64

Figura34 - Walking in the picture............................................................................................. 64

Figura 35 - Koyaanisqatsi - relação antropologica e tecnoloogica ........................................... 67

Figura 36 - Koyaanisqatsi - relação urbano natural .................................................................. 67

Figura 37 - Koyaanisqatsi - relação urbano tecnológica .......................................................... 68

Figura 38 - Koyaanisqatsi - dinâmica urbana ........................................................................... 69

Figura 39 - Um Homem com uma Câmera .............................................................................. 70

Figura 40 - A Origem - corredor .............................................................................................. 72

Figura 41 - A Origem - escada ................................................................................................. 73

Figura 42 - A Origem - trama urbana e perspectiva urbana ..................................................... 73

Figura 43 - Relatividade ........................................................................................................... 74

Figura 44 - A Origem - limbo................................................................................................... 75

Figura 45 - Naqoyqatsi ............................................................................................................. 78

Figura 46–Balada de BusterScruggs - Vale Refeição .............................................................. 80


SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 1

2. O TEMPO E SUAS PERSPECTIVAS ........................................................................ 3

3. TEMPO E INDIVÍDUO................................................................................................ 8

3.1. AUTORRETRATOS ................................................................................................... 8


3.2. BENJAMIN GARCIA ............................................................................................... 16
3.3. ADAM LUPTON ...................................................................................................... 25
3.4. NU DESCENDO UMA ESCADA ............................................................................ 33

4. TEMPO E ESPAÇO .................................................................................................... 41

5.1 A IMAGEM DE EVGEN BAVCAR ............................................................................. 42


4.1. ESPACIALIDADES .................................................................................................. 50

5. TEMPO E CIDADE .................................................................................................... 65

5.1. CIDADE .................................................................................................................... 65


5.2. PÓS-CIDADE ............................................................................................................ 76

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 81

REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 82
1

1. INTRODUÇÃO

O objetivo dessa pesquisa é analisar obras de arte que apresentem a manipulação,


representação e variantes da temporalidade como linguagem artística e/ou representativa.
Serão abordados aqui obras palpáveis ou não, tais como pinturas, fotografias, filmes,
documentários, contos e poemas de períodos variados. Portanto, trata-se de um trabalho de
cunho descritivo e explicativo no qual exporemos interpretações seguindo alguma base teórica
para desenvolver uma abordagem qualitativa do tempo e do espaço nas artes visuais.

Justifica-se o estudo da representação espaço-temporal nessas obras como uma tentativa de


compreensão de como seus autores trataram diferentes pontos de vista sobre momentos e
acontecimentos referentes ao indivíduo, o espaço habitável e a cidade.

Serão utilizados métodos de caráter analítico dedutivo e experimental para interpretar as obras
ou fragmentos, porém, embasado em estudos teóricos das áreas de comunicação visual, arte,
arquitetura e filosofia, além de outros trabalhos acadêmicos, entrevistas e documentários.

Esta pesquisa resultará num ensaio crítico sobre a abordagem do tempo em diferentes escalas
e suportes, destacando a tematização da arquitetura e do urbanismo . As investigações aqui
presentes favorecerão também os campos da cenografia, as das artes de ofício, tal como
abordadas na filosofia.

Por fim, os resultados alcançados são apresentados do seguinte modo.

No capítulo 1, O tempo e suas Perspectivas, apresenta-se o posicionamento da temática na


área estudada, sendo este, não físico, mas analítico e crítico, tendo como foco as artes que o
utilizam como linguagem e representação. Teóricos como Walter Benjamin e Andrei
Tarkovski serão utilizados para fundamentar a a crítica sobre o uso do tempo e suas
representações no campo das artes.

No capítulo 2, Tempo e Indivíduo, apresentam-se diversas obras dentro da temática da


"passagem" ou percepção do tempo, porém, a partir de diferentes abordagens e níveis,
partindo, primeiramente, da percepção dos indivíduos, nos quais o tempo se mostra relativo
na obra, para então analisar, posteriormente, obras onde o tempo em si, aflora como
protagonista ??. Ao final, a dilaceração do tempo será o eixo adotado para alinhar obras
2

convergentes entre si, destacando-se para esta abordagem a obra Nu Descendo uma Escada
N°2 de Marcel Duchamp, , abrindo caminho para os capítulos subsequentes.

No capítulo 3, Tempo e Espaço, apresenta-se o espaço urbano e a arquitetura como temas


artísticos, iniciando por exemplos nos quais o espaço e o tempo se confrontam visualmente,
gerando assim, a acepção esperada . Aqui serão estudados fotógrafos e diretores de cinema,
tais como Evgen Bavcar, Andrei Tarkovski e Andre Kertesz.

No capítulo 4, Tempo e Cidade, apresenta-se a relação entre a cidade e o conceito de


temporalidade. de modo que se interpretará filmes como Koyaanisqatsi e obras de um cinema
mais poético como é o caso de A Origem, ou de sentidos e noções mais estendidas de
temporalidade em poemas e filmes que abordam o que se poderia denominar como a “pós-
cidade”, destacando-se aí, as ruínas na obra de Percy B. Shelley e os diretores Joel David
Coen e Ethan Jesse Coen (conhecidos como os irmãos Coen).
3

2. O TEMPO E SUAS PERSPECTIVAS


No segundo milênio [...] Surgiram pessoas empenhadas no “relembramento” da
função originaria das imagens, que passaram a rasgá-las, a fim de abrir a visão para
o mundo concreto escondido pelas imagens. O método do rasgamento consistia em
desfiar as superfícies das imagens em linhas e alinhar os elementos imagéticos.
(FLUSSER, 2009), 1983

O capítulo primo apresenta o embasamento teórico e o caminho que esta pesquisa percorrerá
Compreende-se pelo invólucro temático aprofundado, o estudo da percepção e abordagem
temporal assim como das espacialidades como linguagem nas artes, focadas na imagem.

Como multidisciplinares, os temas das artes, do tempo e do espaço são abrangentes o


suficiente para que busquemos referencias, a priori, mais superficiais. Para tanto, buscaremos
alguma arte que se ligue minimamente com a temporalidade e espacialidade almejada.

Ao desmontar o conceito de arte e buscar por teóricos que citem os ideais do tempo e do
espaço como discurso para as obras, nos deparamos com Ariano Suassuna (2012) que expõe
uma busca pela hierarquia da arte por meio de diversos nomes da filosofia. Ariano cita
Nédoncelle por classificar os meios artísticos, onde temos, por hora, uma primeira
classificação não hierárquica, mas atuante nas artes.

Tomás de Aquino, baseado na tradição da Filosofia mediterrânea, dizia que os


sentidos estéticos por excelência eram a visão e a audição. Baseado nessa ideia é que
Maurice Nédoncelle esboça sua classificação das Artes. Entretanto, não se contenta
ele em dividir as Artes em visuais e auditivas. Referindo-se a outro sentido humano,
acrescenta ainda as Artes tácteis-musculares, assim como reúne as Artes mais
complexas sob o nome de Artes de síntese. Assim, segundo Nédoncelle, as Artes
principais são as seguintes:
Artes visuais — Pintura, Escultura e Arquitetura.
Artes auditivas — Música e Artes da Linguagem (Literatura).
Artes tácteis-musculares — Dança, Mímica e Esportes.
Artes de síntese — Teatro, Cinema, Ópera e Balé.
(SUASSUNA, 2012, p.145)
Discordada pelo próprio autor em seguida, Ariano julga como “imprecisa” a classificação de
Nédoncelle por seus conceitos de avaliação para a escolha destes nichos, uma vez que
apresenta, como base ideal de representação, o modo de como “a obra de entrega à intuição
do contemplador”, classificando assim, a pintura como visual enquanto que a dança é
catalogada como artes táteis-musculares “tendo em vista o fato de que é o corpo humano que
executa a obra de arte”, porém, nesta última, a dança não somente apresenta o ponto de vista
do autor ou atuante, mas também há o sentido de entrega da obra à contemplação,
classificando-a também como uma arte visual, assim como a pintura ou a escultura.
4

Outro equívoco na colocação de Nédoncelle colocada por Ariano é o posicionamento das


artes literárias nas Artes auditivas, juntamente com a música pois, segundo ele

[...]a Pintura é uma Arte visual e a Música auditiva[...] porque em qualquer das duas
o sentido através do qual a obra de arte se entrega à intuição exerce papel
fundamental: um cego não pode apreciar um quadro, e um surdo total não pode
apreciar uma sonata. [...]Não interessa, no caso da Poesia, o sentido através do qual
o poema chega ao intelecto: se a pessoa for surda, pode ler o poema, se for cega,
alguém pode recitá-lo para ela; até o tato pode levar o poema, pelos caracteres
Braille, ao intelecto do contemplador; o que interessa é que as palavras e seu sentido
cheguem ao intelecto, não importando qual o sentido através do qual isso se faça.
(SUASSUNA, 2012, p.146)
Fica claro, portanto, que, através das referências analisadas a classificação das artes não
carrega um embasamento científico firme a que se possa decifrar deus pormenores e
estabelecer funções. Sua variabilidade e relação de pontos de vista são fatores que reforçam
justamente essa improbabilidade de definir o uso da arte.

O que mais se aproxima da temporalidade na arte que buscamos, de acordo com Ariano
Suassuna, trata-se da classificação do teórico alemão Max Dessoir que a distingue entre Artes
espaciais (ou do repouso) e Artes temporais (ou do movimento).

As tais Artes espaciais caracterizariam por elementos justapostos, sendo elas, as artes
plásticas, escultura, pintura e arquitetura, enquanto as artes temporais têm por essência, a
sucessividade de elementos, têm como meios de realização, execução e interpretação os sons
e os gestos, sendo encaixados nesse nicho, a mímica, literatura e a música.

Em paralelo, Dessoir ainda constrói um pensamento unificador sobre as chamadas Artes de


síntese, as Associações, sendo separadas entre definidas e indefinidas.

As Associações definidas são as que se formam através de sínteses de Artes


imitativas, ou figurativas. As indefinidas são as que partem de sínteses de Artes
livres, isto é, daquelas que se baseiam em formas não reais, abstratas. A Dança, por
exemplo, seria uma associação da Música com a Mímica.(SUASSUNA, 2012,
p.147)

Dessoir demonstra um entendimento mais líquido que os outros apresentados de acordo com
Ariano, ainda que sua crítica à segregação e criação desses campos ainda seja forte. Nele, as
artes são propostas em cruzamentos que compõem o campo em que esta se insere.

Não temos,porém, o objetivo de utilizar a criação artística ou meio de contemplação como


proposta de estudo, mas sim de, dentro das manifestações artísticas, buscar por mesclas e
condutas que utilizem suas ações para manifestar proposições e ideias além de suas propostas
quanto à temporalidade.
5

Imagens são superfícies que pretendem representar algo. Na maioria dos casos, algo
que se encontra lá fora no espaço e no tempo. As imagens são, portanto, resultado do
esforço de se abstrair duas das quatro dimensões de espaço-tempo, para que se
conservem apenas as dimensões do plano. Devem sua origem à capacidade de
abstração especifica que podemos chamar de imaginação. (FLUSSER, 2009, p.7)
Vilém Flusser define a imagem como “superfície que pretende representar algo” ao modo que
ao mesmo tempo, a limita a “abstrair duas das quatro dimensões de espaço-tempo, para que se
conservem apenas as dimensões do plano”. Sendo assim, Flusser retém à fotografia somente
as dimensões de largura e altura, ou seja, apenas as dimensões do plano, deixando aparte da
imagem a profundidade, ou comprimento, e o tempo.

A tridimensionalidade do comprimento pode ser abstraída por representações na imagem


através da imaginação de acordo com Flusser, mas não pode ser sentida, uma vez que o
conceito não há de complementar, mas de continuar com o sentido dimensional, sendo
extrínseco e consecutivo às dimensões possibilitadas pela imagem. O que podemos ter é a
reprodução e percepção dessa tridimensionalidade por meios de jogos de sombra, níveis de
distanciamento ou sequência de imagens, mas nunca sua apresentação tátil dentro dessa
figuração.

Por certo que Flusser é o que mais torna real a presença intrínseca da temporalidade tido
como complemento representativo da imagem, portanto, suas ideias são bastante cabíveis no
trabalho uma vez que trataremos preferencialmente das artes visuais.

Por mais que performances especificas como “As Slow as Possible”, melodia de John Cage,
composição feita com o intuito de durar 639 anos -Atualmente estamos na decima quarta nota
da melodia-; o longa-metragem experimental de Andy Warhol, “Sleep” que, em 1964, filmou
um amigo dormindo por quase cinco horas e meia; ou até a sonificação do tempo através de
um badalar de sinos sejam exemplos desse fator intrínseco que buscamos, não
necessariamente estarão alinhados com a temática estudada por estarem ligados a tópicos
como a música, e ao social (salvo em “Sleep”, que, dos três, é o que mais se aproxima).
Estudaremos obras que visem ser contaminadas com as questões tempo-espaciais frente a
algumas escalas, sendo essas, o indivíduo, o espaço e a cidade. Esse escalonamento nos dará
uma relação vasta de como alguns artistas abordam esse invólucro físico em torno do homem
como formador de si e animal pensante e emocional, e a arquitetura tanto como ambiente e
cenografia, mas também como criação e símbolo de linguagem visual.

Tendo compreendido nossa investida, talvez encontremos em outros teóricos alguma


conceituação decoro como embasamento para o estudo da imagem estática. Andrei Tarkovski
6

(1932-1986), renomado diretor soviético, é pontual e certeiro na motivação que nos persegue
quando dirá sobre as qualidades morais e intrínsecas essencialmente inerentes ao tempo em si
no intuito de suas obras.

Quando os críticos e eruditos estudam o tempo da forma como este se manifesta na


literatura, na música ou na pintura, mencionam os métodos de registrá-lo. Ao
estudarem, por exemplo, Joyce ou Proust, examinarão a mecânica estética da
existência no retrospecto das obras, e a maneira como o indivíduo que evoca
lembranças registra sua experiência. Eles estudarão as formas das quais a arte se
vale para fixar o tempo, ao passo que, aqui. estou interessado nas qualidades morais
e intrínsecas essencialmente inerentes ao tempo em si. (TARKOVSKI, 1998, p.65)

De certo que o teor representativo do cinema é, de fato, sua reprodutibilidade concisa como
meio de exposição, além de ter, por meio da produção, a possibilidade de ser talhado e
moldado antes de enfim estar pronto, e isso será visto como um demérito à veracidade
temporal por Walter Benjamin (1892-1940).

O filme é, portanto, a obra de arte mais passível de melhoria. E essa sua capacidade
de ser melhorado está intimamente ligada a sua recusa radical do valor da
eternidade. Obtém-se o mesmo resultado com a contraprova: para os gregos, cuja
arte orientava-se pela produção de valores de eternidade, o ápice de todas as artes
encontrava-se na arte menos passível de melhoria – a saber, a escultura, cujas
criações se fazem literalmente a partir de uma peça. A decadência da escultura na
era da obra de arte montável é inevitável. (BENJAMIN, 2017, p.68 e 69)
São diversos os aspectos que moldam o cinema quanto à temporalidade, sendo um deles, o
molde e a reprodutibilidade expressa por Benjamin. Porém, contando com sua criação, temos
também a visão mais onírica de Tarkovski quanto ao tempo extrínseco à obra.

Não consigo nunca esquecer aquela obra do gênio criada no século passado, o filme
que foi o começo de tudo – L’Arrivée d’um Train em Gare de laCiotat. Esse filme,
feito por Auguste Lumière, foi simplesmente o resultado da invenção da câmera, da
película e do projetor. [...] Pela primeira vez, na historia da cultura, o homem
descobria um modo de registrar uma impressão do tempo. Surgia, simultaneamente,
a possibilidade de reproduzir na tela esse tempo, e de fazê-lo quantas vezes se
desejasse, de repeti-lo e retornar a ele. Conquistara-se uma matrriz do temporeal.
Tendo sido registrado, o tempo agora podia ser conservado em caixas metálicas por
muito tempo (teoricamente, para sempre). (TARKOVSKI, 1998, p.70)
Em contraponto a Benjamin, Tarkovski irá utilizar da comparação do bloco solido para
também cunhar a definição que dá nome a este trabalho. O diretor apanhará sua função em
paralelo com a de um escultor que molda sua obra e veremos que em seus filmes, os cortes
não se limitam a mostrar somente o essencial, mas principalmente o real.

Qual é a essência do trabalho de um diretor? Poderíamos defini-la como "esculpir o


tempo”. Assim como o escultor toma um bloco de mármore e, guiado pela visão
interior de sua futura obra, elimina tudo que não faz parte dela — do mesmo modo o
cineasta, a partir de um "bloco de tempo" constituído por uma enorme e sólida
quantidade de fatos vivos, corta e rejeita tudo aquilo de que não necessita, deixando
apenas o que deverá ser um elemento do futuro filme, o que mostrará ser um
componente essencial da imagem cinematográfica. (TARKOVSKI, 1998, p.72)
7

Já consolidada a base para uma análise imagética, iniciaremos a ideia da temporalidade


partindo de um pressuposto básico de que o tempo em si não será abordado como uma
dimensão lírica e manipulável fisicamente, mas como uma força vetorial de movimento
constante, como dirá Stephen Hawking (1942-2018).

A linha-mundo ou história de um observador sempre aumentava na direção do


tempo real (ou seja, o tempo sempre se movia do passado para o futuro), mas ela
podia aumentar ou diminuir em qualquer uma das três direções espaciais. Em outras
palavras, era possível reverter a direção no espaço, mas não o tempo. (HAWKING,
2016, p.68)

Posto em pauta nossa conceituação, podemos partir para as análises propriamente ditas. Estas
iniciarão em sua escala mais pura como linguagem para que então consigamos compreendê-la
e estender para outros ambientes, outras representações e outros sentidos relativos à escala
devida.
8

3. TEMPO E INDIVÍDUO
Tá vendo aquele relógio ali? Cada vez que ele marcar mais um, mais um, mais um…
ele vai tá dizendo menos um, menos um, menos um.
Walter Salles, Abril despedaçado

O capítulo em questão é o que inicia o discurso de análise de obras e inspeção às diferentes


compatibilizações de nossas motivações na pesquisa, uma vez que o capítulo anterior ficou
responsável pelo posicionamento no campo de estudo. Abrangeremos fontes internas e
externas ao empreendimento arquitetônico e artístico, tomando conceitos emprestados de
áreas como física e filosofia, a serem aplicados nesta esfera. Estudaremos aqui a influência do
panorama temporal na criação e na transmissão de obras de arte na menor escala aqui
explorada: a relação do indivíduo com o tempo.

O desenvolvimento dessa pesquisa passa a ser, a partir deste momento, um trabalho de cunho
explicativo e descritivo ao qual, utilizando de uma abordagem qualitativa, destrincharemos
conceituações referente à perspectiva de temporalidade dada por cada autor aqui presente,
ressaltando que cada provedor trará novos pontos de vista quanto ao assunto. Iniciaremos com
a questão de autorretratos como movimentação sequencial de tempo, mas sem intenção,
incluindo Rembrandt Harmenszoon van Rijn e Lucian Michael Freud para então abordar a
representação de temporalidade como linguagem propriamente dita, tema representado no
capitulo por Adam Lupton e Benjamin Garcia. Adentrando ao assunto, mais precisamente,
colocaremos em pauta neste capítulo, o envolvimento do ser como indivíduo no campo
reflexivo ou de captura de uma dimensão temporal.

3.1. Autorretratos

Ao iniciar as análises das obras, abriremos as possibilidades e reflexões a partir da maior


escala possível, a escala inerente ao ser, onde consideramos que a intuição temporal passa a
ser percebida. Poderíamos tratar aqui de amplitudes mais modestas como objetos diminutos,
natureza morta ou ambientações que tragam a linguagem da temporalidade com obras como
“A Persistência da Memória” (1931) de Salvador Dali, ou movimentos como a Dança
Macabra, que se instaurou durante a Idade Média, por volta do século XIV, como um
lembrete de um limite para a vida, uma delimitação de tempo doravante necessitada de gozo.
Nenhum destes exemplos simula a interpretação de temporalidade como linguagem, mas
como insumo, não necessariamente o tendo como temática.
9

Outro fator predominante para o decorrer deste capítulo é a objetividade individual da


representação. Buscamos por uma obra inerente ao ser humano como unidade pura e singular.
Posto isso, seguindo para o âmbito artístico, a busca por representações individuais se
delimita numa apresentação direta da imagem humana. Encontramos o autorretrato como
composição mais direta ao ser uno e particular pois, tal como definirá Rauen e Momoli:

O autorretrato é um subgênero do retrato e pode ser definido como uma imagem


representativa da individualidade de seu autor; assim como o retrato genérico, busca
revelar particularidades do retratado, valorizando sua singularidade, em detrimento
do típico. No sentido clássico do termo, o retrato, independentemente de refletir
características do próprio autor ou de um modelo externo, buscará caracterizar seu
objeto de investigação, evocando e ressaltando particularidades do mesmo, de forma
a recortá-lo do contexto. Desta forma, o autorretrato seria uma representação da
individualidade do próprio autor, e, portanto, pressupõe-se que funcione como uma
reflexão sobre o universo particular do mesmo. (RAUEN; MOMOLI, 2015, p.56)

Buscando então por referencias de autorretratos, deparamo-nos com Rembrandt Harmenszoon


van Rijn (1606-1669), pintor holandês que ficou conhecido na história da arte pelo uso da
técnica conhecida como “Chiaroscuro”, que consiste em, de acordo com o site Hisour, “uma
técnica de pintura a óleo, desenvolvida durante o Renascimento, que usa fortes contrastes
tonais entre as formas tridimensionais da luz e da obscuridade para o modelo”1

Além disso, Rembrandt passa a ser conhecido, também, de acordo com Rauen e Momoli, pela
quantidade de autorretratos que produziu ao longo de sua vida:

(...) foi o artista que mais se autorretratou. Além do grande número de retratos
realizados, o artista retratou-se nos diferentes períodos de sua vida (juventude,
maturidade e velhice) marcando as diferentes leituras que fazia de si mesmo ao
longo dos anos.(RAUEN; MOMOLI, 2015, p.62)

Adotando-o para a introdução das análises, o faremos em ordem cronológica a fim de que
acompanhemos o desenvolver fenótipo e artístico do autor nos apresenta, em 1628, seu
primeiro autorretrato, pintado aos vinte e dois anos.

1 Hisour, 2017. Disponível em:https://www.hisour.com/pt/chiaroscuro-


17636/#:~:text=Chiaroscuro%20%C3%A9%20uma%20t%C3%A9cnica%20de,luz%20que%20cai%20contra%2
0ela.
10

Figura 1 - Rembrandt Rindo

Fonte: Museu J. Paul Getty, 1628

Na pintura percebemos um Rembrandt juvenil e alegre, tal como retrata o nome da obra. Este
pousa com o rosto, olhando para o telespectador, a sua direita, levemente inclinado para trás,
tal como o posicionamento de seus braços e sua postura mais despojada, mostrando um
momento sem muita tensão. O autor nos encara com um sorriso extrovertido enquanto metade
de seu corpo é iluminado e seu lado esquerdo, envolto pela sombra que a ausência desta cria.
Seus cabelos longos e levemente despenteados são ondulados e brilhosos, sendo nítido em
alguns pontos, mas perdendo-se com o fundo num sfumato na franja. Suas vestes resumem-se
numa blusa larga bordô escuro ou Marrom, um manto ocre atravessado na diagonal de seu
peito e uma peça de couro ou cobre que envolve seu pescoço.

Figura 2 - Autorretrato com Boina e Corrente de Ouro

Fonte:Museu do Louvre, 1633.


11

Em “Autorretrato com Boina e Corrente de Ouro”, de 1633, apenas cinco anos depois da
primeira obra mostrada, o autor já apresenta um domínio mais maduro de suas técnicas e
detalhamentos. Na imagem, Rembrandt veste uma roupa mais luxuosa, enfatizado por sua
voluptuosidade e adornos, alçando a boina que tem detalhes dourados, provavelmente de
ouro, tal como seu colar. Suas feições mudaram, agora mais criterioso e com um olhar mais
centrado. Seus cabelos estão maiores e, sobre o peito, há sua mão vestida de uma luva de cor
marrom, quase encoberta das sombras produzidas por seu corpo, e que continuam na parede
logo atrás.

Figura 3 - Autorretrato

Fonte: Royal Collection, 1642

No Autorretrato de 1642, o autor pinta-se já em fase adulta e utilizando de roupas mais


pomposas e em maior quantidade, como o chapéu, a blusa de gala, uma veste branca por
baixo desta (emanando furtivamente da manga iluminada), uma corrente dourada que segura
sua capa negra e um brinco em sua orelha direita. Fica evidente seu talento com o chiaroscuro
pela presença que consegue refletir no sombreamento da mão semi-escondidas e no pequeno
brinco que se destaca. RAUEN e MOMOLI dirão que parte disso vem da neutralidade do
fundo:

A ausência de pintura de fundo e outros elementos que complementem a


composição de muitos autorretratos fazem com que a atenção fique focada no artista
não evidenciando o local onde possa ter feito esses autorretratos. (RAUEN;
MOMOLI, 2015, p.66)
12

Figura 3 - Autorretrato

Fonte: Metropolitan Museum of Art, 1660

Aos cinquenta e quatro anos, Rembrandt, já na última década de sua vida, se mostra mais
confortável, menos pomposo e bastante a vontade, trajando o que poderia ser suas vestes de
pintura, um manto marrom, juntamente com uma blusa vermelha por dentro e um chapéu
diagonalmente posicionado em sua cabeça. A mistura de cor que ele passa a utilizar se
aproxima mais da realidade que as anteriores, mais homogêneas e menos definidas a ponto de
conseguimos, na pintura acima, perceber uma profundidade nos cabelos brancos dele, que se
destaca com a pele também mais idosa e pouco elástica.

Figura 4 - Autorretrato

Fonte:Museu Mauritshuis, 1669

Como última apresentada aqui e penúltima no decorrer de sua vida, a pintura Autorretrato, de
1669 já traz um Rembrandt de feições mais humildes e conformadas. Nota-se mais a
persistência do pincel e a exatidão impressa na tinta, uma percepção analisada por RAUEN e
MOMOLI:
13

O jovem Rembrandt trabalha uma pintura mais lisa, à maneira de seu professor,
enquanto que o Rembrandt maduro vai gradativamente deixando as marcas do pincel
e construindo opticamente certos detalhes de sua pintura. (RAUEN; MOMOLI,
2015, p.68)

Ao longo de toda a sua vida, Rembrandt chegou a fazer quase quatro dezenas de
Autorretratos, todos aos quais não nos servem para aqui apresentar sua familiaridade com a
passagem do tempo quando postos como unidade, mas encaixa-se perfeitamente na
abordagem como composição. O que alcançamos com o pintor é seu decorrer ao longo da
vida ao qual é retratado nas pinturas.

Em Rembrandt não temos uma percepção do envelhecer do pintor e da passagem do tempo


bergsoniano, contínuo, mesmo que numa sequência de momentos estáticos que, em série, nos
corre em pausas ao longo de toda uma vida.

Por mais nítida que seja essa percepção de continuidade temporal registrada, ela serve mais
como uma introdução às próximas obras de teor mais intrínseco ao ser, pois, apesar de
constituirmos uma coletânea rica nesses tais momentos estáticos em Rembrandt, ainda há a
limitação da aplicação dessa continuidade somente na condição de agrupamento. Uma vez
analisada uma dessas obras singularmente, ela passa a ser outra composição como outras
quaisquer.

Ao tratarmos das reproduções mais antigas, anteriores ao período das vanguardas modernas,
acabamos por encontrar um tipo de autorretrato mais pictórico aonde o ser reproduzido é ele
por essência, ou seja, é uma representação onde o foco é costumeiramente a reprodução mais
próxima possível da realidade salvas as características de cada período artístico, que moldava
toda essa aura. Esse é o motivo ao qual as obras de Rembrandt não se encaixam singularmente
em nossa pesquisa, mas somente como conjunto, pois sua temporalidade é expressa através da
continuidade e suas mudanças através de sua longevidade. Se buscarmos por artistas mais
próximos ao momento moderno, perceberemos o distanciamento das exigências técnicas e
proximidade idealística ou subjetiva:

Nos autorretratos modernos, a representação da imagem não importa como objeto,


mas como um ato, algo a ser comunicado. O artista pode liberar sua imaginação sem
obrigações artísticas e morais, revelando assim uma identidade cambiante, mutável e
fragmentada. RAUEN e MOMOLI, 2015, p.58

Logo, com o distanciamento moderno da mimesis, da cópia figurativa mais próxima do real,
da imitação, tão comum nos movimentos pré-modernos, nos encontramos com escolas
vanguardistas que buscavam expressar-se não por artes retratistas mas mais subjetivas, para
14

que, com elas, passassem mensagens ao invés de uma elaboração baseada na admiração e na
técnica:

Embora os retratos possam mostrar uma imagem distorcida, ideal ou parcial da


imagem do modelo, o retrato como gênero de pintura é, historicamente, ligado à
ideia de mimesis que de acordo com o dicionário etimológico vem do grego e
significa imitação. Já no século XIX e XX as pesquisas das vanguardas
sobrepunham abstração à semelhança física no retrato. Após a Segunda Guerra, a
retratística toma importância através de Lucian Freud, cujo trabalho volta a ter a
preocupação de possuir uma identidade com o retratado. (RAUEN; MOMOLI, 2015,
p.56 apud WEST, 2010)

Para tanto, faremos uso de algumas obras do pintor Lucian Freud (1922-2011), MAIS
assertivamente dois de seus autorretratos: “Reflexão” (1985) e “ReflectionWithTwoChildren”
(1965).

Figura5 - Reflection With Two Children

Fonte:Museo Nacional Thyssen, 1965

Na obra acima, de 1965, Lucian se representa vestindo um terno de cor cinza, ao qual
descansa a mão esquerda sobre a barriga. Há, na frente da pintura, duas crianças, um menino e
uma menina, em uma angulação que questiona o resto da imagem por não ser a mesma,
fazendo acreditar que foram pintadas como se não fizessem parte do quadro. A perspectiva da
imagem de Freud é tomada de baixo para cima, tendo os lustres do teto ao fundo,
posicionamento esse que dá um aspecto de soberba para o artista, que nos encara seriamente,
com olhos direcionados ao espectador, semicerrados.

Com uma base no movimento expressionista alemão, caracterizado pela evidência dramática,
Lucian consegue extrair o que há de mais sincero na humanização de seus modelos: ele detém
15

um detalhamento muito característico na dramatização das cores e honestidade dos corpos


humanos, tão evidenciados nos nus artísticos, mas principalmente no seu acervo de retratos.

Figura 6 - Reflexão

Fonte:Museu de Arte Moderna de Dublin, 1958

Na pintura “Reflexão”, de 1985, Lucian consegue um grande nível de simplicidade no


autorretrato que traz somente seu busto e o fundo, sem camisa ou adorno. Ele se representa
como item uno suficiente. Na imagem, o autor olha para baixo do limite da imagem, não para
o interlocutor, como de costume, mas como se em direção ao chão. Os cabelos não estão
penteados e conseguimos perceber o brilho da oleosidade em sua testa da luz que vem de
cima.

Em Lucian Freud notamos com clareza o resultado do tempo no corpo humano, e ele assim o
faz talvez não como um propósito - o qual está mais paralelo à veracidade dos corpos - mas
subjetiva e evidentemente. A honestidade que o autor impõe em seu corpo são marcas
deixadas ao longo do tempo que resultaram numa pele flácida e com algumas cicatrizes
evidentes.

Em seu relato sobre o Japão, o jornalista soviético Ovchinnikov escreveu:


"Considera-se que o tempo, per se, ajuda a tornar conhecida a essência das coisas.
Os japoneses, portanto, têm um fascínio especial por todos os sinais de velhice.
Sentem-se atraídos pelo tom escurecido de uma velha árvore, pela aspereza de uma
rocha ou até mesmo pelo aspecto sujo de uma figura cujas extremidades foram
manuseadas por um grande número de pessoas. A todos esses sinais de uma idade
avançada eles dão o nome de saba, que significa, literalmente, 'corrosão'. Saba,
16

então, é um desgaste natural da matéria, o fascínio da antiguidade, a marca do


tempo, ou patina. Sabá. como elemento do belo, corporifica a ligação entre arte e
natureza.'' Em certo sentido, poder-se-ia dizer que os japoneses tentam dominar e
assimilar o tempo como a matéria de que é formada a arte. (TARKOVSKI, 1998,
p.66)

Como vemos em Tarkovski, Lucian se liga com a cultura japonesa do Saba devido ao rigor de
suas obras em reconhecer a “marca do tempo, ou patina” em seus modelos. Reconhecemos,
nessa pesquisa a representação de uma temporalidade castigável e expressiva nas obras do
autor, percebemos nele uma vontade de mostrar-se real perante o mundo e a passagem do
tempo.

Aos autorretratos apresentados temos o mais simples modo de acessibilidade ao tema, à


perspectiva da temporalidade como linguagem, uma introdução acessível ao que virá em
outros meios e divisões das artes nos capítulos posteriores.

3.2. Benjamin Garcia

A partir deste subcapitulo, iniciaremos uma série de estudos de obras e autores que
tratam da questão da duração temporal e da temporalidade em si como linguagem artística, o
que remete a figurações e interpretações de passagens, percepções e aplicabilidade da questão
do tempo e do espaço.

Cada subcapitulo fora organizado a partir de uma escala de aplicabilidade inerente à obra.
Nota-se que, como causa consciente – aquela que se percebe e que há a intenção de ser
aplicada para então ser notada -, o estudo da temporalidade não se faz presente nos casos
anteriores (nos autorretratos), pois estes compactuam mais com a temporalidade como
resultado que como motivação. Nos escritos subsequentes, essa manipulação espaço-temporal
deve ser mais notória, devem ser o propósito, mas não o foco das obras, e então faremos suas
análises para entender e complementá-las com um estudo e critica.

Benjamin Garcia é um pintor nascido em 1986 na cidade de Caracas, Venezuela, onde


estudou e se tornou mestre em Desenho e Ilustração pela BFA, Instituto de Diseño de
Caracas. Atualmente mora em Madrid, Espanha.

Constantemente retratando rostos, principalmente de mulheres, é comum encontrar obras que


exibam um olhar, um choro, um momento de tomada de decisão ou emoções mais fortes,
como a vingança ou o suicídio. De acordo com a plataforma SAATCHI ART, Benjamin
17

admite que “the physical breakdown of the human subject in his paintings is a reflection of
the disintegration of the psyche trough time”.

A falta de pretensão nas obras Benjamin questiona parte de suas motivações, como em 2018
para a página “SourHarvest” onde relata que “I trynottohave a preconceivedideaofwhat I
want. I like to see it done and then go back and try to figure out what it means.”2. Prova disso
é uma de suas últimas obras, “BilmurBilmur”, de 2020.

Figura 7 - BilmurBilmur

Fonte: Site do artista, 20203

A origem da obra, muito provavelmente, trata-se de um sonho que Benjamin diz ter tido com
o ator William James Murray como seu pai em uma conversa sobre ser adulto, na mesma
entrevista mencionada acima.

I had a dream the other day where I was speaking with Bill Murray and also, he was
my father. Both persons at the same time. A dream character who is two people at
the same time is something I cannot wrap my head around. Is more like the meaning

2
disponível em <https://www.sourharvest.com/interview-with-benjamin-garcia-for-panacea/>

3
Disponível em: < https://www.beng-art.com/2020/wcuzqz2nrdap815v9ixe5dsrlucv32 >. Acesso em: 13 out.
2020.
18

of a character what you really interact within a dream. He was speaking to me about
what it means to be an adult and have a family while we walked on the water of a
river like Jesus.(GARCIA, 2018)

Na obra vemos somente a cabeça do ator num fundo branco. Em três flashes simultâneos
Murray tem expressões descontraídas, como se numa conversa casual tal como relatada na
entrevista, seus lábios movem-se, assim como os olhos se abrem, provavelmente derivado de
um piscar de olhos enquanto o cigarro permanece o tempo todo em sua boca.

O período em que a cena retratada aparenta durar, dificilmente passa de um segundo,


característica que passa a ser muito notória em suas obras. A banalidade do momento de
tempo como figurativa nos mostra uma poética artística delicada em que o artista,
simbolicamente, consegue captar a ferramenta pictórica com mais expressão que o próprio
momento representado.

Figura 8 - Chloë

Fonte: Site do artista, 20204

Complementando a expressão momentânea figurativa, Benjamin pinta, no mesmo ano, a obra


Chloë, uma garota de pele clara, cabelos loiros curtos e com olhos azuis tal como a cor de sua

4
Disponível em: < https://www.beng-art.com/2020/6e69hiug2pzgsh9evn6ifd3ht51sbk>. Acesso em: 13 out.
2020.
19

camisa, que tem gola branca, num fundo branco. O protagonismo da obra está num gesto de
movimento dentro de uma provável conversa, um simples virar de pescoço e um olhar
corriqueiro a algo fora de enquadramento, reforçado pelo olhar e pela boca representada ao
longo do movimento.

As obras de Benjamin Garcia costumam retratar essas durações que mesclam temporalidade e
espacialidade, costumeiramente focada em momentos curtos de segundos, dentro de atitudes
cotidianas. A motivação como anestesia para a representação momentânea abraça suas obras
para uma abertura de potencialidades efetivas bastante claras e pontuais que, juntamente com
o nome do quadro, criam uma personalidade e sentimento de empatia para cada pintura. Um
desses exemplos bastante forte é a obra chamada “I Couldbe Who YouWanted”, de 2014.

Figura9 - I Could be Who You Wanted

Fonte: Site do artista, 20145

A pintura, bastante dramática para a linhagem de Benjamin, apresenta uma mulher sentada em
um banco. Ela segura suas pernas num movimento para confortar sua posição. O fundo e as
manchas amarelas ao redor da pintura são indiferentes, porém ao relacionar o nome da obra,
“I Could Be Who YouWanted”6 com as expressões da personagem e a movimentação trazida

5
Disponível em: < https://www.beng-art.com/2020/6e69hiug2pzgsh9evn6ifd3ht51sbk>. Acesso em: 13 out.
2020.

6 Tradução livre do autor para “Eu Poderia Ter Sido Quem Você Quisesse”
20

por Benjamin, logo notamos um ambiente silencioso banhado de uma monotonia e frustração
salientados pelo olhar cabisbaixo e movimentação tímida da cabeça.

A realidade que Benjamin nos força a aceitar é árdua, é fria e é decepcionante, porém,
inteiramente pessoal e repleta de admiração. Os momentos pintados, e que, apresentados
frente ao jogo de pescoço e olhar vago, transporta o espectador a poucos segundos empáticos
no amago da personagem, onde experimentamos uma história de rejeição, ainda que de
devoção total em que a troca da liberdade individual pelo bem estar de uma relação é
apresentada a partir do título da obra.

Seu impacto é forte não somente pela temática pesada, mas sobretudo pela intensidade
passada ao observador com tanta facilidade e pela percepção temporal tão curta retratada.
Especula-se que o decorrer das fases da obra (posicionamento das pernas e torção do pescoço)
seja de aproximadamente três a cinco segundos.

No início dessa linguagem artística, com fases temporais ainda brutas e identificáveis, o autor
estava na busca por uma projeção representativa mais onírica, que viera a se desenvolver nos
anos posteriores. Ademais, os momentos estampados nos quadros voltaram-se cada vez mais
a uma temporalidade eminente, estes, apresentados no início do capítulo.

Toda essa apuração buscada por Garcia sobre atos e consequências banais cotidianas foi um
desenvolvimento perceptível no decorrer de suas obras, dando a perceber a modelação
cirúrgica que o autor vem desenvolvendo e que se mantem consistente em sua linguagem nas
pinturas em geral.

O conceito em que ambos os artistas antecedentes buscavam aproxima-se da estroboscópica,


um conceito que, de acordo com Rosa, Thiago e Carvalho (2004), consiste

[...]da observação de um fenômeno muito rápido com o auxílio de um aparelho que


o ilumina, com clarões breves e periódicos, registrando suas posições sucessivas.
Com isso, é possível que adaptemos os equipamentos necessários para produzir o
registro da trajetória de objetos em movimento.(ROSA; THIAGO; CARVALHO,
2004)

A captação de movimento por meio da estroboscópica ficou conhecida como “fotografia


estroboscópica”, sendo concisamente representada pelo fotógrafo Harold Eugene Edgerton
(1903-1990) - engenheiro de formação - que conseguia, através de diversas tentativas, ou por
técnica, captar a movimentação de um corpo, ou seja, captar diversos momentos no percurso
de um corpo a ponto de o fazer parecer estacionário.
21

Em um de seus mais famosos trabalhos, ao fotografar o golfista Bobby Jones (1902-1971),


Harold retrata ao menos 39 frames do movimento do esportista. A imagem em preto e branco
em um fundo escuro mostram o homem acertando uma bola de golfe branca que se destaca ao
fundo, provavelmente por tantas camadas sobrepostas de sua trajetória ao que seria a frente do
espectador. O rosto e as pernas de Bobby também de alteram devido ao tipo de fotografia,
mas o que protagoniza a foto é o movimento criado pelo taco.

Figura10 - Bobby Jones With a Driver

Fonte: Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, 19397

Ao imprimir um movimento rápido e já previsto pelo modelo, Harold Edgerton encara a


objetividade minimalista explorada por Benjamin. Tamanha simplicidade e exatidão é o que
faz deste um grande nome desta arte. O mesmo não ocorre com Lupton, que procura
representar uma periodicidade mais intrínseca ao forte emocional do modelo, e por frames
mais prolongados. Pondo em destaque, pode-se dizer que Garcia, assim como Edgerton, busca
o “momento” (algo entre um e três segundos), enquanto Lupton cerca uma maior duração em
torno de um fulcro emotivo, ele rodeia um “perdurar de um estado pungente” (provedor de até
minutos de duração).

7
Disponível em: < https://www.moma.org/collection/works/49759>. Acesso em: 25 out. 2020.
22

Transcorrida por Roland Barthes, essa cotidianidade impressa na fotografia aqui tratada como
temporal é o que mais se aproxima da “própria essência de uma interrupção”

Na Fotografia, a imobilização do Tempo só ocorre de um modo excessivo,


monstruoso: o tempo é obstruído (donde a relação com o Quadro Vivo, cujo
protótipo mítico é o adormecimento da Bela Adormecida no bosque). Que a foto
seja “moderna”, envolvida em nossa quotidianidade mais intensa, isso não impede
que haja nela como que um ponto enigmático de inatualidade, uma estase estranha, a
própria essência de uma interrupção. (BARTHES, 1984, p.135e136)

Baseando-se nessa “essência da interrupção”, conseguimos apoios magníficos do fotógrafo


moderno brasileiro German Lorca (1922 - atualmente) que consegue, a partir de uma quase
fotografia estroboscópica, retratar movimentos e momentos comuns com um simbolismo
minimalista intrínseco.

Figura 11 - Menino Correndo

Fonte: Coleção do Autor, 19678

Na obra “Menino Correndo” (1967), German, a partir de uma dupla exposição em negativo,
imprime a figura do correr de um garoto. A imagem retrata a duas figuras de um garoto que
corre em direção ao observador em um chão orgânico, podendo ser de grama ou uma praia,
identificação que é dificultada pela falta de foco e de cores, uma vez que a imagem é em preto

8
Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra28987/menino-correndo-dupla-exposicao-no-
negativo>. Acesso em: 26 out. 2020.
23

e branco. Apesar do menino ser o protagonista da foto, suas feições não são identificáveis.
Sabe-se que é uma criança pela estatura e dimensões diminutas; e que se trata de um garoto
pela vestimenta de época, corte de cabelo, também decoro e pelo título. A tensão da fotografia
não é expressa pela figura, mas sim por sua representação, em que, ainda simplória, é dividida
em duas fases (uma mais próxima e uma mais distante do observador) translúcidas, mas
opacas em seus momentos de encontro.

A movimentação do garoto tem uma vertente na fotografia estroboscópica devido a esta


fragmentação controlada da imagem. A cena da imagem acima fora manipulada por via de um
“aparelho fotográfico” que, definido por Vilém Flusser, consiste em um brinquedo que traduz
um pensamento conceitual em fotografias.

Aos olhos de Flusser, a “máquina”, por outro lado, consiste em um instrumento no qual a
simulação passou pelo crivo da teoria. Definição que flerta com o “aparelho fotográfico”,
porém, atribuindo a si as limitações do possível e do verossímil. Quando ele define o
“aparelho fotográfico” - e que fique claro que, como tal, tratamos neste momento da
fotografia - como “brinquedo que traduz”, automaticamente ele infere na honestidade
momentânea da captura una, sem que haja manipulação ou artifícios de simultaneidade ou
sobreposição, contrariando as fotografias acima apresentadas, tanto nas imagens de Harold
Edgerton quanto em “menino correndo” de German Lorca; pois este atende à utilidade de
traduzir, diferente da “máquina”, que é aqui proposto como ferramenta para tanto, ao
conceituar a “máquina” deste modo, Flusser toma a “teoria” como teor fundamental à
simulação produzida, abrangendo mais as possibilidades de abstração do conceito, deixando
ao aparelho fotográfico a obtenção crua do conceito de desejo.

Frente a esta sutil perspicácia, ao buscar em German Lorca referências de obras, nos
deparamos com “Pratos” (1970), uma peça em que a manipulação do estado e da obra foi
prioridade antes de sua execução, diferente do retrato anterior onde a preparação da imagem
decorria no seu “durante”. Na imagem abaixo (figura 12), uma série de pratos de plástico
foram posicionados previamente para que a fotografia fosse tirada, dando a impressão de uma
propensão à entropia que Flusser (2009) entende como a tendência a situações cada vez mais
prováveis. Portanto, a sequência de pratos que aparenta deslocar-se rumo ao chão tende a
concretizá-la e, assim, vemos conceitualmente seu decorrer na sua obra.

Lorca quebra a simetria visível para dar ênfase no conceito da entropia e do movimento.
24

Figura 12 - Pratos

Fonte: Coleção do Autor, 19709

Na imagem de 1970, German Lorca constrói um cenário em que uma sequência de pratos de
plástico é posicionada dando a impressão de que estão caindo. A foto em preto e branco ao
nível da bancada dá ênfase nos pratos e mostra a torneira de aço de saída dupla ao fundo em
uma parede de ladrilhos enquanto os pratos são apoiados sobre uma pedra clara.

Essa obra propõe uma situação controlada de entropia: vê-se que os pratos estão fadados a
cair no cão, mesmo estando num modelo estático utilizado para tirar as fotos. O momento
apresenta uma projeção ao futuro, ao inevitável e ao previsível, tal como dirá Roland Barthes:

Em 1865, o jovem Lewis Payne tentou assassinar o secretário de Estado americano,


W. H. Seward. Alexander Gardner fotografou-o em sua cela; ele espera seu
enforcamento. [...] Leio ao mesmo tempo: isso será e isso foi; observo com horror
um futuro anterior cuja aposta é a morte. Ao me dar o passado absoluto da pose
(aoristo), a fotografia me diz a morte no futuro. (BARTHES, 1984, p.142)

Ao passo que assemelhamos as perspectivas de temporalidade, chegamos mais próximo de


interpretações mais diversas. O conceito de tempo não é inerente somente ao indivíduo: pode
ser aplicada também pela sua passagem. Assim como vemos em Rembrandt, pode ser tratada
com sutileza; como vimos em Lucian Freud, como momentos retratados, tal como em
Benjamin Garcia, e como veremos em Adam Lupton, ou podemos aderir à entropia e à
projeção temporal ao que será ou foi representado.

9
Disponível em: <https://www.portalmorada.com.br/cultura/exposicao/63298/sesc-abre-exposicao-fotografica-
german-lorca-arte-oficio-artificio>. Acesso em: 28 out. 2020.
25

Benjamin Garcia é o primeiro a nos apresentar, de modo claro, uma abstração temporal
orgânica num espaço estático, em uma obra de arte, nos dando conta de uma continuidade
existencial que beira ao caos e à desordem, ou seja, a entropia.

Em capítulos posteriores veremos como essa noção de temporalidade se expande para


momentos que serão dados como de “média duração”, e até em cenários mais amplos,
podendo ser atribuídos a salas, composições ou em interações com o espaço presenciado.

3.3. Adam Lupton

Adam Lupton é um pintor canadense nascido na cidade de Vancouver em 1987 e que


atualmente reside no bairro do Brooklin, em Nova Iorque. Seus trabalhos escolhidos para aqui
serem apresentados conferem características importantes para a compreensão deste trabalho.
A acuidade com que trata da temporalidade em suas obras o torna um artista relevante para
este capítulo, pois consegue retratar, acuradamente, períodos médios de segundos ou até
minutos em cada um de seus quadros selecionados.

Este subcapitulo está reservado à demonstração de uma outra vertente de mesmo fulcro
simbólico que o de Benjamin Garcia, pois ambos propõem uma representação atuante numa
escala temporal de períodos variados, sendo, no caso de Lupton, segundos ou minutos, porém,
de abordagens distintas. A linguagem adotada por Benjamin Garcia se distancia da de Adam
Lupton por uma questão de intensidade e acontecimentos. Aqui veremos que Adam aplica
uma temporalidade mais duradoura que Garcia: enquanto o último retrata instantes e
percepções, o primeiro tende a representar passagens e momentos. Suas atmosferas são menos
cheias de pequenas movimentações e banalidades do cotidiano para abrir espaço a
simbolismos e tramas.

Além da temporalidade, outro fator de realce pictográfico forte em suas aparições é a


simultaneidade através do que será definida como “fases”. Cada uma dessas fases remonta a
uma figura representada, uma das partes da simultaneidade em que se identifica alguma
atitude ou individualidade pintada. Qualquer assimilação sortida que assimile o personagem
com atividades díspares será indicada como uma diferente fase para uma melhor compreensão
do ocorrido entre o personagem e a dilatação temporal pictografada pelo artista com fim de, a
partir de uma análise crítica, interpretar a história não escrita contada por Adam Lupton.
26

Através de entrevistas, o autor declara que suas obras tendem a se concentrar e retratar
experiências pessoais, costumeiramente envolvidas com sentimentos de isolamento e
ansiedade, mas que a abordagem artística e representativa muda de série em série, tal como
responde Adam em entrevista para a Execute Magazine quando relata que
“Myportraitsdifferfrom series to series, buttendto center
aroundmypersonalexperiencesofanxietyandisolation. The subject matter shifts slightly, but I
find it’s my approach conceptually that has changed the most over time”10.

Essa mudança de representação entre séries é facilmente confirmada se comparadas algumas


das séries dispostas em seu site pessoal11, tal como a série de pinturas chamada “series I”,
desenvolvida no período entre 2015 e 2017, em que as peças fazem uso de uma tonalidade
mais branda e clara, além de representações mais simplórias de cômodos vazios com
aberturas para corredores escuros, donde sombras bem marcadas reforçam a ideia de que a
sala dispõe de uma fonte de luz forte a favor do interlocutor, como se este tivesse tirado uma
fotografia com o uso de flash.

Outra série que fomenta essa ideia é a que compõe os anos de 2017 a 2019, “hesaid /
hesaid”12, tendendo a uma temática mais humana e ritualística, porém, ainda transmitindo
uma aura mais fria, com influência perceptível do minimalismo. Obras como “Telos (The
Drowning)”, 2018, e “Medusa (The River)”, 2018, ditas como “obras imersivas” pelo autor
(em sua página do Instagram, colocar referência?), compõem algumas das pinturas
monocromáticas dessa época.

As imagens a seguir (figuras 13, 14 e 15) foram todas retiradas da série de pinturas produzidas
entre os anos de 2013 a 2014 e 2018 a 2020 chamada “On A ScaleofThingsThatHappened”13,
o conjunto de obras que mais se aproxima do intuito deste trabalho.

Nela, Adam tende a tornar-se representado com mais frequência em suas telas, trazendo-nos
uma empatia mais aflorada e maior conhecimento do emocional do autor. Lupton, nas obras
aqui selecionadas, mescla uma interlocução entre ócio e pathos, colocando o observador do
quadro junto a momentos pessoais mesmo que de modo onírico e caótico, porém, silencioso e

10 Disponivel em:<https://executemagazine.com/adam-lupton/>. Acesso em: 15 set. 2020.


11 Disponivel em:< http://www.alupton.com/ >. Acesso em: 19 set. 2020.
12 Tradução livre do autor para “ele disse / ele disse”
13 Tradução livre do autor para “Em Uma Escala de Coisas que Aconteceram”
27

íntimo, numa figuração quase abstrata de retratar os acontecimentos através de sua duração,
que aqui se é representada ao mesmo tempo.

Esse tipo de reflexão presente nas obras de Lupton coloca-se em pauta o conceito de “tempo
de magia”, apresentado por Vilém Flusser, em que as análises se sobrepõem a uma cadeia de
explicações mútuas em um tempo cíclico, diferente da vivência temporal linear:

O vaguear do olhar é circular: tende a voltar para contemplar elementos já vistos.


Assim, o “antes” se torna “depois”, e o “depois” se torna o “antes”. O tempo
projetado pelo olhar sobre a imagem é o eterno retorno. O olhar diacroniza a
sincronicidade dialética por ciclos.
Ao circular pela superfície, o olhar tende a voltar sempre para elementos
preferenciais. Tais elementos passam a ser centrais, portadores preferenciais do
significado. deste modo, o olhar vai estabelecendo relações significativas. O tempo
que circula e estabelece relações significativas é muito específico: tempo de magia.
Tempo diferente do linear, o qual estabelece relações casuais entre eventos. [...]Em
outros termos: no tempo da magia, um elemento explica o outro, e este explica o
primeiro. O significado das imagens é o contexto magico das relações reversíveis.
(FLUSSER, 2009, p.8)

A dialética estabelecida nas obras escolhidas de Lupton afrontam uma linearidade concisa na
percepção temporal em razão da representação de diversas camadas, não circulares ou
lineares, porém, em uma tautocronia não coexistente. Vemos sequências temporais em
simultaneidade.
28

Figura 13 - TruthIs The Lie ThatWeTellToOurself

Fonte: Instagram do autor, 201414

Na obra acima, “TruthIs The Lie ThatWeTellToOurself”15, vemos, simultaneamente, seis


situações. Retratando a si mesmo, Lupton se pinta, da esquerda para a direita,
respectivamente, aproximando-se do sofá, sentando-se, retirando uma das cartas dispostas na
mesa, segurando o aparelho celular enquanto olha para o lado direito da tela, falando ao
telefone e, por último, faz alguma ação não revelada, que é apresentada somente com parte da
mão esquerda que segura o aparelho.

A figura aborda não uma atitude, porém uma ação recorrente de imediato para o espectador, a
qual não lhe é mostrada a duração, seja essa, segundos ou quiçá minutos. Sabe-se que, em um
momento, o personagem pretende falar com alguém, porém, não faz questão de alarde para
tanto. Ao ser pintado observando os arredores da estadia e estimulado pelas cartas jogadas à
mesa, sabe-se que a ligação não era urgente, muito menos se fora feita com sucesso, pois a
boca do sujeito permanece fechada em todo o período transposto e a última representação
seria a conferência do aparelho. Sabe-se, somente, que atitude alguma tinha o protagonismo
da tela.

14
Disponível em: <https://www.instagram.com/p/BUpLATXBLWj/>. Acesso em: 19 set. 2020.
15 Tradução livre do autor para “Verdade é a Mentira Que Nós Contamos a Nós Mesmos”
29

Já, a próxima obra, “Butthe Sun IsEclipsedby The Moon” 16, temos cinco propostas na mesma
pintura.
Figura14 - But the Sun Is Eclipsed by The Moon

Fonte: Instagram do autor, 201417

O quadro de 2014 apresenta uma mulher nua em diversas posições dentro de uma banheira de
tipo freestanding clássica sob um chão de taboas de madeira, assim como o revestimento da
parede, esta, de coloração branca, tal como a porta cortada pelo ângulo da imagem, aberta.

Também podendo ser analisada em fases temporais, da esquerda para a direita, Lupton nos
traz cinco delas, respectivamente, como primeira, a mulher com um cigarro na mão direita e
pés para fora da banheira em direção à porta, voltando o olhar para o canto superior esquerdo
atrás do espectador, em segunda fase, ela reposiciona a mão em direção aos seus joelhos, cena
em que, provavelmente, perde o interesse do olhar e volta-o ao fumo, temos então a fase em

16 Tradução livre do autor para “Mas o Sol está Sofrendo Eclipse pela Lua”
17
Disponível em: <https://www.instagram.com/p/oguICIzXH5/>. Acesso em: 19 set. 2020.
30

que presta atenção no pequeno objeto e , logo após, há a fase em que mergulha as pernas na
banheira e apoia a mão esquerda na nuca, apresentando um olhar vazio. Já como
representação da última fase, a taça de vinho aparece junto com parte do braço esquerdo.

Todos os elementos da composição são símbolo de prazer ou de relaxamento. Em duas fases a


mulher segura um cigarro que pouco aparenta ser consumido. Em outra, segura uma taça com
alguma bebida avermelhada, provavelmente vinho e, na última fase, segura algum objeto
pouco identificável, ao qual supõe-se que se trata de alguma lâmina ou embrulho, devido às
dimensões e tonalidade, uma vez que ela está no banheiro e aparentemente entediada. Apesar
de tantos estímulos, o semblante da protagonista é enfadonho, supondo que ela busca, de
diversas formas, por algum fator que a tire de um estado de indiferença.

A obra aparenta rondar um estado emocional estagnado ou esgotado em que, junto com uma
tentativa ansiosa de quedar-se bem, a protagonista se põe em situações para reconfortar-se. A
obra acaba por aglomerar uma busca pela calma frente a uma série de atitudes rotineiras e
desesperadas por algum estado de auto empatia. A pintura é quente, é abafada, fadigada,
tediosa e transborda, no rápido tempo de observação, uma série de angústias expressas pela
ausência expressiva da mulher pintada.O que nos sobra é a nítida realidade atemporal do
mobiliário que se manterá no espaço assim que ela também se cansar do banho. O cenário
acaba por ser o respiro emocional frente à angústia da protagonista.

Sendo assim, essa análise nos possibilita chegar à conclusão de que Lupton retrata duas linhas
temporais, ao mesmo tempo, predominantes na obra. O ciclo pessoal da protagonista,
prolongado, simultâneo e mais passível de uma análise crítica frente às expressividades e a
uma abordagem mais investigativa associável ao “tempo de magia” de Vilém Flusser, ao qual
irá protagonizar as expressões da mulher para uma compreensão da imagem, enquanto que,
paralela e linearmente, observa-se um alívio, em cena, da trivial familiaridade dinâmica em
que o banheiro é pintado frente à inquietude da personagem, por ser representado numa
temporalidade mais constante e una.
31

Figura15 - The Lonesome Crowded Mind (Oh Theseus)

Fonte: Instagram do autor, 201418

Em “The LonesomeCrowded Mind (Oh Theseus)”19, o transpasse temporal aborda um


período muito menos cheio de simbologias, emoções ou ausências, tal como os exemplos
anteriores.

Nesta imagem há uma sequência homogênea e menos identificável do que seriam as tais fases
temporais. Nos é apresentado um rapaz que, em frente ao espelho, monta-se com roupas
femininas e maquia-se. Deduz-se que o processo de montagem seja num estilo cr

ossdresser devido à fase em que o personagem se vira para o interlocutor como que de saída
do espaço, transformando esta em última fase desse espectro temporal, ou seja, o personagem
entra em cena como homem e sai como crossdresser, vestindo um vestido bordô,meia calça,
colar, anéis e um chapéu, além da produção estética da maquiagem e esmalte. Não somente a
montagem deste transformismo, como também o personagem em cena se enfatiza como ser na

18
Disponível em: < Disponível em: <https://www.instagram.com/p/BUpLATXBLWj/>. Acesso em: 19 set.
2020.

>. Acesso em: 20 set. 2020.

19 Tradução livre do autor para “A Mente Lotada Solitária (Oh Teseu)”


32

transposição dos períodos abordados em cena. Andrei Tarkovski abordará este tempo, essa
transitoriedade individual como confirmação de um sentido moral e condição de existência,
não meramente temporalidade linear como objeto perceptível, mas conceitual:

O tempo é necessário para que o homem, criatura mortal seja capaz de se realizar
como personalidade. Não estou, porém, pensando no tempo linear, aquele que
determina a possibilidade de se fazer alguma coisa e praticar um ato qualquer. O ato
é uma decorrência, e o que estou levando em consideração é a causa que corporifica
o homem em sentido moral. (TARKOVSKI, 1990, p.64)

Os períodos retratados na pintura são variados a ponto de que essa amplitude de momentos se
mescla até no reflexo mostrado no espelho, que não reflete simultaneamente, tal como um
espelho comum, mas que nos mostra mais desses pormenores dentro da montagem do
personagem. Em algumas das fases identificáveis o personagem aparece apoiando a mão
direita no espelho enquanto encara a água que corre na pia, senta na borda da banheira
enquanto que o posicionamento de suas pernas e braços presumem que está a colocar os
sapatos, e, por fim do dado período de tempo representado na imagem, sai de cena já
montado. A exibição fora do espelho resume o processo de montagem do personagem em três
etapas, o início, o meio e o fim, enquanto, dentro do espelho, as fases temporais estão mais
focadas na montagem do personagem, no “meio” representado do lado de fora.

Observa-se que algumas imagens conectam os momentos de dentro e de fora do espelho


simbolicamente, como a mão direita do personagem apoiando no gabinete e os olhos já
maquiados que encaram e observam o personagem.

Ao findar as análises das obras de Adam Lupton, vemos como o autor administrou suas
habilidades para carregar uma noção de temporalidade a seu modo. Representando momentos
de duração média – tido aqui o “médio” como um percorrer de minutos – o artista nos mostra
como trazer momentos seletos a mesclar com certos sentimentos para compor um perdurar no
quadro, composto por diversos frames.

A conceituação em que o autor assimila o ambiente com a passagem do tempo é o que faz de
Adam Lupton o primeiro artista a utilizar a intenção temporal em mescla com a espacial como
linguagem apresentada neste estudo, formando uma grande representação do que buscamos
aqui quanto à escala do indivíduo e suas vivencias em conjunto com o entorno pois, mesmo
que já postos exemplos que flertam com a temporalidade, Adam insere em suas obras o
espaço, porém, não com tanta ênfase como será mostrado nos subcapítulos e capítulos
posteriores.
33

3.4. Nu descendo uma escada

O capítulo a seguir contornará a obra de Marcel Duchamp (1887-1968), “Nu Descendo


uma Escada, n°2”, pintura que causara uma repercussão e inspiração para outros quadros,
fotografias e representações devido à sua mescla conceitual assertiva na abstração da
temporalidade.

A apresentação da obra para o capítulo é o símbolo de uma análise que indica a conclusão de
um ciclo e início de uma nova fase de estudos pois, ao decorrer do modo em que ela será aqui
retratada, perceberemos que, ainda que trabalhando com um personagem protagonista, a
movimentação e apresentação na qual ele se dá o atribui como ícone e ferramenta para a
conceituação do espaço e tempo. Logo, o foco da pintura se desvincula formalmente do
personagem para incorporar uma ideia de transição deste, tornando o espaço tão importante
quanto a quem, nele, trafega.

Com inspirações no movimento Dadaísta, o artista Marcel Duchamp desenvolve, no ano de


1912 a obra “Nu Descendo uma Escada, n°2” em que figura a movimentação de um
personagem despido ao descer de uma escada, tal como dirá seu nome. O fator da
temporalidade ao qual se apresenta no quadro é justamente o percorrer do indivíduo numa
dilatação temporal em que vemos diversos momentos simultaneamente. Tal como a imagem
cinematográfica, a partilha da imagem se assemelha a frames que se postam na tela.
34

Figura 16 - Nu Descendo uma Escada, n°2

Fonte: Museu de Arte da Filadélfia, 1912

Quando Duchamp faz essa pintura, na tentativa de representar uma movimentação, este
atribui, à dilatação temporal, momentos, para que consiga representar, simultaneamente,
diversos frames em busca dessa função de apresentar, e duas dimensões, o movimento físico.
Na busca por essa movimentação, o autor se aventura nas fotografias experimentais.

Contrapondo-se às ideias futuristas de aceleração e do movimento como fluxo


contínuo e dinâmico, ao pintar Nu descendo uma escada (1912), Marcel Duchamp
estava interessado nas experiências de análise e decomposição do movimento por
meio da desaceleração e, por isso, buscou nas experimentações cronofotográficas do
francês Étienne-Jules Marey [...] nas quais ele teve acesso através da publicação na
revista francesa La Nature, de 1883 e do inglês Eadweard Muybridge [...], fontes
para as suas análises. (PEREIRA, 2012, pag.88)

Para que tenhamos uma melhor compreensão da obra de Duchamp, é bom que conheçamos
melhor suas referências e que assim, consigamos analisar a pintura vigente com mais
propriedade tendo visto suas bases como objeto de estudo e entendimento para a obra.

Mencionado por Pereira, a cronofotografia é considerada uma arte que tem como objetivo o
estudo e a captação da trajetória do movimento através de fotografias sucessivas em uma
determinada duração, cultura que ficou conhecida na segunda metade do século XIX,
principalmente pelas sequências fotográficas de Eadweard Muybridge (1830-1904).
35

Figura 17 - Mulher Descendo as Escadas

Fonte:Revista Cinética20

Na imagem de Muybridge temos uma sequência de vinte e três frames de uma mulher
descendo uma escada, seguimento retratada no ano de 1887 que compete em dois ângulos do
decorrer do trajeto percorrido pela modelo. A sequência referenciada trata da mesma temática
da obra de Duchamp, porém, a estética por pura estética não nos vale tanto nesse caso, pois
nosso estudo aproxima-se das percepções de transcorrência a qual ela apresenta, levando-nos
a focar mais no âmbito iconográfico, assim, vemos que a sequência da mulher descendo a
escada servirá como arranque para Marcel como um pincel para um pintor.

A real representação que vemos em Nu descendo uma escada é o esmiuçar espacial ao longo
do período da movimentação de um corpo.

Duchamp fatia o movimento, mas não porque quer obter a síntese. Ele fatia porque
quer mostrar as “vísceras” do movimento através de sua estaticidade analítica, como
se através da análise do movimento pudesse penetrar na anatomia do corpo que se
movimenta.(CAROLINY, 2012, p.90)

Tal como pereira nos mostra, alguns atributos da cronofotografia foram postos na pintura de
Duchamp como uma clara referência, não somente o desmonte periódico do tempo, mas
também fatores mais diretos, tal como os elementos usados pelo fotografo Marey para estudo
da movimentação em suas obras, sobretudo em “Man Walking”, obra de 1882, em que um
elemento de uma linha com pinos nas articulações de seus modelos para poder identificar seus
posicionamentos em cada momento.

Vários elementos na composição do quadro Nu descendo uma escada remetem a


elementos utilizados por Marey para estudar o movimento. Um elemento, cuja
evidência é nítida, são os pinos e linhas que o fisiologista francês colocava em seus

20
Disponível em: < http://revistacinetica.com.br/home/?s=dentro+de+casa >. Acesso em: 02 nov. 2020.
36

modelos para facilitar a visualização das posições que o corpo ocupa no


deslocamento da linha percorrida no espaço. Em Nu descendo uma escada, esses
elementos aparecem nas articulações da figura, e correspondem praticamente às
mesmas localizações que aparecem em Marey. (CAROLINY, 2012, p.88)

Marcel utilizará também do mesmo recurso para representar esse guia de continuidade, de
modo abstrato, utilizando de linhas mais sutis, intrínsecas aos contornos e as vezes
pontilhadas.

Figura 18 - Man Walking

Fonte: Greco-Casadesus, 201121

Segundo Caroliny Pereira, parte de sua motivação provém do deslocamento transposto pela
escola artístico futurista, que tendia a representar a movimentação e velocidade das máquinas
industriais recém prostradas à sociedade do começo do século XX, porém, podemos dizer que
Duchamp utiliza do conceito e representação destes para substituir o atributo da
movimentação com o da decomposição do tempo, contrapondo as motivações futuristas
dentro de sua própria figuração.

Mesmo que nos pareça muito próximo dos conceitos do futurismo e do cubismo, a obra de
Marcel se liga e se difere de ambas, atribuindo a si o exoesqueleto de partidos artísticos. Em
Nu Descendo uma Escada vemos uma forma plasticamente cubista que, embora caótica, é
totalmente identificável. Sua velocidade também é expressa na tela, herança dos futuristas,
que apanhavam o mundo moderno e a velocidade em suas motivações representativas. Aqui
Duchamp abdica do deslocamento para preencher essa lacuna com a temporalidade; por mais
que sua motivação remeta ao futuro e ao presente, o autor permanece no passado, marcando-o
como que com passos na tela.

21
Disponível em: <https://www.greco-casadesus.com/marey-2011/marey-english.html> Acesso em: 02 nov.
2020
37

Sendo assim, nosso autor trata de obter a conceituação para contradizer a própria linguagem
vigente das escolas artísticas mencionadas, pois usa o conceito como casca para troar suas
motivações intrínsecas.

Os movimentos artísticos, cubismo e futurismo, são repletos de contradições. A


contundência dessa característica também surge quando nos deparamos com a
pintura: Nu descendo uma escada, que nos aproxima e ao mesmo tempo também
distância desses dois movimentos. Ela traz questões dos dois e ao mesmo tempo
diverge de ambos. (CAROLINY, 2012, p.90)

Essa fatiamento do tempo foi um marco para a arte ao momento em que Marcel utilizou de
conceituações opostas para implantar sua ideia de dilatação temporal. A partir de então,
vemos diversas reproduções da obra em diferentes escalas e estilos que passam o tempo em
décadas sem que se envelheça essa sinestesia espaço-temporal.

Figura 19 - Nude Descending a Stair

Fonte: Artnet, 195522

Em “Nude Descending a Stair”, de 1955, a artista Hananiah Harari (1912-2000) faz uma
releitura da obra de Duchamp. De nome similar, a artista reproduz a obra com uma figuração
mais realista e clara, onde vemos, a partir de poses, uma mulher descendo uma escada em

22
disponível em: <http://www.artnet.com/artists/hananiah-harari/nude-descending-stairs-
ZE9_eiF0uOFCg4rE9lIN3w2> Acesso em: 02 nov. 2020
38

vinte fases. A dilatação temporal em Harari é diminuída para que se consiga obter uma maior
definição da moça que desce as escadas introduzindo poses a cada momento retratado.

Figura 20 - Ema (nude onstaircase)

Fonte: Site do Artista, 196623

Em “Ema (nude onstaircase)”, de 1966, Gerhald Richter toma um posicionamento mais


defensivo e oposto a Harari em que assume o a dilatação temporal mais pontual, mas maior
compassada, no intuito de conseguir uma menor definição, ou seja, o que Gerhald faz é uma
contraposição a Duchamp que, ao invés de retratar o decorrer da locomoção da mulher através
da escada, retrata um período deste momento ao qual a delimitação sequencial foi muito mais
ajustada; vê-se que há um delay na captura da imagem , demonstrando uma noção de
movimentação, resultando na perca da definição da fotografia.

Como o mundo real, o mundo fílmico é sustentado pela presunção de “que a


experiencia continuará constantemente a fluir no mesmo estilo construtivo”; mas a
Fotografia rompe “o estilo construtivo” (está aí seu espanto); ela é desprovida de
futuro (estão aí seu pretérito, rua melancolia); nela, não há qualquer proteção, ao
passo que o cinema é protensivo, e por isso de modo algum melancólico (o que ele é
então? – Pois bem, é simplesmente “normal”, como a vida). Imóvel, a Fotografia
reflui da apresentação para a retenção. (BARTHES, 1984,p.134)

23
disponível em: <https://www.gerhard-richter.com/en/art/paintings/photo-paintings/nudes-16/ema-nude-on-a-
staircase-5778> Acesso em: 03 nov. 2020
39

Ao contrário do que dirá Barthes, há uma dilatação ao futuro provida pela fotografia de
Gerhald. A imagem tem uma decorrência rítmica que experiência um fluir construtivo. O
retrato de 1992 se torna uma exceção a Roland justamente por seu fulcro temporal, sua
motivação é essencialmente a persuasão espacial, a imagem, por mais estática que esteja, foi
provida justamente com a ideia de guiar uma movimentação evidente.

Richter consegue resumir as intenções adotadas por Duchamp com simplicidade em um único
take. Caso tirado essa base partidária -aqui tido somo sinônimo de causa ou motivo-, indicada
por uma dilatação rítmica temporal, da obra de Duchamp, o que nos restaria seria uma
representação estética de uma ação corrente, tal como expressa nos quadrinhos de Calvin e
Haroldo.

Figura 21 - Nude Descending a Staircase!

Fonte: Biblioklept, 201324

Quando abstraímos a temporalidade da obra, ficamos somente com a memória estética,


refletido na piada da tirinha.

Duchamp nos mostra o quão forte pode ser uma representação quando assimilada no amago
de uma obra. A sincronia entre o fenótipo e o genótipo dessa peça o torna integra e quase
impossível de ser implodida de seus significados.

Ao trabalhar com o individuo em estreita ligação com o espaço, criamos um ponto de ligação
entre a escala humana e a escala menor, espacial e local, mesmo que projetada em conjunto
até então. O que veremos a seguir é essa razão sendo voltada estritamente ao espaço habitável

24
disponível em: <https://biblioklept.org/2013/11/07/calvin-and-hobbes-take-on-marcel-duchamp/> Acesso em:
06 nov. 2020
40

e suas percepções, a arquitetura diretamente dita em conluio com o espaço e tempo à


percepção individual.
41

4. TEMPO E ESPAÇO
Spazieren, walking, walking, and seeing, I wish you were here grandma. This must
be the station they told me about, with the funny name. not the station where the
train stopped, but the station where the station stopped.
- Columbo. Der Himmel über Berlin, Wes Winders

No capítulo anterior, “TEMPO E INDIVIDUO”, analisamos e discutimos obras vigentes a


uma noção de tempo e duração inerente ao ser como formação de si e como indivíduo.
Passamos por modos de figurar a temporalidade desde o uso e linguagem no fenótipo – na
criação e como estilo de pintura como nos autorretratos - da obra até por sua conceituação
figurativa impressa em imagem – mais diretamente apresentada em adam Lupton, Benjamin
Garcia e Marcel Duchamp – a ponto de admitirmos uma escala progressiva neste estudo onde
essas noções de temporalidade e espacialidade se encontram na representação, nas artes aqui
mostradas, desde uma aplicação na sua produção até gestos de pequenas e medias durações,
passando para uma propagação com o ambiente.

A partir de agora, as espacialidades serão tão fortes ou até mais que a representação temporal,
mas não menos importantes, o que significa que a temática da temporalidade terá uma
modalidade não mais presa ao individuo e suas emoções, mas a partir de suas ações e como
este lida com o habitat em seu entorno.

Adentraremos, a partir deste capítulo, numa arte mais voltada à imagem produzida e
projetada, diferente das imagens pintadas (mostradas nos capítulos anteriores), fator que
capacita as obras a um alívio suscetível a maiores intervenções artísticas por conta da
figuração direta da realidade e da possibilidade que a manipulação visual pode proporcionar.
Essas facilidades serão discutidas por Walter Benjamin (2017).

Por meio da litografia, as artes gráficas tornaram-se capazes de acompanhar o dia a


dia de maneira ilustrativa. Elas começaram a acompanhar o ritmo da impressão.
Nisso, porém, já foram superadas, poucas décadas após a invenção da impressão
sobre pedras, pela fotografia. Com a fotografia, a mão foi pela primeira vez aliviada
das mais importantes obrigações artísticas no processo de reprodução figurativa, as
quais recairiam daí exclusivamente sobre o olho. Como o olho apreende mais rápido
do que a mão desenha, o processo de reprodução figurativa foi acelerado de modo
tão intenso que agora ele podia acompanhar o ritmo da fala. Se a litografia encerrava
virtualmente o jornal ilustrado, também o cinema falado encontrava-se latente na
fotografia. (BENJAMIN,2017,p.55)
42

5.1 A imagem de Evgen Bavcar

A presença deste artista neste trabalho tem um papel valioso pois trata-se de uma
interpretação ímpar frente a impossibilidades que desafiam a atividade artística a qual este
representa.

Evgen Bavcar, esloveno nascido em Lokavec em 1946, é um fotografo e filosofo, doutor em


filosofia da arte (estética) pela universidade de Sorbonne de Paris. Internacionalmente
conhecido por suas fotografias, Evgen conta com uma condição que surpreende seus feitos,
ele é incapaz de enxergar. Totalmente cego desde os doze anos de idade devido a dois
acidentes quando criança, o primeiro com um galho de uma arvore no olho esquerdo aos onze
anos, e o segundo, com uma mina explosiva aos doze.

A priori, o estranhamento frente a uma arte de peso e apreciação totalmente visual é uma
sensação vivida que toma conta do observador, até que se tem o valor simbólico das
fotografias. Por mais irônica que aparenta ser o fulcro de sua arte, ele o faz, além de
composições de grande valor estético, com provocações metafóricas fortes quanto à
percepção do espaço e da visão, passando a representar processos e situações que, tendo a
máquina fotográfica a seu favor e manejo, serão desafiados ao que dirá Vilém Flusser (2009)
quanto ao fotografável.

o fotografo somente pode fotografar o fotografável, isto é, o que está inscrito no


aparelho. E para que algo seja fotografável, deve ser transcodificado em cena. O
fotografo não pode fotografar processos. De maneira que o aparelho programa o
fotografo para transcodificar tudo em cena, para magicizar tudo. (FLUSSER, 2009,
p.31)

Além da motivação pictórica, o fato das composições de Bavcar serem em preto e branco
torna-as mais interessantes de serem estudadas dada a deficiência visual do fotografo pois,
como composição lumínica, a conexão entre autor e obra, neste caso, ambienta ideias menos
concretas e mais idealísticas, complementando essa tal motivação. Vilém Flusser dirá também
que “[...]o preto e o branco são situações “ideais”, situações-limite. O branco é a presença
total de todas as vibrações luminosas; o preto é a ausência total.”(FLUSSER, 2009, p.38)

Partindo dessa premissa da representação fotográfica, afirmamos que um dos principais


aspectos intrínsecos à obra de Bavcar é, através dessa sensibilidade primordial da
comunicação visual, a presença e ausência de luz emitidas pela monocromia, conjuntura mais
rente ao obstáculo físico e sensitivo do artista que a equalização e composição de cores, pois,
43

como deficiente da visão, a abstração imagética de um conceito consegue um peso


representativo mais evidente que uma representação lírica, fato que se apura de acordo com
Vilém.

As fotografias em preto-e-branco são a magia do pensamento teórico, conceitual, e é


precisamente nisso que reside seu fascínio. Relevam a beleza do pensamento
conceitual abstrato. (FLUSSER, 2009, p.39)

Outro teórico que disserta quanto a aplicação de cores que maquiam veracidade das figuras
será Roland Barthes, quando comenta que

tenho a impressão (pouco importa o que realmente ocorre) de que, do mesmo modo,
em toda fotografia, a cor é um revestimento aposto ulteriormente sobre a verdade
original do Preto-e-branco a cor, pra mim, é um ornato postiço, uma maquiagem (tal
como a que é usada nos cadáveres). (BARTHES,1984, p.122)

Pretendemos aqui analisar suas fotografias que suscitem a sua interpretação do espaço físico,
interpretação essa que reflete seu modo de trabalho e suas percepções de local e como
procede-se uma dicotomia representativa no tempo de familiaridade no processo de
conhecimento e preparação do retrato. O exemplo mais sucinto mostrado é a obra abaixo.

Figura 22 - Noga

Fonte: Revista Carbono, 201425

25
Disponível em:<http://revistacarbono.com/artigos/06-entrevista-evgen-bavcar/> Acesso em: 14 nov. 2020
44

A fotografia é uma imagem em preto e branco onde, apoiada a uma parede de madeira, ou
talvez uma porta, (abjeção não tão necessária para a compreensão da obra),encontra-se uma
prótese de uma perna de madeira. Esta enquadra-se quase no meio da imagem, deixando à
direita, um lado sombrio e de pouca luz, enquanto, do outro lado, prevê-se alguma fonte de
luz quase zenital. Ainda no trecho esquerdo, conseguimos identificar o que poderia ser a mão
do autor, Evgen Bavcar, alisando a prótese compassadamente em quatro fases temporais.

Em entrevista para a Revista Carbono (2014)26 o autor disserta sobre parte da história da obra
quando relata do que se tratava:

Prótese de um homem conhecido que perdeu sua perna durante a primeira guerra
mundial. Eu não vi esta perna, porque ela ficava escondida sob a calça, mas quando
eu enxergava, vi apenas a parte inferior da perna e agora um dos seus parentes que
me permitiram fotografar esta perna. É a lembrança deste senhor, que é um inválido,
um deficiente de guerra, da Primeira Guerra Mundial. (EVGEN BAVCAR, 2014)

A obra exibe uma clara conversa entre objeto, autor e observador num amalgama de sentidos
e percepções. Por um lado, compreende-se aqui, novamente, o conceito apresentado no
capítulo anterior, das fases temporais das pinturas de Adam Lupton e Benjamin Garcia, onde
conseguimos identificar representações simultâneas em temporalidades diferentes. Neste caso,
a dificuldade representativa da mesma ideia é elevada pela deficiência do fotografo pois,
devido a falta de visão, o tato é o sentido que lhe resta para interceptar e reconhecer o objeto.

Após reconhecermos essa dificuldade do autor, conseguimos interpretar a profundidade da


fotografia que nos mostra o sentido puro da percepção que, segundo ABBAGNANO,

A disposição constitui a expectativa perceptual, que se baseia na experiência


precedente e antecipa a futura. Em geral, na percepção, as disposições são
estabelecidas desde muito tempo, através da atividade perceptiva anterior, e pode
estar pronta para entrar em ação quando o organismo ingressa em dada situação.
Através dela. o organismo escolhe, organiza e transforma as "informações" que lhe
chegam do ambiente. (Nicola Abbagnano, 1999, pag. 756)

Portanto, na fotografia, estabelece-se o reconhecimento do objeto através de uma percepção


tátil em que o autor, cego, por memorias de outras pernas, está em processo de identificação
da prótese de madeira enquanto, ao presenciar tal momento, já identificamos a cena por maio
da visão.

26
Disponível em:<http://revistacarbono.com/artigos/06-entrevista-evgen-bavcar/> Acesso em: 15 nov. 2020
45

A impossibilidade de Evgen de enxergar o deixa atrasado ao nosso reconhecimento do


ambiente. Aqui temos a captação temporal da representação em si, e, mais fundo, a duração
de um reconhecimento local pelo autor em detrimento do uso de outros sentidos salvo a visão.

Mais especificamente, temos nessa temporalidade o conceito barthiano de punctum, o fator


dramático que compõe a simbologia da fotografia que, nesse caso, é a duração do
reconhecimento da prótese por um indivíduo cego.

A esse segundo elemento que vem contrariar o studium chamarei então punctum;
pois punctum é também picada, pequeno buraco, pequena mancha, pequeno corte – e
também lance de dados. O punctum de uma foto é esse acaso que, nela, me punge
(mas também me mortifica, me fere). (BARTHES,1984, p.46)

Vemos a prótese e já a identificamos como tal, mas na imagem, após compreender sua
ambientação, ela mesma me dirá que o eu lírico irá identificá-la. O exemplo que Barthes nos
dá para esse conceito é o de Lewis Payne, um jovem que foi preso por tentativa de assassinato
e espera pela forca.

Em 1865, o jovem Lewis Payne tentou assassinar o secretário de Estado americano,


W. H. Seward. Alexander Gardner fotografou-o em sua cela; ele espera seu
enforcamento. A foto é bela, o jovem também: trata-se do studium. Mas o punctum
é: ele vai morrer. Leio ao mesmo tempo: isso será e isso foi; observo com horror um
futuro anterior cuja aposta é a morte. Ao me dar o passado absoluto da pose
(aoristo), a fotografia me diz a morte no futuro. (BARTHES, 1984,p.142)

Compreendida a natureza da obra, sua função lúdica-imaginaria é limitada pelas


possibilidades do mundo físico. Para tanto, Bavcar faz uso da manipulação do aparelho
fotográfico para que a imagem obtenha alguns takes na mesma fotografia, resultando nas
quatro fases em que vemos sua mão alisando o objeto em enquadramento.

O manuseio da peça retratado é a atitude que carrega o maior simbolismo da obra. A presença
de uma peça provinda de uma atrocidade bélica é ofuscada pelo gesto da mão no intuito de
identificar, sentir e compreender a cena. Por mais que a presença da guerra tenha sido um
assunto constante na vida do fotógrafo, assim assumido para a Revista Carbono quando diz
que a guerra estava sempre presente. Fosse pelo meu corpo, ou pelas histórias. Ou pelo que
eu via, ou pelo material que encontrávamos (EVGEN BAVCAR, pág. 6), o que chamaríamos
aqui de sua “apresentação tátil” se aproxima mais de uma performance visual que de uma
obra pictórica

Por fim, Evgen, através de fases temporais em que simboliza seu modo de assumir o mundo
por suas limitações visuais, manifesta a vagarosidade a qual submete sua noção de espaço por
46

captar o exato momento de sua duração, enquanto o fazemos ao apreciar a obra. A


metalinguagem temporal dessa narrativa gira em torno de uma brincadeira de “ver” o
momento de “contemplação”.Vilém Flusser discorrerá sobre a proposta das imagens frente ao
conflito do humano e a máquina como ferramenta transmissora dessa simbologia.

se compararmos as intenções do fotografo e do aparelho, constataremos pontos de


convergência e divergência. Nos pontos convergentes, aparelho e fotografo
colaboram; nos divergentes, se combatem. Toda fotografia é resultado de tal
colaboração e combate. [...] Determinada fotografia só é decifrada quando tivermos
analisado como a colaboração e o combate nela se relacionam
No confronto com determinada fotografia, eis o que o crítico deve perguntar: até que
ponto conseguiu o fotografo submetê-la à sua própria? Que métodos utilizou:
astucia, violência, truques? Até que ponto conseguiu o aparelho apropriar-se da
intenção do fotógrafo e desviá-la para os propósitos nele programados? Responder a
tais perguntas é ter os critérios para julgá-las. As fotografias “melhores” seriam
aquelas que evidenciam a vitória da intenção do fotografo sobre o aparelho: a vitória
do homem sobre o aparelho. (FLUSSER, 2009, p.42)

Nessa medida, Bavcar retém essa dominância nessa primeira imagem, como também nas
subsequentes. Adentraremos em outros modos de identificação e outras abordagens
perceptivas de autoria de Evgen para que reforcemos essa variação interativa do indivíduo
com o espaço.

Nota-se uma constância vetorial no significado das fotografias de Bavcar e, com isso,
suponho que a persistência de assuntos vinculados ao espaço e suas percepções tendem a ser
recorrentes em suas fotografias. Tem-se uma forte presença do conceito de punctum, cravado
por Barthes, que o definirá a partir de uma motivação do autor quando diz que, por mais
fulgurante que seja, o punctum tem, mais ou menos virtualmente, uma força de expressão.
Essa força é frequentemente metonímica.(BARTHES,1984, p.73)

Neste estudo reconhecemos o punctum de Evgen decoro com sua deficiência visual ou em
detrimento disto, logo, em decoro com suas assimilações espaciais frente a esta vivência
congênita.
47

Figura 23 - nome indefinido

Fonte: mdig, 201227

A fotografia acima apresenta uma criança em frente a uma mesa repleta de cestos com maçãs.
O forte simbolismo do autor em sombrear a região dos olhos da criança sugere que ela
também seja cega, e, ao observar o posicionamento de suas mãos (em especial da mão direita)
numa identificação tátil, a imagem trilha sobre mais um discurso de reconhecimento espacial.

Percebemos logo após essa rápida análise que estamos diante de alguém a perceber o espaço
através das mãos, através dos sentidos táteis.

Por mais presente que esteja, há de discorrer quanto a interpretação imediata sobre o mundo a
partir da leitura de uma imagem, a qual, no caso de Bavcar, exige a explicação e
contextualização para que se compreenda que o que se mostra é a sua visão de mundo
terceirizada. A leitura artística da imagem pede uma interpretação do autor e somente. Esta
abordagem não abre brechas ou manipulações de interpretações terceiras, outrossim relativo
ao mundo de Bavcar.

Para tanto, ao falar sobre os tipos de imagem, Flusser dirá sobre a natureza das “imagens
técnicas”, provindas do intuito de traduzir um texto, os iconografando e codificando. Porém,
ao invés de reivindicar o texto em si como alma das imagens técnicas, Vilém assumirá
“determinados conceitos relativos ao mundo” como papel principal das imagens técnicas.

27
disponível em: <https://www.mdig.com.br/index.php?itemid=22729&catid=5> Acesso em: 17 nov. 2020
48

“A aparente objetividade das imagens técnicas é ilusória, pois na realidade são tão
simbólicas quanto o são todas as imagens. Devem ser decifradas por quem deseja
captar-lhes o significado. Com efeito, são elas símbolos extremamente abstratos:
codificam textos em imagens, são metacódigos de textos. A imaginação à qual
devem sua origem, é capacidade de codificar textos em imagens. Decifra-las é
reconstruir os textos que tais imagens significam. Quando as imagens técnicas são
corretamente decifradas, surge o mundo conceitual como sendo o seu universo de
significado. O que vemos ao contemplar as imagens técnicas não é “o mundo”, mas
determinados conceitos relativos ao mundo, a despeito da automaticidade da
impressão do mundo sobre a superfície da imagem” (FLUSSER, 2009, p.14)

O conceito relativo em que temos abordado nesse subtópico é a visão e identificação espacial
tão específica representada nas fotografias de Evgen Bavcar. E então é aqui que se encaixa a
maior mensagem que Bavcar tenta transmitir, não um símbolo de piedade, mas, numa
tentativa de expressar compreensão e empatia, conseguimos adicionar um novo modo de
projetar suas percepções sob nosso mundo. Essa conclusão é prevista também por Flusser,
Como toda imagem, é também (a imagem técnica) magica e seu observador tende a projetar
essa magia sobre o mundo. (FLUSSER, 2009,p.15)

Finalizando a série de imagens de Bavcar, uma de suas obras é a que, para o autor, resume o
partido de suas obras na coesão analítica, por nós, buscada, por mescla abertamente as suas
intenções.

Figura 24 - nome indefinido

Fonte: mdig, 201228

Na imagem acima, a fotografia acaba por criar o que se interpreta como um sigilo -
considerando aqui o sigilo como um símbolo pictórico que representa um nome ou uma

28
disponível em: <https://www.mdig.com.br/index.php?itemid=22729&catid=5> Acesso em: 17 nov. 2020
49

entidade – do artista, uma junção de fatores que integrados, resultam numa espécie de texto de
apresentação.

A imagem mostra signos e atos que flertam com a espacialidade, tornando essa fotografia uma
situação irreal, uma montagem, ao sugerir, por exemplo, a presença de um olho de escala
enorme, ligando com sua deficiência visual, ao mesmo tempo que, com base na
cronofotografia, ao lado esquerdo presenciamos uma mulher desprovida de roupas, sentada no
chão, parada.

A mulher parece não se importar com a situação e o fato de estar sendo tocada com a mesma
ambição com que foram outros objetos tocados (maçãs e prótese de madeira), uma ambição
de puro conhecimento e compreensão de seu corpo.

Na obra não há intenções pervertidas, mas o resumo de suas intentadas, a de tentar projetar ao
observador, o mundo do artista sobre a magia da imagem, criando uma inversão no espaço e
imagem pois, ao oposto do que dirá Flusser, Bavcar é um caso específico em que visa a
programar a sociedade através de fotografias, não de eternizar-se.

o fotografo visa a eternizar-se nos outros por intermédio da fotografia. O aparelho


visa a programar a sociedade através das fotografias para um comportamento que
lhe permita aperfeiçoar-se. (FLUSSER, 2009, p.43)

Evgen parece brincar conosco numa metonímia artística em que nos mostra, por meio da
visão, sua forma de não ver, mas sua forma de sentir os objetos e o local por meio tátil e, com
isso, confronta Andrei Tarkovski, quando sanciona a imagem a uma percepção estritamente
visual e auditiva, restando os sentidos todos, somente ao cinema.

Uma das mais importantes limitações do cinema, se assim o quiserem, é o fato de


que a imagem só pode ser concretizada através das formas naturais e reais da vida
percebida pelos sentidos da visão e audição. Um filme tem de ser naturalista. [...]o
que quero dizer é que percebemos a forma da imagem cinematográfica através dos
sentidos. (TARKOVSKI, 1998, p.82)

Por fato, não está errado, pois nosso vigente artista adquire de atitudes rotineiras suas como
um ato performático para que então seja retratado como fotografia, mesmo que ainda com um
simbolismo bastante direto, de sua performance perceptiva. Frente a Evgen Bavcar, como
ressaltará Barthes, o poder de suas artes está na representação do poder de sua autentificação,
nesse caso, do sentir e do estar no espaço.

A foto possui uma força constativa, e que o constativo da Fotografia incide, não
sobre o objeto, mas sobre o tempo. Na Fotografia, de um ponto de vista
50

fenomenológico, o poder de autentificação sobrepõe-se ao poder de representação.


(BARTHES, 1984, p.132)

4.1. Espacialidades

Após estudarmos as percepções tátil-perceptivas nas fotografias de Evgen Bavcar, as ruinas e


criações imersivas nas gravuras de Piranesi e as abstrações gestálticas nos desenhos de
Escher, entraremos então numa abordagem mais próxima da cinematografia, onde o plano
sequência dará o simbolismo vetorial para a obra, não mais a ideia como base, mas sim a
reprodutibilidade e a continuidade.

Ao analisarmos uma obra cinematográfica, devemos vê-la como um plano sequencial, não
como cena, pois esta está mais ligada diretamente à pintura, enquanto a essência do cinema,
tal como dirá BENJAMIN (2017), é a sua propriedade reprodutiva. No filme temos uma forma
cujo caráter artístico é pela primeira vez determinado completamente por sua
reprodutibilidade.(página 68).

Tomemos como exemplo, a metáfora usada pelo personagem Domenico, em Nostalgia29


(1983) quando diz que “uma gota, mais uma gota... fazem uma gota grande, não duas”.
Assim será também com a subordinação da imagem frente ao cinema, pois uma foto é uma
obra por si só, já o segundo, necessita de uma continuidade clara e decoro para sua definição
como ser sequencial. Se o faz de modo fugaz, temos o que vimos no subcapítulo “A imagem
de Evgen Bavcar” e nas fotografias estroboscópicas em “Nu Descendo uma escada”, mas ao
aplicar a condição da sequência, chegaremos às condições imutáveis para o cinema segundo
Tarkovski (1998)

Uma das condições essenciais e imutáveis do cinema determina que na tela as ações
devem se desenvolver sequencialmente, não importa se concebidas como
simultâneas ou retrospectivas, ou algo do gênero. Para apresentar dois ou mais
processos como simultâneos ou paralelos, é preciso necessariamente mostrá-los um
em seguida ao outro; a montagem deve ser sequencial. Não há outra forma de fazê-
lo. (TARKOVSKI, 1998, p.80)

De tamanha importância para este trabalho, Tarkovski terá, não somente sua
trajetóriacinematográfica derramada neste subcapítulo, como também servirá de base teórica

29
Filme ítalo-soviético dirigido por Andrey Tarkovski. O título será amplamente estudado
neste subcapítulo
51

para suas próprias obras e sua manifestação de do trato da espacialidade e temporalidade


como formas de apreciação e reprodução.

Por mais que tenhamos estudado detalhes e vertentes da iconografia com fulcro temporal,
focamos essencialmente nas imagens estáticas para assim o fazê-lo, porém faz parte das artes
visuais também o cinema, modelo artístico criado a partir da fotografia, mas não
necessariamente parte dela, mesmo dando como inspiração a um dos fatores principais para
sua composição.

Essa separação dessas duas artes terá diversos discursos que as comporiam como únicas, tal
como sua frequência reprodutora acima mencionado, ou a atribuição da própria temporalidade
fixa ou estática.

Ao comentarmos sobre a progressão em que o cinema fora separado da fotografia, veremos


em Roland Barthes, uma referência quanto a pose, natureza formadora da fotografia que se
torna uma fração no cinema.

o que funda a natureza da Fotografia é a pose. Pouco importa a duração física dessa
pose; mesmo no tempo de um milionésimo de segundo (a gota de leite de H. D.
Edgerton), sempre houve pose, pois a pose não é aqui uma atitude do alvo, nem
mesmo uma técnica do Operator, mas o termo de uma “intenção” de leitura: ao
olhar uma foto, incluo fatalmente em meu olhar o pensamento desse instante, por
mais breve que seja, no qual lima coisa real se encontrou imóvel diante do olho.
Reporto a imobilidade da foto presente à tomada passada, e é essa interrupção que
institui a pose. Isso explica que o noema da Fotografia se altere quando essa
Fotografia se anima e se torna cinema: na Foto, alguma coisa se pôs diante do
pequeno orifício e aí permaneceu para sempre (está aí meu sentimento); mas no
cinema alguma coisa passou diante desse mesmo pequeno orifício: a pose é levada e
negada pela sequência contínua das imagens: trata-se de outra fenomenologia e,
portanto, de outra arte que começa, embora derivada da primeira.(BARTHES,
1984,p.117)

Para Barthes, a questão da subsequência é um invólucro para algo com ligação ainda mais
forte à fotografia, trata-se da pose, da movimentação dos personagens antes impossibilitada
pela fotografia como momento estático.

A pose consegue preencher seu âmbito objetivo quando se trata da arte estática, porém, nega-
se como essência na arte sequencial. Conseguimos encontrar, no campo, algumas exceções,
dentre elas, o curta-metragem de ficção cientifica de 1962 dirigido por Cris Marker, La Jetée.
O enredo do filme tem um papel interessante para essa pesquisa por tratar de experimentos de
viagem no tempo em um futuro diatópico, porém, o que mais nos atrai é o conceito do curta,
que transita entre a fotografia e o cinema, flertando com Barthes pois, ao invés de gravado em
52

filmes, a linguagem deste é estática e composta por fotografias de curta duração (média de
três segundos por imagem) enquanto o narrador acompanha o decorrer da história.

Figura 25 - La Jetée

Fonte: Formiga Elétrica, 201330

Tal como La Jetée, poderíamos citar inúmeros filmes que tratassem da viagem no tempo,
sendo um assunto com uma grande quantidade de vertentes e títulos, como a saga De Volta
para o Futuro (1985-1990), a saga Exterminador do Futuro (1984-2019), trilogia Efeito
Borboleta (2004-2009), entre outros. Estudar essa temática sairia fora do conceito aqui
buscado, pois ao focar na questão do espaço-tempo, não nos interessa o enredo aplicado, mas
a linguagem artística.

Outros filmes próximos ou que flertariam com nosso objetivo seriam Sr. Ninguém (2009),
dirigido por Jaco Van Dormael, em que uma série de linhas do tempo é criada a cada escolha
feita no decorrer da vida do protagonista, dando-o quatro possibilidades mostradas ao
telespectador. Ao final do longa, a contemporaneidade que nos é mostrada entra em colapso e a
explicação que nos é dada é a de que weonlylive in theimaginationof a nine yearsoldchild31.

Em Sr. Ninguém, o que nos é mostrado é, a partir dessa frase, que a realidade foi fruto de uma
série de escolhas feitas ao longo da vida e que uma delas fora mudada, especificamente, uma
escolha de uma criança de nove anos, que desencadeou em um futuro presente diferente do
exibido. Vê-se logo que a questão da temporalidade, outrora base para a trama, torna-se
consequência das possibilidades movida pela possibilidade de universos paralelos
simultaneamente vividos e, portanto, distante da continuidade uma do tempo em que nos
referimos.

30
Disponível em: <https://formigaeletrica.com.br/cinema/curtas/la-jetee/> Acesso em: 27 nov. 2020
31
Traduzido pelo autor para “nós somente estamos vivendo na imaginação de uma criança de nove anos de
idade”
53

A linha-mundo ou história de um observador sempre aumentava na direção do


tempo real (ou seja, o tempo sempre se movia do passado para o futuro), mas ela
podia aumentar ou diminuir em qualquer uma das três direções espaciais. Em outras
palavras, era possível reverter a direção no espaço, mas não o tempo. (HAWKING,
2016, p.68)

Ao que dirá Hawking quanto à teoria da relatividade geral de Albert Einstein, “era possível
reverter a direção no espaço, mas não o tempo”, apontando que este último, decorre em uma
direção constante vetorial ao futuro, independente do período em que a referência se
encontraria, suscitando então na gema de grande parte dos filmes com a manipulação
temporalidade como linguagem. Nessas obras, costumeiramente ocorre algo que leva o
protagonista a outros períodos e eras, porém, o tempo continuará na constante vetorial voltada
ao futuro, por mais que se force a voltar no tempo, ele manterá sua trajetória a frente.

Diferente do clichê do cinema mencionado acima, o jogo expressivo em buscamos como


temporalidade se aproximará de um embasamento intrínseco à obra, não quanto a
possibilidades atualmente impossíveis, descartando então a temática da viagem do tempo.

Nessa pesquisa, por tratarmos de questões de durações, continuidades, memória e criação ao


longo do tempo e espaço com a cenografia do diretor Soviético Andrei Tarkovski (1932-
1986) que teve uma breve, porém extremamente influente filmografia. Uma de suas maiores
características é o modo peculiar que lida com a estética temporal em suas obras, arranjando
constantemente simbolismos que perpassam as sucessões temporais e que refletem a
espacialidade em sublimações emocionais do espaço.

O tempo registrado por Tarkovski passa a ser o da constância, o tempo da sucessão, mais
próximo ao que Henri Bergson registraria como “tempo real” que, por Coelho (2004)32, define-
se como sucessão, continuidade, mudança, memória e criação, e que é confirmado por
Ludymylla.

Falar de “presente” implica necessariamente falar do outro lado da medalha, ou seja,


o passado. Assim como falar do passado envolve claramente falar do presente. É
preciso de um corpo para lembrar, um corpo que vivencia e age. Podemos afirmar
então que o tempo ao qual Tarkovski se reporta não é o tempo cronológico,
espacializado que marca nossa vida cotidiana, mas algo próximo do que Bergson
chama de tempo real. (LUCENA, 2013, p.25)

Teremos, como objeto de estudos primordial, uma de suas obras, o filme de 1983, Nostalgia.
Nele, Andrei, um poeta russo, vai até a região de Bolonha com uma tradutora de italiano,

32
Disponível em < https://www.scielo.br/pdf/icse/v8n15/a04v8n15.pdf >
54

Eugenia, para estudar a história de um musicista russo que estudara por lá, chamado
Sosnovsky.

Em meio a viagem conhecem Domenico, um homem dito como louco por supostamente ter se
trancado em casa por sete anos com a família. Domenico entra constantemente n piscina
comunitária da cidade com uma vela acesa, porém os outros o tiram de lá, pensando que irá se
afogar.

Parafraseando o crítico Jean Douchet, o crítico de cinema Inácio Araújo (1948-atualmente) o


conceituará como

o artista puro. Aquele que não pede licença para expor sua arte
integralmente e sem concessões.
E um cineasta para quem o cinema não é uma arte na qual se deposita
alguma ideia, algum conhecimento: ela é a própria fonte desse
conhecimento. (ARAÚJO apud Douchet, 2019)33

Ao analisarmos as obras do diretor, veremos como Tarkovski manuseia o espaço e cria um


modo pessoal de apresentar uma temporalidade peculiar e constante, uma ideia fora do
entendimento que damos ao tempo com o uso de horas, minutos e segundos em um âmbito
teórico do cinema, principalmente através da mise en scéne34, modo pelo qual a cena é criada
a partir de fatores como locação, figurino e maquiagem, iluminação e atuação, a qual, descrito
pelo diretor,

No cinema, como sabemos, mise en scène significa a disposição e o movimento de


objetos escolhidos em relação à área de enquadramento. [...]serve para expressar o
significado do que está acontecendo; nada mais que isso. Mas definir dessa forma os
limites da mise en scène eqüivale a seguir um caminho que leva a um único fim: a
abstração. (TARKOVSKY, 1998, p.84 e 85)

A mise em scéne terá um papel importante neste subcapítulo justamente pela peculiaridade
em que Tarkovski há de trabalhar os ambientes, fazendo eles parte do enredo ou como
aproximação do amago dos personagens.

33
Em entrevista para a Folha de São Paulo, disponível em <
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2019/01/andrei-tarkovski-e-o-artista-puro-e-ganha-semana-no-belas-
artes.shtml >
34
Tradução livre do francês para “posto em cena”
55

Como dirá Borja, a teatralidade em torno dos ambientes em Tarkovski é muito forte,
apresentando constantemente uma sobriedade remetente a um minimalismo melancólico e
costumeiramente condizente a cada personagem

Los espacios interiores en el cine de Tarkovski y muy especialmente en esta película


denotan muchas veces sobriedad, pero también una reminiscencia clara a la
escenografía teatral. Con poco mobiliario y unos perfectos planos frontales el
director ruso es capaz de evocar espacios versátiles y acordes con la naturaleza
sombría y melancólica de sus personajes. (TARÍN, 2017, p.55 e 56)

Figura 26–Nostalgia - composição da estalagem de Andrei

Fonte: What I watched last night, 201335

O local em questão mostra o quarto de hotel em que Andrei se estala, trata-se de uma
estalagem, como dito, sobrea e minimalista, além de suscinta e de acabamento rústico,
mostrando características da Itália bucólica, como as paredes e caixilhos em madeira. A
ausência de muitos mobiliários ou dispersões visuais deixam à tona a movimentação dos
personagens e suas angústias, provendo uma empatia com aquilo que realmente molda a cena.

Toda essa ambientação propicia a fundar-nos nessa privacidade campestre é algo que o diretor
tem e mente, e é também um atrativo a uma espécie de vivência de um tempo utópico em que,
para Barthes,
as fotografias de paisagem (urbanas ou campestres) devem ser habitáveis, e não
visitáveis. Esse desejo de habitação, se o observo bem em mim mesmo, não é nem
onírico (não sonho com um local extravagante) nem empírico (não procuro comprar

35
disponível em: <https://tashpix.wordpress.com/tag/andrei-tarkovsky/> Acesso em: 30 nov. 2020.
56

uma casa segundo as visitas de um prospecto de agência imobiliária); ele é


fantasmático, prende-se a uma espécie de vivência que parece levar-me adiante, para
um tempo utópico, ou me reportar para trás, para não sei onde de mim mesmo.
(BARTHES, 1984, p.65)

Por mais que possamos tomar essas oniricidades em Tarkovski por parte dos escritos de
Barthes, o diretor prega uma ideia mais voltada à representação do momento a partir de
pequenos detalhes que deixam expostas intenções emocionais ao espectador.

Esse minimalismo cenográfico abre portas a outras medidas de transposição emocional, ou


seja, quando temos menos focos em mobília e um cenário mais estático, as mudanças que
variavelmente nos ocorrem tendem a ser mais perceptíveis. Um exemplo é quanto a
iluminação na ambientação de Tarkovski na cena acima citada, por Borja.
La luz en el decorado emerge de dos focos contrapuestos; uno de ellos es el ventanal
situado a la izquierda del plano de la estancia y otro emerge del baño situado a la
derecha. El resto del espacio permanece en penumbra, recreándose en una
ensoñación constante. (TARÍN, 2017, p.56)

Em outra cena que aborda o mesmo cômodo, a iluminação é quase extinta. Apenas utilizando
recursos naturais com a iluminação externa refletida pelas janelas do quarto e do banheiro, o
diretor expressa a melancolia e sensação de nostalgia expressa pelo personagem que, em um
decorrer de sete minutos, entra no quarto, tira o sapato e dorme, sonhando com sua mãe e sua
mulher e, ao acordar, vai de encontro com Eugenia, a quem bate na porta, nos mostrando o
sentido ignóbil da cena para o roteiro, mas não para a compreensão do enredo.
Figura 27–Nostalgia - estalagem de Andrei

Fonte: Imagem do Autor36

36
Print feito e editado a partir do filme disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=-
gH1cprEg0w&ab_channel=RoneyAlmeidaJunior> Acesso em: 07 dez. 2020
57

Na cena acima percebemos a água da chuva escorrendo da janela aberta e sem nenhum
bloqueio. Outro ocorrido simbólico é um cachorro que sai do banheiro e vai ao pé da cama no
lado iluminado. Trata-se de Zoe, o cachorro que pertence a Domenico, o personagem rotulado
como louco.

Como dirá Borja (2017), o artista contrapõe ações materiais para representar respostas
emocionais em um sentido imprescindível para a composição visual

El artista vaga por un mundo materialista y pragmático donde las emociones y el


sentir es algo relegado a un ámbito secundario, despojando al artista de su cualidad
más vital, su capacidad para crear desde el interior de sus emociones. (TARÍN,
2017, p. 61)

Os espaços em Tarkovski acabam por ter essa premissa mais empática onde cada personagem
é abraçado por uma ambientação reflexiva. A casa de Domenico, por exemplo, é a que mais
retrata a espetacularização dramática.

Figura 28–Nostalgia - casa de Domenico

Fonte: Imagem do autor37

Fonte: https://cinapse.co/tarkovskys-nostalghia-beauty-in-maddeningly-antifeminist-visual-poetry-172c7f31b32a

Diversos fatores fazem a composição a que nos permita julgá-lo como um indivíduo ao menos
peculiar. A placa na parede com contas erradas –“1+1=1”-, a disposição caótica dos
ambientes -como, por exemplo, a parede derrubada com a porta ainda intacta a qual o
personagem se força a utiliza, mesmo podendo passar pelo baldrame- e a quantidade de agua

37
Print feito e editado a partir do filme disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=-
gH1cprEg0w&ab_channel=RoneyAlmeidaJunior> Acesso em: 07 dez. 2020
58

dentro do ambiente, já muito presente em cenas mais voltadas ao inconsciente dos


personagens, nos põe em questionamento a sanidade mental de Domenico.

La casa de Domenico es la que mejor refleja el carácter de su propio inquilino.


Ruinosa, con infinidad de goteras sin ningún muro que separe las distintas estancias.
Como si al entrar en la vivienda del “loco”, entraras a su propia mente donde no
existen barreras y donde entre los huecos fluye el agua sin obstáculos. (TARÍN,
2017, p.57)

Por meio do espaço Tarkovski manipula o espectador para fazê-lo compreender melhor o
personagem, porém, há, nesse caso, alguns apontamentos necessários para o desenvolver da
trama, como o fato de que o elenco representa arquétipos que conversam com pormenores
espaciais descritos depois. Por Borja,

Eugenia representa la pasión, la juventud y en muchas ocasiones lo racional


intentando dar un poco de luz al oscuro mundo de Gorchakov. Andrei es el alter ego
de Tarkovski, he aquí un artista perdido en un mundo que no es suyo, la expresión
del artista romántico buscando su camino. Por último, Domenico que no es más que
la representación de lo espiritual, aquello de lo que en palabras del director le faltaba
al mundo. (TARÍN, 2017, p.42 e 43)

Doravante, ao tratar de cada personagem, teremos maior acesso a simbolismos e


interpretações cabíveis à mise em scène tratada por Tarkovski. Um exemplo disso é a neblina
que cobre uma grande parte do longa, principalmente nas cenas em que retratam campos
abertos e a piscina comunitária.

Al visionar Nostalghia lo que más llama la atención es la cantidad de niebla que


domina la película, tanta que a veces es imposible distinguir qué ocurre en la escena.
Cuando Gorchakov transita por este pueblo famoso por sus termas, conocidas ya en
tiempos de los romanos, todo parece estar contenido en un sueño.(TARÍN, 2017,
p.46)

Tarín diz que esta neblina remete à estética do sonho que, mesmo sendo mostrado, em alguns
casos no filme, fica claro que Tarkovski preza pelo lúdico e pelo onírico. Ao falar dos sonhos,
o diretor preenche de movimentações e de estranhamento, tal como vemos na imagem abaixo.
59

Figura 29–Nostalgia - Cena de um sonho em "O Espelho"

Fonte: Baker’sdozen, 202038

Se os sonhos em Tarkovski ampliam-se em ações improváveis, ambientações derrocadas e


uma constância com as sensações passadas pelo fluxo de água constantemente mostradas, me
pergunto o simbolismo que utiliza dessa névoa como transporte. Ao analisarmos o filme,
percebemos que ela costuma se formar em grande intensidade na piscina comunitária, local
que veremos ter um significado importante para o arquétipo dos personagens.

Para Domenico, é necessário atravessar as águas quentes da piscina de Santa Catarina, com
uma vela acesa na mão, para que o mundo seja salvo, porém, quando entra, tiram-no de lá.
Para ele, “o louco”, a piscina é um local sacro, um ponto onde encontra-se a salvação do
homem, enquanto para os outros, a piscina não passa de um lugar de prazer e lazer.

Ao longo do filme, com a expressividade de Domenico, a neblina não mais se torna presente,
vai espairecendo ao decorrer da libertação eloquente do personagem. Tarkovski justifica esse
desembaçar espacial recorrendo ao esvaziamento da piscina para limpeza. Uma vez que o
filme se vê longe desta neblina, Domenico está morto.

38
disponível em: <http://kitbakerii.blogspot.com/2015/03/beyond-looking-glass-andrei-tarkovskys_30.html>
Acesso em: 09 dez. 2020.
60

Figura 30–Nostalgia - Andrei Gorchakov em frente à casa de Domenico

Fonte: c7nema, 201639

Ao que se cabe a Domenico também envolve Andrei Gorchakov quanto às ruinas. Como
referenciado por Borja, Gorchakov ré um álter ego de Tarkovski, tornando este, um filme de
cunho quase autobiográfico. A distância de casa e a morte da mãe durante as filmagens
(depois homenageada com a dedicatória do filme) provocou no diretor uma série de
evocações postas em tela, tal como os sonhos de Gorchakov e seu desconforto com a Itália.

Cuando las sugerentes ruinas de la Abadía de San Galgano aparecen por primera vez
en el film todo parece interrumpirse y el tiempo pasa más despacio. Tal vez esa era
la intención del propio Tarkovski, evocándonos en la propia ruina del conjunto el
sentimiento puramente romántico que impregna a Gorchakov, la nostalgia. (TARÍN,
2017, p.50)

Por Borja, o estado de certos padrões construtivos, como as ruínas, refletem o estado mental
de personagens como Andrei. Vê-se que, pelo autor, o personagem, assim como a velha
abadia, está impregnado pela obsolescência, pela decadência e pela fragilidade estrutural

Cuando Gorchakov pasea por este edificio, se muestra en su estado más decadente,
donde sólo queda la estructura y en definitiva su forma más verdadera que recuerda
la opulencia de la abadía años atrás. La vehemencia de la estructura es uno de los
pocos ejemplos de ruina gótica que se pueden encontrar en Italia. (TARÍN, 2017,
p.51)

39
disponível em: <https://c7nema.net/artigos/item/44957-nostalghia-a-imigracao-de-tarkovsky.html> Acesso
em: 09 dez. 2020.
61

Visto isso, apontaremos também a cena em que o escritor se envolve num monologo
nostálgico dentro de uma capela inundada. Nela, comenta, sob o efeito do álcool, sobre seus
sonhos, sua família e outros fatores que favorecem a ideia de que Tarkovski utiliza das ruínas
como uma simbologia da consciência e refúgio do protagonista.

Há um ponto importante neste momento em que Andrei ressalta a ideia oposta que vem sido
abordada durante o longa, as palavras: Aqui é igual à Rússia. Não sei por quê. (Andrei
Gorchakov, 1983) São referentes à capela, ao simbolismo do inconsciente externado do
personagem, que reforça a saudade e falta de casa e de sua família em que, neste momento, é
confortado, ou seja, na ruína, Andrei se sente em casa. Essa passagem pode aparentar ser
forte, porém, evidencia-se após a segunda aparição da Abadia de São Galgamo em que, logo
após a morte do personagem, ele se encontra sentado no chão, junto de Zoe (cachorra de
Domenico, no momento, morto), na abadia que mescla com a casa que aparecia em seus
sonhos e torna à monocromia tão recorrente também nos sonhos.

A cena pós morte de Andrei Gorchavok representa o retorno à casa do filho prodigo.

Figura 31–Nostalgia - Cena pós morte de Andrei Gorchakov

Fonte: Imagem do autor40

Propondo então as últimas considerações em Tarkovski, utilizaremos o assunto da morte dos


personagens para focar em vossos simbolismos em que, além de fazerem parte de uma poética

40
Print feito e editado a partir do filme disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=-
gH1cprEg0w&ab_channel=RoneyAlmeidaJunior> Acesso em: 07 dez. 2020
62

imagética bastante forte, complementam com análises espaciais e temporais primordiais para
a obra.

Pouco antes da cena da morte de Andrei Gorchavok temos o ponto mais marcante do filme, o
plano sequência em que este atravessa, finalmente, a piscina, com uma vela acesa a pedido de
Domenico.

Figura 32 - Nostalgia - plano sequência da travessia da piscina com uma vela

Fonte: Détour, 201841

A intensidade da duração da cena de quase nove minutos em um único take demonstra o


cuidado com, não com a montagem, mas com a veracidade pessoal de Tarkovski frente ao
tempo costumeiramente encoberto no cinema.

Na famosa cena, o fator que perdura a sequência é a noção de continuidade e realidade. Não
nos é mostrado a importância do ato sacro -aos olhos de Domenico- em que Andrei se
favorece a fazer, mas à honestidade de um tempo orgânico e duradouro capitado. Por Walter
Benjamin, uma das essências que remetem à quebra do acontecimento real presente no
cinema é justamente a montagem.

Como se sabe, muitos planos são filmados com variantes. Um pedido de socorro,
por exemplo, pode ser registrado em diversas versões. O editor, então, escolhe entre
elas, estabelecendo assim uma espécie de recorte. Um acontecimento apresentado
em um estúdio cinematográfico diferencia-se, portanto, do acontecimento real
correspondente. (BENJAMIN, 2017, p.72)

A construção justa da obra e a negligência do corte trouxeram à cena um ambiente calmo e


real em que uma mimese temporal realça a ironia da produção perfeita e irreal.

41
disponível em: <http://detour.es/paisajes/jordi-revert-nostalgia-andrei-tarkovski.htm> Acesso em: 11 dez.
2020
63

Em oposição à morte de Andrei, na de Domenico, um suicídio político em meio a


manifestações de pessoas com alterações patológicas das faculdades menta resulta numa cena
conflituosa e memorável sobre uma estátua.

Antes de atear-se fogo, ele faz um discurso onde questiona os preceitos modernos e a
sanidade mental, favorecendo um estreitamento como seres humanos:

precisamos encher os olhos e as orelhas daquelas coisas que existem no início de um


grande sonho. todos devem gritar que construiremos uma pirâmide, não importa de
não a construiremos!o que importa é alimentar os desejos, temos que tirar a alma de
todas as partes, como se fosse um lençol que cobre o infinito.
para o mundo ir em frente deveremos dar as mãos, misturar os assim chamados
sãos,com os que são chamados loucos. E vocês sãos!O que significa a sua saúde?
[...]onde estão, quando não estão na realidade e nem na minha imaginação? faço um
novo pacto com o mundo. [...]que raio de mundo é esse, se um louco lhe diz que
devem envergonhar-me!

Borja dirá que o discursante faz uma crítica ao mundo pós moderno dominado pelo material
ao qual, como homem isolado do mundo e da razão, se vê totalmente aparte. Domenico, como
dito acima, é a personificação do espiritual, não como religião, mas como fé.

Tarkovski con este discurso pretende hacer una profunda crítica a la que se enfrenta
el pensamiento postmoderno, al encontrarse sin ningún referente claro, al anclarse al
pasado y no buscar una nueva ideología para afrontar el avance de un mundo
dominado cada vez más por lo material y menos por lo espiritual. Es importante
remarcar que cuando Tarkovski habla de lo espiritual, no se refiere al concepto
religioso, sino a todo aquello que vive en el interior del hombre, que lo engrandece.
(TARÍN, 2017, p.55)

Durante a cena do discurso na praça Campidoglio, uma das únicas cenas em cidade filmadas
pelo diretor, temos uma organização popular particular onde a sociedade -salvo por outro
louco que imita as ações de Domenico- presencia seu monologo com o máximo de atenção e
austeridade. O preenchimento da cena é minimalista, mas povoado.
64

Figura 33 - Nostalgia - espaço frente à morte de Domenico

Fonte: Atlas ofPlaces, 202042


O jogo de câmera teatral escolhido pelo diretor retrata as escadarias da praça romana preenchida de modo em
que somos convencidos de que há uma plateia numerosa, mesmo com poucos recursos, simplesmente usando um
bom aproveitamento espacial. Essa cobertura urbana assemelha-se bastante ao que fará o fotografo húngaro
Andre Kertesz em alguns trabalhos de representação urbana.Figura34 - Walking in the picture

Fonte:Exibart Street, 201943

É interessante como a organização espacial tanto em Tarkovski quanto em Kertesz


apresentam o mesmo ritmo retratado. Em ambos os casos a homogeneidade supre a falta

42
disponível em: < https://www.atlasofplaces.com/cinema/nostalghia/> Acesso em: 11 dez. 2020.

43
Disponível em: <https://www.exibartstreet.com/news/andre-kertesz-walking-in-the-picture/> Acesso em: 11
dez. 2020.
65

populacional ou certa vivência necessária a ponto de que os vejamos com um aproveitamento


suficiente e sucinto.

Neste extenso subcapitulo vimos diversos aspectos espaciais em Andrei Tarkovski que
creditaram uma compreensão sobre como a questão da espacialidade pode ser abordada nas
artes cinematográficas. As emoções e o simbológico transbordam nas representações do
diretor, deixando clara sua importância cenográfica e cultural.

Por mais que tenhamos essa noção mais pontual de uma representação de cunho mais
espacial, não necessariamente fará parte de uma escala menor que nos leve a creditar aqui
uma análise urbana. Para o próximo capítulo, nos serviremos de mais referências e afinco para
que consigamos ter uma análise mais verossímil de como a questão tempo-espacial é e pode
ser abordada em meios artísticos.

5. TEMPO E CIDADE

Até aqui passamos por diversas relações e conversas em grandezas distintas em que a relação
temporal e espacial era relativa com cada visão e intenção artística dos autores abordados. Por
mais que tenhamos visto proporções e interpelações aproximadas, cada uma atribui a si,
fatores filiados a determinadas arbitrariedades interpretativas.

Compreendemos que as escalas que propusemos, gradativas, trouxeram uma visão


proporcional a, respectivamente, o indivíduo como formador de si a partir da representação,
motivação e, por fim, em gestos; o espaço como molde do tempo e de seus significados e
noções. Por fim, diminuiremos essa escala para que possamos abraçar a cidade como
representante espacial do tempo.

Ao longo do capítulo, veremos como a cidade, por meios cinematográficos, a princípio, se


torna, não cenário, mas exemplar de uma ideia temporal amplamente abordada.
Discorreremos sobre algumas idealizações e pensamentos trazidos por filmes como
“Koyaanisqatsi - Uma Vida Fora de Controle”, do diretor Godfrey Reggio, de 1983, e o
soneto “Ozymandias”, do poeta Percy Bysshe Shelley, de 1792.

5.1. Cidade

Ao introduzir as análises deste capítulo, nos vemos no ápice da ascendência dessa proporção
de percepção espacial, um espaço onde abordamos uma escala menor até agora, nos provendo
66

o mínimo de detalhamento possível. Visando a cidade, estamos frente a uma análise mais
geral e ampla quanto à sociedade e seu modo de vida.

Já passados os pontos de vista individuais e espaciais, a partir deste capítulo iremos lidar com
a cidade como ambientações propensas e sujeitas a mudanças as quais aqui nos propomos a
enfrentar e compreender.

Muitos aspectos das cidades podem ser incorporados nas medidas tempos-espaciais de
diversos pontos de vista e abordagem, porém, como muito já dito, temos buscado por
representações artísticas que emanem certas motivações ao utilizar, por meio da cidade, a arte.
Ao falar sucintamente sobre a cidade, Raquel Rolnik (2009) flerta com o modo em que a
abordaremos aqui quando diz que “A cidade é uma obra coletiva que desafia a natureza”.

No trecho acima, Raquel deixa subentendido a cidade como um produto essencialmente


humano, logo, suscetível a alterações, mudanças e desenvolvimentos voluntários por meio de
seus habitantes, tal como um reflexo civilizatório.

Indo mais a fundo no mundo artístico, ainda com foto na cinegrafia, nos deparamos com o
documentário experimental, do ano de 1983, Koyaanisqatsi – Uma Vida Fora de Controle, do
diretor Godfrey Reggio, ao qual, de acordo com o próprio criador, fora forjado a partir da
premissa de utilizar o plano de fundo como centralidade da obra:

The foreground being the actors, the characterization, the plot, the story. I tried to
take the background all of that that just supported like wallpaper, move that up into
the foreground to make that the subject and noble it with the virtues of portraiture
and make that the presence, so we looked at traffic as the event, we looked at the
organization of a city as the equivalent of what a computer chip looks like, we
looked at acceleration in density as qualities of a way of life that is not seen and goes
unquestioned.(GODFREY, 2017)

Antes de adentrar na análise de fato, devemos compreender a duração e enredo do filme


citado. Koyaanisqatsi – que, em língua Hopi, descendente de indígenas na região do estado do
Arizona, Estados Unidos da América, significa “vida louca”, “vida em turbulência”, “vida
fora de equilíbrio”, “vida desintegrante” ou “um estilo de vida que clama por outro estilo
de vivencia” - complementa-se a partir de uma série de cortes ao longo de um dia em
ambientes urbanos, hora contrastando com habitats bucólicos.
67

Figura 35 - Koyaanisqatsi - relação antropologica e tecnoloogica

Fonte: Imagens do Autor44

Godfrey inicia o filme com contrastes evidentes que se ligam por motivações diversas, sejam
elas por cor, tal como os takes iniciais, com pinturas rupestres sendo mostradas antes de um
foguete decolando, ou as nevoas das florestas sobrevoadas contrastando com a fuligem de um
trator agrícola.

Figura 36 - Koyaanisqatsi - relação urbano natural

Fonte: Imagens do Autor45

Apesar de essa comparação feita aparente ter um firmamento irônico, são presentes em
poucos momentos da trama como porta de entrada e de saída da real motivação do longa: o
questionamento dos extremos tecnológicos que nos engloba, não mais como um acessório,
mas como uma onisciência que rege nosso desenvolvimento como seres civilizados – e como
“civilizados”, faremos de sua função mais crua a qual a etimologia a explica como uma
derivação da palavra, do Latim, “civilis”, que significa “relativo a um cidadão, à vida pública.
Adequado a quem vive na cidade”.

What I tried to show is that the main event today is not seen by those of us that live
in it. […] to me the greatest event, or the most important event of our entire history,
nothing comparable in the past of this event is fundamentally gone unnoticed, and
the event is the following, the transiting from all nature, or the natural environment
as our hosts of life for human habitation into a technological miliar into mass
technology as the environment of life.

44 Print feito e editado a partir do filme em mídia digital


45
Print feito e editado a partir do filme em mídia digital
68

It´s not the effect of, is that everything exists within. It is not that we use technology,
we live technology. Technology has become as ubiquitous as the air we breathe. So,
we are no longer conscious of its presence.(GODFREY, 2017)

Godfrey Reggio ressalta seus argumentos em diversas sequências do filme, em especial num
plano sequência em que compara, com mesma coloração, porém em escalas opostas, a
semelhança entre uma cidade (numa vista aérea) com suas vias e formas, com um chip de
computador.

Figura 37 - Koyaanisqatsi - relação urbano tecnológica

Fonte: Imagens do autor46

Por mais que haja essa temática de julgar e demonstrar a extinção tecnológica ubíqua cada vez
mais crescente, ele o faz por meio de uma linguagem que mescla a temporalidade e a
espacialidade nos pormenores de suas intenções. Caso analisemos o longa em suas sequências
mais pontualmente, veremos o nível de detalhamento espaço-temporal marcante e
frequentemente discutido quanto ao ritmo urbano, traço marcante das cidades contemporâneas
de acordo com Rolnik (2009)

Ao contrário da cidade antiga, fechada e vigiada para defender-se de inimigos


internos e externos, a cidade contemporânea se caracteriza pela velocidade da
circulação. São fluxos de mercadorias, pessoas e capital em ritmo cada vez mais
acelerado, rompendo barreiras, subjugando territórios. (ROLNIK, 2009, p.9)

Esses fluxos são amplamente mostrados ao longo do filme em momentos que relatam usos
habituais com uma câmera estática em time-lapse – modo de filmagem em que a frequência
dos quadros é menor que a passada na filmagem comum, mostrando a cena em alta
velocidade.

46
Print feito e editado a partir do filme em mídia digital
69

Figura 38 - Koyaanisqatsi - dinâmica urbana

Fonte: Imagens do autor47

Ao nos apresentar estes curtos, mas relevantes takes, Godfrey discursará, iconograficamente,
quanto ao uso intermitente em locais que se apresentam com uma funcionalidade transitória.
A função de alguns desses ambientes (sobretudo os das imagens acima) é o de ligação e de
trajetória, não são destinos e relatam, com maestria,o conceito de “sinfonia urbana” que, por
Arthur Tuoto (2020), é um filme que mostra o movimento de uma cidade, mostra os elementos
urbanos de um espaço a partir de um olhar poético.Sobre este conceito, Tuoto dirá discorrerá
quanto ao poder de transmissão que este conceito trás.

muito mais do que evidenciar esse ritmo urbano, evidencia o poder dos elementos do
cinema, demonstra como o cinema pode ser impactante mesmo sem uma história.
Como o cinema pode ser impactante ao se utilizar unicamente de elementos visuais.
(Arthur Tuoto, 2020)

Em que pese a Godfrey, mesmo que traga a mesma essência em Koyaanisqatsi, Tuoto o dará,
como maior exemplo, o filme “Um Homem com uma Câmera”, de 1929, dirigido pelo diretor
Soviético Dziga Vertov.

O filme, com essência parecida com Koyaanisqatsi, também permeia as horas de um dia em
uma cidade, porém, o peso da tecnologia aqui é substituído pelo dinamismo, que se tona a
razão da movimentação que é, aos poucos, mostrada e enfatizada.

47
Print feito e editado a partir do filme em mídia digital
70

O longa se inicia com algumas imagens de cidades vazias e pessoas dormindo. Aos poucos os
cenários tomam vida e são preenchidos com os habitantes que passam a trafegar em suas
rotinas.Cenários e ruas vazias perdem seu protagonismo no decorrer do longa, que os utiliza
somente quando transmite a mensagem do vazio.

Por diversas vezes Vertov usa, na montagem da obra, a manipulação do filme para conseguir
uma imagem mais simbólica ou que expresse algum sentimento almejado, utilizando técnicas
como o stop-motion, slow-motion e imagens estáticas para tanto.

Figura 39 - Um Homem com uma Câmera

Fonte: Imagem do autor48

Embora a manipulação do tempo apareça com essas técnicas, ela vem recoberta pela questão
rítmica, que se torna o verdadeiro protagonista no espaço trabalhado. Toda a ambientação do
longa segue o decorrer de um dia inteiro com foco no desenvolver da movimentação dos
habitantes na cidade

O Arlindo Machado, por exemplo, diz que esse filme subverte tanto a visão de um
cinema como uma neonarrativa ficcional, como também a visão ingênua do cinema
como registro documental. Ele diz que o cinema, a partir dessas manipulações do
Vertov, se torna uma nova forma de escritura, de interpretação do mundo através dos
elementos da linguagem. (Arthur Tuoto Apud Machado, 2020)

De fato, essa tal neonarrativa com ênfase no documental estava bastante desviado da
teatralidade e representação artística ficcional tão comuns em obras de mestres do cinema no
período entre guerras, tal como Serguei Eisenstein (1898-1948), Fritz Lang (1890-1976),
Robert Wiene (1873-1938) e Friedrich W. Murnau (1888-1931).

48
Print feito e editado a partir do filme disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=auFNysJG1v0&ab_channel=CinematecaBrasil> Acesso em: 11 dez. 2020
71

Tuoto (2020) revela, além de sua trajetória documental, sua demonstração de impacto como
arte do cinema.

É um trabalho que, muito mais do que evidenciar esse ritmo urbano, evidencia o
poder dos elementos do cinema, demonstra como o cinema pode ser impactante
mesmo sem uma história. Como o cinema pode ser impactante ao se utilizar
unicamente de elementos visuais. (Arthur Tuoto, 2020)

Este tal impacto visual no cinema tem se tornado, adjunto do desenvolvimento da tecnologia,
mais presente, ou facilitado. Mesclando ambas as noções, do poder de impacto visual,
juntamente com essas técnicas manipuladoras como referência nos abrem possibilidades de
imersão num cinema poético sempre mais desenvolvido frente às ferramentas que nos são
dispostas.

Esse exemplo é muito bem representado com o longa-metragem “A Origem”, filme de 2010,
dirigido por Christopher Nolan.

Nele, Don Cobb é um ladrão que atua por meio dos sonhos. Ele e sua equipe são contratados
por um empresário para que seu concorrente venda sua empresa para este. O modo em que
Cobb atua é por meio dos sonhos e, para isso, necessita de um arquiteto para que projete o
ambiente que sofrerá, então, inserção das pessoas atuantes.

De acordo com a mitologia do filme, meia hora no mundo real equivale a dez horas primeiro
nível de um sonho, uma semana no segundo nível do sonho (sonho dentro de um sonho), seis
meses no terceiro nível do sonho, dez anos no quarto nível do sonho e enfim, o último nível, a
qual é incerto o tempo de permanência.

Há inúmeros partidos ideais que rondam o longa que seriam de nosso interesse, afinal, a linha
do tempo do filme nos coloca em momentos de retrocesso perceptivo pois, ao passar por
cenas de duração relevante, percebemos que se tratava de um sonho e que, no “nível acima”, o
ocorrido não ultrapassara alguns poucos minutos.

Nolan costuma admitir que não gosta de utilizar efeitos especiais em suas obras, preferindo
efeitos mecânicos e cenografia usual, característica marcante do diretor que, mesmo
costumeiramente produzindo obras ficcionais e irreais, empenha-se mais na manipulação da
imagem que sua alteração.

Em uma de suas cenas de ação mais famosas deste filme, um dos protagonistas se vê numa
luta contra um antagonista em um corredor de hotel de uma média de 30 metros de
72

comprimento. A cena chama atenção por sua conjuntura espacial pois, além do ambiente estar
girando – isso se dá pelo fato de estarem em um segundo nível de sonho enquanto no
primeiro, sofrem um acidente de carro que, ao capotar com os personagens dentro, refletem o
movimento do veículo na arquitetura do nível mais profundo de sono e, consequentemente,
num tempo mais espaçado-, a câmera acompanha o sentido pendular dos personagens.

Figura 40 - A Origem - corredor

Fonte: The Wonders of Film, 201449

Para a construção da cena, Nolan adaptou o cenário em uma máquina composta por oito anéis
de 30 metros de diâmetro e fixou a câmera fora dela, acompanhando a perspectiva dos
personagens frente ao espaço influenciado mecanicamente.

O longa brinca com diversos fatores arquitetônicos ao envolver o mundo onírico dos sonhos
com criação e arquitetura. Referencias de Maurits Cornelis Escher (1898-1972) compõe
algumas cenas que seriam fisicamente impossíveis de acontecer.

49
Disponível em: <https://jamiemurphy43.wordpress.com/2014/03/14/what-inception-is-hiding/> Acesso em: 12
dez. 2020
73

Figura 41 - A Origem - escada

Fonte: Imagem do autor50

Por vez nos deparamos com estes casos pontuais, por mais que o ligamento que realmente nos
atraia neste subcapitulo seja o âmbito urbano. No longa, fica evidente a alusão a obras de
Escher que, além de ser um artista amplamente estudado no campo da Psicologia, demonstra a
relação que ele pretende impor com o mundo dos sonhos, aplicando normas físicas próprias
do pensamento e das infinitudes.A conversa entre o mundo dos sonhos e o espaço urbano cria,
em “A Origem” uma dialética metafísica representativa no tecido da cidade.

Figura 42 - A Origem - trama urbana e perspectiva urbana

Fonte: Imagens do autor51

Na sequência de imagens acima, vemos os personagens Cobb e Ariadne (representados por,


respectivamente, Leonardo DiCaprio e Elliot Page) explorando as possibilidades de criação
espacial. O convívio com a imaginação torna a arquitetura do filme, numa mescla com efeitos
especiais de edição de imagem, um conceito maleável que ultrapassa os preceitos de espaço
físico. Suas referências de M.C. Escher são claras, principalmente na imagem (figura 42) em
que estão andando numa rua de frente a uma rotatória. Ao fundo, enxerga-se a rua que sobe
verticalmente, assim ocorre também no canto direito em que vemos um túnel que surge do

50
Print feito e editado a partir do filme em mídia digital
51
Print feito e editado a partir do filme em mídia digital
74

chão e sobe sentido a zênite, onde carros entram e saem. Fica clara a relação entre tais
insinuações de Nolan e obras do artista holandês em obras como “Relatividade”, de 1953.Em
ambas as representações, vemos o ápice de uma manipulação e destroncamento do espaço-
tempo

Figura 43 - Relatividade

Fonte: MoMA, 1953

Ao irmos mais fundo na mitologia do filme, o último nível que nos é conhecido é chamado de
Limbo, borda da realidade dos sonhos onde o tempo passaria absurdamente lento em relação
ao mundo real em que cinco minutos de um sono resultaria em dez a cinquenta anos de
vivência nesse nível. Nele, encontramos uma cidade em que Cobb, juntamente com sua finada
mulher, Mal (interpretada por Marion Cotillard), construíram com liberdade criativa num
tempo ilimitado.
75

Figura 44 - A Origem - limbo

Fonte: Imagem do autor52

A facilidade de se construir em meio a um sonho lúcido juntamente com o excesso de tempo


resultaram em uma distopia edificada em que prédios são erguidos ou destruídos em questão
de segundos.

Após voltar outra vez, sem Mal, Cobb depara-se com uma cidade fantasma desamparada por
uso e excedente. Essa utopia agora em ruínas cria esse questionamento frente à temporalidade
e espacialidade à mercê das vontades, fator importante para que a cena seja analisada por
tratar de um sonho. No próximo subcapitulo abordaremos com mais propriedade a ideia do
esquecimento urbano.

Todos esses exemplos nos mostram, a seu modo, como um cinema que, abordado uma arte de
fulcro imersivo no tempo, implica, frente a uma ideia tarkovskiana de “cinema poético”, em
um contato perceptivo com variáveis de substâncias temporais e suas interpretações – desde a
compreensão social e política do período retratado; decorrer do filme e suas propostas;
intervenções temporais a partir de efeitos visuais; etc.

Nenhuma outra arte pode comparar-se ao cinema quanto à força, à precisão e à


inteireza com que ele transmite a consciência dos fatos e das estruturas estéticas
existentes e em mutação no tempo. Desse modo, vejo com especial irritação as
pretensões do moderno "cinema poético", que implica perda de contato com os fatos
e com o realismo temporal, fazendo concessões ao preciosismo e à afetação.
(TARKOVSKI, 1999, p.79)

52
Print feito e editado a partir do filme em mídia digital
76

5.2. Pós-cidade

Por toda a extensão desta pesquisa buscamos por uma razão na qual nos apoiar à estética
tempo-espacial até encontrar autores que fossem aptos a adequá-la em seus quadros no âmbito
mais sutil possível; encontramos um invólucro individual que nos introduzisse à essa temática
agora como motivação do discurso da obra e crescemos com esse fundamento tanto em tempo
quanto em espaço para o ambiente. A escala passou a diminuir aos poucos, engolindo mais e
mais espaços a qual se podia referir. Sem que nos demos conta, passamos de uma noção
perspectiva de compreensão pessoal do espaço material para uma dilatação física da memória
refletida em paredes de construções outrora pomposas que hoje mantém sua arrogância
somente em desenhos e ranhuras de séculos passados. Nossa noção de tempo passou a afetar
não só a edificação, mas agora também os personagens que o rodeiam, e seus inconscientes.
Por fim, em menor escala, crescemos mais para o ápice de nossa pesquisa, a análise da cidade
onde vimos obras que saúdam o espaço urbano e questionam sobre este, sua temporalidade ou
brincam com suas possibilidades -em Christopher Nolan, inclui-se aqui também suas
“impossibilidades”, com ajuda de efeitos especiais.

A gradação tida ao longo dos escritos fora nossa linha conectora, nosso roteiro que,
cuidadosamente inserido, nos guiou debaixo até o ápice da espacialidade palpável à vida
cotidiana percebida pelas artes, sobretudo audiovisual. Após essa ascensão, trataremos aqui
do declínio, da extinção e do esquecimento, a ideia do excesso de tempo.

Com obras como Naqoyqatsi e Ozymandias, nessa parte final abordaremos a extinção e
esquecimento da vida urbana, a ideia de excesso de tempo e falta de memória.

Como muito celebrada, a passagem cristã da Torre de Babel foi um dos primeiros escritos de
grande repercussão a conter um forte simbolismo arquitetônico em conluio com o tempo.
Nele, com o intuito de tornar-se celebre, alguns homens iniciaram uma construção que
chegasse aos céus com o uso de tijolos e betume. Deus, temeroso de seus “futuros
empreendimentos”, confundiu-lhes a linguagem para que não compreendesse um ao outro.

¹Toda a terra tinha uma só língua, e servia-se das mesmas palavras. ²alguns homens,
partindo para o oriente, encontraram na terra de Senaar uma planície onde se
estabeleceram. ³E disseram uns aos outros: “Vamos, façamos tijolos e cozamo-los
no fogo”. Serviram-se de tijolos em vez de pedras, e de betume em lugar de
argamassa. 4Depois disseram: “Vamos, façamos para nós uma cidade e uma torre
cujo cimo atinja os céus. Tornemos assim celebre o nosso nome, para que não
sejamos dispersos pela face de toda a terra”. 5Mas o senhor desceu para ver a cidade
e a torre que construíram os filhos dos homens. 6“Eis que são um só povo – disse ele
77

– e falam uma só língua: se começam assim, nada futuramente os impedirá de


executarem todos os seus empreendimentos. 7Vamos: desçamos para lhes confundir
a linguagem, de sorte que já não se compreenderam um ao outro. “8Foi dali que o
Senhor os dispersou daquele lugar pela face de toda a terra, e cessaram a construção
da cidade. 9Por isso, deram-lhe o nome de Babel, porque ali o Senhor confundiu a
linguagem de todos os habitantes da terra, e dali os dispersou sobre a face de toda a
terra. (BIBLIA, A. T. Genesis, 11:1-9)

Temos, no mito, a ascensão e declínio de um povo, mas, mais específica e primeiramente, de


uma edificação simbólica da astucia e da soberba humana vingada por Deus.

É com este simbolismo que iniciará o longa-metragem Naqoyqatsi, terceiro filme da trilogia
Qatsi, do Godfrey Reggio, mencionado no capítulo anterior pelo longa Koyaanisqatsi. Neste
outro, a trama visa um mundo como um organismo conectado. A tecnologia que, antes era um
ponto de destaque na obra, agora faz parte de uma homogeneidade representada.

Naqoyqatsi, em língua Hopi, significa “uma vida de assassinato”, “guerra como meio de vida”
ou “violência civilizada”.

O significado que mais nos aproxima de nossas intenções é o último, de “violência


civilizada”. No longa, o desenvolver ruma ao crescimento da influência tecnológica nas
imagens, ao iniciar com edifícios abandonados e decorrer gradativamente com o uso de
imagens manipuladas por cores e aberturas de lente que nos envolve numa alucinação
mercadológica num dinamismo violento.

A primeira imagem mostrada é uma pintura da torre de Babel de Pieter Bruegel (1526-1569),
que a toma como alegoria para introdução de ambientes inóspitos e abandonados, desprovidos
de memória e de tecnologia, ou seja, inerte do mundo que será representado.

O mito da torre é início para um discurso do vazio onde, devido à saturação e uso de cores
mais brandas, o diretor atinge o edifício após o ato do Deus da mitologia cristã, impondo a
imagem da torre como um edifício monstruoso e soberbo, assim como os próximos a serem
mostrados.

Vazios, silenciosos e esquecidos, agora edifícios graciosos e volumosos estão à mercê das
ruinas e do esquecimento. Dominados por resquícios de si mesmos, janelas quebradas, desuso
e descaso fazem parte do espaço socialmente parado no tempo.
78

Figura 45 - Naqoyqatsi

Fonte: Imagem do autor53

Por fim, a última imagem que temos dessa ruína é sendo desconfigurada, dobrada e caída às
águas turbulentas que aparecem ao fundo, reforçando a ideia da perda desses monumentos no
tempo.

Em muitos casos adormecidos, os edifícios esquecidos tomam lugar na memória e no espaço


urbano. Constantemente lidamos com sociedades e civilizações grandiosas e poderosas que
rumam ao esquecimento. O poema “Ozymandias”, de Percy Bysshe Shelley54 retratará com
maestria o drama do esquecimento em diversos aspectos, tanto arquitetônico, quanto referente
ao poder e até à sociedade.

Ao vir de antiga terra, disse-me um viajante:


Duas pernas de pedra, enormes e sem corpo,
Acham-se no deserto. E jaz, pouco distante,
Afundando na areia, um rosto já quebrado,
De lábio desdenhoso, olhar frio e arrogante:
Mostra esse aspecto que o escultor bem conhecia
Quantas paixões lá sobrevivem, nos fragmentos,
À mão que as imitava e ao peito que as nutria
No pedestal estas palavras notareis:
“Meu nome é Ozymandias, e sou Rei dos Reis:
Desesperai, ó Grandes, vendo as minhas obras!”
Nada subsiste ali. Em torno à derrocada
Da ruína colossal, a areia ilimitada
Se estende ao longe, rasa, nua, abandonada.
(P.B. Shelley)

O poema de Shelley trás, com uma primazia dramática, a ironia da passagem do tempo frente
ao poder. A estátua de Ozymandias, este que outrora teve poder de edificar e subjugar uma

53
Print feito e editado a partir do filme em mídia digital

54
tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos, 1989
79

sociedade inteira, agora não passa de uma série de resquícios em meio ao nada, a sua frente,
seu império se reduz a dunas de areia, restando apenas a inscrição em seu pedestal,
ironicamente, relatando sobre seu poder.

Como dirá Max Valarezo (2020), o texto de Shelley não é uma ode ao poder, mas sim uma
reflexão sobre a natureza passageira do poder.

Colocando em exemplos práticos e próximos ao nosso tema, podemos apontar a um episódio


(episódio 4 da temporada 6) da série “How I MetYoutMother” (2005-2014) em que o poema é
proclamado pelo personagem Ted, que o faz ao querer transmitir a decadência frente à
imponência de um grande edifício prestes a ser demolido.

Num primeiro momento, pode parecer que o Ted recita um poema somente para
parecer culto, mas ele também falou os versos porque nessa hora eles estão olhando
para o “The Arcadian”, um edifício que uma vez foi imponente como o rei
Ozymandias, mas que agora está sob a ameaça de ser demolido.(VALAREZO,
2019)

Muitas vezes o poema também é aplicado à cultura popular com um teor irônico tal como é a
lição deste. Em “A Balada de BusterScruggs” de 2018, dirigido pelos irmãos Coen (Joel Coen
e Ethan Coen), o conto “Vale Refeição” faz menção ao poema. Nele, Liam Neeson é dono de
um circo itinerante de uma atração só, em que um rapaz sem braços e sem pernas
(interpretado por Harry Melling) recita o poema.
80

Figura 46–Balada de BusterScruggs - Vale Refeição

Fonte: Um Frame Cinema, 201855

A ironia no conto dos irmãos Coen é retratada quando o personagem, ao recitar um poema
sobre poder, é ausente de poder e dependente de seu próprio destino. O trovador hora é
hesitado ser trocado por uma galinha “que faz cálculos matemáticos” como atração e dá-se a
entender que é assassinado pelo personagem que rege o circo itinerante. Por fim, de acordo
com o narrador, são esquecidos.

Seria reducionista demais dizer que o poema Ozymandias é uma celebração do


poder e da ambição, porque, se a gente analisar o poema como um todo, na verdade
percebemos que ele faz um discurso crítico a algo ainda maior e mais complexo:
poder e tempo. (VALAREZO, 2019)

Vemos na mitologia e nos contos o quão forte o esquecimento pode se ater a questões tão
grandes quanto poder. No caso do poema, ele expressa um enredo que atravessa o poder e o
tempo. Nos damos conta de que um governante tão opulente e soberbo se sobressai através de
uma estátua colapsada em meio a um grande vazio. Ozymandias fala sobre excesso de tempo
e falta de memória pois, como dirá Bergson (1993), sem essa sobrevivência do passado no
presente, não haveria duração, mas somente instantaneidade.

55
Disponível em: <https://umframecinema.wordpress.com/2018/12/02/os-contos-de-a-balada-de-buster-scruggs-
do-melhor-para-o-pior/> Acesso em: 12 dez. 2020
81

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao início deste trabalho, percebemos que teríamos uma abrangência temática considerável
pelo fato da multidisciplinaridade e relatividade da linguagem a qual buscávamos. No
decorrer da pesquisa, o filtro das obras suscitou na construção da linha condutora formada
pela escala aplicada desde o início até o final, como uma ascendência, ápice e decadência do
objeto estudado ao qual seria incrementada a análise espaço-temporal.Muitos trabalhos que
favoreceriam secundariamente o estudo foram abortados para que se desse uma continuidade
polida ao tema.

Findada esta monografia, concluímos que há inúmeras formas de abordar questões, fatores e
linguagens espaços-temporais no campo artístico. Ao fluir por escalas gradativas que vão
desde o indivíduo, passando pelo espaço habitável até o espaço urbano, percebemos a
proporção e extensão do tema que apresenta uma grande abertura para que expressões sejam
manifestadas e mostradas.
82

REFERÊNCIAS

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

BARTHES, Roland. A Câmara Clara: Nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro: editora Nova
Fronteira, 1984

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Rio de


Janeiro: L&pm, 2017.

A BÍBLIA. A torre de Babel. Tradução dos originais grego, hebraico e aramaico mediante a
versão dos monges Beneditinos e Maredsous. 2°Edição.São Paulo: Editora Ave-Maria, 2009.
2021 p. Velho Testamento e Novo Testamento.

DELEUZE, Gilles. A Imagem-Tempo: cinema 2. São Paulo: Editora Brasiliense, 2005

DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2008

FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia.
Rio de Janeiro: Sinergia RelumeDumará, 2009

HAWKING, Stephen. O universo numa casca de noz. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2016.

HIMMEL über Berlin, DER. Direção: Wim Wenders. Berlim (DE): Basis-Film-Verleih
GmbH, 1987. Mídia Digital (127 min.).

LUCENA, Ludymylla Maria Gomes de. O fluxo do tempo: uma investigação sobre as
imagens temporais em andreitarkovski. 2013. 136 f. Dissertação (Doutorado) - Curso de
Filosofia, Universidade Federal de Ouro Preto – Ufop, Ouro Preto, 2013. Disponível em:
https://www.repositorio.ufop.br/bitstream/123456789/4101/1/DISSERTA%c3%87%c3%83O
_FluxoTempoInvestiga%c3%a7%c3%a3o.pdf. Acesso em: 10 nov. 2020.

KOYAANISQATSI: Uma Vida For a de Controle. Direção: Godfrey Reggio. Produção:


IslandAlive, 1982 (87 min.).

MACHADO, Arlindo. A Ilusão Especular: introdução à fotografia. São Paulo: brasiliense.


1984

NAQOYQATSI:A Guerra como Forma de Vida. Direção: Godfrey Reggio, Produção


Miramax Films, Los Angeles, California (USA), 2002 (89 min.).

NINGUÉM, Sr. (filme). Direção: Jaco Van Dormael, Produção: PhillippeGodeau, 2012 (138
min.).
NOSTALGIA. Direção: Andrei Tarkovsky. União Soviética (URSS), 1983 (130 min.).

ORIGEM, A. Direção: Christopher Nolan. Produção: Warner Bros Pictures, Burbank,


California (USA), 2010 (148 min.).
83

PEREIRA, Caroliny. A temporalidade na pintura nu descendo uma escada, de Marcel


Duchamp. 2012. 7 f. Dissertação (Doutorado) - Curso de Arte, Pós-Graduação em Artes,
Unicamp Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2012. Disponível em:
https://www.ifch.unicamp.br/eha/atas/2012/Caroliny%20Pereira.pdf. Acesso em: 26 nov.
2020.

RAUEN, Roselene Maria; MOMOLI, Daniel Bruno. Imagens de SI: o autorretrato como
prática de construção da identidade. 2015. 23 f. Monografia (Especialização) - Curso de Artes
Plásticas, Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2015. Disponível em:
https://www.revistas.udesc.br/index.php/arteinclusao/article/view/6157/4614. Acesso em: 06
nov. 2020. ROLNIK, Raquel. O que é cidade. 6. ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 2009.

REGGIO, Godfrey. Koyaanisqatsi explained in two minutes. Youtube, 28 mai. 2017.


Disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=Xj0XL-5S-
Ew&ab_channel=ModTremilliatrecendotrigintillion>. Acesso em: 05 dez. 20.

ROSA, Rafael Antonio da Silva; THIAGO, Rodrigo RoversiRapozo e; CARVALHO, Matias


de. Fotografias estroboscópicas. 2004. 3 f. Monografia (Especialização) - Curso de Física,
Instituto Tecnológico de Aeronáutica, São José Doscampos, 2004. Disponível em:
https://www.researchgate.net/publication/322553974_Fotografias_Estroboscopicas#:~:text=A
%20estroboscopia%20consiste%20da%20observa%C3%A7%C3%A3o,peri%C3%B3dicos%
2C%20registrando%20suas%20posi%C3%A7%C3%B5es%20sucessivas.. Acesso em: 05
out. 2020.

SUASSUNA, Ariano. Iniciação à Estética. 12. ed. Rio de Janeiro: Editora José Olympio,
2012. 201 p.

TARKOVSKI, Andrey. Esculpir o Tempo. Segunda Edição. São Paulo: Editora Martins
Fontes, 1998

TUOTO, Arthur. Um homem com uma câmera (1929) | Crítica. Youtube, 9 dez. 2020.
Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=Ibni-
pVyGuI&ab_channel=ArthurTuoto>. Acesso em: 11 dez. 2020

VALAREZO, Max. O poder do tempo – Entre Planos no #meteoro.doc. Youtube, 24 de jul.


de 2019. Disponível em
<https://www.youtube.com/watch?v=WM0_0F8RFi0&t=710s&ab_channel=MeteoroBrasil>.
Acessado em: 06 dez. 20.

Você também pode gostar