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O PODER PSIQUIÁTRICO E AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DA LOUCURA

Joana Kelly Marques de Souza1

RESUMO: Em suas investigações sobre a história dos saberes, Michel Foucault sempre
destacou a pluralidade heterodoxa de circunstâncias que culminam na institucionalização de
um saber em detrimento de concepções teleológicas marcadas por concepções como a de uma
consciência ou de uma razão que progressivamente vai se apoderando das coisas e livrando-se
da obscuridade que a precedia. Nesse sentido, o trabalho pretende verificar de forma breve o
contexto histórico que envolve a emergência e a institucionalização do saber psiquiátrico e a
consequente instauração de poderes de controle e disciplina a ele associados que podem
resultar num processo de dissocialização de pacientes. Além disso, a partir das estratégias de
saber-poder descritas por Foucault que estão envolvidas no saber psiquiátrico, em referências
clássicas como História da loucura na idade clássica (1961) e O poder psiquiátrico (1973),
pretende-se ampliar a análise numa direção que torne visível uma série de questões que dizem
respeito às Ciências Sociais, uma vez que envolvem inúmeras relações entre instituições,
família, indivíduo e sociedade, definindo as condições de socialização ou dissocialização dos
indivíduos e determinando seus possíveis espaços e formas de convivência. Tudo isso exige a
investigação de diversos campos conceituais conflituosos, tais como as relações existentes
entre diversas acepções de loucura e doença mental, suas representações sociais e as diversas
terapêuticas resultantes. Em suma, pretende-se debruçar-se uma vez mais numa discussão que
possui inúmeros impasses tanto de ordem conceitual quanto da ordem das práticas sociais,
tentando aproximar-se das relações de força resultantes das relações destas.
PALAVRAS-CHAVE: Discurso. Psiquiatria. Representações sociais. Loucura. Doença
mental.

A medicina social e as condições de emergência da psiquiatria no Brasil

Segundo o livro Danação da Norma, organizado por Roberto Machado, o


surgimento da psiquiatria no Brasil se deu através de um modelo de medicina social que tinha
como um dos seus principais objetivos a organização urbana a partir do disciplinamento da
sociedade. No entanto, para que se possa compreender o contexto do surgimento da
psiquiatria no país a partir de uma proposta de medicina social se faz necessário antes
caracterizar a medicina colonial, que corresponde às exigências médicas e políticas desde o
período de colonização no Brasil.
A administração colonial tem a saúde como objeto de reflexão e intervenção. Como
se tinha uma preocupação com as doenças epidêmicas, como a lepra e a peste, nesse período
havia alguns meios de combater essas doenças. Tinha-se, por exemplo, uma fiscalização,

1
Mestranda do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte. joanakellymarques@yahoo.fr
mesmo que esporádica, na qualidade dos alimentos, no exame de pessoas nos desembarques
de navios, bem como do exercício da profissão médica, que não poderia ser exercida por
qualquer pessoa.
Nesse período, o médico tinha um papel extremamente importante, a partir dele se
fazia a relação entre a medicina, a sociedade e o Rei. Durante todo o período colonial, os
moradores de cidades e vilas solicitavam a presença do médico para curar suas enfermidades,
se o médico era pedido pela população, ele era enviado pelo Rei, mesmo que existissem
dificuldades de achar médicos dispostos a irem para as cidades e vilas da Colônia. Havia
carência ou quase inexistência de médicos devido, principalmente, à proibição do ensino
superior nas colônias, ao fato deles negarem-se a ir às cidades alegando poucas vantagens
profissionais e às dificuldades em mostrarem eficiência nos seus trabalhos em decorrência da
distância dos remédios europeus2.
Com pouca oferta de médicos, a prática da medicina passa a ser exercitada por outras
pessoas, tais como jesuítas, escravos e índios, fazendo com que a prática médica fosse
fiscalizada e proibido o seu exercício por pessoas que não profissionais da área. O médico é,
portanto, uma personagem que figura na relação entre o Rei e seus vassalos através da
presença da doença e da morte3.
Vital aos olhos do Rei para defender a terra e fazê-la produzir, a população aparece
como elemento a ser preservado. Portanto, nos casos de peste, o perigo é grande, na medida
em que ela dizima as populações a ponto de paralisar a cidade e diminuir a oferta de mão-de-
obra4. Assim, diversas medidas são adotadas, entre elas: aconselha-se fazer cemitérios fora da
cidade, para que não se amontoem corpos na cidade e se infeccione o ar, o que resultou no
primeiro cemitério extra-muros do Rio de Janeiro: o cemitério do Caju; no que se refere à
comida, previne-se quanto ao mal estado de carnes, peixes, farinhas, vinhos, vinagres e
azeites, fazendo surgir a necessidade de controlar o comércio; para os escravos portadores de
moléstias epidêmicas e cutâneas propõe-se a criação de um lazareto para que doentes não
circulem na cidade; no que diz respeito ao exercício da medicina, tem-se a criação de uma
autoridade médica ligada a um organismo central de administração, encarregada de
supervisionar todos os assuntos referentes à saúde pública. Tudo isso tinha por objetivo o
combate às epidemias e evitar a morte, porém, não funcionava de maneira preventiva, na

2
MACHADO, Roberto. et al. Danação da norma: a medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio
de Janeiro: Graal, 1978. p. 22-25.
3
Ibid., p. 23.
4
Ibid., p. 43.
maioria dos casos atuava de forma reparadora, não se tinha um controle contínuo no que diz
respeito à saúde. Em suma:

A cidade, com suas ruas, becos e praças, aparece nos discursos como objeto de um
conhecimento e uma prática motivados pela retirada ou eliminação do que é tido
como desvirtuamento de uma situação anterior, originário, e ditados pela não-
observância das posturas; não se constitui como objeto passível de sofrer uma
intervenção que signifique não o concerto, a restauração, mas a transformação. 5

Esse processo de luta contra as doenças, especialmente contra a peste, é bastante


importante para a instauração da medicina social do século XIX, pois tanto a medicina
colonial quanto a medicina social produzem um conhecimento sobre a cidade, no entanto, a
medicina social propõe intervenções normativas e preventivas na sociedade. A medicina
social é responsável pela implementação de medidas de controle da cidade, uma vez que “se a
doença tem uma causa que não se encontra no próprio indivíduo mas em seu exterior, nos
lugares e ambientes urbanos, é a cidade que deve ser analisada com o objetivo de determinar o
que pode causar doença”6.
As medidas implementadas têm sua origem em um saber que adquire o poder de
transformar o diagnóstico em intervenção terapêutica. Portanto, na tentativa de conservar a
saúde da população, enumerou-se uma série de medidas de intervenção nas coisas, lugares e
ambientes, dando a devida orientação aos indivíduos de como proceder e produzindo um
saber singular sobre a cidade, uma vez que não se detém unicamente nas causas da doença no
próprio corpo do doente, mas também naquilo que o cerca. Atuando de forma constante na
sociedade, a medicina social,

[...] se caracteriza por uma forma de controle constante, por uma vigilância contínua
sobre o espaço e o tempo sociais. Se, por um lado, repete, refinando, aprofundando e
ampliando, o esquadrinhamento e o controle contínuos, vigentes nos estreitos limites
de duração da campanha, age, por outro lado, sobre a cidade – divide, distingue,
isola, expulsa e transforma – antes mesmo da presença do mal.
Ou melhor, aperfeiçoa a técnica da quarentena não só refinando o esquadrinhamento
urbano, como também estabelecendo um controle caracterizado por um permanente
estado de alerta que, assim, ganha autonomia com relação ao perigo presente. 7

Dessa maneira, a medicina na sociedade do século XIX no Brasil se redefine,


incorpora o meio urbano como alvo da prática médica. Há uma transformação política e
econômica onde a medicina em tudo intervém. A transformação do objeto da medicina

5
MACHADO. et al. Danação da norma. p. 46.
6
Ibid., p. 94.
7
Ibid., p. 103-104.
significa um deslocamento da doença para a saúde. Não é mais a ação direta sobre a doença
como essência isolada e específica que move o projeto médico. Agora a sociedade tem
identificada, a partir de sua desordem e de seu mal funcionamento, a causa de doenças e,
portanto, se faz necessário que a medicina reflita sobre isso para atuar sobre o comportamento
da sociedade. Nasce o controle das virtualidades; nasce a periculosidade e com ela a
prevenção. O médico torna-se, então, um planejador urbano e as transformações da cidade
ligam-se à questão da saúde. O médico passa a ser analista de instituições, “[...] transforma o
hospital – antes órgão de assistência aos pobres – em ‘máquina de curar’; cria o hospício
como enclausuramento disciplinar do louco tornando doente mental; inaugura o espaço da
clínica, condena formas alternativas de cura”8.
A medicina social, com o objetivo de tornar saudável uma sociedade, impõe
exigências de ordem social e passa a considerar anormal toda realidade que fuja ao padrão
estabelecido. Mostrando a necessidade de controlar a saúde da população, a medicina social
transforma em normalizados aqueles indivíduos que escapam à norma. Tal prática

[...] exige a criação de uma nova tecnologia de poder capaz de controlar os


indivíduos e as populações tornando-os produtivos ao mesmo tempo que
inofensivos; é a descoberta de que, com o objetivo de realizar uma sociedade sadia,
a medicina social esteve, desde a sua constituição, ligada ao projeto de
transformação do desviante – sejam quais forem as especificidades que ele apresente
– em um ser normalizado; é a certeza de que a medicina não pode desempenhar esta
função política sem instituir a figura normalizada do médico [...] 9

É a partir dessa prática da medicina, que incorpora a sociedade como novo objeto e
que tem os indivíduos e as populações sob o controle social em diversas esferas, que se torna
possível compreender o nascimento da psiquiatria no país, uma vez que essas características
mais abrangentes foram se deslocando para aparelhos especializados como os hospitais
psiquiátricos.
No Rio de Janeiro, desde 1830, quando aparecem os primeiros protestos médicos
contra a situação dos loucos no Hospital Santa Casa da Misericórdia no Brasil, propõe-se a
criação de um hospício de alienados, o Hospício de Pedro II. A reinvindicação principal dos
protestos era de que a forma na qual o Hospital Santa Casa estava organizado não favorecia a
cura, não possibilita o domínio da loucura, pois o hospital não possuía em seu corpo médicos
especializados que se dedicassem a esse tipo de doente. Para aqueles que protestavam,
estando este doente num hospital, era como se estivesse em uma prisão. Os médicos

8
MACHADO. et al. Danação da norma. p. 155.
9
Ibid., p. 156.
argumentavam ainda que os alienados na Santa Casa “[...] vivem encarcerados em pequenos
quartos, que pelo menos são bem arejados: mas isto não basta, faltam os meios de lugar mais
espaçoso e outras proporções indispensáveis para um tratamento apropriado a esta classe de
doentes”10.
Assim, criticava-se a realidade da Santa Casa, propondo mudanças em todas as
instituições por ela administradas e mostrando, principalmente, a necessidade que se tinha de
criar um lugar próprio para o tratamento dos alienados, mesmo que essa nova instituição
continuasse sob a administração da Santa Casa. É então que, em 1841, depois de todos os
protestos e das medidas administrativas necessárias, assinala-se o nascimento da psiquiatria
no país com a criação, no Rio de Janeiro, de um hospício destinado ao tratamento de
alienados.
Segundo Machado, essa instituição possuía características idênticas às do modelo
francês elaborado, basicamente, por Philippe Pinel e Jean-Étienne Dominique Esquirol. A
diferença entre os dois países nesse processo é que enquanto na França o “hospital dos
loucos” foi resultado de um processo amplo de debate político sobre assistência, no Brasil, o
hospício foi solução pacificamente adotada, resultado de uma sucessão de propostas aceitas,
encaminhadas e sancionadas pela instância máxima do governo imperial, e fez parte
integrante do projeto normalizador da medicina11.
Ainda no que diz respeito à criação do Hospício de Pedro II, Machado aponta que
houve, em 1903, a criação de uma lei dos alienados pelo então deputado Teixeira Brandão.
Tal lei, dentre outras coisas, faz do hospício o único lugar apto a receber loucos, subordinando
sua internação ao parecer médico, regulamenta a posição central da psiquiatria no interior do
hospício e cria uma comissão inspetora de todos os estabelecimentos de alienados. Essa lei faz
do psiquiatra a maior autoridade sobre a loucura e suscita debates a respeito da legitimidade
da estatização do hospício e o direito do Estado de intervir em assuntos como a loucura e os
loucos.
Assim, surge a institucionalização de um discurso psiquiátrico que propõe novas
formas de administração e faz notar que sua contribuição à constituição de um novo Estado
não é nada desprezível. Em Danação da Norma, lê-se que o discurso psiquiátrico tem uma
eficácia real, além de simbólica, e que sua formulação é estratégica. Dessa forma, a
assistência médico-legal a alienados, a estatização do hospício e a lei de 1903 contribuem para
a estratégia de normalização social da psiquiatria. Para Machado,

10
Citado por MACHADO. et al. Danação da normal. p. 426.
11
MACHADO. et al. Danação da normal. p. 428-429.
Dois aspectos, porém, estão indissoluvelmente presentes no processo de luta, crítica
e aperfeiçoamento da psiquiatria: por um lado, substituir à ação negativa do terror e
da exclusão do louco a possibilidade de uma vigilância ordenada e integradora. A
demanda de uma normalização do louco não é uma demanda do corpo social inteiro,
mas de uma elite médica que se instala, ao mesmo tempo, dentro e fora do Estado. A
indisciplina asilar é, portanto, a oportunidade que tem a psiquiatria de reiterar a
racionalidade da disciplina, de defender a conveniência de um espaço experimental
onde se testa a eficácia da disciplina, e até da repressão, sobre condutas. [...] Por
outro lado, permite reconhecer no hospício um campo real de luta que demanda um
corpo especializado de administradores para uma população asilar composta de
mulheres e homens, ricos e pobres, escravos e livres, tranquilos e agitados, gente
culta e gente bronca.12

A psiquiatria, adquirindo agora uma instituição própria para o tratamento dos doentes
mentais, faz surgir seu projeto característico da patologização do comportamento do louco,
tornando medicalizável seu comportamento e prevendo então um local para sua correção,
percebe nele um elemento de desordem e periculosidade urbana. Será o hospício a instituição
que organizará ao longo do tempo o contato do louco com a família, o fazendo distanciar-se
do meio doméstico, e proporcionando, assim, o rompimento de seus hábitos.
Antes vistos como problema de família, agora o louco irá se destacar sobre um fundo
formado por um problema de “polícia” 13, referente à ordem dos indivíduos na cidade. Aqui o
louco faz seu aparecimento como um perigo em potencial, atentando à moral pública e à
segurança, um elemento de desordem e periculosidade urbana que necessita de um lugar para
a sua correção. A essa desordem do comportamento, dá-se um “tratamento moral” instituído
pela psiquiatria. É essa ciência do homem que aparece como instrumento de aprimoramento
da sociedade civilizada, uma vez que o homem moral é fruto de suas relações sociais com
outros homens. Para que essa interação não prejudique a civilização, produz-se uma ciência
que dê condições para que possíveis desvios sejam prevenidos e/ou corrigidos.
Podemos dizer que é a partir dessa relação de poder da medicina com a sociedade
que se inicia o encarceramento de indivíduos nos manicômios. E não apenas aqueles com
doenças mentais, pois também foram impedidos de exercerem suas liberdades aqueles que
não se enquadravam na normatização e que poderiam fornecer algum tipo de perigo à ordem
da sociedade. Segundo Machado, a grande realização da psiquiatria, na época da sua
constituição no século XIX, foi a criação do hospício como poder disciplinar14. A psiquiatria,
portanto,

12
MACHADO. et al. Danação da norma. p. 491- 492.
13
“Polícia, no sentido preciso que a era clássica atribui a esse termo, isto é, conjunto das medidas que tornam o
trabalho ao mesmo tempo possível e necessário para todos aqueles que não poderiam viver sem ele”.
FOUCAULT, Michel. Historia da Loucura: na idade clássica. São Paulo: Perspectiva, 2012, p. 63.
14
MACHADO. et al. op. cit. p. 447.
não se constitui no Brasil como uma ideia, uma idealidade discursiva, um simples
efeito ideológico: uma justificação ou legitimação que tem como objetivo ofuscar,
mistificar, obscurecer os mecanismos de dominação de uma classe sobre outra. Sua
ação é muito mais penetrante, eficaz e positiva. Ela atinge diretamente o corpo das
pessoas; é uma realidade que desempenha um papel de transformação dos
indivíduos, assumindo o encargo de sua vida, gerindo sua existência, impondo uma
norma de conduta a um comportamento desregrado. Denota, assim, a presença da
medicina em um aspecto da realidade que até então lhe era estranho, desconhecido,
exterior. Através da psiquiatria o médico penetra ainda mais profundamente na vida
social, dá as cartas em um jogo que passa a existir segundo regras por ele mesmo
criadas.15

Dessa forma, a psiquiatria penetra na sociedade com suas normas, que tornam dócil o
comportamento dos indivíduos, tendo como seu instrumento básico o hospício. Segundo
Machado, na ação dessa medicina com a loucura tudo converge para esse espaço de reclusão.
Essa estrutura de reclusão se concentra em transformar a vida de um tipo específico de
desviante. Para a existência de uma doença mental se faz necessário um tratamento moral, o
que faz da intervenção da psiquiatria ser mais uma questão de educação do que uma questão
de medicalização16.
Dessa maneira, percebe-se que tanto para Michel Foucault quanto para os autores de
Danação da norma, o discurso científico pode torna-se instrumento de controle e
normatização social. Foucault sempre guardou reservas quanto às verdades provenientes dos
diversos saberes. Para o autor, não se pode comparar a verdade com separações instituídas
arbitrariamente em torno de contingências históricas. Separações que são modificáveis, que
estão em perpétuo deslocamento e “[...] que são sustentadas por todo um sistema de
instituições que as impõem e reconduzem; enfim, que não se exercem sem pressão, nem sem
ao menos uma parte de violência” 17.
Em suas formulações sobre a história dos saberes, Foucault sempre destacou a
pluralidade heterodoxa de circunstâncias que culminam na institucionalização de um saber em
detrimento com alguma concepção teleológica de uma consciência e de uma razão que
progressivamente vai se apoderando das coisas e livrando-se da obscuridade que a precedia.
Em Nietzsche, a genealogia e a história, Foucault contrapõe uma genealogia à história. A
genealogia opõe-se aos desdobramentos meta-históricos das significações ideais ou
teleológicas, seu objetivo seria “[...] marcar a singularidade dos acontecimentos, longe de toda
finalidade monótona; espreitá-los lá onde menos se os esperava [...]”, sem, portanto, tentar

15
MACHADO. et al. Danação da norma. p. 447.
16
Ibid., p. 448.
17
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de
dezembro de 1970. Tradução: Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Loyola, 2009. p. 10-13.
“[...] traçar a curva lenta de uma evolução, mas para reencontrar as diferentes cenas onde eles
desempenharam papéis distintos [...]”18.
Foucault está ciente de que em cada acontecimento está implicada “[...] uma relação
de forças que se inverte, um poder confiscado, um vocabulário retomado e voltado contra seus
utilizadores, uma dominação que se enfraquece, se distende, se envenena e uma outra que faz
sua entrada, mascarada”19. Não se trata, portanto, de um desenrolar necessário da própria
verdade. Isso quer dizer que não existe um grande discurso contínuo e silencioso que se pode
restituir, que é necessário dar forma a um descontínuo existente no mundo ou que há uma face
legível que caberia decifrar através do pensamento, pois não há significações prévias
cúmplices do conhecimento humano20. Deve-se, portanto, “[...] conceber o discurso como
uma violência que fazemos às coisas, como uma prática que lhes impomos em todo caso; e é
nessa prática que os acontecimentos do discurso encontram o princípio de sua regularidade”21.
Partindo dessa concepção, as análises propostas por Foucault opõem-se à “[...] história
tradicional das ideias onde, de comum acordo, se procurava o ponto da criação, a unidade de
uma obra, de uma época ou de um tema, a marca da originalidade individual e o tesouro
indefinido das significações ocultas”22.
Nesse contexto, para Foucault, a psiquiatria surge enquanto discurso médico
constituído e aceito somente após as práticas de internamento compulsório iniciadas no século
XVII. Em História da loucura, o autor irá relatar fatores que no século XVII e XVIII
determinaram o enclausuramento de indivíduos que não se adequavam ao modelo social
almejado por uma classe favorecida e que, por isso, foram internados e submetidos a um
poder institucionalizado e regido por regras próprias. Comentando o decreto de fundação do
Hospital Geral de Paris na metade do século XVII, Foucault escreve que “[...] não é um
estabelecimento médico. É antes uma estrutura semijurídica, uma espécie de entidade
administrativa que, ao lado dos poderes já constituídos, e além dos tribunais, decide, julga e
executa”23. O Hospital Geral é, portanto, “[...] um estranho poder que o rei estabelece entre a
polícia e a justiça, nos limites da lei: é a terceira ordem de repressão”24.

18
FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a genealogia e a história. In: Microfísica do poder. Organização e tradução
de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 2007. p. 15.
19
Ibid., p. 28.
20
FOUCAULT. A ordem do discurso. p. 52-53.
21
Ibid., p. 53.
22
Ibid., p. 54.
23
FOUCAULT. História da loucura. p. 50.
24
Id.
Algumas representações sociais da loucura

Partindo da ideia de que representações sociais são saberes do senso comum


elaborado e compartilhado de forma coletiva com o objetivo de interpretar o real. A loucura
aparece no contexto descrito no presente trabalho como forma de expressão de uma sociedade
e de seu contexto social, alvo das mais diferentes significações que foram ao longo da história
se transformando. Ligada inicialmente ao biológico, a loucura foi representa no decorrer dos
séculos como algo perigoso, contagioso, relacionado na maioria dos casos ao sistema nervoso,
uma doença hereditária, o que permitiu a tais representações a administração da interação
cotidiana desses indivíduos. Tais representações por parte de familiares, ou mesmo pela
sociedade na qual esta inserida o doente mental é fortalecido pelo discurso médico. Tipos de
discursos que contribuíram para a distinção do que é considerado normal ou não,
dissocializando os indivíduos, gerando conflitos de ordem pública e privada, seja com seus
familiares e/ou com médicos e demais indivíduos da sociedade, uma vez que impede a
retomada, por parte dos loucos, de suas atividades no cotidiano e de um lugar social e
humanizado para seu tratamento.
Quando a família afirma sobre outro membro da família que este é louco, se limite o
acesso desse indivíduo a determinadas zonas da vida social. O que permite que as
representações sobre a loucura adquiram um conjunto de valores na sua maioria excludentes,
representando um universo não social, sem direito à voz e/ou a um tratamento adequado.
Afirma o psicólogo Serge Moscovici sobre a diferenciação que há entre indivíduos normais
daqueles considerados loucos que tal discurso fortalecido pela ciência, “institucionalizado
pela medicina, validado pelos preconceitos” retira do ciclo social pessoas identificadas com
qualquer tipo de distúrbio psicológico. Ainda segundo o psicólogo, “o louco assinalava a
presença de um outro mundo, de uma coletividade diferente ou de uma dimensão diferente da
coletividade; ele revelava a fragilidade dos valores que se julgava imutáveis” 25
. Daí a
importância dos hospitais e manicômios, que recebiam pessoas com ou sem distúrbios
psicológicos, que não eram aceitos na sociedade e que visto como perigosos, estando ali
internados, passavam a não oferecer nenhum tipo de perigo à sociedade.

25
MOSCOVICI, Serge. A representação social da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1978, p. 133.
Considerações finais

De maneira geral, o presente trabalho buscou analisar os processos que


caracterizaram o surgimento de um saber, sua posterior institucionalização e os impactos aos
quais submete os indivíduos. Para tanto, procurou-se apresentar de forma breve o processo de
surgimento da psiquiatria no Brasil a partir do desenvolvimento da medicina social, e algumas
representações sociais da loucura ao longo dos anos. A utilização da obra Danação da
norma, assim como textos de Foucault possibilitaram demonstrar a infinidade de eventos e de
relações de poder que estão implicados na emergência de cada discurso, desqualificando
qualquer tentativa de demonstrá-la enquanto o resultado de uma causalidade necessária.
Espera-se que o presente trabalho tenha permitido ao leitor refletir sobre a relação
existente entre saber-poder e as representações que a loucura assume ao longo da história,
seus embates diante de um saber constituído, evidenciando assim a importância da discussão e
a não naturalização do tema.

REFERÊNCIAS

FOUCAULT, Michel. História da loucura: na idade clássica. Tradução: José Teixeira Coelho
Neto. São Paulo: Perspectiva, 2004.

______. Nietzsche, a genealogia e a história. In: Microfísica do poder. Organização e


tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 2007. p. 15-37.

______. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de


dezembro de 1970. Tradução: Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Loyola, 2009.

MACHADO, Roberto. et al. Danação da norma: Medicina social e constituição da psiquiatria


no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1978.

MOSCOVICI, Serge. A representação social da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

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