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Copyright © 2020, Metanoia Editora

Editora
Léa Carvalho
Capa
Design: MaLu Santos
Ilustração: André Luis Fermino

Projeto gráfico
MaLu Santos
Revisão
Teresa Paula do Espírito Santo OV

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


M342a Martins, Cléo Agbeni
Ao Sabor de Òyá / Cléo Agbeni Martins. - 2ª edição revista e
ampliada. - Rio de Janeiro, RJ : Metanoia, 2020.
224 p. ; 23 cm.

ISBN 978-65-86137-15-6 9788594750778

1. Romance Brasileiro I. Título.

20-1475 CDD: 869.93


CDU: 821.134.3(81)-3
Angélica Ilacqua - CRB-8/7057
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Impresso no Brasil
Às memórias de...

Meu amado papaizinho, o jornalista Itaboraí Martins, que subiu para a


Luz no dia 31 de maio de 2020: uma vela que, naturalmente, se apagou.
Mamãe, vovó Jandira e meu nonno Duilio estão em festa com a chegada
do esposo e genro.

Rita Virgínia Rodrigues do Rio - Obá Toji- irmã e comadre- fogo que fica
e ninguém mais apaga, conforme diz o sambista...

Pastor Djalma Torres, Mãe Stella, Padre Waldemar Beltrame, Prof.


Agenor Miranda Rocha, Argemiro Alves Garibaldi e de todas as vítimas
da Covid-19, no planeta.
Em ação de graças...

Pelo 90º aniversário de Madre Paula Ramos OSB, no dia 12 de abril de


2020. Mãe espiritual que também tentou, com todo o empenho, fazer de
sua cria, Teresa Paula do Espírito Santo, uma nova pessoa.

Pelos 80 anos do Babalorixá Air José Bamboÿé, meu querido tio, em 20


de setembro de 2020: o substituto de o Prof. Agenor, como personagem,
nesta segunda edição.

Pela comunidade do Ilê Axé Asiwaju, em Santana de Parnaíba: terra de


valentes bandeirantes e desbravadores.

Pelos 30 anos do posto Agbeni Xangô: 2 DE MAIO DE 1990 - 2 DE MAIO


DE 2020, data histórica em que Mãe Stella completaria 95 anos de vida.

Pelos sobreviventes da pandemia de 2020 que reescrevem a História.


Palavras da autora
primeira edição de “Ao sabor de
A Oiá” é de 2003, ano de Xangô e
de suas Ayabás. O mesmo acontece,
de novo, em 2020. Parece que foi
agorinha, mas faz séculos, minha
gente. Cronos, incomodado com
a quentura do planeta, acelerou o
próprio
p ritmo...
O lançamento do romance, naque-
la noite de 24 de agosto, foi no pátio
de Xangô do Ilê Axé Opô Afonjá,
na abertura de o VI Alaiandê Xirê:
o Festival Internacional de Alabês,
Xicarangomas e Huntós, que engen-
drou tantos outros semelhantes no
território brasileiro. Nossa feliz par-
ceria, na 1ª edição, firmou-se com
a editora Pallas, do Rio de Janeiro.
Depois de 2003, muita coisa aconte-
ceu... muita água fluiu... whatsapp,
redes sociais para todos os gostos; internet e wi-fi ao alcance de qualquer
um de nós: dizendo o mínimo!
O planeta se torna cada vez menor e, perdoem essa autora, mais
melindroso. A mídia – a também fazedora de ilusões e castelos de areia –
atrai e repele. Os paradoxos caminham a passos largos, de braços dados,
mas a gente tem esperança de que há de fazer- sempre- tempo bom.
Dois mil e vinte nos pôs de joelhos.
Será conhecido como o ano em que a terra ficou enferma: dias e noites
de batalhas contra a pandemia pelo novo Coronavírus, Sars-Cov-2, que
causa a Covid-19, ceifadora de tantas vidas.
Pela ciência e pela fé sairemos vencedores desta prova. Respeitando os
cientistas e de mãos postas, pelo fim do nevoeiro, queremos ser pessoas
melhores, mais comprometidas com o próximo. É preciso o isolamento
para que se valorize a convivência face a face: fora de câmeras instantâneas,
selfies, delírios e ilusões de que somos lindos e maravilhosos: prontinhos
para o consumo. Agora, sim, passaremos a valorizar o abraço, o toque de
amor, o bate-papo em que se bebe da mesma taça, comendo pipocas na
mesma peneira e assistindo ao mesmo filme juntinhos: no mesmo sofá e
com a mesma manta, sem medo de adoecer ou espalhar o vírus.
Muitos leitores amaram “Ao sabor de Oiá” e pedem bis. Desejam a
nova edição desse meu trabalho, de tantos janeiros, fevereiros e agostos,
já esgotado na praça; outros querem conhecer a obra. Resolvi aceitar
o desafio, nestes dias e noites de isolamento, com o apoio e incentivo
indispensáveis da Metanoia Editora do Rio de Janeiro, querida parceria
desde 2016. Léa e MaLu, minhas amigas e parceiras, são mulheres de fé e
muita coragem. Nossa estreia foi a “A Cruz, a espada e o agogô”, seguida
de o romance “As Ayabás do Rei” e “Garibaldi o gaúcho vendedor:
causos, anjos e peleias”(Seu Garibaldi marchou para Deus dia 17 de julho
passado, de morte natural, após completar 95 anos, aos 26 de junho).
A mais recente publicação, de 2019 – “O Tempo de Xangô é agora
e para sempre” – é e será – uma homenagem aos dias e noites de
convivência e discipulado com Mãe Stella. “Ao sabor de Oiá” ocupa um
lugar exclusivo. Um quadro na parede do afeto e saudade. Ela adorava o
romance! Curtia! Leu página por página durante a construção original.
Agora, em outro plano, sinto que esteve ao meu lado, dentro de mim,
reconstruindo palavras.
Não consigo reler nada que escrevi, sem acrescentar isso ou retirar
aquilo. Sou péssima revisora. Apago e transformo. Irrequieta e em
movimento feito o tempo que segue em frente e derrota pandemias.
Questão de disciplina, confiança e paciência.
A trama de origem, nascida na virada do século, é eterna. Intrigas,
intolerância religiosa, superação, suspense, almas grandes e nem tanto,
violência, traumas, amor e, sobretudo, muita coragem e fé. A sede de
Deus. Do sagrado, com tantos nomes e vestimentas, mas um só coração.
Como a vida não para, atualizei a história. Preferi deixar a antiga
linguagem mais contemporânea. Com direito a wi-fi e seus filhotes e
companheiros whatsapp, facebook, instagram...
Gosto desta obra. Fez-me rir e chorar, em 2003; 17 anos mais idosa, o
sentimento é o mesmo. Paradoxal, como a vida. A esperança permanece,
reforçada pela sabedoria do tempo deste vírus que modificou a terra. Tudo
isso me faz lembrar o ditado ídiche: – Os pensamentos humanos divertem
o Altíssimo. Em outras palavras. O homem planeja e Deus dá risada.
É por aí, leitor/a. Leia e me conte. Quero saber de você. Que tal “Ao
sabor de Òyá?”
Cléo Agbeni Martins
Sumário P
Prólogo, 11
A Madonna de Fogo, 14
O Pássaro Machucado, 45
O renascer das chamas, 114
O retorno, 149
Ao Sabor de Òyá, 175
Três anos depois, 208
Tr
Posfácio, 214
Po
Prólogo

Mosteiro Lumen Christi, Sul, noite de 14 de outubro.


relógio, testemunha de tantas gerações, mostrava as horas: 20h45.
O Os três pastores alemães do canil se agitavam. Em breve, seriam
soltos para a guarda em belicosa parceria com valentes quero-queros:
os guardiães dos pampas. Na estrada de chão – bergamoteiras pelos dois
lados –, raríssimos automóveis rompiam a quietude da noite.
Os monges entoavam os salmos, no modo gregoriano. Depois das
chuvas, o delicioso perfume de plantas e terra renovava a esperança de
vida eterna. A lua, enciumada, provocava o indiferente vitral, todo olhos
para a vela bailarina. As vozes e a cítara conduziam ao recolhimento no
coração de Deus, após um dia intenso de orações e trabalho. – Salvai-
nos, Senhor, enquanto velamos, guardai-nos enquanto dormimos! Nossas
mentes vigiem com o Cristo, nossos corpos repousem em sua paz!
Em sete momentos, precedidos pelo repinicar de sinos, a comunidade
forma dois coros, na capela, no espaço do altar. De frente um para o outro:
um e outro cantando em louvor ao Altíssimo: Vigílias, Laudes, Terça, Sexta,
Noa, Vésperas e Completas. O lugar na igreja é o prolongamento da cela
individual – dormitório – e da mesa de refeições. Senta-se conforme os
anos de vida monástica, ou função hierárquica. Cada um se acomoda em
sua estala: assentos de encostos altos e mesinhas com pequenas estantes –
ou gavetas – para guardar livros e partituras, usados na liturgia.
Após a aspersão de água benta por D. Anselmo OSB, o superior,
seguido de um acólito, a maioria dos religiosos deixou o templo; os
capuzes protegendo a intimidade de espíritos em constante colóquio
12 | Cléo Agbeni Martins
com o Transcendente. Todos ávidos por solidão e descanso. Três noviços
ficaram, um bocadinho mais, na tarefa de marcar os livros litúrgicos para
o ofício de Vigílias, às 5h30.
D. Anselmo, com tantos anos de vida consagrada, foi o último a
permanecer. Aspirava a fragrância das imponentes damas-da-noite, do
jardim do mosteiro. Pobres flores noturnas, brancas, de vida curtíssima...
não resistem à luz do sol. O perfume trazia a voz firme de Sulamita:
– Òyá, também conhecida como Iansã, marca sua presença na dama-
da-noite; flor tão sensível e temperamental que nem Ela, Anselmo; eterna
paixão de Ogum, o Orixá inventor, e a principal esposa de Xangô, o
Senhor do fogo...
O monge deixou escapar um suspiro. Com Sulamita tinha mergulhado
no candomblé, a religião dos Orixás, pelas portas do tradicional Ilê
Axé Saquetê Avessan, na Bahia. Desde os tempos de Mãe Totonha: a
inesquecível sacerdotisa descendente de africanos. Sorriu ao pensar em
quanto aquilo tudo lhe custou. Foi chamado para uma conversinha... O
papa Francisco foi uma benção, as coisas melhoraram... mas as aparências
enganam. O preconceito ainda fala muito alto. Sempre rezava pelo pontífice
jesuíta, às voltas com amigos falsos e inimigos declarados. Apesar das
perseguições e sofrimento, Anselmo sabia que estava no caminho certo.
Deus tem uma palavra amorosa para cada cultura; para cada ser humano.
A dor de estômago – a soma de tantas preocupações – os ossos do
ofício – cochichou que ele precisava comer alguma coisa. As mensagens,
no whatsapp, foram as responsáveis por ter perdido o jantar e o recreio.
De joelhos, na estala do prior – a cabeça enterrada nas mãos – começou
a rezar por ela, cada vez mais distanciada. Flagrou-se em alta voz: uma
transgressão ao silêncio. – Cure o pássaro nascido para voar alto em Sua
glória, Infinita Surpresa!
O prior do Mosteiro pensou no maestro italiano: uma fila de casamentos
e a carreira de sucesso. Sulamita, tão diferente do europeu, deixou-
se conduzir pelo musicista; na mesma época alojado na hospedaria.
Confidenciou-lhe um monte de coisas: como se o vaidoso fosse coleguinha!
Anselmo deu de ombros. Achava aquilo tudo imprudente e disse para ela,
que não gostou. O maestro expunha o que pensava. Para a plateia ouvir.
Começava o discurso olhando, pausadamente, para cima e para baixo;
com um movimento das imensas jubas acinzentadas. – Você tem que se
esquecer dessa coisa de candomblé e viver como todo mundo vive; nos
padrões certos! Deixe-me ampará-la, cara mia...
Quis abrir os olhos de Sulamita, ganhando a antipatia de Carlo Stefano.
Sulamita não era a mesma Sulamita, ao ir embora nos braços triunfalistas.
Ignorava as mensagens dele. Carlo bloqueou os contatos de Anselmo e do
Mosteiro.
Um baque, na janela aberta, fez o coração do prior dar um salto.
Aproximando-se, boquiaberto, contemplou o falcão peregrino se
debatendo. O coitado voou além de suas forças. Lutava pela vida. Sozinho
não conseguiria sobreviver.
“Óxente!??!” Deus fala nos acontecimentos!
As lágrimas, misturadas com o sangue do animal, manchavam o hábito
escuro. Lá fora, a brisa do claustro misturava os perfumes de flores e plantas
molhadas. Com determinação, Anselmo sorveu a fragrância preferida de
sua amiga. Fechou a porta da capela, mergulhando nos pensamentos. O luar
e as estrelas, agora, iluminavam o altar e o Homem na Cruz. Testemunha
da esperança de seu discípulo arrastado por memórias de damas-da-noite.
Ao sabor de Òyá: a rainha dos ventos, furacões e tempestades. Particular
reflexo guerreiro da Infinita Surpresa e Misericórdia.

Ao Sabor de Òyá | 13
A Madonna de fogo

São Paulo, manhãzinha de 15 de outubro


ulamita arrancou bruscamente a pobre máscara escura. “Tive sonho
S ou um pesadelo? Não me lembro!” O coração batia fora do compasso.
A ansiedade aumentou, ainda mais, ao contemplar a imagem da noite
passada, em uma tela de cinema. Flagrou-se consultando o relógio durante
o ato de amor, atitude que ofendeu Carlo Stefano: o homem de olhos
verdes decididos. O namorado maestro, que disfarçava a irritação, mal
beliscou o pedaço da pizza marguerita, preparada por ele mesmo em seu
apartamento, na Alameda Lorena. Receita de sua nonna Bepina di Nadai.
Graças a Deus, tinha um ensaio com a orquestra de Viena, às 8h00!
Estava no 23º andar do Edifício Planalto, na Rua Maria Paula, uma
região cada vez mais perigosa – como se houvesse alguma área tranquila
em Sampa... prédio elegante e antigo – o condomínio era caríssimo – que
conservava a velha classe de os anos cinquenta, do século passado. Repleto
de recursos de proteção ao morador. Dois apartamentos por andar; bem em
frente à Câmara de Vereadores de São Paulo. Herança de sua avó paterna.
Ainda era cedo. Ia tentar dormir mais um pouquinho. Algum tempo
depois – ela tinha adormecido – o indesejável voltou a tocar. “Puta merda;
programei errado essa droga...” Em noites de insônia, deixava a tevê fazer
companhia. Foi atraída pela voz de Lucille Ball, em I love Lucy: dos 1950.
Era um documentário sobre a série em branco e preto, em inglês, que teria
muito mais de 60 anos. “Onde coloquei os óculos?” Começou a murmurar.
– Detesto essa coisa! Uma hora dessas tomo vergonha e faço a operação
para jogar os óculos na gaveta!
Estava ficando sem paciência. – Cadê, meu? O pior é que não enxergo
para ir atrás; parece uma praga! Pôs a mão por dentro da blusa do pijama.
Deu um longo suspiro ao perceber que estavam na corrente. Bateu palmas.
“Lugar de óculos é por cima do nariz... até que o meu não é dos piores,
apesar de não ser lindo que nem o da mamãe...”
O comecinho do bom humor se transformou em susto ao contemplar,
na tela, Lucy e sua amiga Ethel, as personagens principais do seriado I love
Lucy. Vestidas de longos brancos. As imagens do sonho foram liberadas.
Um campo cheio de flores. Ao lado dela, caminhando, as falecidas Mãe
Totonha e sua avó Elba Lucia, com túnicas brancas até os pés. A mãe
de sua mãe insistia em dizer que devagar se vai longe. –Sulamita, cara
nipotina mia, piano, piano, se va lontano...
A ialorixá a chamava de Obá Delê. – Minha filha, guerreiro não tem
medo de luta... Quem é do mar não enjoa...
Tinha uma jovem. Erguia a espada. Usava coroa. A coroa brilhava
muito. Percebeu que era viva: vagalumes parecidos com luzinhas de
natal. Tudo muito atrapalhado – coisa de sonho maluco. Lembrou-se da
primeira vez em que viu Mãe Totonha. Foi em Siena, na Itália. Dia 10 de
fevereiro, solenidade de Santa Escolástica, aniversário de Mãe Menininha
do Gantois: Maria Escolástica Nazaré, assim chamada em homenagem à
monja irmã-gêmea de São Bento, o fundador da Ordem de mais de mil e
quinhentos anos. Parecia que aquilo tinha acontecido em outra vida.
– Há quantos milênios foi tudo isso, meu Deus? – perguntou, sem
esperança de ouvir resposta. Contemplava a noviça, na Abadia, cantando
no coro das monjas; durante as Vésperas: a hora litúrgica em que a luz
dourada começa a prevalecer. A ialorixá e Anselmo faziam parte daquelas
recordações. “Mãe Totonha tão elegante no banco da igreja; Anselmo,
doutorando, na época, sem medo de expressar a verdade na frente de
quem fosse...”
A solenidade foi o detonador de sua história. Em pleno Magnificat,
o Cântico de Maria, começou a ficar gelada e sentir tontura. Sulamita
achou que fosse queda de pressão. A tontura continuou, acompanhada
pelo zumbido: o barulho de um milhão de abelhas, cantando juntas. Sua
mão direita começou a erguer-se, quatro dedos para cima: os polegares
escondidos. Sem controlar-se, foi rodopiando, rodopiando, até cair aos
Ao Sabor de Òyá | 15

pés da africana vestida de branco, apontando os quatro dedos – das duas


mãos, em sequência, para ela. Depois, o desmaio.
Acordou, na enfermaria, sob os olhares espantados da abadessa e
da mestra de noviças, olhos que desmentiam os sorrisos adquiridos na
formação monástica. Os exames médicos confirmaram a excelente saúde.
Não havia diagnóstico para a noviça brasileira. As monjas começaram a
16 | Cléo Agbeni Martins

tratá-la com distanciamento de quem vê uma desequilibrada. Deram de


evitar a presença dela. A dizer que a brasileira estava pressionada pela
monotonia da clausura. Que aquela vida não era para a Ir. Hildegardes...
Depois de um jantar, em pleno recreio – estava descontraída – a abadessa
fez sinal de que ela a acompanhasse. Em sua sala, comunicou que voltaria
para casa. A passagem para Roma estava comprada para as 8h00, do dia
seguinte. Sulamita se ajoelhou. Pediu outra chance... que a madre tivesse
compaixão dela. A prelada ergueu as narinas abertas. – A decisão é mais
do conselho do que minha... Por mim... Mas o conselho decidiu e tenho
que acolher... Você não foi recebida à profissão monástica, tem que deixar
a Abadia. Já conversei com sua mãe e ela concorda. Não se preocupe com
mala, essas coisas. Depois segue. Já está tudo providenciado.
A abadessa lhe deu um beijo na testa e se mandou – quase correndo
– para o restinho do recreio com as monjas: o encontro diário, depois
do jantar e antes das Completas. Sulamita pensou que iria morrer. Tudo
muito rápido e sem qualquer compaixão. Ou caridade. Não pregou os
olhos, naquela noite desprovida de estrelas.
A embaixatriz bateu palmas. Ainda se recorda das palavras cortantes,
no primeiro encontro depois que deixou Siena. – Prazam os céus tenha-
se encerrado, mesmo, o romance Convento, Sula! Isso tudo deve ter sido
praga da minha sogra, a strega maledetta! Com o tempo, tu te esquece!
– lembra-se do sorriso da mãe, criada no Rio Grande do Sul – Ainda mais
que tu tens um amigo que te dá todo apoio de que tu precisa...
Pensando nos velhos tempos, Anselmo 10 kg mais magro, elétrico,
admite ter acreditado que fosse sua alma gêmea. Naquele distante 18 de
agosto, de mil novecentos e antigamente, o monge tinha esperado pela
moça de coração partido, no parlatório da Abadia: a sala de visitas dos
Mosteiros. Conduziu a conterrânea e amiga até a residência da família,
em Roma, onde o pai e a mãe viviam. No trem, a jovem – de cabelos
necessitando de um corte e trajes da rouparia das monjas, meio cheirando
a mofo e naftalina – havia chorado nos ombros do homem de colarinho
do clero, atraindo olhares simpáticos, em uma terra onde tudo é possível
quando se trata del amore.
Sulamita se lembra de ter perdido o sono durante longas noites. Sempre
se sentiu atraída pelo sagrado ao seu alcance: o cristianismo, na voz da
Igreja Católica. A decisão de ingressar na vida religiosa era vista pelos
pais como excentricidade própria dos tempos de adolescente. Era difícil
de acreditar que Madre Maria Elizabeth da Trindade OC, nascida Giuliana
Verzeri, a priora do Carmelo Descalço de Caxias, fosse a irmã caçula da
embaixatriz Victoria Regina. A parenta foi a primeira a ser comunicada
de suas intenções. Carmelita experiente, não incentivou, nem desiludiu.
Compartilhou seu ponto de vista com a chorosa irmã mais velha:
– A melhor coisa é deixar de fazer oposição, minha querida. Largue
tudo nas mãos de Deus. Se o desejo partir Dele, não adianta se revoltar.
Se for um capricho, tudo se resolve com o tempo. Os pais resolveram
consentir. Foram tempos felizes. Sulamita acreditava que estava prestes
a professar os votos temporários: estabilidade, conversão de costumes
e obediência. Acolhendo os conselhos de Anselmo, retornou ao Brasil;
prestou vestibular para a Faculdade de Direito de São Paulo, no Largo de
São Francisco, e teve sucesso.
Uma manhã, no quarto ano, caiu desmaiada no toalete e foi socorrida
por D. Lídia, a funcionária sessentona, iniciada para o Orixá Ogum, há
mais de quarenta anos. A simpática baiana foi a ponte até a Casa de Mãe
Totonha. Com muito carinho e lucidez, conversou durante meses com a
ansiosa acadêmica. D. Lídia colocava a mão direita no chão, levando à
testa, ao falar de Ogum, no sotaque arrastado de sua terra:
– Orixá é manifestação divina. O Orixá é quem escolhe a gente, não é
a gente que escolhe o Orixá. Ser uma filha de santo é uma honra e alegria
tão grandes quanto ser monja cristã, ou monja budista. O recheio do bolo
é outro, menina, mas o alimento tem as mesmas propriedades. É tudo
consagração a Deus, ou Olorun, como chamamos, não importa o nome:
tudo é vida de dedicação e renúncia... A gente tem que pensar mais nos
outros do que na gente. Não se pertence, minha filha...
Costumava repetir: – Tenho orgulho de Ogum, o senhor da guerra; o
desbravador de caminhos chamado de El Shabbat ‒ o Senhor dos exércitos
– pelo povo de Israel. Será que o nome é o mais importante? Trata-se do
mesmo guerreiro. Ogunhê!
Com a cumplicidade de D. Anselmo, terminando o doutorado, em
Roma, Sulamita viajou com a cara e a coragem. Lembra-se do taxi caindo
aos pedaços. O céu azul da manhã quente de julho, sem nenhuma nuvem,
Ao Sabor de Òyá | 17

forçou a estudante a permanecer de óculos escuros. Meninos descalços,


sem camisas, empinavam arraias em frente à porta principal do terreiro: de
ferro pintada de vermelho-escuro desbotado, de onde se via, a uns cinquenta
metros, uma casa branca bem antiga. Árvores de diferentes espécies eram
contempladas. Uma enorme, envolta por uma larga faixa de pano branco,
despertou a curiosidade da antiga noviça beneditina. A bandeira da mesma
18 | Cléo Agbeni Martins
cor se destacava imponente. Roupas alvíssimas balançavam no varal. –
Será que eles só se vestem de branco? – murmurou...
Rindo em meio às próprias recordações, Sulamita se recorda da
hostilidade de ebome Augusta, sua futura mestra. Baixinha, de cabelos
trançados, gorducha, com jeito de quem estava indo embora e com pressa...
Sula perguntou pela ialorixá. De cara fechada, a velhota de quadris largos
ordenou que fosse bater na outra porta. A mesma senhora, que tanto a
impressionou no dia de Santa Escolástica, abriu. Enxugava as mãos na
barra da saia até o tornozelo e estava descalça. Vestia camisa entremeada
de rendas. Tinha um pano branco na cabeça – chamado ojá.
Ficou sabendo, muito depois, que a primeira reação da ialorixá foi a
de expulsá-la. Sulamita usava jeans e camiseta azul-marinho. O terreiro
estava no ciclo de Oxalá, Orixá que abomina cores escuras e exige o uso
de roupas brancas durante o período que lhe é dedicado. Ao reconhecer a
africana da Abadia, a moça viu que ia desmaiar. Mãe Totonha gritou por
um copo d´água, sentando Sulamita em um banco comprido, de madeira. O
barracão – local das festas – era grande, com capacidade para mais de 200
pessoas. O teto estava enfeitado por bandeirolas de crepom branco. Um
poste central parecia segurar o telhado. Ao redor, cadeiras de diferentes
estilos e idades. Retratos nas paredes. O cheiro de feijoada bailava no ar.
A mãe de santo, de mão na boca, reconheceu a noviça. Muitas vezes
tinha relatado o acontecimento com ironia e bom humor: os Encantados
não largaram de seu pé nem na viagem oferecida por ocasião de seus
setenta anos. – Viajei tanto para receber uma lição que não seria dada em
casa – costumava dizer. Divertia-se ao recordar tudo; tintim por tintim. –
Ah, pois, minha gente... uma freira com Orixá, na igreja... alva, quando
acaba... as outras olhavam para mim – Deus que me valha – como se eu
tivesse culpa. Um padre veio falá comigo e eu disse a ele que desse água
fria pra moça bebê e lavasse o rosto dela. Que ela não estava doente, não.
O padre perguntou de onde eu era, riu, pediu minha bença, disse que era
de João Pessoa; neto de uma preta benzedeira... que acreditava em todas
as manifestações do Espírito de Deus. Parecia sincero; gostei do sujeitcho
de olhos bons.
Anselmo e Mãe Totonha seriam grandes amigos. Sulamita se lembra
de que antes de ser conduzida até o quarto de búzios, Mãe Totonha tinha
mandado alguém lhe dar banho de folhas de purificação e uma muda de
roupas brancas da neta, no terceiro ano de Medicina Veterinária. Vestiu
camisú, saia rodada e pano da costa: espécie de xale que se enrola no
peito. Tudo branquinho e perfumado.
A ialorixá a levou até uma pequena sala que cheirava a tinta. Percebeu
fotos antigas de mulheres idosas, com roupas parecidas com as que vestia
pela primeira vez. Era forte a semelhança entre elas e a senhora da Abadia.
Obedecendo, sentou-se na cadeira de mogno encostada na mesa redonda
de madeira escura, coberta pela toalha branca de rendas de richellieur:
tipo de fino bordado à máquina.
A suma sacerdotisa levantou o pano revelando várias conchinhas
brilhantes: caurís ou búzios ‒ o meridilogun –, popular oráculo da religião
dos Orixás. Após recitar em um idioma desconhecido, Mãe Totonha
lançou todos os búzios (em suas mãos) na toalha, comunicando-lhe que
era filha de Obá: a senhora da guerra; a amazona guerreira que vive no
encontro de águas que não se misturam e produzem sons belicosos, sons
da pororoca: a enorme onda provocada pelo confronto de Obá com Oxum,
que convenceu a outra a cortar a própria orelha e pôr na comida de Xangô
para que o rei “gostasse mais dela”. Xangô é esposo de Òyá, Oxum e Obá:
a mais velha. Não precisa dizer que o efeito foi contrário... A senhora da
guerra, segundo o mito, não perdoou – jamais – a esperta senhora das
águas doces...
– Òyá, minha filha, que também chamam de Iansã, é meu Orixá e de
minha neta Alzira que precisou ser feitcha aos três meses de idade, entre a
vida e a morte. Lançando novamente os 16 búzios, também comunicou à
jovem, que tinha perdido a cor, que precisava ser iniciada para a protetora
das causas impossíveis, Obá. O quanto antes! Para confirmar a profecia,
Òyá – a generosa guerreira, a mãe transgressora pela vida, que divide o
segredo do fogo com Xangô, desceu sobre a ialorixá. Sulamita quase caiu
para trás. Tudo muito inédito e de meter medo.
Ao ouvirem o ilá de Iansã – reeeeeeeeeeeeei: o grito guerreiro característico
do Orixá – o sinal de sua presença em terra – os filhos espirituais – vindos
de todos os lados da Casa – correram ao encontro da divindade responsável
pelos destinos do Axé; surpresos por poderem contemplá-La em uma
ocasião rara. Òyá abençoou a todos, dizendo-se satisfeita com a chegada da
primeira filha de Obá, em uma comunidade antiga. Daí, para a iniciação, foi
um piscar de olhos. Alguns anos depois de se formar, Sulamita mudou-se
para Salvador, onde montou escritório de advocacia. Mãe Totonha lhe deu
Ao Sabor de Òyá | 19

o cargo de Mayé: sacerdotisa de sua confiança.


A filha de Obá nem sempre conseguiu compreender as pessoas da
comunidade. Muito menos, foi compreendida. Enfrentou desafios sem
pestanejar, nem medir consequências. Sulamita tinha o temperamento
difícil. Magoou muita gente, sem querer, pelo seu jeito direito e
20 | Cléo Agbeni Martins
transparente: coisa estranha no candomblé, onde se faz todo um rodeio
para se chegar à questão. Nunca fugiu. Foi fiel. Enfrentou inimigos ávidos
de poder, liderados por mãe Licinha: a filha mais velha de sua ialorixá. A
carga se tornou pesada, demais, depois da morte de Mãe Totonha. Mas,
passaria por tudo de novo para tê-la de volta, cheia de energia e decisão.
“Estranho eu ter sonhado com minha avó ao lado da mãe de santo...
nem se conheceram!” Gostava muito da falecida avó. A nonna. Mulher
forte e de ideias avançadas. Dizem que ela tinha puxado Elba Lucia. A
avó escolheu seu nome, extraído do livro de “Cântico dos Cânticos”, da
Bíblia. Acredita que a avó tinha tudo para ter sido filha de Iansã: irmã de
cabeça de Mãe Totonha.
A filha de Obá não ignorava o preconceito que ainda paira sobre as
religiões de matriz africana, em plena segunda década do terceiro milênio.
Muitos as consideram simples animismo, seita ou, quando muito, uma
religião espúria ‒ a exemplo de Carlo Stefano; sincero, o bastante,
para externar o que pensava. Antes assim. Ela, própria, tinha sentido o
preconceito ‒ o ódio – na pedrada que levou no rosto. Poderia ter sido um
acidente fatal.
Os risos embutidos em preto e branco, de I love Lucy, começavam a
irritar. Desligou a tevê. Tinha sido triste e bom o sonho. Mas o que são
os sonhos, se não expressões de nossa ansiedade? De nosso medo? Os
espíritas acreditam em desdobramentos... sabe-se lá. Espreguiçando-se,
abriu a janela. Tinha parado de chover. O céu da manhã ventosa, 15 de
outubro, era da cor dos olhos de seu maestro. Protegendo os próprios,
com as mãos – eram iguaizinhos aos de Vicky, a mãe diferente – pensou
na força da luz, que tem de ser absorvida devagar, admirando-se de seu
pensamento clichê. Deu um sorriso amarelo. Aspirou, com força, o cheiro
de terra depois da chuva.
Olhando pela vidraça, falou em voz alta, como se falasse para alguma
plateia. – Minha história daria um roteiro de comédia, ou minissérie de
suspense; talvez uma pantomima de circo...
Mordiscou a cutícula do anular direito, lembrando-se de que precisava
fazer as unhas. Bocejou de novo, esticando os braços até o limite. Pensou
em Cristo, na cruz. Sentiu um calafrio. Desejava viver tranquila, em paz,
nos padrões aceitáveis. Tinha cansado de ser diferente. Esfregou os olhos
suspirando; com preguiça de sair, embora fosse o melhor meio de arrancar
as sementes da depressão. Teria de participar do bendito seminário de

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