Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Cléa Gois e Silva - Liberdade e Consciência No Existencialismo de Jean-Paul Sartre PDF
Cléa Gois e Silva - Liberdade e Consciência No Existencialismo de Jean-Paul Sartre PDF
http://groups.google.com.br/group/digitalsource
Es ta obr a fo i d igita lizad a pelo gr upo Digit a l Sourc e pa ra proporc ionar, de ma neir a
totalme nt e gr at uit a, o b enefí c io de s ua leit ur a àque les que não podem c o mprá - la ou
àque les que nec es s ita m de me ios eletrônic os par a le r. Des s a for ma, a ve nda des t e e-
book ou até mes mo a s ua troc a por qualq uer cont rapr es t ação é tot a lmente cond enável
em qua lq uer c irc uns t ânc ia. A generos idade e a humildad e é a marc a da d is t r ibuiç ão,
portanto dis t r ibua es t e livro livre me nt e.
Após s ua leitur a cons ider e s e r iament e a pos s ib ilid ade d e adquir ir o or igina l, po is
as s im voc ê es ta rá inc ent ivando o autor e a pub lic aç ão de novas obras .
http://groups.google.com.br/group/digitalsource
http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros
2 Cléa Gois e Silva
REITOR
Jackson Proença Testa
VICE-REITORA
Nitis Jacon de Araújo Moreira
CONSELHO EDITORIAL
Leonardo Prata (Presidente)
Aylton Barbieri Durão
José Benedito Iglesias Prestes
José Eduardo de Siqueira
José Vitor Jankevicius
Lúcia Sadayo Takahashi
Mary Stela Müller
Paulo César Boni
Raul Jorge Hernan Castro Gómez
Ronaldo Baltar
Corpo Editorial
Leonardo Prota - Editor-Chefe
Isaac A. Camargo - Editor
Ronaldo Baltar - Editor
Campus Universitário
Caixa Postal 6001
Fone/Fax: (043) 371-4674
Londrina - PR - 86051-990
Liberdade e consciência no existencialismo de Jean-Paul Sartre 3
EDITORA UEL
LONDRINA
1997
4 Cléa Gois e Silva
Capa
Isaac Antônio Camargo
Revisão
Patrícia Azoline Soares Corrêa
Montagem e Acabamento
Aparício Lopes Júnior
ISBN 85-7216-069-8
ISBN 85-7216-069-8
Depósito Legal na Biblioteca Nacional
Impresso no Brasil / Printed in Brazil
1997
Liberdade e consciência no existencialismo de Jean-Paul Sartre 5
Página em branco
Liberdade e consciência no existencialismo de Jean-Paul Sartre 7
Agradecimentos da Autora
Página em branco
Liberdade e consciência no existencialismo de Jean-Paul Sartre 9
SUMÁRIO
PREFÁCIO .......................................................................................... 11
INTRODUÇÃO SARTRE E O EXISTENCIALISMO ......................... 15
CAPÍTULO 1
O SER E O NADA ............................................................................... 21
CAPÍTULO 2
O SER DO PARA-SI E SUAS ESTRUTURAS IMEDIATAS:
A INTERIORIDADE DA CONSCIÊNCIA.......................................... 45
CAPÍTULO 3
TEMPORALIDADE E O PARA-SI COMO
TRANSCENDÊNCIA .......................................................................... 61
CAPÍTULO 4
A LIBERDADE ................................................................................... 81
CAPÍTULO 5
A CONSCIÊNCIA ............................................................................... 109
CONCLUSÕES.................................................................................... 121
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................. 133
BIBLIOGRAFIA .................................................................................. 133
10 Cléa Gois e Silva
Página em branco
Liberdade e consciência no existencialismo de Jean-Paul Sartre 11
PREFÁCIO
autora deste livro, que permite que a consciência interrogue o Ser, que o
conheça, o julgue; que permite a consciência de escolher entre objetos, de
escolher entre situações, de se dar um objeto irreal ou imaginário ou uma
emoção. A negatividade do espírito é a maneira de se entender a vida do
pensamento e da própria existência. E é por isto que Sartre nos diz que o
"Para-si não é ser, ele existe". E Cléa nos esclarece que por existir é preciso
entender esta perpétua explosão do ser que se desintrega, que se estilhaça,
mas que leva a consciência à ultrapassagem, a esta infatigável força da
consciência que se distancia de seu objeto para se projetar sobre ele e para
além dele. E por projeto, Cléa nos esclarece, que além deste movimento em
direção ao objeto, visando organizá-lo para um futuro que ainda não veio, a
realidade humana, ela própria, se projeta para satisfazer suas necessidades e
para realizar-se. É por isto que Sartre escreve que "o homem se define por
seu projeto".
O livro de Cléa Gois e Silva destaca ainda como a liberdade se
confunde com a negatividade, ou seja, que o "Para-si e a liberdade" são um
só, que não podem ser distinguidos um do outro. É a liberdade que permite
ao homem de empreender e de realizar a sua essência. Diante da
imprevisibilidade da sua própria liberdade, a consciência se angustia, ou,
dito de outro modo, conforme observa a Cléa, a angústia não é outra coisa
que esta apreensão da consciência diante de seu futuro que ainda não é, que
ela vai fazer e que ela é totalmente livre de fazer. A consciência se
angustia, por conseguinte, diante da sua própria liberdade.
O livro de Cléa Gois e Silva é oportuno e atual, não só para os que se
dedicam ao cultivo da filosofia, mas para todos aqueles leitores que se
interessam pelas questões que giram em tomo da Subjetividade, da
Consciência e da Liberdade.
Creusa Capalb
14 Cléa Gois e Silva
Página em branco
Liberdade e consciência no existencialismo de Jean-Paul Sartre 15
INTRO DUÇÃO
1
Sartre, Jean-Paul, L'Être et le N'éant - Essai d'Ontologie Phénomenologique. Paris, Gallimard,1943, P.
116.
Liberdade e consciência no existencialismo de Jean-Paul Sartre 19
Página em branco
Liberdade e consciência no existencialismo de Jean-Paul Sartre 21
CAPÍTULO 1
O SER E O NAD A
2
Op.cit.p, 11.
22 Cléa Gois e Silva
3
Op. dt.,p, 12.
Liberdade e consciência no existencialismo de Jean-Paul Sartre 23
Entretanto, Sartre diz que não podemos aceitar o idealismo que, apesar
de ter reduzido o ser ao fenômeno e tê-lo suposto coextensivo a ele, errou
ao "subjetivar" o próprio fenômeno e, com ele, o ser. Para Sartre, o ser do
fenômeno é verdadeiramente uma aparição de ser, e como tal deve ser
descrita. Há um fenômeno de ser, que é o ser do aparecer, e que a ontologia
descreverá, tal como se manifesta. Mas, nesta descrição, não se descobrirá
no fenômeno, no existente, um ser com o qual estamos selecionados de
qualquer modo, como se o objeto recebesse ou possuísse seu ser por
participação ou criação. O objeto "é", e nada mais pode ser dito. Como ser,
ele é que se indica a si mesmo, como sendo um conjunto organizado de
qualidades, a condição para qualquer revelação, ser-para-desvendar e não-
ser-desvendado: o ser do fenômeno é a condição e o fundamento do ser, e
não o ser o fundamento do fenômeno. Segue-se que o "ser do fenômeno"
não pode reduzir-se ao "fenômeno de ser"; "o ser do fenômeno excede e
funda, simultaneamente o conhecimento que se tem dele".
O fenômeno sartreano revela uma dimensão ontológica, no sentido de
que ele é um
11
Op. Cit., p. 165.
12
Op. cit., p.429.
30 Cléa Gois e Silva
13
Op.cit., p.61.
Liberdade e consciência no existencialismo de Jean-Paul Sartre 31
14
Op. cit., p. 60.
32 Cléa Gois e Silva
sobre o nada de seu próprio ser, ou que deve ser o seu próprio nada. Esse
ser é o homem: "o homem é o ser pelo qual o nada vem ao mundo" 15.
Segundo Sartre, o nada não se reduz a um mero conceito vazio,
desprovido de sentido. Mas qual é o lugar desse nada?
17
Op. cit., p. 60.
18
Op.cit., p.71.
34 Cléa Gois e Silva
19
Op. cit., p. 59.
Liberdade e consciência no existencialismo de Jean-Paul Sartre 37
20
Op. cit., p. 76.
38 Cléa Gois e Silva
Dizer que "o homem é angústia" significa dizer que ele está ligado por
um compromisso, e se dá conta de que não é apenas aquele que escolhe ser;
é também um legislador, pronto a escolher, ao mesmo tempo que a si
próprio, a humanidade inteira, e não poderia escapar ao sentimento da sua
total e profunda responsabilidade. Esta angústia não nos separa da ação,
mas faz parte da própria ação. A angústia é a tomada de consciência da
possibilidade perpétua de transformação radical de si. Ontologicamente
destinado a agir e a transcender o ser e, portanto, toda a rotina determinista,
o homem dá-se conta de estar "condenado à liberdade", a qual se identifica,
precisamente, por este urgente impulso interior para transcender o
existente. É nesta base que se instala a tendência do homem para fugir de si
próprio, para fugir da sua própria e angustiante abertura interior ao não-ser.
A fuga de si próprio, como pensamento humano, é definida por Sartre
como "má-fé". Tendo em vista que a liberdade é a fonte de angústia do
para-si, o homem tentará escapar do paradoxo de estar condenado à
liberdade, através do comportamento de "má-fé".
A "má-fé" consiste, numa primeira aproximação, em mentir a si
próprio, em construir uma imagem de si ou uma situação — mesmo
intersubjetiva — que não-é. Analisando bem, a má-fé não é, nem poderia
ser, uma verdadeira mentira. Impede-o o fato de que a consciência humana
é substancialmente una. É devido a tal fato que "esse eu que se procura
enganar faz parte do eu que engana" 21. A má-fé "é" mentir a si mesmo.
Entretanto, não é uma pura e simples mentira: o mentiroso nega aquilo que
tem como verdade para si: nega para si mesmo a negação que enuncia. Na
má-fé, acontece o contrário: eu minto a mim mesmo, e creio na mentira que
a mim mesmo digo. Eu sou, portanto, simultaneamente enganador e
enganado: como enganador, conheço a verdade que dissimulo a mim
mesmo, como
21
Op. Cit., pp. 88-89
Liberdade e consciência no existencialismo de Jean-Paul Sartre 39
22
Op. cit., p. 102.
42 Cléa Gois e Silva
extrai das frases que lhe são dirigidas unicamente seu sentido explícito,
objetivo, imediato. Se alguma apresenta conotação sexual, finge ignorar,
faz-se de desentendida. Seu acompanhante lhe parece respeitoso, como as
paredes são azuis ou cinza, ou a mesa é quadrada ou redonda. Sabe do
desejo que provoca no companheiro, mas se recusa a admitir isso de
maneira crua, o que lhe causaria nojo. Contudo, não lhe agradaria ser alvo
apenas do mero respeito. Para que se sinta satisfeita, é necessário um
sentimento que seja inteiramente dirigido à sua pessoa. Quando o homem
lhe segura as mãos, ela consente, mas finge não perceber o gesto. Leva seu
companheiro a enveredar por devaneios sentimentais, enquanto ela retarda
sua decisão. Deixa sua mão entre as dele, sem consentir, nem resistir a esse
ato. Almeja, desta maneira, resguardar sua liberdade de escolher, fazendo
com que ela desapareça, sem ser percebida. Deixa que o outro escolha em
seu lugar: guarda assim, o segredo de sua liberdade. Com esse abandono,
essa metamorfose em coisa, livramo-nos da exigência de decisão: deixamos
que o outro escolha por nós. Segundo Sartre, trata-se de uma escamoteação.
No exemplo do garçom, que representa um papel, Sartre nos chama
atenção para o problema central: "o que somos nós, se temos a constante
obrigação de nos fazer ser o que somos, se somos segundo o modo de ser
23
do dever ser o que somos?" . O homem deve ser algo com o qual
consegue realmente coincidir; se represento uma função, não a sou,
permaneço dela separado, como o objeto do sujeito. Separado por nada,
mas esse nada me isola daquela função, de tal maneira que só posso
imaginar que sou o que ele representa. O garçom tenta "dar corpo" a um
ser-em-si de garçom do café. O paradoxo está em que o homem busca ser
algo sem poder de fato sê-lo: o homem não pode ser um ser-em-si. Como
diz Sartre: "o homem só consegue realizar um em-si
23
Op.cit., p.98.
Liberdade e consciência no existencialismo de Jean-Paul Sartre 43
24
Op. cit., p. 100.
25
Op. Cit., p. 106.
44 Cléa Gois e Silva
Página em branco
Liberdade e consciência no existencialismo de Jean-Paul Sartre 45
CAPÍTULO 2
não o em-si, só pode ser nada, e um nada elucidado num plano ontológico,
como fundamento do para-si.
Sartre desenvolve o tema da seguinte maneira: a concretude mundana
da consciência põe em relevo um fato capital: o homem enfrenta o
negativo, encontra-o em diversas modalidades de comportamento. A
análise do concreto deve, pois, conduzir à origem do negativo.
Sartre dá o primeiro exemplo de comportamento, a interrogação. "Este
homem que eu sou, se o apreendo tal como é neste momento no mundo,
constato que se mantém diante do ser, numa atitude interrogativa" 27. A
pergunta supõe um ser que pergunta, e um ser que é o objeto de pergunta; a
pergunta denota uma "relação primitiva" do homem com o em-si, uma
"relação original da consciência com o ser". Mas esta relação é ambígua,
pois admite duas respostas, a afirmativa e a negativa; coloca-se a
possibilidade de uma resposta negativa, em princípio, pois a situação
daquele que pergunta configura-se como não-determinada: ele não sabe se
a resposta será negativa ou afirmativa. Assim, "a pergunta é uma ponte
lançada entre dois não-seres: não-ser do saber, no homem, possibilidade de
não-ser, no ser transcendente". Em conseqüência, a pergunta encontra a
negação no sujeito, ou seja, o "nada de saber" do sujeito, visto que este
pergunta; e a pergunta também se depara com a negação, no ser
transcendente, ou objeto: pergunto "Se o céu está coberto de nuvens, e
apuro que não, que há um nada de nuvens". Em terceiro lugar, a pergunta
implica a existência da verdade; aqui encontramos a negação, ou o que
Sartre chama "o não-ser da limitação": quando afirmo que tal objeto
apresenta tais e tais atributos, nego-lhe todas as demais características.
Parece que o pressuposto de toda pergunta é o ser e sua afirmação, de
modo que, quando perguntamos, instalamo-nos no próprio seio do ser. Mas
a análise de Sartre revela o contrário: a pergunta manifesta o nada. A
pergunta sobre o
27
Op.cit., p. 38.
Liberdade e consciência no existencialismo de Jean-Paul Sartre 47
28
Op.cit., p.121.
50 Cléa Gois e Silva
29
Op. cit., p. 127.
30
Ibidem.
Liberdade e consciência no existencialismo de Jean-Paul Sartre 51
31
Op. Cit., p. 119.
52 Cléa Gois e Silva
32
Op. cit., p. 32.
Liberdade e consciência no existencialismo de Jean-Paul Sartre 53
tal, este ser não pode existir, senão pela liberdade, e a liberdade é, por sua
vez, aquilo que me faz existir a mim mesmo. O valor não está posto como
um objeto, perante o para-si. O valor constitui, com o para-si, uma só
"coisa" e, como tal, não pode ser conhecido, mas vivido. Poderá ser
objetivado pela consciência reflexiva, ao procurar esta livrar-se da falta que
em si experimenta. Segue-se que o-ser-para-o-valor é totalmente
contingente, pois não pode assentar senão na liberdade: a moral torna-se
inteiramente relativa.
Desde que o para-si, não pode ser, senão nada aniquilador, pelo fato
de o em-si absorver toda a positividade do ser, também o valor não pode
aparecer, senão como um nada, ou uma falta de ser. Porque o ser, sendo o
que é e não sendo senão o que é, exclui a idéia de valor, pelo mesmo
motivo que exclui qualquer relação consigo, ou com outra coisa além de si.
Desta maneira, o valor vem a ser uma propriedade do nada: surge desse
nada, que é o para-si, e traduz o esforço requerido pela impossível ultra-
passagem do para-si, em direção ao em-si, com o fim de se identificar com
ele. O valor é contingente, como o para-si, e, simultaneamente necessário,
como o esforço vão para conseguir a identidade. O em-si é um ato,
destituído de qualquer potencialidade, o que o torna coisa maciça e plena,
matéria pura.
Através do para-si, chegamos à definição da realidade humana, como
falta de coincidência com ela mesma. O deficiente é, portanto,
transcendente em relação ao existente. No exemplo dado por Sartre, a lua
cheia, como totalidade, é o deficiente, que está para lá do crescente da lua e
que, por algum motivo, o transcende. Da mesma forma, o "si", como
identidade do em-si com o para-si, é, como deficiente, perpetuamente
transcendente, em relação ao para-si. Este deficiente, transcendente em
relação a cada para-si, é o que se chama o possível do para-si. O possível
surge, simultaneamente com o para-si, isto é, surge da "descompressão" do
ser. É, propriamente, uma maneira de ser, à distância de si, aquilo que se é.
O para-si não pode ser,
54 Cléa Gois e Silva
portanto, sem ser seguido pelo valor e sem ser projetado no sentido dos
seus próprios possíveis, ou seja, no sentido daquilo que ele é sob o modo de
não ser.
A possibilidade que define o deficiente transcendente apresenta-se
como pertencendo a um ser individual, como um poder. Não se reduz à
realidade subjetiva. Contudo, também não é anterior ao real e ao
verdadeiro; não há mundo dos possíveis, exterior e superior ao ser. O
possível não é nada, se não for o possível de um existente, que sustenta no
seu ser o não ser do seu estado futuro.
O possível surge de dentro do processo nadificador do para-si, e
aparece como um resultado da "descompressão" do ser, como já
assinalamos. Mas esta rígida doutrina do em-si faz com que Sartre exclua a
noção de possibilidade do mundo objetivo, considerado em si mesmo.
A noção do possível é inserida em um contexto que nos aponta para
duas direções. De um lado, o possível indica que a realidade humana é
opção em relação a seu ser, embora, sendo nada, permaneça separada
daquilo pelo qual opta. De outro lado, para que haja o possível, é necessário
que a realidade humana seja outra coisa que não ela mesma, isto é, uma
fenda num mundo do qual o homem se conserva separado. Com esta
distinção entre as duas direções, o para-si se constitui em problema, em seu
próprio ser. Tendo em vista que o homem é o que não é, e não é o que é,
projeta-se para fora de si, tendendo a um sentido, que lhe permanece
inalcançável, que veda qualquer tentativa de reduzir o possível a uma
representação subjetiva e imanente.
Se considerado negativamente, "o possível é uma ausência
constitutiva da consciência, enquanto ela se faz a si própria"; sendo que o
para-si se explica pela privação, ele reclama o possível. O para-si está
separado "por nada", da presença a si, que lhe falta, e que é o seu próprio
possível. Mas, se o considerarmos positivamente, o possível aponta para o
mundo, para a "totalidade do existente no mundo, no sentido de que o para-
si se torna "presença a um certo estado
Liberdade e consciência no existencialismo de Jean-Paul Sartre 55
33
Op. cit., p.149.
34
Op. cit., p. 148.
56 Cléa Gois e Silva
35
Op. Cit., p. 128.
Liberdade e consciência no existencialismo de Jean-Paul Sartre 57
36
Op. cit., p. 148.
58 Cléa Gois e Silva
37
Op. cit., p. 149.
60 Cléa Gois e Silva
Página em branco
Liberdade e consciência no existencialismo de Jean-Paul Sartre 61
CAPÍTULO 3
para-si reside em seu poder nadificante, o homem não pode ser seu
passado, posto que ele já o foi. O passado enquanto em-si foi deixado para
trás, "há uma distância que o corta de mim e o faz recair fora de meu
alcance, sem contato, sem aderências". Assim, como já dissemos, o homem
só pode assumir seu ser-passado pondo-o à distância. Quando o para-si
pretende ser seu passado-em-si, isto implica, em sua própria natureza, uma
negação: "o passado é o em-si que eu sou enquanto ultrapassado". Por mais
que eu queira viver o passado como uma espécie de essência que me
determine, permaneço sendo um passado sem poder vivê-lo. Portanto, a
fórmula do cogito cartesiano deveria ser; penso, logo fui.
O importante é compreender que todas as transformações do para-si
pertencem, também elas, a um passado que subsiste à distância. A
separação entre o para-si e seu passado decorre de uma razão ontológica. A
fórmula, o para-si "é o que não é, e não é o que é, na unidade de um
perpétuo reenvio" 38, é aplicada também ao passado. Então, eu sou meu
passado, e nessa exata medida não posso sê-lo; eu não sou meu passado, e
nessa exata medida posso sê-lo.
A "perpétua ausência de si" atinge a relação do para-si como passado.
Assim sendo, o para-si é presença a si, o que nos leva ao problema do
presente.
Quando se analisa a realidade humana, seja qual for a perspectiva
adotada, depara-se com a contradição básica, o ser e o nada. O meu
presente é ser presente ao em-si de um modo geral; sendo assim, o para-si
define-se como presença ao ser, mas não no sentido de que a presença se
acrescenta à realidade humana: "o para-si se faz presença ao ser ao se fazer
ser para-si". Ora, se o para-si se faz constitutivamente presença, então o
presente entra no mundo pelo homem. O homem é presente ao em-si; o em-
si não é presente ao homem; a presença pressupõe o ser que traz o nada em
si. Por isso, o em-si não pode ser presente, nem passado: o em-si
38
Op. cit., p. 215.
64 Cléa Gois e Silva
39
Op. cit., p.167.
40
Op. cit., p.167.
41
Op. cit., p.172.
42
Op. cit., p.170.
43
Op. cit., p.173.
Liberdade e consciência no existencialismo de Jean-Paul Sartre 65
44
Op.cit., pp. 175 e 177.
45
Op.cit., p. 179.
66 Cléa Gois e Silva
o ser, porque o ser nada tem em si mesmo que possa explicar essa
descompressão interna, esse espraiamento dinâmico do ser na duração,
segundo o ritmo do antes e do depois. A temporalidade só pode,
efetivamente, compreender-se referida ao para-si: terá de ser a estrutura
interna do ser que se aniquila a si mesmo e que é a sua própria aniquilação,
isto é, o modo de ser próprio do para-si: o para-si é o ser sob a forma
tridimensional estática da temporalidade. É, portanto, temporal, unicamente
porque se aniquila.
Dinamicamente, sob o ponto de vista da sucessão, podemos dizer que
o tempo da consciência é "a realidade-humana que se temporaliza como
totalidade e que, em si mesma, é o seu próprio inacabamento". Nesta
totalidade, constantemente procurada e jamais realizada, penetra o nada,
sob a forma de tempo, a fim de destotalizá-la, isto é, de dispersar o ser do
para-si nas três dimensões do presente, do futuro e do passado. A realidade-
humana é uma totalidade que corre atrás de si e, como tal, dá origem ao
tempo: enquanto se recusa, constitui o passado; enquanto ultrapassa a si
mesma, é futuro. Pode-se definir precisamente como recusa do instante,
que levaria a aglutinar a existência num em-si puntiforme, mortal, não só
para a sua espontaneidade, como para a totalidade, necessariamente
desejada e fatalmente inatingida do seu acabamento. Não há instante em
que se possa dizer que o para-si é, porque, justamente, o para-si não é
nunca. A temporalidade, pelo contrário, "temporaliza-se completamente
como recusa do instante".
O para-si é essencialmente temporal, ou o que se temporaliza
necessariamente. Na sua origem, esta temporalização faz um só todo com a
consciência (de) durar. Entretanto, é possível que eu sinta correr o tempo,
que eu me apreenda a mim mesma como unidade de sucessão e que, pela
reflexão, faça dessa duração uma espécie de objeto do conhecimento.
O que nos interessa, nesta parte da análise, é saber que relação haverá
entre a temporalidade original, ou
68 Cléa Gois e Silva
realiza por uma aniquilação, que não lhe vem de fora, mas "que ele mesmo
tem de ser".
É o que passamos a explicar através de uma análise da estrutura do
para-si. Já vimos que o aparecimento do para-si implicava imediatamente
uma dispersão, e, sob este ponto de vista, constituía o fracasso da primeira
tentativa do em-si para se fundar: o para-si perde-se de fora, não só em
direção ao em-si, com o qual tenta em vão identificar-se, mas ainda nas três
dimensões da temporalidade. O para-si, é, portanto, constitucionalmente
estático, isto é, tende, como tal, a procurar o seu ser algures, quer no
refletidor, quando se faz reflexo; quer no reflexo, quando se faz refletidor.
Sob este aspecto, a reflexão aparece como um segundo esforço do para-si
para recuperar o seu ser ou para se interiorizar e se fundar, sendo por si
mesmo o que é; o para-si tenta realizar essa coisa impossível que é fazer do
ser, que se escapa entre os seus próprios dedos, e que é o seu ser, uma
espécie de dado que, finalmente, seja o que é, uma totalidade recuperada na
dispersão extática. Tal é a razão de ser da reflexão: consiste numa dupla e
simultânea tentativa de objetivação e de interiorização.
O fracasso é uma necessidade, e constitui a própria reflexão,
porquanto a tentativa do para-si para se apreender, voltando-se sobre si
mesmo, não consegue fazer que o para-si apareça ao para-si. Deste modo, a
reflexão mostra que o "para-si, que quer fundar-se no ser, não é senão
fundamento do seu próprio nada". Ao mesmo tempo, a reflexão põe em
evidência a existência de duas formas de temporalidade: a temporalidade
original, que define a estrutura do para-si como temporalização, ou
historicidade, e a temporalidade psíquica, que é uma série concreta de
unidades ou fatos psíquicos que se sucedem, à maneira de coisas. E como
se poderá compreender que a reflexão sendo, como tal, apreensão pura e
simples da historicidade, na qual está o seu ser, possa constituir esse tempo
psíquico, feito de uma multiplicidade de objetos que são exteriores uns aos
outros?
70 Cléa Gois e Silva
ser o seu ser; e "a reflexão é um tipo de ser em que o para-si é, para ser a si
mesmo o que ele é. O significado da reflexão é, pois, o seu ser-para". No
"para" está a força que motiva a reflexão impura, que objetiva o complexo
mundo psicológico que povoa a temporalidade. "A reflexão impura é um
esforço abstado do para-si para ser outro, permanecendo ele mesmo".
Como já dissemos, desse modo estabelece-se um "ser virtual", um "mundo
fantasma". Pela reflexão impura, o para-si tenta projetar-se como um em-si,
buscando assim dar determinação ao ser que eu sou. Mas este esforço é
ilusório, e se desfaz na purificação da reflexão impura: "Esse mundo
fantasma existe como situação real do para-si", embora sua existência seja
puramente ideal: aparece como se fosse minha sombra. Incidindo numa
reflexão impura, o para-si procura evitar a nadificação que ele mesmo é.
A reflexão impura fornece uma dimensão essencial do para-si. A
constituição do mundo psíquico, embora seja virtual, elabora um primeiro
esboço de transcendência: nele o para-si tende a tornar-se exterior a si
mesmo, a captar-se como objetividade. A análise das estruturas imediatas
do para-si deve ser complementada com a análise da transcendência. Não
se trata de um acréscimo. O para-si é constitutivamente transcendência, já
que ele é o que não é, e não é o que é. Analisaremos essa nova dimensão da
realidade humana.
Abordaremos o problema que consiste em saber qual é a relação
original da realidade humana com o ser dos fenômenos, ou com o ser-em-
si. Já sabemos que o ser do fenômeno, sendo a plenitude de um em-si, que é
o que é, permanece confinado à sua própria completude; o em-si só se
refere a si próprio, e desconhece qualquer modalidade de relação. Portanto,
o problema da relação passa a ser prerrogativa exclusiva do reino humano:
"O para-si é responsável, em seu ser, por sua relação com o em-si ou, se se
preferir, ele se produz originariamente sobre o fundamento de uma relação
ao em-si" 46. A questão básica, aqui, é a do
46
Op. cit., p. 220.
72 Cléa Gois e Silva
47
Ibidem.
Liberdade e consciência no existencialismo de Jean-Paul Sartre 73
48
Op. cit., p. 33.
74 Cléa Gois e Silva
negativo; antes de ser atingida por qualquer atividade que lhe seja
constituinte, a coisa é o que é, presente à consciência como não sendo a
consciência. O fundamento do conhecimento, a relação original instaurada,
permanece negativo. Como já dissemos, a negação vem ao mundo pelo
para-si; pela negação original, o para-si se constitui como não sendo a
coisa.
O conhecimento constitui o próprio ser do para-si, enquanto ele é,
constitutivamente, presença a..., "enquanto ele deve ser o seu ser fazendo-
se não ser um certo ser ao qual ele é presente". A intencionalidade só é
possível a partir de uma negação original; o para-si aparece a si mesmo,
originária e constitutivamente, como não sendo o que ele não é, a coisa
conhecida. Neste ponto, o para-si está fora de si; a origem da negação
interna reside no em-si: o conteúdo da negação que eu sou, advém-me da
coisa que conheço, e que não posso ser. O para-si define-se de modo
contraditório, por aquilo que ele não é; ele é o vazio em que se destaca o
em si.
Ainda é impossível apreender o sujeito; o cognoscente é tão-só o que
permite que haja um ser-aí do conhecido, uma presença. Afirma Sartre: "A
presença do conhecido é presença a nada, pois o cognoscente é puro reflexo
de um não ser". A presença do para-si ao em-si, além da caracterização de
ausência e privação, é pura identidade negada; o em-si dá-se e põe-se de
relevo sobre um fundo de nada. Sartre designa o conhecimento como sendo
a "pura solidão do conhecido". Se o para-si é pura presença, ele nada
acrescenta ao ser, e também não cria nada, visto que o conhecimento surge
da negatividade.
Sartre analisa, a partir da negatividade, o conceito de "mundo". A
relação do para-si ao em-si não se verifica indistintamente, com este ou
aquele ser: a presença do para-si põe em relevo este ser, e não um outro ser;
essa presença faz com que haja um "isto", mais do que um "aquilo": "isto"
e "aquilo" se destacam sobre um fundo de totalidade. Afirmo
Liberdade e consciência no existencialismo de Jean-Paul Sartre 75
este ser aqui como sendo este ser a partir da presença de todo o ser. A
totalidade é presença, e, enquanto presença, só pode ser instaurada pelo
para-si.
A presença ao mundo do para-si não pode realizar-se senão por sua
presença a uma ou mais coisas particulares, e, reciprocamente, sua presença
a uma coisa particular só se pode realizar sobre o fundo de uma presença ao
mundo 49.
A percepção é articulada a partir desse fundo ontológico, que é a
presença ao mundo, e o mundo se desvela concretamente, como fundo de
cada percepção particular.
O conceito de totalidade sofre uma determinação negativa. Em relação
ao em-si particular, o para-si é o que ele não é; assim impossibilitado de
fixar-se no particular, sua relação com o em-si remete-o à uma totalidade
que o para-si igualmente não pode ser. Isto é feito através da
temporalização. A totalidade permanece totalidade destotalizada, e o ser
mantém-se diante do para-si, como tudo aquilo que o para-si não é. A
negação original é negação radical: o para-si, "sendo o todo da negação, é
negação do todo". O mundo aparece como aquilo que faz com que o para-si
se anuncie a si próprio como totalidade, mas na medida em que o para-si
deve ser a sua própria totalidade no modo de ser da destotalização; o
conhecimento, então, é o mundo. A realidade humana se impõe, como
negação radical, pela qual o mundo se desvela. O mundo se limita a ser
qualquer coisa, como um limite ideal e negativo do ser. Este limite é
explicado a partir do para-si, enquanto ele se apreende, excluído do ser, em
transação com o nada. A realidade humana desvela o ser como mundo, e
esse mundo surge como a possibilidade que o para-si deve ser sem poder
sê-la.
A realidade do mundo, vai manifestar-se de dois modos; no primeiro,
ele se manifesta como totalidade sintética; no segundo, como coleção de
todos os "istos", de todos os em-
49
Op. cit., p.229.
76 Cléa Gois e Silva
50
Op.cit., p.232.
51
Op.cit., p.241.
Liberdade e consciência no existencialismo de Jean-Paul Sartre 77
apreendido como relação pelo ser que é a sua própria relação", enquanto
apreendido pelo para-si.
Sartre organiza os modos como o para-si se relaciona ao em-si, ao
"isto". A relação pressupõe a negatividade, o para-si com o ser no mundo.
Assim, determina-se o que seja a qualidade: "Para que haja qualidade é
necessário que haja um ser para um nada que, por natureza, não seja o ser.
O ser não é em si qualidade" 52. "A relação do para-si à qualidade é relação
ontológica". A quantidade, "sendo pura relação de exterioridade entre os
isto, é ela mesma exterior ao isto e exterior a si própria. Ela é a indiferença
do ser". A beleza
54
Op. cit., p. 230.
Liberdade e consciência no existencialismo de Jean-Paul Sartre 79
55
Op. cit., p. 232.
56
Op. cit., p. 230.
57
Op. cit., p. 132.
80 Cléa Gois e Silva
Página em branco
Liberdade e consciência no existencialismo de Jean-Paul Sartre 81
CAPÍTULO 4
A LIB ERDAD E
60
Sartre, Jean-Paul, L'Étre et le N'éant - Essai d'Ontologíe Phénomenologique. Paris, Gallimard, 1943. P.
698.
Liberdade e consciência no existencialismo de Jean-Paul Sartre 85
pode deixar de ser, nem ser o que não é. O homem, pelo contrário, não é
"si" nem pode sê-lo: é pura presença a si. É justamente o nada, feito ser no
coração do homem, que o constitui livre e que é a sua liberdade, obrigando-
o a fazer-se em lugar de ser. Por esta razão, para o homem, ser é
necessariamente escolher-se: não se trata, para ele, de receber ou de aceitar,
mas de fazer-se por uma escolha que tem caráter inteiramente gratuito.
Desde que é, enquanto é, ele é necessária e totalmente livre. Dessa forma, a
liberdade é propriamente o ser do homem, isto é, "o seu nada de ser" 61.
Com esta análise, Sartre quer, em primeiro lugar, por de lado o
determinismo, incluindo o que pretende associar a liberdade humana ao
determinismo do querer, isto é, ao imperialismo das paixões. As paixões
não têm qualquer poder sobre a vontade, porque então teríamos de
reconhecer no homem dois existentes, dos quais um, dominado pelas
paixões, seria para o outro um puro transcendente, um de-fora. O homem,
ou é inteiramente determinado, o que não tem sentido, pois uma
consciência, motivada pelo de-fora, torna-se imediatamente um de-fora e
deixa de ser consciencial, ou é totalmente livre.
Em segundo lugar, a vontade só pode exercer-se baseando-se numa
liberdade original, que lhe permite constituir-se como vontade, isto é, como
decisão definida, relativamente a certos fins que ela deliberadamente se
propõe atingir com determinados meios. A vontade não pode, portanto,
exercer-se senão dentro do quadro dos fins pré-estabelecidos pelo homem.
Esses fins, não é ela quem os cria; são os que a realidade humana a si se dá
como projeção dos seus possíveis, nos quais pretende completar-se em em-
si-para-si. Não podem ser concebidos, nem como dados vindos de fora
provindos de uma decisão que, de antemão, traçasse ao homem as vias do
seu destino; nem tampouco como expressões de uma pretensa natureza
interior, que o
61
Op. cit., p. 508.
86 Cléa Gois e Silva
homem devesse completar por sua ação. O homem escolhe os seus fins, e,
porque os escolhe, dá-lhes uma existência transcendente, que é como o
termo limite dos seus projetos. Aqui, a existência precede e determina a
essência, isto é, o homem, com o seu aparecimento, define o seu ser,
mediante os fins que a si próprio se confere. É como brota originalmente a
minha liberdade. Este brotar é fundamentalmente existência, "porquanto o
fundamento dos fins que intento, quer pela minha vontade, quer pelas
minhas paixões, não é senão a minha própria liberdade" 62.
Para melhor compreensão, é necessário uma análise do que Sartre
denomina "motivos" e "móveis" da ação. O motivo é a razão que justifica
um ato, ou seja, a apreensão objetiva de uma relação entre meio e fim; o
móvel, pelo contrário, é subjetivo porque traduz o impulso dos desejos, das
emoções e das paixões. Esta distinção envolve várias dificuldades, porque,
quando motivo e móvel se juntam na mesma decisão, não se chega a dar
conta da relação que possa haver entre eles. Convém esclarecer que não
pode haver motivação ou motivo em si mas somente em relação ao projeto
de uma ação, e, conseqüentemente, em relação aos fins que a consciência já
se deu a si mesma, aos quais ela se prende e dos quais se suspende sob a
forma da afetividade. Esta, que corresponde rigorosamente ao móvel, é
irracional, porque é, para o homem, pura consciência (de) si como projeto
mais ou menos firme, ou apaixonado, em direção a um fim. O móvel, o
motivo e o fim são, portanto, três aspectos inseparáveis de uma consciência
vivente e livre, projetando-se para as suas possibilidades. Os motivos só
podem compreender-se em função de um móvel, ou seja, de um fim ou de
um projeto À os motivos e o móvel não se encontram no mesmo piano,
como termos em conflito. Mas creio que Sartre erra, quando faz do móvel,
do projeto ou do fim, um puro irracional, a expressão de uma absoluta
62
Op. cit., p. 521.
Liberdade e consciência no existencialismo de Jean-Paul Sartre 87
63
Op. cit., p. 508.
88 Cléa Gois e Silva
64
Op. cit., p. 516.
65
Op. cit., p. 540.
Liberdade e consciência no existencialismo de Jean-Paul Sartre 89
Sartre não deixa claro se essa dupla escolha, que de fato é uma só,
funda-se sobre si mesma, ou se tem as suas razões. Pois, a fadiga é
suportável ou não segundo eu mesma. Eu defino o seu valor e isso me
define a mim, no meu ser a fadiga é uma realidade vivida; eu existo na
minha fadiga ou existo na minha resistência à fadiga, conforme a escolha
que faço de mim. Sartre afirma que as razões ou os motivos são simples
reflexo da escolha original. Mas qual é a natureza dessa escolha? Ela pode
ser racional ou afetiva. Pois eu sempre sou devolvida a mim mesma, na
dualidade interna de um ser que tem não somente de se escolher a si
mesmo, mas também de "me" escolher, em "mim" mesma, dentre as
diversas possibilidades da minha própria realização.
A consciência de me escolher traduz-se, em mim, pelo sentimento da
angustia e da responsabilidade. De um lado, os meus possíveis são
continuamente ameaçados pela minha liberdade futura e, por outro lado,
apreendo a minha escolha, isto é, apreendo-me a mim mesma como
injustificável, desde que o meu ser é radicalmente contingente e pela minha
liberdade assumo necessariamente essa contingência. A minha escolha não
se funda em nenhuma realidade anterior, como já disse. Pelo contrário, ela
é que deverá fundar, para mim, o sentido do meu ser e do mundo. Assim,
tenho consciência, não só do compromisso necessário e absolutamente
contingente que pesa sobre mim, como tenho consciência da ameaça sob a
qual me encontro, de me poder escolher como não sou. "Abandono,
angústia e responsabilidade são os sentimentos que assaltam
permanentemente a minha consciência, ora às escuras, ora
66
Op. cit., p. 542.
Liberdade e consciência no existencialismo de Jean-Paul Sartre 91
67
Op. cit., p. 543.
68
Op. cit., p. 515.
92 Cléa Gois e Silva
Eu estou condenado a ser livre, pelo fato de me ter sido dado o ser
sem meu consentimento, e sem razão, e por me ver obrigado a
assumi-lo ao fazer-me. Todas as minhas razões mergulham nesta
absurdidade fundamental 69.
69
Op. cit., p. 561.
70
Op. cit., p. 567.
Liberdade e consciência no existencialismo de Jean-Paul Sartre 93
71
Op. cit., p. 574.
94 Cléa Gois e Silva
somos separados das coisas por nada, apenas por nossa liberdade; é
ela que faz com que haja coisas com toda a sua indiferença, sua
imprevisibilidade e sua adversidade, e que nós sejamos
inelutavelmente separados delas, pois é sobre um fundo de
nadificação que elas aparecem e se revelam como ligados umas às
outras 72.
É claro que o para-si nada acrescenta às coisas; não poderia jamais ser
princípio constituinte das coisas, posto que a realidade humana constitui-se
como projeto de si; e, pelo projeto da liberdade, a facticidade é trazida para
dentro da esfera da realidade humana, determinando, assim, a ambigüidade
da situação. Se o homem se faz absolutamente livre e responsável por sua
situação, ele só é livre em situação. Isso acontece de tal forma que é como
se o projeto da liberdade conseguisse lançar o nada, de tal modo que o
mesmo nada passasse a ser anterior ao em-si; a facticidade é a projeção
nadificadora. Dizer que o homem está condenado a ser livre é o mesmo que
afirmar que ele está obrigado a nadificar a tudo e a todos.
Desde que a liberdade é necessária, total e infinita, o homem terá que
suportar sobre os ombros o peso do mundo inteiro. É responsável por si e
pelo mundo, não na sua existência, mas na sua maneira de ser, visto que
não pode deixar de ter consciência da sua imputabilidade quanto aos
acontecimentos e à configuração do mundo. Imensa
72
Op. Cit., p. 591.
Liberdade e consciência no existencialismo de Jean-Paul Sartre 95
77
Op. cit., p. 609.
104 Cléa Gois e Silva
78
da facticidade" . Entretanto o homem jamais poderá instalar-se
tranqüilamente nessa dimensão de si: o para-si que o constitui não cessará
de se insurgir contra esse empastamento, contra esse deslizar na
viscosidade, contra essa solidificação petrificada em coisa. "A má-fé não é
um refúgio de completo repouso, e o artifício em que ela incorre nos traz
sempre mergulhados num Irremediável mal-estar". Este mal-estar nasce do
horror pelo viscoso, isto é, no plano ontológico do temor, que experimenta
o para-si perante o risco de naufragar na facticidade do em-si. Este tipo de
ser, de fato, não existe, senão como em-si-para-si, e é representado
unicamente pelo viscoso.
É um ser ideal que eu repilo com todas as minhas forças, mas que
me acompanha como o valor me acompanha no meu ser; um ser
ideal, em que o em-si não fundado tem prioridade sobre o para-si, e
a que chamaremos Antivalor 79.
o homem se perde como homem, para que Deus possa nascer. Mas
a idéia de Deus é contraditória e nos perdemos em vão. O homem
é uma paixão inútil 80.
80
Op. cit., p.738.
106 Cléa Gois e Silva
81
Op. cit., p.722.
82
Sartre, Jean-Paul. L'Existentialisme est un Humanisme. Paris, Nagel, 1954. P 27.
Liberdade e consciência no existencialismo de Jean-Paul Sartre 107
Página em branco
Liberdade e consciência no existencialismo de Jean-Paul Sartre 109
CAPÍTULO 5
A CONSCIÊNCI A
83
Sartre, Jean-Paul, L'Être et le N'éant - Essai d'Ontologie Phénomenohgique. Paris, Gallimarcl,1943.
P.28.
84
Op.cit. pp. 32-33.
Liberdade e consciência no existencialismo de Jean-Paul Sartre 111
85
Op. cit., p. 123.
Liberdade e consciência no existencialismo de Jean-Paul Sartre 113
86
Op. cit., p. 710.
87
Op. cit., p. 711.
88
Op. cit., pp. 711-712.
114 Cléa Gois e Silva
nadificação do ser". O para-si, então, não pode ser o nada "em geral".
Trata-se de uma "privação singular", privação neste ser "aqui". O que
Sartre entende como "privação singular" é o seguinte:
89
Op. cit., p, 712.
Liberdade e consciência no existencialismo de Jean-Paul Sartre 115
ser conciliado, visto que o para-si só é pelo em-si. Assim, Sartre acaba
afirmando a primazia do ser sobre o nada e negando uma possível
primazia do nada sobre o ser. Mas, dessa maneira, o para-si não pode ser
pensado ontologicamente, não tendo sentido falar-se em "o ser e o nada".
Se Sartre quisesse, de fato, atingir o fundamento do para-si, teria que
admitir, além da primazia do ser sobre o nada, uma primazia do nada sobre
o ser, só assim poderíamos "pensar" a contradição, que é o "para-si". Se o
em-si apresenta-se como fundamento do para-si, o que é fundado não pode
ser confundido com o fundamento, e permanece irredutível ao fundamento,
na medida em que não é o fundamento. Há uma dimensão, presente no
para-si, que se revela irredutível ao fundamento, do contrário teríamos uma
identidade. Portanto, na medida em que o para-si é outro que não o em-si,
ou é diferente do em-si, o para-si não tem fundamento pois não se pode
pensar a diferença do diferente do em-si.
Mas Sartre afirma que o para-si é tal "que ele tem o direito de se voltar
sobre a sua própria origem". Segundo Sartre, isto é possível porque o para-
si é interrogação, ele é um "por que?". A interrogação encontra no nada a
sua origem e fundamento. Ora, se se afirma que o nada pode ser origem e
fundamento, a justificativa ontológica do para-si depende não só do
pensamento do ser, mas também do pensamento do nada. Sartre, de fato,
aponta o nada como uma das "vertentes" do para-si. Portanto, mais uma vez
a ontologia do para-si é vedada. Pois, de um lado, o em-si não pode ser dito
e, de outro, o próprio Sartre teria que elaborar uma "ontologia do nada",
para explicar a origem, o elemento original do para-si.
O problema é que Sartre deveria explicar ontologicamente a
ambigüidade radical do para-si. Ora, se o para-si deriva do em-si,
reconhece-se no ser o seu fundamento; mas a fundamentação não pode ser
desenvolvida já que o em-si não pode ser dito. Portanto, nem sequer uma
"participação" pode ser estabelecida a partir do fundamento. O importante
seria encontrar um fundamento do
Liberdade e consciência no existencialismo de Jean-Paul Sartre 117
CONCLUSÕES
se nega como fato e, assim, sobrepassa-o, e está mais além dele. O eu recai
na condição do em-si e, ao morrer, o para-si se transforma inteiramente em
algo já feito.
No entanto, existe. O para-si está diante de si como passado e,
portanto, não pode ser determinado por si mesmo como passado, como
essência. Observe-se que o eu não pode alterar seu passado, no sentido de
fazer com que o que sucedeu não haja sucedido, ou que as ações efetuadas
não tenham sido efetuadas; mas depende de sua própria escolha o
significado que o eu der ao seu passado. Toda influência exercida pelo
passado é exercida porque se escolhe que o seja.
A liberdade, segundo Sartre, pertence à estrutura mesma do para-si.
Neste sentido está-se "condenado a ser livre": somos livres pelo fato de que
somos consciência, não podemos escolher entre ser livres ou não. Mas, se
podemos escolher, e até mesmo nos enganarmos, o homem é totalmente
livre; não pode o homem deixar de escolher. Comprometer-se de algum
modo, seja qual for, compromete idealmente a todos os seres humanos. A
responsabilidade é inteiramente sua. O dar-se conta desta total liberdade e
responsabilidade vem acompanhado da "angústia", um estado de ânimo que
nos coloca à beira de um abismo, que nos atrai ou repele. O homem pode,
pois, enganar-se, adotando alguma forma de determinismo, assumindo a
responsabilidade sobre algo alheio à sua própria escolha — Deus, sua
formação, qualquer coisa. Mas se assim o faz está de má-fé, isto é, a
estrutura do para-si é tal que o homem pode estar em um estado, como o de
conhecimento, e num estado como o de desconhecimento,
simultaneamente!
Quanto mais radicalmente se têm consciência da liberdade, mais
podemos ver a nós mesmos, como sendo o que não somos (nosso passado).
Então, o homem cobre com um véu, para si mesmo, a total liberdade, e dá
origem à angústia. A impressão que se tem é que, para Sartre, todas as
ações humanas são absolutamente impredizíveis, como
Liberdade e consciência no existencialismo de Jean-Paul Sartre 131
Referências Bibliográficas
Bibliografia
BLAIR, R. Imagination and Freedom in Spinoza and Sartre, in Journal of the British
Society for Phenomenology, vol. nº 2, 1970, pp. 13-16.
OLSON, R.G. Introdução ao Existencialismo. Trad. Djalma Forjaz. Ed. Brasiliense, São
Paulo, 1970.
SARTRE, J-P. Esquisse d'une Théorie des émotions. Paris, Herman, 1960.
WAHL, J. Sur l’Introduction à L'être et le N'éant, in Deucalion, vol. 3, 1950, pp. 143-
166.
Fim
136 Cléa Gois e Silva
Impressão e Acabamento
Editora da Universidade Estadual de Londrina
Campus Universitário
Caixa Postal 6001 - CEP: 86051-990
Fone/Fax: (043) 371-4674 Londrina - Paraná
http://groups.google.com.br/group/digitalsource
http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros