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Copyright © 2020, Metanoia Editora

Editora
Léa Carvalho
Capa
Design: MaLu Santos | Ilustração: freepik
Projeto gráfico
MaLu Santos

Guiliana da Silva Santos e Jean Baptista

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
B465t
Bessa, Hugo
Todas as cores da vida / Hugo Bessa. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Metanoia, 2020.
234 p. ; 23 cm.

ISBN 978-65-86137-12-5

1. Romance brasileiro. I. Título.

20-66936 CDD: 869.3


CDU: 82-31(81)
Camila Donis Hartmann - Bibliotecária - CRB-7/6472
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Impresso no Brasil
A todos aqueles que ainda não encont¢aram a própria voz.
Ela está dent¢o de vocês, e é mais for¥e do que imaginam.
AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, sempre.

Todos nós temos alguém que nos incentiva a colocar cor em uma página
monocromática. Obrigado Beta pelos primeiros tons, depois completados
por meus amigos Sanhos: Monique, Bruna, Raíssa, Aline e Michel. E alguns
outros que passaram e deixaram muito de si em mim.
Agradeço sempre às minhas primeiras leitoras, amigas e parceiras: Emily,
Erika, Cris e Débora. E ao Faer, um leitor intenso em seus sentimentos.
Agradeço também à primeira pessoa com quem falei sobre o livro,
Gabriel, que muitas vezes compreendeu a minha quietude, eu estava com
vários diálogos dentro de mim.
Ao universo, por tudo o que me trouxe até aqui. Sigo colocando novas
cores nessa obra chamada vida.
´
PROLOGO

A penas sete anos de idade e havia cometido um crime. Foi assim que ele
se sentiu naquele momento: um criminoso, o maior deles. E sabia que
precisava sair dali o mais rápido possível. Deveria ir embora da casa de Deus,
não merecia estar naquele lugar. Um crime cometido na igreja haveria de ser
ainda pior, e tinha certeza de que receberia um castigo severo. Já se via em
chamas, em enormes labaredas, observado pela mais cruel das criaturas: o
chifrudo, o coisa-ruim, aquele cujo nome sua mãe preferia nunca pronunciar.
Lembrava-se perfeitamente das palavras do padre: “dependendo do pecado,
perdemos o direito aos céus, vamos sem escalas para o inferno!”.
Não deveria ter feito aquilo, não deveria, era o que repetia para si, como
um mantra enraizado em sua cabeça. Não deveria, apesar de ter sido bom,
apesar do frio na barriga que sentiu, da sensação estranha que o invadiu.
Uma sensação que havia começado na garganta, como um nó se desatando,
e desceu, passando pelo coração, que pulsou em sobressalto por alguns
segundos, até chegar na barriga, numa explosão que a fazia parecer habitada
por dezenas de aves voando para lá e para cá.
Quando chegou apressado na porta da igreja, estava trôpego, precisou se
apoiar no batente e tomar um pouco de ar. Olhou para todas aquelas pessoas
que passavam por ali, sentindo-se muito distante delas. Era agora o maior
pecador da cidade e tinha receio de que todos já soubessem disso apenas ao
olhar para ele, como se a sua grande perversidade estivesse estampada na
testa. Precisava se esconder, ir para longe, o mais distante possível.
Estava com vergonha e medo, além de uma vontade imensa de desaparecer.
Por um instante, desejou ser um mágico, como o que viu no último circo
que passou pela cidade, e, assim, poderia fazer seu erro sumir, talvez voltar
no tempo e apagar o acontecido. Não, isso não! Sua vontade era de fazer
novamente e de ser invadido por aquele frescor que o contagiou como um
sopro de alegria.
Achou que estava a pecar mais uma vez apenas por relembrar o instante
de seu crime, e resolveu sair correndo. Atravessou a rua e cruzou a praça, e se
sentiu observado por todos, como uma aberração, como algo que não fazia
parte daquele lugar. Enquanto corria, tentava olhar para os próprios braços,
depois passou os olhos pelas pernas, queria ver se algo denunciava o seu feito,
se agora estava marcado de alguma forma por seu erro. Viu um carro preto
parado na rua perto da sorveteria, precisava se olhar, e foi até ele. Embora
estivesse com pressa para se ver longe dali, ansiava, antes de tudo, saber se
ainda reconheceria o próprio reflexo.
Avançou devagar, sentia pavor de enxergar seu pecado em si. Aproximou-
se do vidro da porta do carro e, aos poucos, sua cabeça surgiu refletida: o
cabelo castanho, que, de tão liso, parecia escovado, com uma franja que lhe
conferia uma aparência ainda mais infantil; os olhos grandes e assustados, da
mesmíssima cor de seu cabelo; o nariz arrebitado da mãe; a boca pequenina
do pai.
Sentiu um alívio tão grande ao se ver como sempre, com tudo em seu
devido lugar, que achou que fosse desfalecer, mas não teve tempo para
isso. Naquele mesmo instante, notou que era observado por alguém, e viu,
também refletido no vidro do carro, o padre. Ele lhe pareceu maior e o olhava
com estranhamento e, naquele instante, teve certeza de que o religioso sabia
de tudo. A verdade é que o padre acenou simpático, contudo o menino só
enxergou um olhar de desprezo e fúria, e seu coração começou a bater forte.
O religioso deu meio passo em sua direção, e o garoto não esperou nem mais
um segundo, correu sem olhar para trás, atravessando três ou quatro ruas que
desembocavam na mata que circundava a cidade.
Correu por entre as árvores, tentando localizar a direção do rio. Precisava se
limpar, era isso! Tinha que se lavar, tirar aquele pecado de seu corpo. Sua mãe
sempre lhe dizia que um banho de rio lava a alma, e quem sabe, assim, voltaria
a ser normal como todos os outros. Escutou o barulho da água, estava perto, a
brisa gelada também denunciava isso, e correu na direção das evidências.
Ao enxergar o rio, não diminuiu o passo ou parou para analisar em qual
ponto iria se atirar. Conhecia aquelas águas mais do que a si próprio, e se
jogou nelas sem hesitar, faminto por sua redenção. Deixou-se afundar, sentiu
que o fazia em câmera lenta, e foi às profundezes do rio até que seus pés
tocaram o chão. Sentiu paz naquela imersão, gostou quando abriu os olhos
e não viu nada. Assim, ninguém o veria também. No momento em que não
aguentou mais ficar sem respirar, emergiu e boiou por alguns instantes, os
olhos no céu e a cabeça a questionar se Deus estaria mesmo bravo com ele.
Essa era sua maior preocupação.
Sempre foi um bom menino, pensou, obediente aos pais, estudioso, não
era justo ser considerado um criminoso por um pequeno deslize. Não teve a
intenção e jamais achou que aconteceria. Não havia matado ninguém, nem
agredido pessoa alguma. Um beijo era esse o seu crime, um gesto simples que
tornava sua vida tão complicada.
Quando, naquela manhã, aceitou brincar de pique esconde com os amigos
de turma da Eucaristia, não imaginou que os dois teriam a mesma ideia, fazendo
do confessionário um esconderijo, e nem que ficariam tão perto um do outro,
a ponto de suas respirações se misturarem. Não cogitou que se olhariam nos
olhos e que, por alguns segundos, ficariam hesitantes. Não tinha ideia de que
suas bocas se encostariam com rapidez, mas com delicadeza, selando um crime
pelo qual poderia ser condenado para todo o sempre.
Deitado na margem do rio levou a mão à boca, relembrando a cena.
Pensou que seria normal se sua boca não tivesse encostado-se à de Fabrício,
sendo ele Pedro. Seu corpo era sua arma, e sentir algo bom por outro menino
havia sido seu grande crime aos sete anos de idade.
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O s ponteiros do relógio foram lentamente se configurando de forma


a marcarem o temido horário: meio-dia e trinta minutos. Pedro
acompanhou o exato momento em que isso aconteceu, pois não tirava os
olhos do objeto que ficava acima do quadro negro da sala de aula. Seu coração
disparou, a respiração ficou curta e a boca não encontrou mais saliva. Não
eram, porém, sintomas eventuais, eram cotidianos, e começavam sempre
por volta do meio-dia e vinte, quando ele passava a olhar para o relógio de
segundo a segundo. Enquanto os outros adolescentes se mostravam ansiosos
para o sinal tocar e poderem ir embora do colégio, o menino torcia para que
esse momento nunca chegasse.
A boca da professora se mexia sem parar, mas Pedro não escutava uma
só palavra do que ela dizia, ouvia apenas seus próprios pensamentos, que
buscavam incansavelmente uma forma de sair do colégio sem ser notado.
Preferia que sua turma fosse a primeira a ser liberada, e guardava seu material
na mochila um pouco antes do horário de ir embora, assim, conseguia deixar
a sala com agilidade. Nos dias em que outras turmas eram dispensadas antes,
ficava pensando em táticas para evitar o que tanto temia: encontrar a saída
do colégio lotada.
Nesses momentos de angústia, além de fantasiar formas de sair incólume
dali, também se questionava o porquê daquilo. Por que ser visto de forma
tão diferente sem nada ter feito para isso? Então, lembrava-se do beijo, o
inocente beijo dado há nove anos no confessionário da igreja. Era aquela a
marca que as pessoas enxergavam, mesmo sem saberem de nada, como se o
seu feito estivesse carimbado em sua pele? Temia que aquele instante o tivesse
maculado para sempre, como previu ainda aos sete anos de idade.
O breve beijo havia sido o único de sua vida, e já era tão distante que,
às vezes, tinha a impressão de ser uma fantasia da sua cabeça, um momento
bom criado para se agarrar nas horas ruins. Duvidava até da existência do
próprio Fabrício, que só encontrara em mais meia dúzia de ocasiões após
o acontecido. A sensação daquele momento, porém, era muito real a cada
recordação, não poderia ser ficção, era a sua própria realidade.
Constantemente, revisitava aqueles tempos em suas memórias. Os
dias seguintes ao beijo transcorreram de maneira particular para ele:
pareceram durar uma eternidade. No meio da semana, teve febre, que sua
mãe diagnosticou como sintoma de uma gripe, mas sofria mesmo era de
ansiedade e de culpa, sentimentos que foram deixando-o cada vez mais
frágil. Para Pedro, sua febre era um castigo, o primeiro dos muitos que
ainda viriam, tinha certeza disso, e, para se antecipar ao mal que ainda
poderia alcançá-lo, atribuiu pequenas penitências a si mesmo. Não comeu
doce, mesmo sendo permitido por sua mãe, e ficou a semana toda sem
assistir ao seu desenho preferido.
Quando ele e Fabrício se reencontraram, no domingo seguinte, para a
aula de religião, não conseguiram se olhar, evitaram-se, como se enxergar
um ao outro fosse errar novamente. Sentaram-se em lugares distantes na
sala de aula e não disseram uma só palavra enquanto estiveram no mesmo
ambiente. Pedro queria poder falar algo a Fabrício, talvez se desculpar,
porém, sentiu um bloqueio que o impediu de qualquer aproximação.
Sentia que não era certo.
A situação se repetiu nas semanas seguintes, até a Primeira Comunhão,
evento no qual tiveram um derradeiro contato. Pedro voltava para o
seu lugar, após receber sua primeira hóstia, quando olhou para Fabrício
sentado em um dos bancos, e seus olhares se encontraram pela última vez.
Um olhar de cumplicidade e medo.
Após a cerimônia, na porta da igreja, sua família se preparava para tirar
uma foto, e Pedro notou que Fabrício já ia embora com seus pais. Afastou-
se discretamente de seus parentes e acompanhou, à distância, seu parceiro
de crime atravessar a rua. Viu quando ele entrou no carro e torceu para que
olhasse para trás, para que o visse, mas o veículo partiu, e Pedro sentiu um
enorme vazio, como se nunca mais fosse ver Fabrício. E foi o que de fato
aconteceu.
Nos dias seguintes, foi invadido por uma tristeza imensurável, não
conseguia assimilar o que estava acontecendo, o motivo de sentir aquela
falta de alguém com quem tivera tão pouco contato. Adoeceu novamente,
faltou alguns dias na escola, e somente o tempo amenizou a saudade, a
tristeza e a culpa. Lembrava-se de sua primeira comunhão como um dia
triste, e é assim que aparece na foto com a família, tirada na frente da igreja
logo após a partida de Fabrício.
Estava com os pensamentos naquele dia, quando o sinal do colégio tocou.
Nenhuma turma havia sido liberada mais cedo e, sem esperar que o aviso
sonoro cessasse, Pedro pegou suas coisas e saiu apressado da sala. Enquanto

10 | HUGO BESSA
TODAS AS CORES DA VIDA | 11

caminhava na direção do portão, um alívio o invadiu porque achou que


conseguiria ir embora com tranquilidade, porém, foi surpreendido por três
ou quatro adolescentes das turmas maiores, que estavam próximos à saída.
Passou por eles sem olhar para o lado, o coração aos pulos, e estava quase
alcançando o portão, obtendo êxito em sua fuga diária, quando escutou o
que falavam todos os dias:
— Tchau, viadinho.
Ouviu ainda risadas de outras pessoas e de colegas de sua sala que
estavam logo atrás, e não olhou para lugar nenhum, continuou em linha
reta, a cabeça baixa e os olhos arregalados para segurar as lágrimas. Só
queria sair dali rapidamente.
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Este livro foi composto nas famílias tipográficas:


Adobe Garamond, ProtestPaintBB e SlimJoe
Impresso em papel alta polen 85g | primavera de 2020

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