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Música e liturgia na religiosidade popular cristã:

um enfoque sociocultural 1

José Reinaldo Felipe Martins Filho2

Resumo: A proposta deste estudo consiste em apresentar a expressão religiosa do canto


litúrgico, apontando para a experiência idiossincrática advinda da religiosidade popular,
seus elementos culturais e o modo como se torna um objeto de estudo para a Sociologia
da Religião. Para isso, pretendemos 1) compreender os aspectos socioculturais que
perpassam a dinâmica da vida religiosa, particularmente manifesta pela música oriunda
da religiosidade popular; 2) considerar a religiosidade como fator determinante da
cultura e uma das maiores marcas identitárias de uma sociedade; e 3) sublinhar o valor
da experiência religiosa enquanto geradora de vida social, sobretudo por seu caráter
eminentemente coletivo. Émile Durkheim, sobre a coletividade da vida religiosa, e
Max Weber, a partir de uma concepção individualizante da religião, nos servirão de
fundamento teórico.

Palavras-chave: Música. Canto. Religiosidade. Sociologia da Religião.

1
Orientadora: Adriana Duarte de S. Carvalho. Doutoranda em Ciência Política pela Universidade Federal
de São Carlos (UFSCar). Mestre em Sociologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita
Filho (UNESP). Graduada em Ciências Sociais pela mesma instituição. Tutora do Claretiano – Centro
Universitário. E-mail: <adrianatutora.claretiano@gmail.com>.
2
Mestrando em Filosofia pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Especialista em Sociologia e Ensino
de Sociologia, pelo Claretiano – Centro Universitário e em Docência do Ensino Superior, pela Faculdade
Brasileira de Educação e Cultura (FABEC). Bacharel em Filosofia, pelo Instituto de Filosofia e Teologia Santa
Cruz. Licenciado em Filosofia, pela Faculdade Católica de Anápolis (2011). E-mail: <jreinaldomartins@
gmail.com>.

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1. INTRODUÇÃO

Desenvolver uma análise sociológica das comunidades religiosas


do catolicismo brasileiro requer observá-las sob o prisma do cientista
que analisa, coleta dados, descreve e avalia. Nesse sentido, uma autêntica
análise do ser humano, em seu aspecto social e comunitário, não pode
prescindir dos elementos que constituem sua identidade, sua cultura. A
religiosidade surge com papel determinante, moldando consciências e
refletindo o arquétipo do pensamento de toda uma época – particular-
mente, a época contemporânea. Tratar a sociedade requer considerá-la em
seu aspecto religioso. Se, de um lado, com as caravelas colonizadoras, o
cristianismo desembarcou, pela primeira vez, nessas terras pós-atlânticas
– aflorado por milhares de missionários católicos e protestantes que, de
vários modos, trouxeram a crença cristã aos povos latinoamericanos –, de
outro, vigente nas práticas indígenas dos Astecas, dos Maias e de tantas
outras civilizações que há muito habitavam esse “Novo Continente”, a ex-
periência religiosa já havia imprimido ao povo que aqui se desenvolveria
uma de suas mais determinantes marcas identitárias. A América das cores,
das tradições e da variedade cultural é, portanto, a mesma da diversidade
religiosa.
Com efeito, afirma Bastian (cf. 1997), sob o pretexto de compreen-
der o sentido da religião para a sociedade contemporânea, a Sociologia
da Religião se propõe a redefinir seu objetivo no interior das sociedades
secularizadas. De sua parte, isso não pode ser concretizado partindo de
um olhar provinciano de uma modernidade pensada a partir da Europa.
Antes, devem-se pensar os limites da secularização e, quiçá, desenvolver
aproximações comparativas entre os modelos desenvolvidos pelos teóri-
cos da sociologia e os elementos extraídos da religiosidade popular. Como
nos adverte Isambert (1992, p. 13), “[...] falar de religião popular é sempre
contrapô-la a outra coisa, a uma outra forma de religião”.
Ao longo da maior parte do século 19, caracterizavam-se com a no-
ção de religiosidade popular tudo o que, de alguma forma, representasse o
supersticioso, o grosseiro, o curioso, o vulgar (cf. CESAR, 1976, p. 7). Em

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nossa investigação, optamos por concordar com Süss (1979), quando, de
modo pertinente, defende o catolicismo popular e estabelece para ele um
limite frente à religiosidade popular global, tendo em vista que esta “[...]
abrange todos os costumes e vivências religiosas do povo, sejam eles de
origem africana, indiana, protestante, católica, espírita ou pagã” (SÜSS,
1979, p. 28). A religiosidade popular a que nos referimos é aquela que se
identifica, de modo íntimo, à experiência.
A música tradicional cristã, alcançando as parcelas mais populares
de nossa sociedade, consegue expressar as verdades da fé, bem como a ín-
tima relação entre o humano e o divino, tornando-se experiência concreta
na vida de um povo concreto. Isso confirma o nível simbólico atribuído à
música, pois “[...] sólo ella puede expresar, o dicho, directamente encarnar,
justamente en virtud de su carácter abstracto, las regiones más profundas de
nuestro ser, la dinámica de nuestros sentimientos, nuestro inconsciente, la
armonia universal, as verdades transcendentes, etc.”3 (FUBINI, 2001, p.
61). Trata-se de um fenômeno social muito bem retratado por Durkheim
(1975), que se pode notar no seguinte fragmento:

[...] tais representações coletivas são o produto de uma imensa coo-


peração que se estende não apenas no espaço, mas no tempo; para
produzi-las, uma multidão de espíritos diversos se associaram, mistu-
raram, combinaram suas ideias e sentimentos; longas séries de gera-
ções acumularam aí a sua experiência e o seu saber. (DURKHEIM,
1975, p. 216).

Também na música litúrgica dos últimos séculos se pode notar os


sinais dessa representação coletiva. Chegando ao Brasil colonial, o canto
polifônico da missa romana se mudou na polifonia das vozes da folia de
reis ou do Divino, ou mesmo nas congadas, organizadas segundo crité-
rios melódicos semelhantes. A constituição das letras, em sua maioria de

3
Tradução: “[...] somente ela pode expressar, justamente em virtude de seu caráter abstrato, as regiões mais
profundas de nosso ser, a dinâmica de nossos sentimentos, nosso inconsciente, a harmonia universal, as
verdades, etc.” (tradução nossa).

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cunho catequético ou doutrinal, servia como instrumento para a evan-
gelização de povos, na maioria das vezes, impossibilitados de alcançar

recursos como a alfabetização. As frases e versos das folias, dos ofícios,


das contemplações dos mistérios do terço, propagavam-se sob a forma da
repetição memorizada. Reproduziam-se os louvores religiosos de maneira
automática, nos moldes da propagação oral e coletiva. Em termos socio-
lógicos, enquanto ser de relações e mediações sociais, a religiosidade é um
importante dado na constituição do homem, aferindo-lhe novas perspec-
tivas comportamentais, sobretudo nos ditames da ética. Isso repercutirá
diretamente sobre sua interação com o grupo social ao qual pertence, re-
configurando o comportamento do próprio grupo (cf. VAN DER POEL,
1992).

2. A CONTRIBUIÇÃO DA SOCIOLOGIA DA RELIGIÃO


Durkheim e o caráter coletivo

Vários autores da Sociologia se dedicaram ao estudo das religiões.


Dentre eles, destaca-se Émile Durkheim, que, a despeito dos demais, con-
siderou-a sob o prisma das sociedades pequenas, nas quais a religião pode
ser considerada como uma “coisa social” (ÓDEA, 1969). Para esse autor,
no que se refere à questão religiosa, um questionamento firma-se como
primordial, qual seja: a diferença entre o sagrado e o profano. Durkheim
é bastante enfático ao afirmar que:

[...] o sagrado e o profano foram sempre e por toda a parte conce-


bidos pelo espírito humano como gêneros separados, como dois
mundos entre os quais nada há em comum [...] uma vez que a noção
de sagrado é, no pensamento dos homens, sempre e por toda a par-
te, separada da noção de profano; [...] mas o aspecto característico
do fenômeno religioso é o fato de que ele pressupõe uma divisão e

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bipartida do universo conhecido e conhecível em dois gêneros que
compreendem tudo o que existe, mas que se excluem radicalmente.
As coisas sagradas são aquelas que os interditos protegem e isolam;
as coisas profanas, aquelas às quais esses interditos se aplicam e que
devem permanecer à distância das primeiras. (DURKHEIM, 1991,
p. 20).

Conforme esse relato, a participação na ordem do sagrado, dada nos


rituais ou cerimônias, nos cantos ou danças místicos, confere um prestígio
social todo especial, ilustrando uma das funções da religião, que pode ser
definida como um sistema unificado de crenças e de práticas relativas às
coisas sagradas. Tais práticas unificam determinado grupo social, cons-
tituindo-o como comunidade moral – uma das características do que se
entende por “igreja” – através do compartilhamento coletivo de crenças,
essenciais ao desenvolvimento da religião. Nesse sentido, o ritual (e, por
ele, também as práticas litúrgicas) deve ser considerado um mecanismo
para reforçar a integração social. Durkheim conclui que a função subs-
tancial da religião é a criação, o reforço e a manutenção da solidariedade
social. Enquanto persistir vida em sociedade, persistirá a religião (cf. TI-
MASHEFF, 1971) – e não há forma de religiosidade mais autêntica que
aquela oriunda da experiência comunitária.
O objetivo que impele o esforço do sociólogo em As formas elemen-
tares da vida religiosa pode ser definido como a busca por “[...] saber qual
a religião mais primitiva e mais simples” (DURKHEIM, 1975, p. 205).
Noutras palavras, aquela que mais se aproxima da origem remota da expe-
riência religiosa, ainda não contaminada com influências estranhas e ulte-
riores. Para isso, almeja definir o que convém entender por religião, para
que não haja generalizações descabidas, ou denominações inadequadas de
religião como qualquer “[...] sistema de ideias e práticas que nada teria de
religioso, ou deixar de lado fatos religiosos sem perceber sua verdadeira
natureza” (DURKHEIM, 1975, p. 205). Antes de tudo, deve-se prestar
à acuidade do investigador rigorosa cautela ao procurar definir uma reli-
gião como a primeira ou, ainda, ao tentar apresentar um sistema de ideias

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como religioso. É imprescindível para a Sociologia realizar uma profunda
análise dos sinais exteriores, que permitem reconhecer o fenômeno reli-
gioso, onde quer que se encontre, impedindo que seja confundido com
outro fenômeno. Na verdade, segundo aponta Durkheim, os seres huma-
nos foram obrigados a criar a noção do que é religião e religioso, mesmo
que não acreditem, em sentido estrito, em alguma religião específica; nós,
seres humanos, precisamos “[...] representar, de alguma maneira, as coisas
no meio das quais vivemos, sobre as quais a todo o momento emitimos ju-
ízos e que precisamos levar em conta em nossa conduta” (DURKHEIM,
1975, p. 206). Tratar a vida social impõe, nalguma medida, examinar a
experiência religiosa como doadora de sentido social.
Na tentativa de relacionar as análises de Durkheim acerca do fenô-
meno religioso e o que procuramos deduzir partindo da experiência reli-
giosa popular, vale a pena considerar o seguinte fragmento: “[...] é preci-
so começar por retroceder até a sua forma [da religião] mais primitiva, e
mais simples, procurar dar conta dos caracteres pelos quais ela se define
neste período de sua existência” (DURKHEIM, 1975, p. 207). Devemos
admitir que há algo de arcaico e/ou primitivo4 na religiosidade popular,
algo que lhe confere anterioridade às práticas estabelecidas e firmadas
institucionalmente. Aliás, tratando da origem dos rituais, não podemos
prescindir do fato de que nasceram da fusão das culturas, da incorporação
de diferentes valores culturais, manifestos pela música, pela dança, pelos
símbolos concretos, como forma de representação coletiva. De uma forma
brilhante exprime o autor:

Na base de todos os sistemas de crenças e de todos os cultos deve


necessariamente haver um certo número de representações funda-
mentais e de atitudes rituais que, malgrado a diversidade das formas
que umas e outras puderam revestir, em todas as partes têm a mes-
ma significação objetiva e em todas as partes preenchem as mesmas
funções. São estes elementos permanentes que constituem o que há
de eterno e de humano na religião; eles são todo o conteúdo ob-
jetivo da ideia que se exprime quando se fala de religião em geral.
(DURKHEIM, 1975, p. 208, grifo do autor).

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Note-se, sobretudo, o seguinte trecho: “[...] são estes elementos per-
manentes que constituem o que há de eterno e de humano na religião”.
Mas o que significa, na linguagem de Durkheim, esse “eterno” na religião?
Penso que, em primeiro lugar, seja de crucial importância distanciá-lo da
figura do divino, de um eterno absoluto, imutável e criador, de uma força
cósmica da qual tudo provém e em relação à qual todas as coisas firmam
dependência direta. Trata-se, pois, do conceito de eterno compreendido
em termos sócio-históricos, como a permanência, sempre latente, de toda
atividade humana, desde suas origens mais arcaicas. A religião é um dos
elementos que possibilitam a compreensão dessas “representações funda-
mentais” do ser humano enquanto indivíduo, tomando-o ainda antes de
sua abordagem em sociedade. Assim, “o que há de eterno” na religião se
confunde com o que nela “há de humano”, como que as duas faces de uma
mesma moeda, os dois componentes de um mesmo enfoque temático. A
religiosidade, portanto, antepondo-se à própria constituição social – de
algum modo gerando-a – se apresenta como um dos mais ricos aspectos
culturais da humanidade, definida por Durkheim como “[...] expressão
abreviada da vida coletiva inteira” (cf. DURKHEIM, 1975, p. 224). Nela
se encontram todos os elementos da vida coletiva. Mais que isso, pode-
mos nomeadamente afirmar que a religiosidade constitui a vida coletiva,
determinando-a.
Aliás, nestes termos conclui Durkheim:

A religião é uma coisa eminentemente social. As representações re-


ligiosas são representações coletivas que exprimem realidades cole-
tivas; os ritos são maneiras de agir que nascem no seio dos grupos
reunidos e que são destinados a suscitar, a manter ou a refazer certos
estados mentais desses grupos. Mas então, se as categorias são de ori-
gem religiosa, elas devem participar da natureza comum a todos os
fatos religiosos: elas também devem ser coisas sociais, produtos do
pensamento coletivo. (DURKHEIM, 1975, p. 212).

Retomamos, de um modo diferente, a mesma questão proposta an-


teriormente. De fato, para usar o trocadilho, trata-se de um assunto “re-

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fletido e repetido” desde o início de nosso texto. Para Durkheim(1975, p.
212), “[...] a religião é uma coisa eminentemente social”. Não se restrin-
gindo a isso, o autor ainda esclarece o motivo que subjaz e dá força ao ad-
vérbio “eminentemente”. Os fenômenos religiosos são representações de
todo um grupo social e, consequentemente, trazem em si as mais profun-
das marcas identitárias do grupo do qual se originam. Ao mesmo tempo,
“[...] como toda instituição humana, a religião não começa em parte algu-
ma” (DURKHEIM, 1975, p. 210), não tem um ponto de início estabele-
cido no horizonte temporal. Daqui se pode compreender a bipolaridade
imposta ao termo “religiosidade”, simultaneamente expresso como fonte
para a vida social, bem como uma de suas características fundamentais. A
religião nasce do ser humano, gêmea do mesmo parto no qual se suscita a
vida em sociedade. Isso significa assegurar que “[...] as representações que
a exprimem têm, portanto, um conteúdo completamente diferente das
representações puramente individuais e pode-se de início estar seguro de
que as primeiras acrescentam alguma coisa às segundas” (DURKHEIM,
1975, p. 216).
Em se tratando de religiosidade, são as representações coletivas que,
por primeiro, conferem sentido às representações individuais, e não o con-
trário. Isso talvez possa ser explicado pelo próprio ideal de transcendên-
cia imposto pelo conceito de religião. A religião visa projetar o indivíduo
para além de si, diante do que a comunidade pode figurar simbolicamente
como o primeiro transcendente. Da comunidade para o indivíduo atuam
as representações religiosas e entende-se daí o seu papel de anterioridade.

Max Weber: um olhar a partir do indivíduo

Por conseguinte, vale, contudo, examinar uma análise diferente da-


quela desenvolvida no tópico anterior. Sobretudo quando nos referimos à
religiosidade popular brasileira, devemos admitir que esta não se limita ao
aspecto comunitário da religião. Pelo contrário, há elementos particulares
e individuais que, aliás, são os maiores responsáveis pela conservação desse

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modelo religioso e por sua transmissão ao longo da história. Trata-se da
idiossincrasia como característica fundamental na análise do fenômeno
religioso. Enquanto Durkheim propõe o contato com o tema religião pelo
viés da comunidade, Max Weber parece representar esse modelo de uma
forma diferente, propondo a leitura sociológica da religião a partir do in-
divíduo religioso.
Se Durkheim preocupou-se com as religiões primitivas, Weber con-
centrou sua atenção nas religiões ditas mundiais, ou seja, aquelas que con-
seguiram atrair um grande número de fiéis, afetando, em larga medida, o
curso global da História. Um ponto de intersecção que talvez possamos
encontrar entre ambos os autores consiste na comum compreensão do ser
humano como ser religioso. Para Weber, as concepções religiosas eram
cruciais e originárias das sociedades humanas, pois o homem, como tal,
sempre esteve à procura de sentido e de significado para a sua existência,
não simplesmente de ajustamento emocional, mas de segurança cognitiva
ao enfrentar problemas de sofrimento e de morte (cf. ÓDEA, 1969). We-
ber procurou buscar na religião os signos de transcendência e de esperan-
ça que ultrapassam os limites da realidade imanente, por vezes tão dura.
Desse modo, a preocupação de Weber estava em destacar a capacidade de
integração racional dos sistemas religiosos mundiais como resposta aos
problemas básicos da condição humana: contingência, impotência e es-
cassez. Segundo esse autor, ao criar respostas para esses problemas – res-
postas que se tornariam parte da cultura estabelecida de uma sociedade –,
a religião influiria diretamente sobre o comportamento de determinado
grupo social, nas atitudes mais íntimas de cada humano e em sua prática
em relação ao restante do grupo. Trata-se de um movimento do indivíduo
para o grupo, e não o contrário.
Os dogmas religiosos e sua interpretação são partes integrantes dessa
visão de mundo. É preciso, pois, entendê-los para compreender a condu-
ta dos indivíduos e dos grupos – no caso de Weber, nomeadamente, a
sua mudança cultural e de modelos cognitivos. No que se refere ao nosso
tema, as práticas tradicionalmente constituídas da religiosidade popular
podem assumir o papel de verdadeiros dogmas, sedimentados no imagi-
nário coletivo a partir de sua apropriação por parte dos indivíduos.

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Weber nas pesquisas de Flávio Pierucci

Partindo das análises de Weber, o sociólogo Flávio Pierucci aponta


para a forte ação da religião como solvente das tradições sociais e o seu
avanço enquanto prática de um indivíduo apartado de seu grupo. Se, de
um lado, o privilégio do caráter religioso comunitário pode passar alheio
aos valiosos aspectos do âmbito individual, de outro, como veremos, a
exacerbada ênfase no indivíduo é capaz de indicar a falência de modelos
religiosos com base universalista, tal como parece ser o caso da religiosi-
dade popular. Isso demonstra Pierucci em seu texto Religião como solven-
te, em que, “[...] em oposição à visão de Durkheim, para quem a religião
atua como religação dinamogênica do indivíduo com a sociedade a que
pertence, sustenta que hoje a força social da religião está na capacidade
de dissolver antigas pertenças e linhagens religiosas estabelecidas” (PIE-
RUCCI, 2006, p. 111). Para esse autor,

[...] a conversão religiosa individual como ruptura individualizante


de laços outrora consolidados é o próprio avesso daquela religião que
tanto impactou Durkheim na fase final de sua produção sociológica,
a saber: uma religião que consagra ritualmente e, nisso, re-atualiza
psicologicamente a antiga coesão de um grupo humano dado. (PIE-
RUCCI, 2006, p. 125).

Em sua argumentação, Pierucci se apropria de duas importantes crí-


ticas dirigidas a Durkheim e ao seu modelo de compreensão da religião. A
primeira, de Raymond Aron (1967 apud PIERUCCI, 2006, p. 125-126),
afirma:

Durkheim diz que a sociedade é criadora de religião quando está


em efervescência. […] Os indivíduos são postos num estado psíqui-
co tal, que sentem forças impessoais ao mesmo tempo imanentes e
transcendentes, e uma explicação da religião como essa embute uma
explicação causal segundo a qual a efervescência social é favorável
ao surgimento da religião. […] Ora, a partir do momento em que o

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culto é dirigido à sociedade, não existem senão religiões tribais ou
nacionais. Com isso, a essência da religião seria a de inspirar aos ho-
mens um apego fanático a grupos parciais e a de consagrar a um só
tempo o apego de cada um a uma coletividade e a hostilidade a ou-
tras. Definitivamente, parece-me inconcebível definir a essência da
religião pela adoração que o indivíduo devota ao grupo, porquanto,
pelo menos aos meus olhos, a adoração de uma ordem social seria
precisamente a essência da impiedade. Afirmar que os sentimentos
religiosos têm por objeto a sociedade transfigurada não é salvar, é
degradar essa experiência humana da qual a sociologia [da religião]
pretende dar conta.

Outra crítica a Durkheim parece importar para Pierucci, qual seja, a


de Clifford Geertz:

Em lugar e no lugar da comunidade solidária agregada por repre-


sentações coletivas (o sonho de Durkheim), apareceu a rede simme-
liana, difusa e privada de centro, conectada por afiliações genéricas,
multidirecional e abstrata. A religião não se enfraqueceu enquanto
força social, pelo contrário. Parece ter-se reforçado no período re-
cente, só que mudou – e muda cada vez mais – de forma. (GEERTZ
apud PIERUCCI, 2006, p. 126).

Ainda que verdadeiras, tais conceituações afirmam uma periculo-


sidade sem precedentes para a religiosidade popular e sua conservação.
Note-se, de passagem, a conclusão feita pelo próprio Pierucci aos argu-
mentos relacionados à visão webberiana de uma religiosidade individual
em oposição ao modelo de Durkheim:

[...] pelo menos no Brasil atual, um dos aspectos mais salientes da


“força social” que ainda tem a religião (não toda e qualquer religião,
notar bem, mas sim um tipo determinado de religião) está justa-
mente nessa sua capacidade estatisticamente comprovada de dissol-
ver antigas pertenças e dilapidar linhagens religiosas estabelecidas.
(PIERUCCI, 2006, p. 126).

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Aqui certamente não se enquadram as práticas religiosas populares,
que, ao contrário, reafirmam laços consanguíneos e conterrâneos, aproxi-
mam gerações ao redor de uma mesma crença constituída como patrimô-
nio cultural de um povo específico.

3. A EXPRESSÃO MUSICAL DA RELIGIOSIDADE POPU-


LAR: UM ENFOQUE

Antes de adentrarmos no universo da religiosidade popular e sua re-


lação com a música, enxerguemos, pois, a forte influência da cultura sobre
nossas atividades cotidianas. Como exemplo, observemos nossas roupas,
nosso modo de pronunciar a língua portuguesa, nossa típica culinária. To-
dos esses aspectos sugerem a riqueza que nos distingue dos demais seres
humanos de maneira geral. Somos humanos como eles, mas humanos ao
nosso modo. Brasileiros, da “Terra verde e amarela”, onde as tradições ru-
rais integram o cenário cultural da zona urbana e, num misto de ruralida-
de e urbanização, modelam o cotidiano de nossas vidas. Nesse sentido, é
muito importante o nosso esforço comum em prol de entender e respeitar
a cultura de nosso povo, sensivelmente expressa pela religiosidade popu-
lar.
Conforme a concepção cristã católica, a liturgia é viva e dinâmica.
Isso significa que o contexto celebrativo, unido ao conteúdo da fé celebra-
da, sempre partirá da realidade concreta, das vivências locais de determi-
nado povo. Daí o fato de existirem celebrações que, apesar de possuírem
um mesmo núcleo comum, herdado da tradição eclesial, também apre-
sentam características próprias de cada localidade. Vejamos, por exemplo,
quantos elementos culturais já estão inseridos nas celebrações populares:
as palmas durante o hino de louvor e o santo, o canto no momento do
abraço da paz, a acolhida fraterna por parte do presidente da celebração.
Vários outros exemplos poderiam ser enumerados. Apesar de o catolicis-
mo brasileiro se distinguir de outras comunidades católicas da África, da
Ásia e do restante do Oriente ou da Europa, por exemplo, não se exclui de

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participar de um mesmo cristianismo católico, com tradições e ritos com
teor universalista.
Ao longo do período que vai do século 14 ao 16, desenvolveu-se no
catolicismo o modelo litúrgico clerical que, com suas novas prescrições
litúrgicas, por sua vez concentradas no intimismo e na prática particular,
provocou o progressivo distanciamento entre aquele que conduz a cele-
bração e os demais participantes. Recordamos, ainda, que foi esse o mo-
delo litúrgico dos primeiros colonizadores enviados ao Brasil, bem como
aquele que prevaleceu, a duras penas, por várias décadas até a reforma li-
túrgica do Concílio Vaticano II, somente realizada no início da década de
60 do último século. Nesse cenário, que já remete ao século XIV, nasce-
ram as práticas populares e devocionais de relacionamento com o sagrado
– sempre crescentes, devido ao desconhecimento da língua latina e, por
decorrência, ao descompasso em relação ao andamento da celebração. Da-
ta-se daí o nascimento da reza do rosário, das adorações ao santíssimo sa-
cramento, das confrarias em homenagem aos santos, das novenas e ofícios
a Maria, enfim, de uma série de práticas que se enquadram no que hoje
denominamos por religiosidade popular. Tais práticas se sucederam nos
séculos, alcançando o período atual. Trata-se de um fenômeno social que
nos coloca em confronto com questões determinantes para a nossa socie-
dade, das quais, por sua importância, pretendemos tratar neste estudo.
Como é possível, por exemplo, explicar o fato de que os versos usa-
dos na década de 1980 por benzedoras da região sul de Minas Gerais em
suas orações contra espinhela caída e quebrante tenham uma origem que
remonta ao século 14? A resposta para tal questionamento está na própria
origem da experiência religiosa popular brasileira, em muito herdada da
colonização europeia e das influências advindas da etnia bantu, africanos
das margens do rio Congo, trazidos ao Brasil como escravos durante o
período escravocrata brasileiro. Com a chegada dos portugueses ao Brasil,
chegaram também duas distintas tradições religiosas, a saber: a oficial, da
Igreja, da universidade e da corte, e a popular, dos analfabetos, pobres e so-
fridos. Na religiosidade popular, a opção se concentrou nos elementos da
tradição oral dos pobres da Europa. Desse modo, mesmo que haja elemen-

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tos na experiência religiosa popular tirados da pregação e das celebrações
oficiais, também existem aqueles que somente se encontram na tradição
oral. Isso inclui desde os elementos seculares dos antigos celtas às contri-
buições advindas dos povos quilombolas e indígenas, partícipes ativos na
construção da nação brasileira. O Bendito de Padre Cícero, por exemplo,
só pode ter surgido no Brasil.
Basta que passemos em revista as variadas letras dos cantos marianos,
oferecimentos dos terços, hinos aos santos padroeiros, folias e congadas,
para tão logo percebermos quão antiga é a sua composição. A esse elemen-
to atribuímos o fato de que, em sua origem, o canto próprio da experiência
popular religiosa se encontra intimamente vinculado à prática litúrgica
institucional da Igreja, sendo ela a sua maior fonte. Hinos compostos na
alta Idade Média são entoados por comunidades interioranas sem que de-
les se reconheça a origem específica. Cantos belíssimos, que expressam a
oração de um povo e que se estendem desde os séculos passados. Como
exemplos, podemos observar as letras dos hinos oferecidos ao Divino, for-
ma carinhosa pela qual é denominado o Espírito Santo. Em sua compo-
sição, muitas delas consideram textos cuja origem remete ao tradicional
Veni Creator Spiritus, de Santo Tomas de Aquino, ainda no século 13. É
assim que, novamente com Fubini (2001, p. 61), devemos concordar que
“[...] a música não pode e não sabe expressar conceitos nem sentimentos
individuais” (FUBINI, 2001, p. 61).
O costume de cantar folias vem da Idade Média. A fórmula Deus vos
salve, existe em francês (na própria oração da Ave Maria, je vous salue Ma-
rie), em inglês, alemão, holandês e, segundo Van der Poel, já é encontrada
na Penísula Ibérica no século 13, por exemplo nos trechos que seguem:

Dios vos salve, Apolônio amigo. / Oí fablar de tu fazienda, vengo


fablar contigo.
Si tu me conosciesses habriés placer comogo, / ca non ando pidien-
do nin só homne mendigo. [...]
Amigo, Dios vos salve!, folgad, sed plasentero! / Cras dise que vaya-
des. Fabladla, non senero;

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mas catad nol’digades chufas de pitoflero: / que las monjas non se
pagan Del abad fasanero. (LIVRO DE APOLÔNIO, apud LO-
PEZ, 1969, p. 136).

Também todos os sete hinos do popular Ofício de Nossa Senhora


(século 15) começam com a mesma fórmula, por exemplo, nas vésperas:
Deus vos salve relógio / que andando atrasado / serviu de sinal do verbo
encarnado (trata-se aqui do relógio de Acaz, que foi sinal da salvação de
Ezequias – cf. Is 38,8ss; 2Rs 20,1-12). Essa mesma fórmula, de origem tão
antiga, entoamos nos cantos tradicionais e populares. Fazemos com que
se torne cultura viva de um povo que exprime sua relação com o sagrado
pelo canto e a música: “Deus vos salve, casa santa, / Deus vos salve, casa
santa! / Onde Deus fez sua morada / onde Deus fez sua morada, ai, ai!”.
Nesse sistema devocional, como salienta Valente (1999, p. 119), “[...] é o
corpo inteiro, caixa de ressonância que fala, emanando energia”. O corpo,
dessacralizado ao longo do período medieval e posto como profano, sím-
bolo de oposição ao sagrado, é devolvido ao seio da expressão litúrgica sob
a forma da dança, da gesticulação. Assim, a música, como na antiga con-
cepção grega de “mousiké”, é tomada como elo integrador das diferentes
formas pelas quais o ser humano se manifesta, como vemos no relato de
Lia Tomás (2002, p. 39), pois “[...] no conceito de mousiké achava-se com-
preendido um conjunto de atividades bem diversas, ainda quando elas se
integravam em uma única manifestação”.

Música e religiosidade: a interpelação entre o divino e o humano

A música é uma forma arquetípica no inconsciente humano, ima-


gem primordial e criadora, energia e configuração de traços que pre-
dispõem as pessoas a certas experiências, sentimentos e pensamen-
tos. (ZUMTHOR, 1985, p. 07).

Na fábula grega retratada pela ópera L’Orfeu, de Cláudio Montever-


di, uma das primeiras óperas de que se tem notícia, a música já apresenta

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a bipolaridade de seu alcance, equacionando, simultaneamente, o poder
de tranquilizar e perturbar, trazer ira e amor. Nesse sentido, segundo
D’Olivet (2002), para muitos povos – e aqui também se enquadram as co-
munidades religiosas contemporâneas – a harmonia, a melodia e o ritmo
não são mais do que o envelope físico de um princípio intelectual conhe-
cido, cuja presença despertou na alma humana um pensamento análogo
e, por esses meios, produziu não apenas o prazer sensorial dependente da
forma, mas também o efeito moral do princípio, o sentimento religioso
do relacionamento interpessoal com a divindade, o compromisso social
com os integrantes de um mesmo corpo social (cf. D’OLIVET, 2002, p.
19). Por isso, entre os elementos que possibilitam uma autêntica interface
de comunicação entre o divino e o humano, podemos apresentar a músi-
ca e seu papel tão pertinente. Neste fragmento, Hoy Hart consegue defi-
nir com maior propriedade o que entendemos pelo conceito de música:
“[...] a música é o primeiro movimento de expressão do ser humano. Atrás
da linguagem ou do canto há uma multiplicidade de expressões e evoca-
ções sonoras, das mais puras e sofisticadas às mais estranhas e primitivas”
(HART, 2004).
A experiência religiosa, com as nuances próprias a cada religião, per-
mite ao ser humano o confronto consigo mesmo, com seu ser mais pró-
prio, um verdadeiro mergulho para dentro de si, sua constituição, seus
valores. Nos termos de Albano (2007, p. 21), “[...] a exploração desse
universo é uma aventura que reconcilia o ser humano consigo mesmo”. O
divino, portanto, mostra-se como o vasto horizonte de confrontos que se
integram no interior do próprio ser humano, em sua constituição e em sua
vivência. Dessa forma, a transcendência necessária à experiência religiosa
implica uma constante descoberta de si mesmo. Nesse itinerário, a música
assume o papel de interface comunicativa, tornando-se o modo pelo qual
a expressão religiosa do indivíduo, na particularidade de sua experiência,
em sua idiossincrasia, estende-se à divindade e à comunidade como um
todo, fortalecendo os laços de unidade e compromissos mútuos entre si.
As palavras de Argaráte parecem bem ilustrar o que evidenciamos. Para
esse autor, “[...] a música explora a profundidade da alma; vai realizando a

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unidade do homem consigo mesmo, criando a unidade dos que se amam”
(ARGARÁTE, apud FONSECA, 2000, p. 29).
O dar-se todo do humano no eterno pressupõe o que designamos
por zona de interface, ou seja, o canal imprescindível para que se estabeleça
a relação intersubjetiva em sua plenitude. Pelas vias do canto, da músi-
ca, da dança, do corpo em sua múltipla constituição, institui-se o salto
necessário para o contato com o grande Outro, o Divino, o Eterno. Os
louvores, as súplicas, a ação de graças, todas essas formas assumem o papel
de comunicação com o divino; trata-se de falar-lhe, de dialogar com Ele.
Nesse processo, a música, por seu caráter de abstração, possibilita o con-
tato com aquele que, em si mesmo, se mostra abstrato. Ainda conforme
Argaráte (apud FONSECA, 2000, p. 29), “[...] a música ressoa no mais
profundo da alma humana, que atrai e põe para fora os sentimentos mais
profundos”.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em tom de finalização, uma figura se apresenta salutar: aquela res-


ponsável pela construção de muitas e muitas conclusões. Figura presente
em nossas comunidades interioranas, das quais emanam profundos en-
sinamentos, não poucas vezes oriundos da simplicidade da vida cotidia-
na, que, também à investigação científica, muito tem a contribuir. Ora,
refiro-me à tecelã, que para ultrapassar as inúmeras adversidades que a
vida lhe impõe, dedica-se, incansavelmente, ao duro trabalho de tecer suas
colchas de retalho. Tecendo colchas, constrói o seu futuro, o futuro cul-
tural de uma nação; constrói a história de um povo, o qual sua produção
abrigará, protegerá e será a garantia de aconchego e afago. Em que nos
assemelhamos à figura da tecelã? Tecer uma colcha não é trabalho fácil.
A cada novo ponto dado é necessário garantir-lhe a segurança e a solidez,
a durabilidade e a beleza, ao que, num cuidado admirável, instaura-se o
trabalho de arrematar. Arrematar não é o mesmo que concluir. Enquanto
ao ato de conclusão está impregnada a interpretação de algo estático e aca-

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bado, fixo e intransponível, ao modo do arremate, erige-se a ideia de uma
mera garantia – mera, pelo fato de que outras virão por sua decorrência.
Assim também ocorre ao findar de um trabalho científico. Não se trata,
à conclusão, de algo estático e acabado, mas de um assegurar de todas as
ideias centrais até então adquiridas, as quais serão o trampolim adequado
para as possíveis construções vindouras. Desse modo, também nas ciên-
cias fazemos arremates. Chegamos, pois, ao momento de, também nós,
arrematarmos o que construímos:

1) Ao longo de nosso texto, frisamos, por várias vezes, o papel que


a música e o canto possuem enquanto agregadores dos diferen-
tes elementos que constituem o homem. Esse aspecto pode ser
definido como dado de sua natureza intrínseca, seu movimento
estruturante e interior. Entretanto, como sabemos, há entre os
seres humanos a necessidade de projetar-se ao outro, seja ele de
ordem concreta ou abstrata (como acontece quando nos referi-
mos ao Outro absoluto, o ser supremo, a divindade). Quanto a
isso, a linguagem dá testemunho, como ponte de acessibilidade
intersubjetiva, do sujeito, enquanto pólo de sentido, ao outro
sujeito, doador de significado: por confirmação ou revogação.
Em unanimidade, os autores abordados concordam acerca da
anterioridade do canto em relação à linguagem oral e, por isso,
a validade de sua função comunicativa. Desse modo, servindo
como referência transcendente do âmbito imanente, a música
e o canto podem ser afirmados como importantes formas de
expressão da religiosidade, enquanto apelo do humano pelo
contato com o divino.
2) A partir da constatação da música e do canto como expressões
da religiosidade, podemos definir o modo como o próprio
conceito de religiosidade, ou melhor, como a religiosidade en-
quanto experiência concreta de um povo, influi sobre o cotidia-
no dos grupos sociais: I) em primeiro lugar, recordo, aos mol-
des da teoria de Durkheim, o papel da religiosidade enquanto
geradora de vida social. O ímpeto pelo senso religioso, comum
a todos os humanos, pode, portanto, ser apontado como um

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dos fatores ou fenômenos mantenedores da vida em sociedade.
Assim, ao mesmo tempo em que se institui a prática religiosa
como uma atividade eminentemente coletiva, firmam-se as re-
lações grupais, solidificam-se os laços comunitários, institui-se
um ethos comum e funda-se uma moral coletiva, capaz de reger
a vida do grupo. Esses traços podem ser apontados como essen-
ciais para a instituição da vida em sociedade (mesmo que ain-
da primitivamente); II) por conseguinte, vale lembrar o fator
determinante da religiosidade sobre a cultura, configurando-a.
Com a mesma intensidade pela qual a religião determina a cul-
tura, esta torna-se ferramenta de manutenção da religiosidade
através da conservação dos costumes, das práticas sociais, das
ideologias religiosas. Assim, o aspecto religioso de certo grupo
social torna-se uma de suas maiores marcas identitárias.

Pela via da religiosidade popular encontramos um dos mais ricos as-


pectos do ser humano, também para a Sociologia, qual seja: sua experiên-
cia religiosa. Notadamente, o rumo para o qual aponta o curso da História
não é dos mais otimistas quando pensamos em uma prática religiosa volta-
da para o social ou para a convivência grupal. Cresce, conforme a ilustra-
ção de Pierucci e Weber, a solvência das comunidades religiosas, das religi-
ões com apelo universalista de salvação, em prol de um relacionamento de
cunho intimista com o sagrado. Fugindo desses parâmetros, a experiência
religiosa popular, a exemplo de outros sistemas religiosos, pode encontrar-
-se à beira de um colapso. Por uma via mais branda, graças à presença de
elementos profundamente individualizantes e da possibilidade de ade-
quação de suas regras – sem a dogmatização e estatização de preceitos – a
religiosidade popular talvez encontre nesse crescente fenômeno um vasto
campo de propagação, firmando permanência num contexto religioso de
maior amplitude. Qual dessas vias será percorrida é um dado que, com
precisão, ainda não podemos prever.

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Title: Music and liturgy in popular christian religiosity: a sociocultural perspective.


Authors: José Reinaldo Felipe Martins Filho.

ABSTRACT: The purpose of this study is to show the religious expression of the
liturgical chant, pointing to the idiosyncratic experiences from the popular religiosity,
their cultural elements and their contribution to the sociology of religion. In this way,
I intend to: 1) understand the sociocultural aspects of this religious life dynamics,
especially manifested by the music stemming from popular religiosity; 2) consider the
religiosity as a determinant factor of the culture and one of the largest of identity marks
of the society; 3) highlight the value of religious experience while generating social life,
mostly by it’s eminently collective character. Émile Durkheim, about the collectivity of
the religious life and Max Weber, starting from a conception individualizing of religion,
will provide the theoretical foundation.
Keywords: Music. Chant. Religiosity. Sociology of Religion.

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