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20/05/2020 GÊNESIS TEÓRICA DO ESTADO - Allan Dos Santos - Medium

GÊNESIS TEÓRICA DO ESTADO


Allan Dos Santos
Apr 3, 2018 · 25 min read

por Jorge Martínez Barrera


tradução livre por Allan Dos Santos

C omo Alessandro Passerin d’Entrèves aponta, desde o momento do nosso


nascimento até a nossa morte, nossa vida está marcada pela influência de várias
forças que a dificultam ou a protegem. Existem forças de um tipo natural, mas existem
outras que foram criadas por nós. Entre estas últimas, há aquelas associadas com uma
entidade misteriosa, mas onipresente, possuindo um poder indefinido, mas ao mesmo
tempo irresistível: o Estado.

O primeiro a usar o termo “Estado” num sentido que é praticamente idêntico ao


contemporâneo, foi Maquiavel na primeira linha do Príncipe: “Todos os Estados, todos
os Domínios que tinham e têm autoridade sobre os homens, eram e são repúblicas ou
principados”. De fato, seria demais fingir exigir de um escritor não-sistemático como
Maquiavel uma definição precisa do Estado; No entanto, já vemos nele um tratamento
do Estado com as características que hoje reconhecemos neste, ou seja, como uma
organização pública dotada da capacidade de exercer e controlar o uso da força sobre
determinada população e em um território definido, de acordo com um corpo
específico de direito soberano.

Entretanto o termo “estado” não é uma invenção de Maquiavel. Ele já é encontrado na


antiga lei romana, embora com o significado de “estado ou condição de uma coisa”,
como quando se diz, por exemplo, “status rei publicae”. O “estado”, na lei romana,
também designava o status legal de uma pessoa ou de uma comunidade: “status
libertatis”, “status familiae” ou “status civitatis”. Na Idade Média, “estado” servia para
indicar também uma certa condição social: o “estado” clerical, o “estado” de nobreza
ou o “estado” popular. De todas essas acepções, a que provavelmente está na origem do
uso contemporâneo é a de “status rei publicae”, porque é a que está diretamente ligada
à comunidade política. Uma república, no sentido romano, não é um Estado, embora
tenha um estado, uma certa condição. O que acontece, do ponto de vista histórico, é
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que esta república, ou em qualquer caso a comunidade política, tende a se transformar,


através dos processos de secularização, em uma nova instituição cuja denominação já
não mais tem o caráter de transitoriedade ou relativa provisionalidade que existe
quando se fala em “status rei publicae”. Agora estamos falando do Estado e não do
“estado das coisas públicas”. Em termos filosóficos e com as devidas ressalvas, eu diria
que de acidente que era o “estado” se transforma em substância, de modo que já não se
trata do “estado da coisa pública”, mas da “coisa pública do Estado”. A república é o
acidente e o Estado a substância.

É bem possível, inclusive, que graças à extraordinária difusão do opúsculo de


Maquiavel, esse conceito de Estado tenha conseguido alcançar o significado que tem
hoje no vocabulário político. Esse uso já é confirmado por Hobbes na introdução ao
Leviatã, onde, com uma intenção explícita, os termos civitas, commonwealth e state são
colocados no mesmo nível de significância. Depois de Hobbes, o conceito começa a ser
definitivamente de uso comum, porque serve admiravelmente bem para designar esse
“novo principado” que Maquiavel conseguiu vislumbrar. O próprio John Locke, embora
não use explicitamente o termo “Estado” como Hobbes, esclarece que ele está se
referindo a uma realidade política cujo nome não importa, mas que é realmente algo
novo:

Deve ficar claro que, sempre que uso a palavra Estado (Commonwealth), não quero dizer
precisamente uma democracia, nem uma forma concreta de governo. Eu entendo por essa
palavra a comunidade independente que os latinos chamam de civitas, que é o que nossa
comunidade inglesa melhor corresponde. Este é o que melhor expressa esse tipo de
sociedade de homens; melhor do que a comunidade [porque dentro de uma comunidade
pode haver comunidades subordinadas], e muito melhor que a cidade. Para evitar, então,
ambiguidades, peço permissão para usar a palavra commonwealth nesse sentido, que é o
mesmo no qual o rei James já a usou e que, na minha opinião, é dele. Se alguém não gosta
e sugere um mais apropriado, estou disposto a admitir isso.

Mas, de qualquer modo, a verdade é que “o novo principado”, no qual “as dificuldades
residem”, segundo a expressão de Maquiavel, é, com toda a verossimilhança, o Estado
moderno. E as dificuldades que Maquiavel vê são as de como conceber uma nova
ciência da política na qual aparece com uma quase completa autonomia da ética, e com
um objetivo quase exclusivamente voltado para a eficácia da conservação dessa nova
instituição. O Capítulo XV de O Príncipe é revelador porque Maquiavel explicitamente
recomenda o abandono de todas as preocupações éticas para melhor concentrar seus

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conselhos na realidade efetiva e como aproveitá-los para a conservação do “novo


principado”. O texto a seguir sintetiza uma ideia de implicações atuais incalculáveis:

[…] tentando descrever coisas úteis para aqueles que as entendem, pareceu-me preferível
ir diretamente à verdade efetiva do assunto, em vez de cuidar do que se pode imaginar
sobre ele. Muitos conceberam repúblicas e principados jamais vistos e que nunca
existiram. É que há tanta coisa a se falar de como você vive ou como você deveria viver, que
quem renuncia ao que está feito pelo que deveria ser feito, aprende mais o que vai arruiná-
lo do que o que o preserva. O homem que quer fazer uma boa profissão, quando cercado
por tantos bandidos, caminhará para a sua perdição.

O elogio de Francis Bacon a Maquiavel vai ao cerne da questão quando escreveu em


1605 que “temos uma grande dívida com Maquiavel e com alguns outros que
descreveram o que os homens fazem e não o que devem fazer, porque não é possível
unir a dupla característica da serpente e a inocência da pomba, se todos os seus
recursos não são exatamente conhecidos: sua baixeza abjeta, sua agilidade pérfida, o
ódio que aguça seu dardo”.

Nesse sentido, Maquiavel não foi apenas um produto do seu tempo, mas também,
talvez, o melhor intérprete deste, além de ser o criador oficial, indiretamente, do
conceito de “Razão de Estado”, segundo o qual , os atos destinados à conservação deste
não são possíveis de parecer judicial, e muito menos, ético.

Depois de Maquiavel, a ciência política tendeu a evitar cuidadosamente se expressar


como ciência normativa. A preocupação essencial do cientista político contemporâneo
não é de ordem ético-formativa, mas analítica-descritiva, e deixa aos estadistas ou
políticos a responsabilidade de extrair as conclusões práticas do universo de dados que
lhe são fornecidos à maneira de um sistema. O problema político torna-se quase um
problema técnico. O seguinte texto de Kant é muito eloquente a esse respeito:

A constituição republicana (republikanische Verfassung), a única que está em total


conformidade com os direitos do homem, é também a mais difícil de estabelecer e ainda
mais difícil de conservar. É por isso que muitos fingem que isso só é possível em uma cidade
de anjos porque os homens, com suas inclinações egoístas, são incapazes de uma forma tão
sublime de governo. Mas a natureza usa precisamente dessas inclinações interessadas a vir
em auxílio da vontade geral, que é baseada na razão, mas que, embora respeitada, resulta
impotente na prática. De maneira que para a boa organização do Estado (que está
certamente ao alcance do homem) enfrente umas às outras as forças dessas inclinações

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para neutralizar os efeitos desastrosos dos outros ou aniquilá-los.Deste modo, do ponto de


vista racional, acontece que tudo acontece como se essas duas tendências não existissem e o
homem fosse forçado a ser, se não moralmente bom, pelo menos um bom cidadão. O
problema da constituição de um Estado pode até ser resolvido em uma cidade de
demônios, por mais estranho que isso possa parecer (se é que eles têm, pelo menos,
entendimento), e eis como surge tal problema: “ordenar de tal maneira uma multidão de
seres racionais, que desejam preservar suas leis gerais, mas da qual eles estão dispostos,
secretamente, a se eximirem, e lhes dar tal constituição que, apesar do antagonismo
produzido por suas inclinações pessoais, eles são impedidos mutuamente de tal maneira,
que na vida pública dessas pessoas seu comportamento é o mesmo como se essas
inclinações não existissem “. Semelhante problema poder e deve ser resolvido. A questão,
então, não é saber como os homens podem ser moralmente melhorados, mas como
podemos usar o mecanismo da natureza para direcionar o antagonismo de suas
disposições hostis de tal maneira que todos os indivíduos da mesma comunidade são
forçados a se submeter a leis coercitivas e a estabelecer um estado de paz onde as leis estão
em vigor.

A propósito, quando falamos do Estado, somos confrontados com uma situação


paradoxal. Por um lado, seria uma ilusão negar sua existência institucional, mas, por
outro lado, enfrentamos enormes dificuldades ao circunscrever sua essência, defini-la
ou ao menos descrevê-la com certa precisão. Mas uma coisa é óbvia. O Estado, se
considerarmos como uma questão de fato, nos é apresentado fundamentalmente como
uma instituição que monopoliza a força. Um de seus rostos mais visíveis, aquele que
talvez esteja mais em contato com os cidadãos, por exemplo, é a polícia, em qualquer
de suas expressões.

Mas, além disso, há também outro fator que é essencial ao Estado: embora seja uma
instituição monopolizadora de força, não pode ou nunca deve ser arbitrário, mas
sujeito a certas normas, cuja legitimação é, e isso é muito importante, o próprio Estado.
Nesse sentido, Max Weber deu uma definição do Estado que sintetiza claramente sua
essência:

O Estado moderno é uma associação de dominação com um caráter institucional que


tentou com sucesso monopolizar dentro de um território a legítima violência física como
meio de dominação e, para esse fim, reuniu todos os meios materiais nas mãos de seu líder
e expropriou todos os funcionários do estado que anteriormente os tinham por direito
próprio, substituindo-os por suas próprias hierarquias supremas.

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O Estado é sempre um Estado de direito, um corpo jurídico. Este é consubstancial ao


Estado, mesmo nos casos em que este é patológico. O estado fascista, por exemplo, não
é tão radicalmente oposto quanto se pode supor à estrutura geral da instituição estatal.
O Estado fascista é também, à sua maneira, um Estado de Direito, na medida em que
seu funcionamento depende do monopólio da força e de um corpo jurídico específico
dele. Isso leva a uma terceira característica do Estado: é uma instituição soberana. De
fato, o conceito de soberania nasce com o Estado. Mas uma coisa deve ser exposta com
clareza suficiente: tudo o que o Estado é, pode sempre, de uma forma ou de outra, se
referir ao campo do direito e da lei. O Estado é uma instituição jurídica e todas as suas
ações são mediadas por sua nova compreensão de direito. Daí a urgência, fortemente
sentida pelo fundador do Estado, Thomas Hobbes, de uma redefinição da semântica
jurídica.

No entanto, embora seja verdade que o surgimento e consolidação do Estado é um


fenômeno exclusivamente moderno que pode ser situado no início do século XVI em
algumas cidades italianas, a ideia de que a comunidade política é uma comunidade na
qual as relações intersubjetivas têm o fato de ser regulada por uma lei não é novo, não
é uma criação do Estado moderno. Já é encontrado formulado em autores clássicos.
Mas, apesar disso, é inegável que o conceito de “Estado” não figura no vocabulário
político pré-moderno, nem no medieval e muito menos no clássico.

É muito interessante ver os esforços feitos pelos escritores políticos da baixa Idade
Média para capturar a essência de uma nova realidade política que já estava
começando a tomar forma diante de seus olhos. E o esboço histórico desta nova
realidade política coincide com a introdução da Política de Aristóteles no Ocidente
latino. Existe, na Política (de Aristóteles), uma ideia que se presta admiravelmente bem
ao que estava começando a tomar forma. De fato, para Aristóteles, a polis, a cidade,
não é apenas a última instância na perfeição das diferentes possibilidades associativas
humanas, mas, acima de tudo, uma perfeita communitas et sibi sufficiens, isto é, algo
que se aproxima muito da noção moderna do Estado. Obviamente, há aí um interesse
em ler Aristóteles de uma maneira bastante tendenciosa, porque não se pode dizer que
a mesma comunidade política é para o Estagirita a fonte última de validação do
sistema normativo. De fato, se a cidade é a comunidade perfeita e auto-suficiente, qual
é o papel da Igreja em tudo isso? As violentas disputas entre Papas e Imperadores são a
evidência de que a nova realidade política não vê mais com simpatia a interferência
eclesiástica em questões mundanas, essencialmente ético-políticas. Destes tipos de
estratégias, uma é a de Maquiavel, a qual consiste em dizer: “esse homem (neste caso, o

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papa) é imoral, portanto, o que ele diz sobre essas questões é desqualificado por sua
própria conduta”. Vejamos o seguinte texto no Discorsi:

Muitos acreditam que o bem-estar das cidades da Itália é devido à Igreja Romana, a que eu
respondo com algumas razões, incluindo duas muito poderosas, que, na minha opinião,
não têm objeção. A primeira coisa que, contemplando os maus exemplos daquela corte,
este país perdeu foi toda a devoção e religião. Isso gera infinitos inconvenientes e milhares
de desordens, porque assim como temos de pressupor o bem no qual a religião reina,
devemos supor o oposto nos lugares onde está faltando. Nós, italianos, temos que
agradecer aos representantes da Igreja por estarem perdidos e sem fé. Mas ainda há outra
razão importante para a nossa ruína, e esta é a minha segunda razão: a Igreja teve e tem a
Itália dividida […]. A razão pela qual a Itália não está na mesma situação [como a
França e a Espanha], nem tem uma república ou um príncipe que a governa, não é mais
que a Igreja. Depois de viver nele e aproveitar o poder temporário, não tinha força ou valor
para ocupar o resto da Itália como principado; mas tampouco, ao contrário, ela esteve tão
fraca que, com medo de perder sua autoridade em coisas temporárias, pediu ajuda de um
homem poderoso que a protegeria de um poder italiano exagerado […]. Portanto, a Igreja
não teve força para dominar a Itália, nem permitiu que outra a ocupasse […]. Para ter
uma experiência rápida dessa verdade, seria conveniente para um poderoso lorde enviar a
corte romana, com a autoridade que agora possui na Itália, para habitar as terras dos
suíços, as únicas pessoas que hoje vivem como os antigos em relação à religião e à religião.
os costumes militares. Seria visto em um curto espaço de tempo, muito antes de qualquer
chance que pudesse surgir, aquela nação atrapalhar os maus hábitos daquela corte.

A estratégia argumentativa de Hobbes, por outro lado, vai diretamente ao núcleo


dogmático e pode ser resumida da seguinte forma: “Os dogmas católicos não podem ser
comprovados cientificamente, portanto, o que a Igreja diz não é mais que uma fantasia
destinada a subjugar as consciências”. Há um propósito manifesto em Hobbes de romper
com a tradição e, especialmente, com tudo o que tem a ver com a Igreja de Roma.
Lembremos que se trata, para Hobbes, de refundar o direito, excessivamente
configurado, ao seu gosto, de uma dependência de um sistema de moralidade cujo
representante mais visível é o pensamento da Igreja de Roma. Isso teria produzido um
monstro intolerável chamado “escolástica”, da qual Aristóteles seria a eminência
cinzenta. Esses ataques atingem uma virulência particular em Leviatã. Vejamos, a título
de exemplos, algumas passagens em que o filósofo não salva as diatribes contra a Igreja
e tudo o que seu julgamento sustenta. Da filosofia aristotélica à teologia sacramental,
nada deve permanecer em pé: “[…] creio que poucas coisas podem ser ditas mais

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absurdamente em filosofia natural do que a atualmente chamada de metafísica


aristotélica, ou algo mais repugnante para o governo do que o que Aristóteles disse em sua
Política, ou mais ignorantemente do que uma grande parte de sua Ética” (Capítulo XLVI).

Cap. XLVII:
Antes de tudo [pretendo examinar] o erro que a atual Igreja hoje militante na terra é o
reino de Deus […]. A este erro, adicionem-se os seguintes benefícios terrenos: Primeiro,
pastores e professores da escola possuem, como ministros públicos de Deus, o direito de
governar a Igreja e, portanto, (uma vez que a Igreja e a República são a mesma pessoa),
para ser reitores e governantes da república. Por meio desse título, o papa prevaleceu sobre
os súditos de todos os príncipes cristãos no momento de acreditar que desobedecê-lo era
desobedecer a Cristo; e ele conseguiu fazer com que todas as diferenças entre ele e outros
príncipes (enfeitiçadas com a palavra poder espiritual) as pessoas abandonam seu
soberano legítimo, que é de fato uma monarquia universal sobre toda a cristandade […].
Desde que o bispo de Roma conseguiu ser reconhecido como o bispo universal pretendendo
suceder a São Pedro, toda a sua hierarquia ou reino das trevas pode ser comparada sem
violência ao reino das fadas, isto é, às fábulas das velhas na Inglaterra sobre fantasmas e
espíritos e os atos que eles executam à noite. E se um homem considera a origem deste
grande domínio eclesiástico, ele facilmente perceberá que o papado é apenas o fantasma
do falecido Império Romano, que se senta coroado em seu túmulo. Porque é assim que o
papado de repente emergiu das ruínas daquele poder pagão […]. Os anciãos não
determinaram em que tenda ou lugar as fadas fazem seus encantamentos. Mas os lugares
do clero sabem muito bem que são as universidades, cuja disciplina vem da autoridade
pontifícia.

Cap. XLIV:
[Não é mais do que um feitiço e um encantamento] quando o padre finge que ao dizer as
palavras do nosso Salvador este é o meu corpo e este é o meu sangue, a natureza do pão já
não está lá e é o seu próprio corpo, quando não há não aparece nem para a visão nem
para qualquer outro sentido do receptor qualquer coisa que não estivesse presente antes da
consagração. Os magos egípcios, que dizem ter transformado suas varas em serpentes e
água em sangue, devem ter enganado os sentidos dos espectadores por meio de uma
exibição falsa das coisas, e só assim conseguiram ser considerados encantadores. No
entanto, o que nós pensamos deles se em suas varas não tivesse aparecido nada parecido a
uma serpente e nada na água encantada tivesse aparecido semelhante ao sangue, ou
qualquer outra coisa além da própria água, e virando seus rostos para o rei eles dissessem
que era como cobras parecendo varas e sangue parecendo água. Teríamos pensado que ali

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havia encantamento tanto quanto embuste. No entanto, os sacerdotes fazem a mesma


coisa em seus atos diários, transformando as palavras sagradas em um encantamento que
nada de novo produz para os sentidos. Mas eles mantém que eles transformam o pão em
um homem ou, ainda mais, em um Deus, e exigem que os homens o adorassem, como se
fosse nosso próprio Salvador, em sua forma de Deus e homem, cometendo assim um
pecado, a mais grosseira das idolatrias […]. As palavras ISTO É O MEU CORPO são
equivalentes a ISTO SIGNIFICA OU REPRESENTA O MEU CORPO, e constituem uma
figura de linguagem comum. Mas tomá-los literalmente é um abuso. E embora se tomem
assim, em nenhum caso podem estender-se além do pão que o próprio Cristo consagrou
com suas próprias mãos. Porque ele nunca disse que nenhum pão do qual um padre disse
que este é o meu corpo ou este é o corpo de Cristo seria efetivamente transubstanciado.

Cap. XII:
[…] a semente natural da religião consiste nessas quatro coisas: crença em fantasmas,
ignorância de causas secundárias, devoção ao que é temido pelos homens e assunção de
coisas casuais como previsões […]. Essas sementes foram cultivadas por dois tipos de
homens. Alguns as alimentaram e ordenaram de acordo com sua própria invenção. Outros
fizeram isso pelo comando e direção de Deus. Mas ambos fizeram isso com o propósito de
retornar aos seus fiéis mais aptos para a obediência, as leis, a paz, a caridade e a
sociedade civil. […] Alguém será incapaz de ver quem se beneficia acreditando que um rei
não recebe sua autoridade de Cristo se ele não for coroado por um bispo? […] Que os
assuntos podem ser desconectados de seu juramento de obediência se a corte de Roma
considerar o rei herético? Que um rei (como Quilperico da França) pode ser deposto sem
causa por um papa (como o papa Zacarias) e entregar seu reino a um de seus súditos?
[…] Ou ele não vê ninguém que se beneficie dos preços das missas privadas e dos vales do
purgatório, junto com outros sinais de interesse privado suficientes para mortificar a fé
mais vívida se eles não fossem mantidos pela magistratura civil e costume antes da opinião
sobre a santidade, sabedoria ou probidade de seus professores? Da mesma forma, posso
atribuir todas as mudanças de religião no mundo a uma única causa: padres que não
agradam.

Também é curioso que nos casos em que essas disputas atingiram seus pontos mais
altos, o argumento dos imperadores ou reis contra a supremacia espiritual do papa
costumava ser baseado na crítica da conduta pessoal dos papas, e não em argumentos
racionais sobre por que não era admissível a jurisdição da Igreja nos assuntos
mundanos. Era como se os Imperadores dissessem, com Maquiavel, “não podemos

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aceitar a jurisdição em matéria moral de uma instituição cujos próprios membros estão
corrompidos”.

Na luta contra a instituição eclesiástica, ou o que é o mesmo que dizer, no processo de


fortalecimento do espírito secular, Aristóteles foi uma grande ajuda, mas é necessário
notar que a leitura foi feita de maneira bastante tendenciosa, como eu disse mais
acima. Isso é visto da seguinte maneira.

Para Aristóteles, embora seja verdade que a polis perfeita é autossuficiente em questões
ético-políticas, não se pode dizer que seja autônoma, no sentido de que é, sem mais
delongas, o referente último da validação da ordem normativa ético-política. Auto-
suficiência não é autonomia. É evidente que no pensamento aristotélico, em favor de
uma tradição antiga e venerável, tudo relacionado à ordem da justiça na cidade está
aberto a uma legitimação extra política. Por essa razão, embora em Aristóteles, e
mesmo em Platão, já tenhamos um sério precedente da ideia de que a vida política
requer formas de regulação jurídica, existe um mundo de diferença em relação ao que
esses autores entendem por lei e o que a moderna teoria do Estado entende.

Apesar de tudo, não se pode duvidar que, com Cícero, haja uma mudança de matiz em
relação a Aristóteles. De fato, para o Estagirita, embora seja verdade que o sujeito da lei
ocupa uma posição privilegiada em seu pensamento político, seu interesse primordial
em questões políticas continua sendo o da eupraxia, a da boa ação e a da boa
sociedade, objetivo ao qual se subordina o assunto da legislação. Para Cícero, porém, e
insisto que se trata ainda de uma matiz e não uma diferença substancial, esse interesse
muda para a legislação, digamos, a estrutura jurídica que oferece uma espécie de plano
geral de convivência. Para Cícero, devemos a ideia da importância capital do direito na
organização da convivência política, embora, certamente, se nos atemos ao seu
conceito de lei, é claro que seria muito difícil acusá-lo de ser “juridicista” no sentido em
que falamos hoje desse termo. A lei, para Cícero, tem uma conexão essencial com o
sistema da moralidade:

Se os direitos fossem baseados na vontade do povo, as decisões dos príncipes e os


julgamentos dos juízes, seria legal o roubo, legal a falsificação, legal a suplantação dos
testamentos, desde que tivessem em seu favor os votos ou que agradasse a massa. E se o
poder da opinião e a vontade dos estúpidos é tal que eles podem, com seus votos, perverter
a natureza das coisas, por que eles não sancionam que o que é ruim e pernicioso
considerado que é bom e saudável? E por que, se a lei pode transformar a injustiça em algo
justo, ela também não pode transformar o mal em bem? É que para distinguir o bem do

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mal não temos outra norma que a da natureza […]. A natureza nos deu assim um senso
comum, que delineava em nosso espírito, para que identificássemos o honesto com a
virtude e o desonesto com o vício. Pensar que isso depende da opinião de cada um e não da
natureza, é uma coisa louca (demência est).

A primazia do direito é um tema recorrente no pensamento político medieval, embora


seja verdade que este está associado a uma legalidade de um tipo muito diferente da do
Estado moderno. As concepções políticas medievais, ainda que de modo especial a do
próprio São Tomás de Aquino, oferecem um amplo espaço ao direito, como provam as
citações permanentes dos juristas romanos. São Tomás, como seus antecessores,
enfatiza o vínculo substancial entre ética e direito.

Também neste caso e à maneira do estoicismo ciceroniano, a inegável importância do


direito e do jurídico na estruturação do pensamento político anda de mãos dadas com
uma insistência paralela na noção de lei natural, a tal ponto que ela, cuja origem divina
última é, não obstante, mediada pelo intelecto humano, é a garantia definitiva da
legitimidade da mesma ordem jurídica. Ainda mais, São Tomás parece ter sido o
primeiro a empregar sistematicamente uma nova noção de lei: a lex aeterna, entendida
como a razão de Deus em sua função governante. Esta é, em seu pensamento, a lei
suprema e absoluta da qual todos os sistemas jurídicos particulares dependem. De
qualquer forma, a ideia de praticamente igualar a existência de uma comunidade
política com um sistema legal, até certo ponto, já está instalada. Toda a diferença está
no que deve ser entendido por lei e direito. Thomas Hobbes está perfeitamente ciente
disso. Enquanto a separação conceitual entre lei e direito e seus referentes
“metafísicos” não ocorrer, a reformulação do vocabulário jurídico, essencial para a
consolidação teórica do Estado, não será possível.

No Direito Romano havia uma norma famosa com uma história frondosa que dizia:
“quod omnes tangit ab omnibus approbetur”, isto é, o que diz respeito a todos, por todos
deve ser aprovado. Um pequeno deslocamento em relação à origem última da
validação de um sistema jurídico será suficiente, de modo que uma nova teoria apareça
que caracterizará, juntamente com o aparato legal, o estado moderno: a soberania.

A soberania não é o equivalente exato da “Summa potestas” ou das “majestas” do


poder político, já que essas noções se referem, em geral, a um fundamento
transcendente da ordem jurídico-normativa. Mas, se essa legitimação cede seu lugar ao
fechamento do sistema jurídico sobre si mesmo, a fim de torná-la uma totalidade
autorreguladora e auto-legitimadora, obtém-se com ela uma das características

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essenciais que sustentarão o Estado. De fato, por se expressar, sobretudo, como um


sistema jurídico, quando esse sistema interrompe sua comunicação ou participação em
um sistema hierarquicamente superior de legalidade, como o oferecido pela teoria da
lei natural, o próprio Estado é a consequência direto dessa auto-justificação. Em outras
palavras, quando o sistema jurídico se torna auto-suficiente com relação à sua própria
validação, esse é o momento teórico do nascimento do Estado. Seria, portanto,
extremamente complicado articular a essência do Estado acerca de uma lei que não
reconhece a si mesma, de fato e no uso prático, como instância suprema de
legitimidade, ainda que, por direito ou no estado puramente teórico, os sistemas
normativos declarem sua dependência e respeito pela razão divina.

É perfeitamente compreensível que o primeiro detentor histórico da soberania seja um


monarca. Mas o que importa aqui não é o detentor da soberania, porque ela mudará
com o tempo; o que é verdadeiramente significativo nesta questão é que o sistema legal
que sustenta a comunidade política não precisa mais se referir a um nível extra-legal
para se justificar. E é esse sistema legal que está indissoluvelmente ligado ao
nascimento do Estado.

O primeiro teórico a usar explícita e sistematicamente a expressão “poder soberano” é


Jean Bodin em seus Seis Livros sobre a República (1576). Isso ele sabe e reivindica sua
descoberta de soberania. Sua definição de República introduz o conceito que não será
mais abandonado pelo Estado: “República é um direito do governo de várias famílias e do
que é comum a elas, com poder soberano”.

Essa definição teve uma imensa fortuna na gênese intelectual do Estado. Segundo
Bodin, o que distingue o Estado (neste caso, ele chama de “República”) de qualquer
outro tipo de associação, é nada menos que a soberania. Um Estado, por menor que
seja, continuará sendo enquanto for soberano. Por sua vez, o cidadão é um homem
livre, mas ao mesmo tempo igual, em termos quase absolutos, a todos os outros sujeitos
da soberania. Quaisquer que sejam as diferenças na classificação social, a soberania é
igual a todos aqueles que a ela estão submetidos. Diante dela, o cidadão perde sua
condição de mestre, chefe ou senhor, diz Bodin, e depende de uma regra geral que é a
mesma para todos. Quando Bodin fala de um direito do governo, ele se refere, sim, a
um governo moral, mas essa moralidade depende em grande medida do fato de que o
Estado não aceita pessoas na aplicação da soberania.

E finalmente, a soberania tem para Bodin o caráter de perpétua e absoluta. A


perpetuidade está ligada ao próprio fato da existência do Estado: sem ela, não há

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20/05/2020 GÊNESIS TEÓRICA DO ESTADO - Allan Dos Santos - Medium

Estado. E é absoluta, no sentido de que não pode ser limitada por nenhum poder
superior a ela, nem mesmo pelas leis, porque elas mesmas são produto da soberania. E
é precisamente isso que leva Bodin a colocar a soberania na função legislativa. Esta é
uma marca de soberania, que chega até ao poder, não só para dar a lei, mas até para
quebrá-la: “Sob esse mesmo poder de dar e violar a lei, todos os outros direitos e marcas de
soberania são entendidos, de modo que, para falar corretamente, pode-se dizer que não há
outra marca de soberania que esta, e todos os outros direitos eles estão incluídos nele”.

É desnecessário dizer que todo o esforço intelectual de Bodin se concentra quase


exclusivamente no direito positivo: esse é o campo específico da soberania. O risco de
arbitrariedade, no entanto, é mitigado porque a soberania, com o ser absoluto, ainda
mantém sua relação com um certo número de cadeias, como as leis de Deus ou da
natureza, por exemplo. Mas, nisto, Bodin parece fazer uma concessão à tradição, em
vez de estar completamente convencido de uma suposta dependência direta do sistema
jurídico positivo sobre a lei natural ou eterna, por exemplo. Em qualquer caso, o termo
“soberania” é um neologismo cuja elaboração obedece a uma exigência e uma intenção
muito específica, e embora seja verdade que este termo cunhado por Bodin sofra de
certa ambiguidade, não é menos verdade que graças a ele faz sua apresentação oficial
na teoria política, da mesma maneira que o termo “Estado” fez com Maquiavel.

Em todo caso, Thomas Hobbes tem o mérito de ter elaborado a sistematização do


conceito de soberania. Todos os termos latinos que abordaram este conceito são
reunidos por Hobbes sob o mesmo significado. Summa potestas, summum imperium,
dominium, é traduzido diretamente para o inglês por sovereignty. É em Hobbes que
encontramos realmente toda uma teoria política, todo um sistema supostamente
científico de pensamento sobre o Estado moderno. Pois bem, a soberania, já na
“Introdução” ao Leviatã, é tratada como a própria alma do corpo político. Essa
soberania, que obviamente inclui o uso da força, está ligada, segundo Hobbes, a um
corpo de leis cujas características são claramente modernas, como o próprio autor nos
lembra em suas definições de direito e lei.

Um fato importante que deve ser sublinhado no pensamento hobbesiano é que nele
também temos a introdução da noção de “representação” associada à soberania. O
soberano é o “representante” das partes contratantes. Mas esses limites de soberania
que tornaram seu tratamento um tanto ambíguo em Bodin, em Hobbes, desaparecem
diretamente. Não existem leis naturais ou leis divinas, no sentido tradicional do termo,
que possam limitar o exercício da soberania. Se existe uma lei fundamental, é aquela
que impõe aos sujeitos o dever de obediência.
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É no Leviatã que encontramos, pela primeira vez, um tratamento sistemático e explícito


de duas das características do Estado, como hoje o conhecemos: o uso da força
associada a um sistema legal soberano que não reconhece, de fato, instâncias supra-
legais de legitimação. Que Hobbes tenha sido capaz de ver as características essenciais
do Estado, é algo que dificilmente pode ser discutido hoje. Com efeito, quem diria que
uma lei sancionada pelo Estado não é válida, por mais imoral que possa parecer? E
quem diria que o uso da força é uma prerrogativa exclusiva do Estado?

Em qualquer caso, nessa quase obsessão em garantir conceitualmente o conteúdo da


soberania, Hobbes talvez estivesse longe demais ao deduzir que, dadas as
características dela, o governo deve ser necessariamente monárquico e reunir em sua
mão a totalidade do poder. Hobbes não parece ter entendido uma distinção sutil feita
por Bodin no sentido de que uma coisa é a forma do Estado e outra do governo. O
Estado deve ser único ou unitário, monárquico se quiser, pois monopoliza a força, a lei
e a soberania. O Estado deve ser único ou unitário, monárquico se quiser, pois
monopoliza a força, a lei e a soberania. Mas a forma de governo do Estado pode ser de
outra natureza; é suficiente que ela não prejudique o princípio da unidade do Estado.
Mas a forma de governo do Estado pode ser de outra natureza; basta com que esta não
prejudique o princípio da unidade do Estado.

O problema que surge com Hobbes é o seguinte: a soberania, com as características


com as quais foi descrita, poderia tolerar o estabelecimento de outro tipo de governo,
além do monarquista? Essa é a questão tacitamente colocada por John Locke, para
quem o problema político agora não é mais o da sistematização da soberania. Foi isso
que Hobbes fez magnificamente bem. O problema agora é bastante constitucional.

Com Locke, pela primeira vez, começa a questão da divisão ou distribuição do poder,
que para Hobbes teria sido a ruína de um sistema político. Mas, na realidade, essa
doutrina não afetou em nada a própria essência do Estado, que ainda mantém sua
soberania absoluta.

De modo algum a divisão do poder pode ser interpretada como um “poder” executivo,
um “poder” legislativo e um “poder” judicial, segundo a famosa doutrina de
Montesquieu em O Espírito das Leis (1748–1750), livro XI, c. 16, 17 e 18, ou a divisão
de Locke em um “poder” legislativo e outro “poder” executivo-judicial-federativo
implica uma divisão de soberania. O soberano é sempre um apenas: o Estado. O que
existe, em qualquer caso, é uma confiança, de modo que um dos poderes, no caso de
Locke, o legislador, é o principal depositário da soberania. Não se trata, tal como

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Madison observou em suas reflexões sobre Montesquieu no livro O Federalista, de uma


divisão de poderes, senão uma divisão do poder.

A novidade fornecida por Locke e Montesquieu é precisamente que o poder pode ser
dividido sem prejuízo da soberania do Estado e, inclusive, mostram como isso pode ser
feito. Essa contribuição é, de fato, a última expressão do Estado contemporâneo como
um sistema jurídico. Este é o momento do deslocamento da questão da soberania, que
já não representa praticamente nenhum problema teórico, da constituição. Assim, uma
vez que o sujeito do Estado soberano se consolidou e, de maneira especial, o conceito
de soberania foi especificado como intrinsecamente ligado ao Estado como estrutura
jurídica, o grande tema da teoria política moderna e contemporânea é o da divisão de
poder e a constituição. Estas são, por sua vez, as grandes questões em jogo sempre que
a “reforma do Estado” aparece como uma discussão política prioritária.

O tema da divisão do poder e da constituição faz a sua aparição ao mesmo tempo em


que se define o fim da vida política como o gozo definido como o gozo de tanta
liberdade possível para se articular com a dos demais para preservar a propriedade.
Isso faz com que o Estado, embora seja soberano, sua soberania está essencialmente
orientada para o serviço da propriedade privada dos cidadãos. Até a cidadania
depende em grande parte da propriedade. Não é coincidência que o grande tema do
Segundo Tratado do Governo Civil de Locke esteja no Capítulo 5, o mais extenso de
todos, cujo título é, precisamente, “Sobre a Propriedade”. Locke está perfeitamente
ciente da necessidade de argumentar a favor da propriedade privada, particularmente
sobre certas formas de posse, já que isso nada mais constitui e nada menos que a
ocupação principal do governo.

Supõe-se que, ao ingressar na sociedade civil, os homens não buscam um modo de vida
em que sejam piores do que antes, para que o governo ou o Estado, por mais soberano
que seja, tenha seu sentido a serviço de algo que os homens , em um estado de
natureza, eles não podem preservar, isto é, a propriedade. De modo que em Locke
vemos esboçar-se a idéia de que a soberania absoluta, embora de fato ela resida no
Estado, que pode até mesmo tomar diferentes formas organizacionais através das
várias constituições, em essência, essa soberania não tem outra origem última que o
povo (proprietários de aldeia, é claro). Em outras palavras, a análise de Locke
distingue claramente dois problemas: 1) o do atual exercício da soberania; e 2) da
origem última desta. Em relação ao primeiro, não há dúvida de que este exercício
corresponde ao Estado. E em relação ao segundo, o povo é a primeira fonte da qual a
soberania emana. E se é assim, é claro que o chefe do Estado é um representante do
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povo ou um representante (mandatário). A soberania do que preside o Estado é uma


soberania pela confiança (fideicomiso).

O caminho está, assim, definitivamente aberto à teoria da soberania popular, a qual


não implica de modo algum um questionamento da soberania do Estado. Ambos são
perfeitamente complementares e, inclusive, não se pode expressar sem a outra.

Texto original com as notas: http://www.scielo.org.ar/scielo.php?


script=sci_arttext&pid=S1666-485X2008000100007

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