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Descasamento, desligamento: abrindo a caixa preta da

vida econômica

VALOR ECONÔMICO - 06/03/2009 – P. A 15

Ricardo Abramovay

“Liderança mundial será de países que conseguirem se desenvolver e, ao


mesmo tempo, modificar o conteúdo material e energético da vida
econômica”

Não há desafio atual mais importante que o de transformar as bases


materiais e energéticas em que se exprime o extraordinário aumento de
renda do mundo contemporâneo. Para enfrentá-lo, são necessárias três
rupturas fundamentais. A primeira é de natureza teórica: a ciência
econômica faz abstração do conteúdo material e energético da reprodução
social e se dedica apenas à maneira como a fartura e a escassez se traduzem
nos preços. A segunda ruptura é contábil: não se trata mais de medir a
riqueza social somente por aquilo que se compra e vende, e sim com base
na ideia da ecologia industrial de que as economias modernas são
organismos vivos, cujo metabolismo precisa ser permanentemente
avaliado. A terceira ruptura é política e embute a ousadia de que o
crescimento econômico talvez não seja o objetivo mais relevante para o
bem-estar, ao menos naquelas sociedades que já atingiram alto grau de
abundância material.
É notável o avanço de vários países da OCDE na formulação deste
problema. Os termos decisivos são descasamento ou desligamento
(decoupling, delinking): eles sinalizam para a quebra do vínculo entre
crescimento econômico e uso dos recursos. Isso supõe o estabelecimento de
uma contabilidade dos fluxos de insumos e detritos que se encontram não
somente nos processos produtivos, mas também no consumo. Além da
famosa (e muito criticada) pegada ecológica, existe hoje um conjunto
amplo de indicadores e de institutos de pesquisa voltados a conhecer de
perto as bases materiais e energéticas em que repousam o funcionamento
da sociedade. Por incrível que possa parecer, este é um objetivo que não faz
parte da ciência econômica, ao menos da maneira como é
convencionalmente ensinada.
Há diversas técnicas para medir o avanço deste salutar descasamento entre
a riqueza e seu fundamento biofísico. A "contabilidade nacional agregada
de fluxos materiais" já é hoje amplamente utilizada na União Europeia. A
Alemanha, o Japão e a Suíça elaboram relatórios governamentais públicos
a este respeito, estimando o material necessário à produção de bens e
serviços. O Japão tem como objetivo nacional chegar a uma "sound
material-cycle society", uma sociedade baseada num ciclo de vida saudável
de sua base material. Seus relatórios ambientais partem da constatação de
que "o crescimento econômico rápido associa a geração de vasto montante
de lixo à crescente escassez de recursos". O país gera 470 milhões de
toneladas de lixo anualmente e seus aterros estão com os dias contados: 7,7
anos ao longo de todo o arquipélago e 3,4 anos na região metropolitana de
Tóquio.
Uma das medidas básicas da contabilidade de fluxos materiais (Material
Flow Account) é o peso físico daquilo que forma o processo produtivo. É
claro que o impacto de um quilo de areia é bem diferente do estrago que
um quilo de mercúrio pode provocar. Ainda assim, o livro, cujo título
parodia a obra de Adam Smith (The Weight of Nations - Material Outflows
From Industrial Economies, organizado por Emily Matthews e publicado
pelo World Resources Institute), é uma referência incontornável.
Metade a três quartos dos insumos industriais da Alemanha, da Holanda, do
Japão e dos Estados Unidos volta ao meio ambiente como lixo, após
utilização. O requerimento material total (Total Material Requirement)
necessário ao aparato produtivo (e que inclui tanto importações quanto
"fluxos ocultos", como erosão agrícola ou perda de solo na construção
civil) varia de 45 toneladas per capita no Japão a mais de 80 toneladas per
capita nos Estados Unidos.
É bem verdade que a eficiência aumenta ao longo do tempo nos países
estudados. Cada unidade de PIB vai sendo produzida com quantidade
menor de matéria e energia. Estes ganhos, no entanto, são largamente
contrabalançados pelo crescimento econômico e pelos padrões de consumo
destes países. O descasamento é apenas relativo à quantidade de materiais e
energia por unidade de PIB. No entanto, em termos absolutos, a quantidade
de lixo por habitante e a de materiais e energia utilizados no processo
produtivo continua aumentando. A conclusão do livro organizado por
Matthews é inequívoca: "a mudança econômica estrutural [em direção a
uma economia de serviços] e os ganhos de eficiência tecnológica, sozinhos,
têm poucas chances de trazer real redução no uso de recursos e na produção
de rejeitos".
A elevação do contingente populacional que, sobretudo na Ásia e na
América Latina, passa a dispor de renda para partilhar ao menos de parte
do padrão de consumo característico dos países centrais, só vem agravar
este problema. Relatório recente da Goldman Sachs (The Expanding
Middle: The Exploding World Middle Class and Falling Global Inequality)
prevê a entrada de quase 1,5 bilhão de pessoas no que se pode chamar de
"classe média mundial" até 2030, algo como 70 milhões de pessoas (com
renda) por ano.
As conquistas recentes na luta contra a pobreza (e, até, embora em menor
proporção, contra a desigualdade) são notáveis e marcam a vida de muitos
países, além dos BRIC. No entanto, estes indicadores materiais sobre a
relação entre sociedade e natureza mostram que poder corretivo espontâneo
do crescimento e do progresso técnico não será capaz, por si só, de evitar o
rochedo que se avizinha e as pressões sobre os recursos existentes que esta
nova afluência vem reforçar.
A liderança mundial dos próximos anos não estará nas mãos dos países que
vão crescer, vencer a pobreza e reduzir a desigualdade, e sim daqueles que
conseguirem fazê-lo modificando o conteúdo material e energético da vida
econômica. O que supõe não o mimetismo de acreditar que petróleo,
biocombustíveis para motores a combustão interna e grandes obras para
exportação formam o caminho do futuro, e sim a transição para sistemas
produtivos que preservem o patrimônio natural, se apoiem no consumo
cada vez menor de matéria e energia e valorizem a biodiversidade.
Ricardo Abramovay , professor titular do Departamento de Economia
da FEA/USP, é coordenador de seu Núcleo de Economia
Socioambiental (Nesa) e pesquisador do CNPq.
www.econ.fea.usp.br/abramovay/

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