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Johanna Drucker
[Tradução livre de Paula Mastroberti1]
In: MITCHELL, W. J. T; HANSEN, Mark B. N. Critical terms for media studies. Chicago:
University of Chicago, 2010, pos. 249 – 456.
A arte é a exploração do medium.
Ogden, Richards e Wood. The foundations of Aesthetics. [Tradução livre de Paula Mastroberti].
A arte é um conceito notadamente difícil de definir. A condição de rebeldia da
atividade artística contemporânea desafia as noções de arte como uma classe de
objetos ou conjunto de práticas. Artistas plásticos já não se limitam à utilização de
mídia e materiais tradicionais, de modo que a identidade da grande arte1 não pode
mais ser assegurada simplesmente por conta dessas práticas. Ícones, temas e
tecnologias relacionadas à cultura midiática da comunicação surgem com frequência
crescente nas obras de arte, de modo que não há divisão clara entre aquilo que
aparece nas mídias populares e o que a grande arte estabelece como temática ou
motivo de atelier.
Ao mesmo tempo, as ideias do que é um artista ou qual é o papel da arte mudam
constantemente. Noções clássicas de beleza, harmonia e proporção já evanesceram
em grande parte, juntamente com as exibições que valorizavam a habilidade formal;
ou, pelo menos, eles já não são requisitos para que uma obra de arte seja assim
considerada. Tornaram-se igualmente ausentes as expressões de sentimentos
ternos, religiosos e os temas espirituais, e mesmo gêneros outrora familiares como o
retrato, a paisagem, e também as naturezas mortas. Em suma, as características que
distinguiam uma obra de arte2 dos objetos comuns das mídia populares ⎯ o uso de
materiais especiais, determinados tipos de imagens e aspirações em direção a
valores mais elevados não são mais definitivos.
O momento fundamental de transição para a arte moderna veio com a Revolução
Industrial. Mas, na cultura ocidental, as noções sobre arte têm uma longa história e
uma breve visão geral poderá fornecer algumas pistas sobre o duplo legado que
parece ter confundido nossas atuais ideias sobre "arte". A produção tradicional das
artes decorativas tem sido envolvida em uma discussão turbulenta causada, às
1
Traduzi a expressão fine arts em inglês, que defina o que chamaríamos tradicionalmente de “belas-
artes” por grande arte, eventualmente belas-artes, quando esse termo corresponder a uma visão
condizente com seu período histórico. O termo fine arts refere-se ao gênero de artes encontrado ou
consagrado pelo sistema de artes constituído por críticos e curadores, dentro do espaço institucional
reconhecido pela sociedade como museus, galerias e seus eventos de exposição. Em português não
temos mais um termos específico correspondente, ou algo como artes sofisticadas, desde que a
expressão belas-artes caiu em desuso em virtude da obsolescência do conceito de arte como
expressão do belo.
2
No original, fine arts. Porém, em nome dos princípios de coesão e coerência, substituí pela
expressão metonímica obra de arte, devido a comparação com a expressão a seguir, objetos comuns
(em inglês, ordinary objects).
vezes, pelo conflito entre a mídia massiva3 e a grande arte. Nesta história, mídia
significa duas coisas: os materiais de produção e o amplo contexto da cultura
midiática4.
Do período moderno ao contemporâneo, a crença predominante é que o que
identifica e distingue a grande arte é a exclusiva capacidade dos artistas em atribuir
a ela a expressão formal ao pensamento imaginativo. É pouco provável que este
princípio vá desaparecer, embora tenha sido consideravelmente alterado; a grande
arte prossegue agora, como em outras vezes, como uma prática ou atividade de
produção de objetos raros. Para traçar o conceito de arte como uma categoria
viável, vários rastros precisam ser seguidos: as atitudes em relação à meios de
produção em si e da produção de imagens, o papel e função da arte e o conceito de
artista.
Nas culturas tradicionais, as técnicas e atividades da grande arte não são
distinguíveis de outros tipos de formas-dadas. Olaria, roupas e objetos religiosos ou
cerimoniais são muitas vezes feitos e decorados elaborada e cuidadosamente, sem
se apresentarem separados de suas funções culturais ⎯ seculares ou sagradas.
Indivíduos com talento artístico certamente são apreciados desde o mundo antigo e
os tempos clássicos; escultores e pintores ganharam fama e reputação por meio de
suas obras, mas a arte era uma conceito associado à techne, ou às habilidades
aplicadas. O talento individual não estava ligado à expressão de uma experiência
pessoal ou de um sentimento. Os modos e motivos da estética clássica seguiam
ditames formais. Alguns artistas são reconhecidos em sua individualidade através
relatos históricos e associações (por exemplo, Praxiteles, um escultor que trabalhou
no século IV aC), mas a ideia moderna de originalidade é de origem mais recente.
Nos mosteiros medievais e ateliers, não havia distinção entre as habilidades
artísticas ou sua especialização. Iluminação, caligrafia, elementos pictóricos,
desenho ou encadernação, bem como o trabalho de vitrais, escultura em pedra e
outras artes aplicadas contribuíam da mesma forma para a decoração de igrejas e
todas eram consideradas altamente artísticas. A imaginação era um valor ainda
desconsiderado em tais atividades. Manuais práticos sublinhavam a perfeição
técnica, oferecendo receitas para preparação de tintas ou modelos para serem
copiados. Tapeçarias e tecidos finamente elaborados, móveis e objetos decorativos
serviriam a patronos ricos e poderosos apenas quando surgiram, nas vilas e cidades,
uma expansão econômica e a emergência de um estado político, proporcionando o
desenvolvimento de um mercado de obras não comissionadas ou controladas. A
noção de arte oferecida como mercadoria ou como um bem autônomo era até
3
No original, “mass media”. Embora eu discorde do termo “mídia massiva”como conceito para as
artes produzidas para a indústria e os canais de comunicação social, mantive a tradução conforme a
autora.
4
Não temos em português uma tradução específica para a palavra media, que, em inglês, é o plural
de medium. Assim, mídia aqui traduz duas acepções: mídia como medium (materiais usados ao longo
das operações artísticas tradicionais) e mídia em sua acepção lata, ou seja, meio de comunicação do
sentido da obra de arte, ou seja, do seu conteúdo informativo ou representativo.
5
Aqui mídia como materiais utilizados para produção artística, veículos para expressão de conceitos
estéticos.
6
No original, popular graphics. Optei por usar duas expressões de modo a esclarecer para o leitor
exatamente do que se tratam. São artes gráficas, porque produzidas especialmente para reprodução
impressa, e populares, porque seu público-alvo era a população geral, sem distinção de classes. Se eu
mantivesse apenas “gráficas” ou “populares”, correria o risco de não apreender-se o sentido total da
expressão inglesa.
7
No caso, mídia como materiais e técnicas de produção artística. Optei por, mais adiante, inserir a
expressão arte como mídia em lugar de media tal como está no texto, para ficar claro a que a autora
está se referindo, distinguindo as diferentes acepções de mídia em português.
1835, teve pouca influência no investimento crítico na arte como mídia em sua
materialidade, central para o desdobramento do modernismo formal. Princípios
centrais do idealismo alemão (por exemplo, a beleza como equivalente à verdade)
foram mais persistentes. Contudo, a atenção para as propriedades específicas da
mídia artística pode ser encontrada, em virtude de uma expressão de cunho
materialista, entre os escritos e obras do final do romantismo (Pré-rafaelitas), entre
os simbolistas e os primeiros futuristas, de um modo que não seria colocado pela
formulação filosófica idealista.
O romantismo, do modo como surge na Revolução Industrial, transformou a cultura
europeia de forma radical, ao automatizar o trabalho e a produção em escala sem
precedentes. Assim, a distinção entre o pensamento racional e a expressão
imaginativa criou um contraste entre trabalho mecanicista e inovação artística ⎯ e
entre obras reproduzidas em massa e obras únicas, originais e executadas à mão. O
problema ainda pouco evidente sobre o papel da arte ⎯ em uma era cuja cultura
seria administrada por uma lógica aplicada e uma burocracia percebidas
tardiamente como opressivas ⎯ só viria a primeiro plano mais tarde, embora sinais
dessa luta estivessem presentes na expressão romântica desde antes. A arte assume
a força de uma religião secular, aurática, encarregada de uma missão salvadora em
face da perigosa condição da humanidade guiada pela máquina e do fim das formas
tradicionais de trabalho e de vida.
O diálogo histórico entre mídia artística e produção de massa alcançou um ponto
crucial no início do século XIX. A industrialização aumentou exponencialmente as
capacidades da imprensa mecânica, e estas transformações foram acompanhadas de
mudanças no conceito de arte. A cultura visual estava mudando radical e
rapidamente. O mundo tornava-se midiatizado em altíssimo grau, a partir de
artefatos impressos. Um número de transações sociais sem precedentes estava
ligado aos objetos impressos, como passagens de trem, cartazes de cinema e teatro,
menus, contas, cartões comerciais, e outros objetos gráficos efêmeros que
começavam a fazer parte da rotina diária das pessoas. Materiais impressos de
grande circulação ⎯ jornais, revistas, livros e romances baratos ⎯ criaram novas
esferas sociais e novas comunidades de leitores. Por volta de 1830, o penny press
[impressos de custo baixo] reproduzia gravuras de obras de arte da antiguidade,
motivados em parte por uma crença no acesso moralmente benéfico às obras-
primas clássicas. Mas se uma gravura de um estátua como o Lacoonte podia ser
adquirida a um centavo , então como estabelecer o valor de uma obra de arte? Uma
enorme pressão surgiu para definir a arte como algo que não poderia ser
reproduzido em larga escala ou comercializado, mas em formato sofisticado, como
objeto raro em sua produção, particularmente no que tangia a sua matericidade.
Argumentava-se que a arte, ao lidar com os meios de modo especializado,
abdicando de sua função de entretenimento, evitaria a sua opressão, o seu
esgotamento, a sua perdição na crescente onda de ruído visual que clamavam por
atenção nas ruas, nos quiosques, nas vitrinas de papelarias, livrarias e moldurarias.
Um caso célebre abriu caminho a questões cruciais a respeito da definição de arte
com relação aos usos das novas mídias de reprodução e publicidade. Quando o
renomado pintor britânico John Everett Millais, membro da Royal Academy, permitiu
que sua pintura Bubbles fosse utilizada para a publicidade do sabão Pear, um
enorme debate se seguiu. A imagem de um rapaz de terno de veludo com feições
angelicais arrebatado pelas bolhas de sabão que flutuam, pintada em 1886, tornou-
se a primeira campanha publicitária a incluir uma obra de arte estabelecida como
tal. Alguns artistas e críticos acusaram Millais de humilhar caráter sagrado da arte e
de manchar a sua própria reputação ao permitir que sua pintura fosse vinculada ao
comércio. Uma vez utilizada como um sabão propaganda, Bubbles não era mais uma
obra de arte, conforme declararam os puristas. Outros veriam a popularização de
imagens de arte como um benefício social. Do final do século XIX as culturas inglesa
e estadunidense encontravam-se permeadas pelos ideais expressos nas obras de
Matthew Arnold , que considerava a arte a melhor expressão dos mais altos valores
de civilização. A exposição do público a obras de poesia, música, arte e arquitetura
era considerada enobrecedora e edificante e a reprodução em massa da imagem de
Millais contribuiu para popularizá-la junto ao grande público. A partir daí, em
qualquer evento, as obras de arte não poderiam ser separadas dos sistemas de
distribuição e consumo, e as relações da arte com o comércio permaneceram
indissociavelmente ligadas aos meios de comunicação e de reprodução, continuando
a gerar debates.
A crença inicial na arte como um meio de libertação espiritual exauriu-se, da mesma
forma, nos meados do século XIX. Uma reforma radical na visão social e na fé do
poder da arte como um instrumento de mudança cultural dava a um pintor realista
como Gustave Courbet um convicção muito diferente sobre o papel da sua obra.
Dentro de um espírito compartilhado pela grande maioria dos romancistas do
período como Honoré de Balzac, George Eliot e Emile Zola, praticantes de realismo,
acreditava-se na eficácia social da trabalho artístico. A reforma social sobre o
trabalho infantil, sobre as condições de vida entre os pobres urbanos e outras
injustiças ganhou impulso em trabalhos artísticos que aproveitaram o poder da
imprensa e de suas imagens para expor males culturais. Apesar de obras de arte
terem sido pressionadas por séculos para assumirem causas morais, a ideia de arte
como uma força para a transformação social e não apenas para aperfeiçoamento
espiritual foi uma ideia que ganhou ímpeto sem precedentes, similar aos efeitos da
industrialização sobre os movimentos socialistas utópicos.
As ligações entre a arte e o idealismo utópico tomaram muitas formas. As artes e o
movimento Arts and Crafts [Artes e Ofícios] na Grã-Bretanha, inspirado em grande
parte por William Morris, iniciou um nostálgico retorno às guildas medievais da era
pré-industrial. A arte, neste contexto, deveria ser reintegrada às tradições artesanais
em que a expressão individual seria secundária às habilidades requeridas pelo
mercado. Contudo, em uma era ainda carregada de ideias românticas sobre o
talento individual e sobre o caráter etéreo da obras de arte em relação ao produtos
industriais, o movimento Artes e Ofícios apresentou-se cheio de contradições. Ainda
assim, embora suas oficinas viessem se sustentando economicamente por não mais
do que algumas décadas, a ideia de uma arte integrada, holística e alternativa à
condição alienante do trabalho em circunstâncias industriais penetrou na
imaginação popular. Até o final do século XIX, os iniciadores do movimento Arts and
Crafts tinham reconciliado o papel da arte com a indústria, e não como alternativo a
ele. A noção de designer ou de artista industrial com uma identidade comercial e
profissional veio a confirmar-se entre o final dos anos 1800 e 1900. As chamadas
“belas-artes”, no entanto, mativeram seu estatuto etéreo, ainda que os termos em
que essa status foi mantido fossem constantemente questionados por críticos e
pelas novas práticas. De qualquer modo, o crescimento das novas identidades
profissionais em design, arquitetura e artes gráficas reforçaram a distinção entre
“artes aplicadas” e “belas-artes”.
No final do século XIX, um nova onda de apoio à arte como mídia democrática
acompanhou a moda dos cartazes cromolitogravados. As ilustrações criadas para
esses cartazes seriam para apreciação do povo, clamavam os produtores dos
melhores bailarinos do Folies Bergère retratados por Jules Chéret e Henri de
Toulouse-Lautrec. Anúncios de aveia, cigarros, cerveja, e de bicicletas surgiam em
espaços públicos, afixados por coladores de cartazes que concorriam por um lugar
na paisagem urbana lotada. Os campeões de tal arte pública foram recebidos com
frieza pelos cidadãos mais inclinados ao decoro, cujo sentimento era o de que a
publicidade comercial muito vívida banalizava o espaço público. Disputas pelo
controle de afixação de anúncios publicitários também envolveram os governos com
a intenção de normatizar os efeitos inflamantes da arte do cartaz; grupos
reformistas preocupavam-se com a sua influência corruptora dos cartazes de danças
de cabaré e de outros programas de entretenimento. O valor de tais cartazes eram
determinados por critérios estéticos; porém juízos mais conservadores negavam seu
estatuto artístico, ao perceber neles seu apelo comercial.
Nos anos de 1890, a arte-pela-arte dominava o pensamento dos círculos e salões a
partir dos quais surgiram publicações e imagens que caracterizavam o fim-de-século
na Europa. Enquanto as artes aplicadas e as novas profissões em design para a
indústria floresciam, a retórica da grande arte mudou para uma espécie de auto-
justificação com base na estética. A arte não teria nenhum propósito que não servir
a si mesma, não devem servir a qualquer poder, mas à beleza e à imaginação, e
sendo expressão de um gosto individual. Embora não passassem de fracos ecos de
uma sensibilidade decadente, esse pensamento encontrou seu caminho através do
Atlântico e acabou por florescer entre a boemia das capitais das Américas, Rússia,
Escandinávia e Europa Oriental. O espirituoso Oscar Wilde proclamou: "Toda arte é
completamente inútil", uma declaração que claramente demarcou a atividade
estética atividade em relação ao trabalho industrial ou produtivo.
Ao mesmo tempo (e não surpreendentemente, dado o formalismo implícito com
foco nas propriedades estéticas), a ideia de que a obra artística teria por principal
objetivo a composição a partir de sua matéria ou mídia foi tomando maior corpo. O
trabalho de artistas impressionistas já visavam chamar a atenção para a superfície da
tela desde o início dos anos 1860, quando Eduoard Manet evitou os conceitos de
ilusão associados à técnica acadêmica. Pelos anos de 1870, quando a obra
Impressão: sol levante, de Claude Monet, emprestou seu título para o novo
movimento, os pintores do grupo foram acusados de exibir trapos sujos de tinta e
paletas. Mas, ao chamar a atenção para a pintura e seus pigmentos, ao invés de
colocá-la totalmente a serviço de uma imagem, eles suscitou tanto o apoio crítico
como ataques. Uma fundamentação teórica para a arte moderna tendo por base
seus próprios meios8 entrou em foco. Em 1890, o pintor francês Maurice Denis fez
um comentário que ressoou por décadas: "Lembre-se que uma imagem, antes de ser
um cavalo de batalha, um nu, uma anedota ou o quê, é essencialmente uma
superfície plana coberta de cores compostas em uma determinada ordem." O
formalismo abstrato e a atenção à materialidade tornaram-se a base de uma
abordagem crítica da grande arte nos trabalhos do pós-impressionista Georges
Seurat e do simbolista Gustave Moreau. A influência das técnicas midiáticas usadas
no design de cartaz, combinada à moda das gravuras japonesas, também chamava
atenção para a organização gráfica dos elementos na superfície do trabalho visual
das últimas décadas do século XIX. E Roger Fry e Clive Bell, britânicos e estudiosos da
estética no início do século XX, chamaram a atenção sobre as propriedades formais
na produção de uma arte superior. Em Art (1914), Bell ressaltou que a característica
comum a toda a grande arte era o que ele chamaria de "forma significativa" ⎯ a
capacidade para transportar significado através de forma fortemente expressiva e
bem composta. Art foi escrito em apoio ao trabalho de Paul Cézanne, entre outros,
mas também foi uma tentativa de fazer afirmações universais para trabalho
moderno e suas mídias.
Bell e Fry não estavam sozinhos ao proclamar a importância da materialidade. Em
dois marcantes ensaios de 1913, A palavra enquanto tal e A letra enquanto tal, os
artistas futuristas russos Velimir Khlebnikov e Aleksei Kruchenyk salientaram os
fundamentos materiais da arte, enfatizando o fazer ou criação como principal meio
através dos quais o valor artístico (forma e significado) eram produzidos. 0s teóricos
russos esforçaram-se para definir as propriedades particulares que tornavam a
literatura "literária" ⎯ e, por extensão, fazem da arte uma categoria à parte. Viktor
Shklovsky cunhou a expressão "causar estranhanhamento" para descrever o efeito
da arte sobre a consciência cotidiana que permeia a vida moderna. Isto pode ser
entendido como uma nova versão da antiga "abertura das portas da percepção" de
William Blake, mas o estranhamento, neste caso, baseava-se no efeito de choque ao
invés dos efeitos de uma visão imaginária romântica. Na verdade, a vanguarda do
século XX dá continuidade à essa sensibilidade. Artistas de vanguarda estavam
comprometidos com a criação de obras que sobrevoavam acima da convenção e da
tradição. O impulso igualmente forte em direção a uma abstração universal e a uma
arte conceitual também encontraram justificativa ao assegurar a autonomia do
medium. Artistas visuais tão distintos quanto o suprematista russo Kasimir Malevich
e o artista holandês Piet Mondrian pressionaram à inovação formal em direção aos
novos e rígidos limites da abordagem geométrica. Enquanto o objetivo de Malevich
era destruir a ilusão, Mondrian procurou as harmonias delicadas e equilibradas,
extraídas do ritmo puramente formal. Para ambos, as propriedades planas da tela e
a superfície literal da pintura eram fatores primários. Para a arte moderna, os meios
[medium] não serviriam mais como veículo ou instrumento de comunicação ou de
8
No original: “A theoretical foundation for modern art as medium-based came into focus”. Optei por
traduzir medium por meios, acrescentando próprios, alterando assim um pouco a construção da frase
em português para manter a fluidez e inteligibilidade.
uma prática chamada detournement, uma forma primitiva do que é agora chamado
de "intervenção"10, prática que consiste em transformar o significado das imagens e
objetos produzidos pela cultura industrial através de intervenção direta nessas
imagens ou suas formas. Entre os seus antecedentes estão a colagem e a
fotomontagem dadaísta e o uso de Duchamp de reproduções. As distinções entre
arte "alta" e "baixa" ⎯ a primeira alinhada ao gosto da elite, a última ao gosto do
público geral ⎯ foram desafiadas pelo uso de reproduções de antigos mestres ou
pinturas baratas, todas tratadas com irreverência no sentido de produzir obras cujo
objetivo era oferecer um comentário crítico. O grupo Fluxus, mais frouxamente
afiliado à rede internacional de artistas que surgiu no início dos anos 1960, tornou-se
interessado na estética presente na vida cotidiana. A arte veio a ser cada vez mais
uma questão de performances participativas e atividades efêmeras. Os artistas do
Fluxus usaram buzinas de automóveis e transformaram seus limpadores de pára-
brisas, esfregaram espuma de sabão em carros e neles mesmos, derramaram
correntes de água de uma grande altura, e assim por diante. A arte parecia se dar
muito bem sem a produção de objetos.
A ênfase nas ideias aos invés de ater-se aos aspectos formais criou uma distinção
entre a cultura midiática e a grande arte, em que esta atingiu um alto grau de
abstração conceitual. Alguns artistas desse nicho flertaram inclusive com a
eliminação completa da visualidade. Em 1958, Yves Klein, um artista
metafisicamente orientado e profundamente espiritualizado fez uma exposição
intitulada Vazio, compreendendo uma galeria vazia. Num ensaio de 1967 intitulado
Parágrafos sobre Arte Conceitual, Sol LeWitt afirmou que "a ideia é uma máquina de
produzir arte ". A arte conceitual invocou também a ideia de "desmaterialização", tal
como expressa nos escritos de Lucy Lippard. Mídias inéditas, até um século antes
ausentes nos ateliers, seriam utilizadas para ampliar os limites da produção artística.
No início dos anos 1960 o artista Piero Manzoni fez uma edição limitada de latas de
seus próprios excrementos, devidamente marcadas e assinadas. Livro de arte de
Dieter Rot foi produzido de páginas de queijo e fluidos corporais selado em
embalagens de plástico. Sangue, sêmen, cabelo humano, e outras instalações
encontraram lugar em instalações e outras obras visuais do período entre 1960 e
1970; as barreiras para a incorporação pela arte de todo e qualquer material e mídia
caiu completamente. A arte, liberta de suas restrições midiáticas, assegurou sua
identidade por outras vias. O inventário fundamental da obra de Duchamp, ao
apontar gestualmente as convenções culturais de autoria, os locais institucionais e
seus jogos de valor baseados em contratos e crenças, continuava a garantir a
continuidade da arte como domínio especializado de produção, mesmo que o
objetos ou eventos produzidos ultrapassassem as categorias convencionais.
A arte conceitual e a pop art alcançaram proeminência em poucas décadas. Andy
Warhol, principal figura na arte pop, era formado em arte comercial e publicidade.
Ele começou produzindo imagens pintadas à mão pintados à mão a partir de objetos
industrais mas em 1962 deu um passo que romperia com outros limites ue
distinguiam ambas as modalidades de produção artística. Usando serigrafias
10
Em inglês, culture jamming.
fotográficas do tipo usado para fazer cartazes e placas industriais, ele criou obras de
arte em um estúdio chamado Fábrica. Aerógrafos e telas de meio-tom logo fizeram
sua aparição nos ateliers, bem como em oficinas de produção artística. Esse novo
entrelaçamento entre a cultura midiática e grande arte confundiu os críticos.
Imitando os sistemas de produção de imagens de culto de celebridades, a imagem
do artista pop reforçou-se a partir do mesmo modelo aplicado a atores e atrizes,
autores e artistas, estrelas de cinema e músicos de rock neste período. Quando
Warhol ⏤ uma figura midiática ele mesmo, hábil manipulador de imagens dos
meios de comunicação ⏤ previu que no futuro cada pessoa teria seus quinze
minutos de fama, pode ou não ter previsto sua extensão no sentido de que a fama
apoiaria-se nos contornos de artistas mais ousados, aqueles cuja silhueta pessoal se
destacaria contra a do público em geral. A arte, ao que parecia, não passaria de um
acessório de celebridade, um artigo de moda classificado como de maior qualidade,
uma mercadoria entre mercadorias, a ser fetichizada, juntamente com o artista-
personalidade que a produziu.
Em contraste extremo ⏤ pelo menos do ponto de vista formal ⏤, uma terceira
grande pressão sobre as práticas artísticas surgiu nos anos 1960 e também teve suas
implicações na definição de arte e na sua relação com suportes e materiais. Os
minimalistas levaram os limites da arte em direção a outro patamar. Esses artistas
fizeram uso de refugos industriais como aço, vidro, feltro, ou outros materiais, cujo
aspecto eram alterados apenas o suficiente para serem registrados como arte.
Donald Judd estabeleceu rígidos princípios para a produção minimalista em "Objetos
Específicos" (1963), declarando as convenções de composição, de hierarquia,
relações figura-fundo, proporções e os mais irrelevantes detalhes da superfície como
problemas significativos para a produção de uma identidade artística. As obras
cortadas ou dobradas em feltro de Robert de Morris ou as lâminas de vidro
quebrado ou arranhado de Barry Le Va exemplificam a estética redutora do
movimento. A distinção entre obras de arte e aquelas da cultura midiática
dependiam agora do deslocamento dos materiais industriais do seu lugar usual.
Austero, difícil e elegante, o minimalismo enfatizou propriedades de arte que eram
inerentes aos materiais e ao medium, porém dependentes de um enquadramento
conceitual. A arte minimalista reduziu a forma à matéria, banindo a expressão e a
emoção, técnicas de composição e qualquer traço de representação ou de
referência.
Todos os três principais movimentos de meados do século XX ⎯ Pop, Construtivismo
e Minimalismo ⎯ contribuíram para o aumento de possibilidades e atuação dos
artistas contemporâneos. Nossas ideias atuais sobre os modos como a "arte" se
distingue da cultura industrial dependem em parte das posições críticas assumidas
nos debates gerados por estes movimentos. Na década de 1970 a políticas de
identidade envolvendo comunidades feministas e grupos tradicionalmente
marginalizados trouxeram as imagens representacionais de volta ao cenário artístico.
Um novo e eclético internacionalismo recebeu o apoio das bienais e das feiras de
arte e, num ciclo de crescimento e queda econômicos, a arte tornou-se um
investimento, bem como um símbolo de status.
Os artistas pós-modernos dos anos 1980 envolveram-se em atos de apropriação.
Eles proporam fortes argumentos contra o mito da originalidade que tinha
alimentado a prática artística desde o início da era industrial. Críticos pós-modernos
afirmavam que a arte ja havia esgotado todo o repertório de imagens e de ideias.
Então, a apropriação de obras preexistentes a partir de toda e qualquer fonte
comercial, industrial, histórico ou artística tornou-se a única maneira de criar novas
obras. Richard Prince fez impressões de o homem os anúncios de cigarro Malboro e
Sherri Levine refotografou obras de fotógrafos canônicos como Edward Weston. Eles
exibiram-nas como obras próprias, sem levar em consideração critérios de autoria e
originalidade. O pós-modernismo rapidamente esgotou os seus conceitos e recursos
para fazer arte, mas na sua esteira, os limites normativos e os códigos altamente
cifrados foram banidos, junto com qualquer traço de autonomia autoral como um
conceito crítico viável. Em seu lugar sobrevieram teorias da alegoria, do hibridismo,
do pastiche, concedendo ampla permissão para as mais ecléticas práticas.
Contingência, ou a contextualização do trabalho dentro de quadros históricos e
culturais, apagaram os últimos vestígios de independência formal. A arte da
performance, a instalação, as novas mídias, a fotografia, a projeção, a intervenção
ativista e efêmera que deixa pouco ou nenhum resíduo e outros trabalhos
consistiram, em grande parte, de ações ou operações que encontrariam o seu lugar
entre as já tradicionais pintura, escultura, gravura e outras produções de atelier, as
quais, da mesma forma, renovaram-se no final do século XX.
Ultimamente, as obras de arte prosseguem determinadas em distinguir-se dos
demais produtos culturais manufaturados que permeiam a vida diária. Porém,
muitas vezes isso depende muito mais do seu enquadramento, local de exibição, do
que a partir do seu material, mídia ou a aparência. As espetaculares esculturas kitsch
de Jeff Koons, produzidas em 1980, e as esculturas-performáticas elaboradas e
encenadas por Vanessa Beecroft, usando modelos de moda ou nus, registram-se
como arte, em parte, devido ao contexto. Obras de arte devem, certamente, ser
valorizadas acima e além dos custos do trabalho ou materiais utilizados na sua
produção, apesar de “Em Nome de Deus”, uma caveira de platina cravejada de
diamantes feita pelo artista britânico Damien Hirst (e a peça de escultura mais cara
já produzida por um artista vivo), jogar com a capacidade de arte de impor um valor
capital como parte de sua produção. Em contrapartida, Pierre Huyghe e Philippe
Parreno adquiriram um personagem de anime japonês devolvendo-o ao público
como marca midiática porém livre dos direitos de propriedade ou das leis do
mercado. É evidente que esses artistas entendem a condição midiática de suas
práticas como parte da produção de objetos e eventos. Assim, o valor intrínseco do
medium usado não importa tanto quanto o seu valor como expressão do
pensamento, habilidade, ou emoção humanos. A questão sobre quais meios são
específicos ou adequados para a produção de arte tem sido respondida de forma
diferente ao longo das gerações. Se, na prática tradicional, materiais como o afresco,
o óleo, a aquarela, mármore ou bronze eram os únicos meios através dos quais as
obras de arte poderiam ser produzidas, nas práticas modernas e pós-modernas, o
medium tornou-se o tema e a substância de obras de arte, não apenas um meio para
sua produção.
Na era das artes digitais e eletrônicas novos desafios para as fronteiras e definições
de arte são colocados por mudanças dos contextos e circunstâncias de produção e
recepção. As características básicas do trabalho digital é a sua programabilidade, sua
interação (aberta à reprodução ou à modificações), sua qualidade generativa (dando
origem a novas versões) e, frequentemente, sua disponibilidade para
compartilhamento em rede. Enquanto antes o valor das obras de arte era
intrínsecamente dependente de um sistema mercadológico, as redes digitais
favorecem a veiculação de obras de arte com pouca ou nenhuma existência fora dos
ambientes eletrônicos. A produção de obras de arte para a venda e consumo na
mundo online Second Life, conforme demonstrado por livros de artistas criados para
este fim por Richard Minsky, mostram a viabilidade crítica e econômica para projetos
estéticos concebidos inteiramente dentro dos domínios do ciberespaço. Embora a
existência destes produções evidenciem os arquivos de código digital colocando em
primeiro plano o seu caráter de simulacro ou imaterialidade, uma elaborada
infraestrutura tecnológica suporta estes atividades, deixando claro a natureza
altamente material dos meios de comunicação eletrônicos.
Em um trabalho que chama a atenção para o vínculo humano que envolve o
funcionamento do efeito estético, Janet Zweig criou uma peça intitulada “The
Medium” (2002) para o átrio da Faculdade de Jornalismo e Comunicação Social da
Universidade de Minnesota. Ela consiste em uma alcova aconchegante, própria para
uma conversa; mas uma grande tela de vídeo separa quaisquer dos dois indivíduos
que tomarem ali seus lugares. Os ocupantes podem falar uns com os outros, mas
somente através de câmeras, onde suas imagens são modificadas por um programa
que muda as cores e tons em tempo real. O resultado é uma bela série hipnótica de
imagens, com qualidades visuais que variam em tomar um aspecto psicodélico,
solarizado ou impressionista. O mito da comunicação face à face como não
mediatizada é exposto, e o processo enfatiza a subjetividade perceptiva em todas e
quaisquer circunstâncias. Nossas experiências são mediadas por aparelhos
perceptuais, bem como pelas condições culturais da nossa subjetividade individual.
A obra de Zweig é um caso claro de ênfase na mídia como um recurso estético e a
arte como uma linguagem especial para uma experiência midiática de alto grau.
Assim, ela torna-se uma amostra do ditado do renomado teórico da mídia Marshall
McLuhan: "o meio é a mensagem." Contudo, é o coeficiente artístico que provoca
admiração, nos seduz e nos faz considerar o modo como a obra flexiona seu medium
e dá forma ao significado.
A arte não pode mais ser identificada enquanto tal por seu medium, e a imagem do
artista faz agora parte de um mitema fundador de celebridades e da cultura da
mercadoria. A definição de arte na era da cultura midiática depende da nossa
capacidade de distinguir suas obras dos outros objetos ou imagens veiculados pela
indústria cultural. A arte não serve a um propósito único, não pode ser circunscrita a
agendas ou crenças. Essa afirmação abre um espaço de renovação contínua para a
imaginação humana, possibilitando expressão sob qualquer forma, efêmera ou
material, para a capacidade imaginativa. Finalmente, a prática da arte torna-se