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CALAFATE, Pedro (org). História do pensamento filosófico português: As Luzes.

Lisboa:
Editorial Caminho: 2001. Volume III.

SEGUNDA PARTE

CAP I – O conceito de filosofia: o recuo da metafísica

→ [pp. 125-137] A Filosofia das Luzes invade todos os campos do saber. Ela é
enciclopédica [125], interessa-se por todas as matérias, é marcada por uma “ausência de
fronteiras” no que tange ao conhecimento. Deseja compreender tudo. Seu cariz,
portanto, é “omnicompreensivo”. Há de ser ressaltado que os conhecimentos que ela
fomenta carregam “propósitos pragmáticos”, de “utilidade”, pois que a Filosofia das
Luzes expressa um “sentimento de insatisfação perante uma realidade anterior que
importava superar a todo custo, a fim de libertar a humanidade, mediante o poderoso
feixe de luzes traduzido nas conquistas intelectuais modernas” [126]. Desse interesse
amplo, aliado ao império da crítica e ao otimismo, surge uma “efervescência geral dos
espíritos” que de tudo querem saber. A despeito das diferenças doutrinais entre os
“vários iluminismos europeus”, são essas características, relativas à maneira de
conhecer e à praticidade do conhecimento, que conferem unidade ao movimento
ilustrado [127]. Em Portugal não seria diferente. “A filosofia irmana-se com o ideal de
cidadania, naquilo em que ele implica a participação activa do indivíduo na construção
de sua própria felicidade e na dos seus concidadãos” [131]. Voltando ao cariz
“omnicompreensivo” da Filosofia das Luzes, Calafate, corroborando a tese do
“Iluminismo Católico” em Portugal, escreve que “para os nossos teóricos, apenas
existiu um domínio que escapou à filosofia, aliás, por justos motivos: a teologia
revelada, ou seja, o conhecimento que o homem tem de Deus concedido por revelação
e, portanto, por meios superiores à razão natural, abrindo-se, a este respeito, outro
capítulo fundamental do nosso iluminismo católico que era o de tomar como princípio
indiscutível a verdade da revelação e, consequentemente, a falsidade dos conteúdos da
razão quando se lhe mostrassem contrários” [135]. Mas a mesma postura ilustrada a
respeito da revelação não se fez presente em outros países? Pensamos que sim.

CAP II – O conceito de filosofia: o triunfo da física e a crítica ao “espírito de


sistema”

→ [pp.139-157] Alicerçando o otimismo dos novos tempos, a crença na “potencialidade


transformadora da filosofia” e a “despromoção da metafísica”, “está a afirmação da
metodologia experimental emanada da revolução de Galileu, a qual encontrará em Isaac
Newton um modelo de desenvolvimento amplamente venerado pelos teóricos das Luzes
europeias do século XVIII, e em John Locke a respectiva aplicação à teoria das ideias
[...]”. Em Portugal, a voz que difundiu esse ideário foi a de Verney, na década de 1740.
Ele privilegiou “uma física em linguagem matemática mas apoiada em uma sólida base
experimental, que fornecerá agora o critério de constituição da verdade, pondo em
primeiro lugar a experimentação em detrimento da dedução lógica dos efeitos a partir
das causas, ou ‘hipóteses’ gerais” [139]. Eis como se deu, em terras lusas, a crítica ao
aristotelismo e ao espírito de sistema. Ao saber “fechado” e “estável” dos antigos, ávido
na busca pela “essência” das coisas, surgia uma concepção de “saber em permanente
processo de revisão e aperfeiçoamento, inquietação que encontra no ecletismo a sua
mais característica atitude”. Ato contínuo, estabelecia-se que nenhuma teoria poderia
dar conta de tudo. Como disse Verney, alegando-se moderno: “o jurar determinada
doutrina é o primeiro impedimento a toda sorte de estudos”. “Este é o sistema moderno:
não ter sistema. Livre de paixões, cada filósofo propõe as suas razões sobre as coisas
que observa”. O único mestre é a física e a clareza, o cálculo, secundados pela
conjectura e pela analogia [140]. “Está-lhe, pois, associada uma ideia de liberdade e
independência intelectual que é um dos mais dinâmicos motores deste século,
generalizado à globalidade dos nossos iluministas”.

Segundo Calafate, o “iluminismo católico” português decreta que a “liberdade da razão


pára perante os mistérios da fé, não lhe cumprindo questioná-los”. Mas essa não seria
uma atitude dos ilustrados em geral? [141].

A crítica ao espírito de sistema nos diz que o conhecimento se estabelece, não se


constata baseando-se em “hipóteses fundamentais”. É um “erro explicar o universo
pelas causas em vez de começar pelos efeitos”, assim como “o ter começado pelas
ideias abstractas em vez de começar pelas ideias simples”. O método moderno é custoso
e demorado. “Um tal projecto, porém, tendo em vista o enquadramento epistemológico
das Luzes, não poderia ser obra de um homem mas de muitas gerações, suspeitando-se,
mesmo assim, que estaríamos perante uma tarefa para sempre incompleta” [145].

“Perante a despromoção daquele ‘vício’ do racionalismo metafísico do século XVII, o


objectivo da física é, agora, sobretudo o de, partindo da observação ‘dos objectos reais’,
comparar as suas propriedades e generalizar as suas relações, fixando sempre ‘os limites
que não deve exceder a abstracção’. Os referidos limites não excluíam, como vimos, a
parte mais sublime da física que recorria à álgebra, nem a necessidade de através da
física conseguir o filósofo provar a existência de uma Primeira Causa, como também fez
Newton, ao introduzir a finalidade na física; referiam-se sim à necessidade de nos
abstermos de ‘indagar imprudentemente as essências da cousas’, devendo antes
contentarmo-nos em deduzir das suas propriedades ‘aquilo que nos pode ser útil’,
dirigindo-nos assim, em propósitos utilitários e pragmáticos, sempre ‘à felicidade do
género humano’” [146].

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