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5.

Discurso e identidade:
teoria, método, análise

Teorias do Texto: Enunciação, Discurso e Texto


1º semestre de 2016
Prof. Dr. Paulo Roberto Gonçalves Segundo (FFLCH-USP)
paulosegundo@usp.br
Modelo tridimensional de análise discursiva:
olhando para dentro da ordem do discurso
discursos (padrões de
representar)*

Engendramento Inculcação
ou Encenação
Ordem
do Interdiscurso
Discurso
gêneros (padrões estilos (padrões
de agir) de ser)
*Cuidado: Há dois usos diferentes do termo discurso. O Discurso entendido de forma ampla, como prática de geração de sentido,
como coerção estrutural sobre produção e interpretação do sentido, e o discurso, como padrões semióticos de representação da
realidade, como o discurso neoliberal, o discurso machista, o discurso de esquerda.
Sobre Identidades: olhar sociodiscursivo
Segundo Moita Lopes (2002: 34),

[...] a construção da identidade social é vista como estando sempre em processo, pois é dependente
da realização discursiva em circunstâncias particulares: os significados que os participantes dão a si
mesmos e aos outros engajados no discurso

Nessa perspectiva, identidades não são propriedades de indivíduos, mas sim construções sociais,
suprimidas ou promovidas de acordo com a ordem social. Logo, as pessoas têm identidades sociais
múltiplas na sociedade.

Mercer (1990: 57, apud Moita Lopes, 2002: 36): as identidades sociais são estruturadas ‘como uma
língua’ no sentido de que podem ser articuladas em uma gama de posições contraditórias de um
contexto discursivo ao outro.

Por conseguinte, as identidades emergem na interação entre os indivíduos agindo em práticas


discursivas particulares, nas quais estão posicionados – Tensão entre estruturação e agência.
Sobre Identidades: olhar sociodiscursivo
Para Moita Lopes (2002: 55),

A percepção do discurso como construção social coloca as pessoas como participantes nos processos
de construção do significado na sociedade e, portanto, inclui a possibilidade de permitir posições de
resistência em relação a discursos hegemônicos, isto é, o poder não é tomado como monolítico e as
identidades sociais não são fixas.

Moita Lopes arrola, em consonância com Bruner, Hall, Shotter, dentre outros, três traços
característicos das identidades sociais:

a. fragmentação;
b. contradição;
c. processualidade.
Sobre Identidades: olhar sociodiscursivo
a. Fragmentação: as pessoas não possuem uma identidade social homogênea. Identidades
são complexas e não podem ser explicadas por apenas um elemento.
Isso coloca em questão o papel das relevâncias contextuais (situacionais e sócio-históricas) na
ativação/desativação, visibilização/invisibilização, promoção/repressão de aspectos identitários.

b. Contradição: as identidades sociais emergem na dependência de práticas discursivas e


sociais diversas nas quais as pessoas agem e são posicionadas. A complexidade de práticas e
de posicionamentos pode levar à inculcação de traços identitários, muitas vezes,
contraditórios.
Isso coloca em questão a relação entre identidade e (auto)representação e a questão da inserção do
sujeito em redes interligadas de práticas.

c. Processualidade: identidades sociais não são fixas; elas estão em permanente


(re)construção enquanto produzimos significação. Segundo Sarup (1996: 47 apud Moita
Lopes, 2002: 63), a identidade é necessariamente incompleta, interminável – é o sujeito em
processo [...] [é] construída na e através da linguagem.
Isso coloca em questão os processos mentais de identificação e de autoimagem e o papel da língua
nessa dinamicidade configuracional.
Sobre Identidades: olhar psicossocial
Modernidade tardia
Giddens (1991): reflexividade  um fenômeno diretamente envolvido com a contínua geração de
autoconhecimento sistemático. Nesse sentido, tem-se na atualidade um sistema pelo qual o pensamento e a
ação são constantemente refratados entre si, de modo que as práticas sociais são continuamente examinadas
e reformadas em razão das informações renovadas sobre essas próprias práticas, o que permite ao ator social
alterar, sucessivamente, o caráter e a natureza dessas mesmas práticas. Como corolário, entende-se que “todas
as formas de vida social são parcialmente constituídas pelo conhecimento que os atores têm delas” (Giddens,
1991: 45).

Os discursos de especialista têm construído identidades particulares que podem atuar como formas de
(des)controle do comportamento do indivíduo.
[Talvez o exemplo mais emblemático, atualmente, seja a repercussão identitária do discurso sobre gênero (gender)]

Desse modo, a identidade dos indivíduos torna-se resultado de uma construção reflexiva, de caráter
autoconfrontador, baseada nesses saberes sobre as práticas sociais e nos valores associados a elas, de modo
que o agente social vê-se impingido a posicionar-se, discursivamente, mediante esse sistema, contestando,
chocando-se com, confirmando ou mantendo as classificações, posturas, atitudes e ações engendradas nas
práticas em que se envolve.
Sobre Identidades: olhar psicossocial
Para Giddens (2002: 20),
A auto-identidade constitui para nós uma trajetória através das diferentes situações institucionais da
modernidade por toda a duração do que se costuma chamar de “ciclo de vida” [...] Cada um de nós
não apenas “tem”, mas vive uma biografia reflexivamente organizada em termos do fluxo de
informações sociais e psicológicas sobre possíveis modos de vida.

1. O ‘eu’ é visto como um projeto reflexivo, pelo qual o indivíduo é responsável. “Somos não o que
somos, mas o que fazemos de nós mesmos” (p. 74), mas há processos psicológicos que
fornecem parâmetros para a organização do ‘eu’.
2. O ‘eu’ tem uma trajetória de desenvolvimento, na qual ele se apropria do passado, filtrando-o à
luz da antecipação do futuro.
3. A reflexividade do ‘eu’ é contínua e se estende ao corpo.
4. A autoidentidade pressupõe uma narrativa.
5. A autorrealização envolve equilíbrio entre oportunidade e risco, autenticidade e
empoderamento.

Um estilo de vida pode ser definido como um conjunto mais ou menos integrado de práticas que um
indivíduo abraça, não só porque essas práticas preenchem necessidades utilitárias, mas porque dão
forma material a uma narrativa particular da auto-identidade (GIDDENS, 2002: 79)
Sobre Identidades: olhar sociossemiótico
Lemke (2008)
1. Identidade como mediadora dos eventos microssociais em que a agência humana se destaca e as
estruturas macrossociais em que as relações agregadas e processos em escalas temporais mais longos são
mais significativos. Ela medeia:
a. Posicionamento em práticas sociais (o termo usado pelo autor é sistema sócio-estrutural), que instaura relações
baseadas em poder, intercâmbio, distribuição de recursos, assimetrias de acesso, expectativas, crenças, valores,
oportunidades, frequência de participação em tipos de atividades, etc.
b. O habitus de disposições corporeadas para ação incorporado e acumulado pelos indivíduos por sua atuação, por
longos períodos de tempo, em redes de práticas em diversas culturas/comunidades.
2. “Nós construímos nossas próprias identidades com base nas opções provenientes de nosso
posicionamento geral e de nossa trajetória particular de experiências, encontros, opções de ação e assim
por diante” (LEMKE, 2008: 21).
3. Identidades desenvolvem-se e mudam; são multifacetadas (ou plurais). Sua consistência e continuidade
são construções, baseadas em nossas noções culturais relativas aos tipos de pessoas (selves) considerados
normais e anormais em nossas comunidades.
[As noções aqui propostas são próximas às já desenvolvidas; contudo, em paralelo a Giddens, há uma ênfase na construção da identidade e
uma valorização da experiência individual, ainda que atrelada a uma rede de práticas]
Sobre Identidades: olhar sociossemiótico
Lemke (2008)
4. Identidades podem legitimar a ideologia dominante de indivíduos autônomos como moralmente responsáveis
pelas suas ações e pelas consequências de vida de suas escolhas cumulativas.
5. Tipos identitários (masculino x feminino; cis x trans; hétero x homo x bi; operário x empresário; criança x adulto;
negro x branco x indígena; etc.) tendem a reproduzir defasagens representacionais, que supersimplificam a
diversidade inerente a cada um desses “polos”.
[Eu acrescentaria que tendem a ofuscar o fato de que ninguém é monoidentitário e que a contradição e composicionalidade identitária é
um fato complexo]
6. Noções tradicionais de identidade apagam o papel do desejo, do medo, da raiva e de outros sentimentos em
modelar formas de ação e reduzir ou ampliar a performance identitária, que acabam sendo analisados em
termos de conformidade ou não a um grupo de opções identitárias socialmente distribuídas. Pensar, por
exemplo, no que ocorre, identitariamente, com alguém que é oprimido (ou, de forma oposta, apoiado e
estimulado) reiteradamente por sua identidade de gênero ou orientação sexual.
7. Noções de identidade tendem a enfatizar invariância em vez de mudança, unidade em vez de multiplicidade,
apagando seu dinamismo e fixando determinados discursos a elas associados, forjando estereótipos.
8. “Identidades são contestadas não somente no sentido de que há conflitos sobre os tipos de identidades que
podemos admitir/reivindicar para nós mesmos, mas também há conflitos sobre os tipos de identidade que
podemos conceber para nós e quais identidades, em qualquer sistema de práticas heteroglóssicas, nós podemos
lutar para estabelecer em nós mesmos” (LEMKE, 2008: 31, itálicos do autor).
[O que me parece essencial aqui é, por um lado, perceber que identidades – e os possíveis estilos delas decorrentes por inculcação – são
efeitos de um conflito hegemônico e que há luta por quais identidades são possíveis, na medida em que isso tem reflexos na estrutura
social, econômica e política (pensar na questão das ações afirmativas por exemplo) e, por outro, pelo fato de que a performance identitária
é altamente cerceada pela rede de práticas e que há conflitos nesse ajuste]
Sobre identidade e tradição: relações possíveis
Tradição e identidade (Giddens, 1997; Thompson, 2008; Gonçalves Segundo, 2011)

1. A tradição consiste em um conjunto de práticas e representações sociais que operam local e


coercitivamente, assumindo uma orientação para o passado, que exerce forte influência sobre o
presente, de modo a atuar também como meio de organização do futuro. Pressupõe persistência,
integridade, organicidade e autenticidade, envolvendo memória coletiva, ritual, verdade formular,
guardiães e conteúdo moral e emocional.

2. Define-se a partir de quatro aspectos: o hermenêutico, relacionado à esfera representacional


(ideacional) e à atribuição de um sentido ao mundo; o normativo, concernente à esfera acional e à
rotinização das práticas; o legitimador, referente à esfera acional e interpessoal e ao
estabelecimento e reconhecimento de autoridade e poder; e, por fim, o identificador, que se
relaciona tanto à esfera estilística e interpessoal identitária quanto ao processo de formação da
identidade individual e coletiva.
Sobre identidade e tradição: relações possíveis
Tradição e identidade (Giddens, 1997; Thompson, 2008; Gonçalves Segundo, 2011)

3. As transformações sociais advindas da formação do Estado Moderno e, mais recentemente, do


processo de globalização, acentuado pelo desenvolvimento dos meios de comunicação, acarretaram
um enfraquecimento dos aspectos normativo e legitimador da tradição, dado que se questiona a
verdade formular e, consequentemente, a rotinização e as autoridades associadas a ela. Assim, a
tradição vê-se convocada a justificar-se discursivamente, e o diálogo ou o fundamentalismo
consistem em suas formas preferenciais de defesa.

4. O desenvolvimento midiático, por outro lado, ao expandir o processo de difusão, altera a natureza
da tradição, já que a dota de meios de fixação, despersonalizando-a e acentuando seu processo de
desenraizamento. Em consequência disso, possibilita a criação de ‘grupos comunitários’ virtuais,
livres das fronteiras espaciais, que podem adotar ─ total ou fragmentariamente, em um continuum ─
estilos de vida ou tradições diferentes daquelas com que convivem na vida cotidiana, o que lhes
proporciona a possibilidade de transformar, manter, recriar e/ou abandonar seus próprios estilos de
vida, mediante a autoconfrontação constitutiva do processo reflexivo.
Sobre estilos e inculcação
Fairclough (2003); Archer (2000)

Estilos são modos sociossemióticos de ser/aparentar. Eles podem ser resultado da inculcação
representacional.
[Não se trata da noção de estilo identificada na proposta do Círculo bakhtiniano acerca do gênero]

Fairclough propõe considerar o processo de identificação em relação à identidade social e à


identidade pessoal (personalidade).

“As pessoas são posicionadas involuntariamente como Agentes Primários por causa do modo como
nasceram, de forma que, inicialmente, eles não tinham escolha alguma – plebeu ou nobre, operário
ou classe média, homem ou mulher, suas posições na distribuição social de recursos [...] Poucas
pessoas, na sociedade contemporânea, permanecem nos limites desses posicionamentos, mas sua
capacidade de transformá-los depende da sua reflexividade e de sua capacidade de se tornaram
Agentes Incorporados, capazes de ação coletiva e de mudança social. Alcançar identidade social em
sentido pleno é uma questão não só de assumir papéis sociais, mas de personificá-los, investindo-
os com a personalidade própria, representando-os de forma distintiva” (Fairclough, 2003: 160-1).
[Vê-se aqui a tensão entre a identidade social e pessoal, eterna discussão para a qual respostas claras ainda inexistem]
Sobre estilos e inculcação
Fairclough (2003: 208; negritos meus)
“A inculcação, no jargão corrente, é uma questão de as pessoas passarem a ‘possuir’ discursos, a
posicionarem-se dentro deles, a agir, a pensar, a falar e a ver-se em termos dos novos discursos. A inculcação é
um processo complexo e, provavelmente, menos seguro que o engendramento (encenação). Um estágio em
direção à inculcação é o recrutamento retórico (rhetorical deployment): as pessoas podem aprender novos
discursos e usá-los para certos propósitos enquanto, ao mesmo tempo, distanciam-se – de forma consciente –
em relação a eles. Um dos mistérios da dialética do discurso é o processo por meio do qual o que começa
como um recrutamento retórico consciente torna-se ‘posse’ (ownership) – como as pessoas tornam-se
inconscientemente posicionadas no seio de um discurso. A inculcação também envolve aspectos materiais:
discursos são dialeticamente inculcados não só em estilos, modos de usar a língua, mas também são
materializados em corpos, posturas, gestos, modos de movimentar-se e assim por diante”.

Das relações previstas entre os componentes do interdiscurso – discursos, gêneros e estilos – e dos processos
envolvidos entre representação e ação (encenação), por um lado, e entre representação e identidade
(inculcação), por outro, este último é o menos garantido e pode chegar a nunca realizar-se.

Estilos envolvem aspectos fonético-fonológicos; mobilização de vocabulário e de metáforas específicas; grau de


comprometimento em relação a dadas concepções de realidade; disposições corporais típicas.
Um caminho para a análise identitária, de um ponto de vista discursivo, é estudar a autorrepresentação de
tipos identitários em narrativas autobiográficas.

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