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IX ENCONTRO DA ABCP

ÁREA TEMÁTICA: Pensamento Político Brasileiro

OS PARADOXOS DE HELIO JAGUARIBE NA ANÁLISE DO

GOLPE MILITAR (1964-1984)

Angélica Lovatto - UNESP

Brasília, DF
04 a 07 de agosto de 2014
OS PARADOXOS DE HELIO JAGUARIBE NA ANÁLISE DO
GOLPE MILITAR (1964-1984)
Angélica Lovatto
Departamento de Ciências Políticas e Econômicas – UNESP/Marília

Resumo:
O artigo trabalha numa perspectiva crítica ao pensamento do cientista político carioca Hélio
Jaguaribe, demonstrando uma sintonia conservadora em seu ideário, especialmente nos
textos onde tratou do golpe militar de 1964-84. O autor já havia deixado o projeto isebiano
(ficou no ISEB de 1955-59), mas jamais abandonou seu projeto teórico-político de defender
a burguesia industrial brasileira como protagonista na direção de um Estado de tipo
neobismarckiano, conceito defendido desde os anos 1950. Por isso, em texto de 1968, teve
postura de condenação ao golpe, adjetivando-o como um regime “colonial-fascista”. O que
lhe desagradava era muito mais o fato de a burguesia não estar à frente do aparelho de
Estado, do que o caráter autoritário do regime. Porém, após os resultados do chamado
milagre econômico (1968-73), o autor – em texto de 1974 – voltou a analisar o processo e,
satisfeito com os resultados materiais que o regime havia conquistado, amenizou de certa
forma sua condenação anterior, a ponto de não entender o regime como ditadura, na
medida em que ocorria uma alternância no governo entre os militares. No entanto, não
deixou de propor que os militares desocupassem o aparelho de Estado, o que só viria a
acontecer em 1984.
Palavras-chave: Hélio Jaguaribe; Golpe Militar de 1964; Pensamento Político Brasileiro;
ISEB.

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1. Introdução
Este artigo apresenta uma perspectiva crítica ao pensamento do cientista político
carioca Hélio Jaguaribe, demonstrando uma sintonia conservadora em seu ideário,
especialmente nos textos onde tratou do golpe militar de 1964-84 (Cf. JAGUARIBE, 1968 e
JAGUARIBE, 1974).
Inspirado na unificação alemã de 1870-71, Jaguaribe defendia desde os anos 1950,
quando ainda participava do ISEB – Instituto Superior de Estudos Brasileiros, a adoção do
que chamou de “Estado neobismarckiano”, de caráter forte e autoritário, para o efetivo
desenvolvimento brasileiro, sob o comando político direto da burguesia industrial, setor
moderno desta classe. A essência econômica desta proposta política era a constituição de
um “nacionalismo de fins”: ele acreditava que o meio mais adequado e mais rápido para o
Brasil alcançar um desenvolvimento capitalista pleno, seria o da autonomização do capital
nacional por meio do capital internacional. Naquele momento da Guerra Fria e da
efervescência política brasileira do pré-1964, era realmente audacioso defender uma
proposta deste tipo, em meio a uma predominância de leituras nacionalistas que viam o
capital internacional como um entrave ao desenvolvimento do país. Esta posição de
Jaguaribe foi, inclusive, a responsável por causar sua saída do ISEB em 1959. Se, por
divergências internas, o autor deixou seu projeto isebiano, jamais abandonaria o projeto
teórico-político de defender a burguesia industrial brasileira como protagonista histórica do
desenvolvimento do país.
No entanto, Hélio Jaguaribe reconhecia a existência concreta de um obstáculo para a
efetivação de sua proposta: nem a própria burguesia sabia, ou mesmo queria, desempenhar
essa tarefa fundamental na direção do Estado brasileiro. Esta classe precisava ser educada
para isso. Daí o papel que ele defendia para o ISEB: ser uma intelligentsia brasileira que
propagasse uma “política ideológica” que, esclarecendo a burguesia nacional de seu papel,
educaria esta classe e a tornaria apta a reproduzir essa conscientização às demais classes
sociais, num movimento de união de todos os “interesses situacionais de classe” no Brasil: a
efetivação da modernidade capitalista por meio dos setores “modernos” de todas as classes.
Em pesquisa que desenvolvi sobre o tema, caracterizei esta proposta de Hélio
Jaguaribe como uma utopia nacionalista (Cf. LOVATTO, 2010), que carrega o seguinte
paradoxo: o autor tem o mérito de propor um nacionalismo mais pragmático, que não se
perdia em grandes devaneios românticos, como os nacionalistas que punham fé tão
somente nas bravatas do capital nacional, nos idos daqueles anos 1960. Mas era a utopia
da autonomia nacional por meio de um capital que vinha de fora do país. O autor esteve
sempre com um olho no desenvolvimentismo e o outro na contrarrevolução preventiva. O
conteúdo reformista de suas propostas defendia a mobilização das classes populares,
precisamente de seus setores “modernos”, com a promessa de distributivismo futuro.

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O fator preponderante da identificação de Jaguaribe como conservador dava-se em
torno da identificação – correta – de sua perspectiva de classe burguesa, mas
principalmente em torno da proposta de um Estado neobismarckiano, forte e autoritário, aqui
referida. Quando o golpe de 1964 instaura um estado autocrático, as possíveis semelhanças
do governo militar com a proposta elaborada por Jaguaribe são prontamente descartadas
pelo próprio autor, na medida em que a burguesia teria ficado fora do exercício político
direto e, com isso, tinham sido perdidas as possibilidades de dar legitimidade a este Estado.
Com o golpe teria se instaurado um Estado de caráter colonial-fascista, ilegítimo, que
interrompera a construção do Estado ideal para a ultrapassagem do subdesenvolvimento
brasileiro.
O “colonial-fascismo” do governo militar teria impedido o autêntico nacionalismo e
mantido o país na qualidade de “colônia”. A crítica feita pelo autor naquele momento (Cf.
JAGUARIBE, 1968) vinha do fato de que o colonial-fascismo estaria se entregando
demasiadamente ao satelitismo estadunidense, abandonando a perseguição de uma
autonomia nas relações externas convenientes ao país.
Por mais que Jaguaribe pregasse a utilização do capital estrangeiro na superação do
subdesenvolvimento – que poderia implicar, de fato, forte presença de capitais
estadunidenses – defendia, por outro lado, que as relações diplomáticas brasileiras
deveriam se pautar pela neutralidade, inclusive com a retomada das relações com o bloco
soviético. Todavia, isso deveria se realizar com cuidado, para que os Estados Unidos não
ficassem temerosos de que o Brasil intencionasse “mudar de lado”. A tensão – para não
dizer o paradoxo – do discurso jaguaribeano é sempre esta: a ilusão da autonomia nacional,
sem deixar de estar sob a influência estadunidense no contexto da Guerra Fria,
representante, afinal, mais autêntico da cultura ocidental, no entendimento do autor.
Mas se as teses de Jaguaribe forem comparadas com a doutrina de segurança
nacional, produzida pela Escola Superior de Guerra – ESG – isto é, do setor que abrigava
os ideólogos do golpe de 1964, encontraremos distinções qualitativas importantes. Em O
nacionalismo na atualidade brasileira (1958) o autor – na parte dedicada à política exterior
que seria conveniente ao Brasil – rebate, sem anunciar diretamente, cada uma das teses
pregadas pela ESG, centradas no alinhamento incondicional do Brasil aos Estados Unidos.
Aliás, a este respeito, é bastante perspicaz a afirmação de Tancredo Neves em entrevista
ao CPDOC de que o ISEB, na verdade, foi criado como uma alternativa à ESG1.
Apesar de defender um Estado forte e autoritário, quando denomina o regime de
1964 de colonial-fascismo Jaguaribe estava lhe atribuindo um caráter negativo, e não de
concordância. No entanto, fica claro que o descontentamento do autor com este colonial-

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“Na verdade, o ISEB foi criado para não ter a Escola Superior de Guerra, não é?” (NEVES, 1984,
p.86).

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fascismo vinha menos do fato de ser autoritário, do que por não comportar a presença da
burguesia industrial na direção política direta, ainda que esta participasse como coadjuvante
do processo econômico. Todavia, se o Estado construído em 1964 não pode ser definido
como o “Estado dos sonhos” de Jaguaribe, isso não quer dizer que ele deixe de justificá-lo,
principalmente quando se depara, satisfeito, com seus resultados dez anos depois (Cf.
JAGUARIBE, 1974), no período de esgotamento do “milagre” econômico.
De novo, o paradoxo que marca seu discurso: sua negação inicial do golpe – e, na
sequencia, o contentamento com seus resultados industrializantes – acabam por fazê-lo
justificar até mesmo a ilegitimidade do regime, antes condenada. Esta aprovação se devia
ao fato de a ditadura militar ter afastado o perigo da convulsão social que se desenhava no
pré-1964, que estaria marcado principalmente pelo populismo do governo João Goulart e
que, segundo o autor, alimentava falsas expectativas nas massas com sua demagogia.
Mesmo assim, é somente neste momento, e não antes, que Jaguaribe começa a se
deparar com a necessidade de propor de fato a autorreforma do regime, pois está
preocupado com a proletarização das classes médias, trazidas pelos resultados do
esgotamento do “milagre”. A situação de desemprego crescente deixava Jaguaribe
temeroso de que o binômio classes médias + miséria viesse a repor um estado de rebelião.
Ele insistia na urgência do processo de autorreforma, pois, do contrário, o questionamento
do regime poderia gerar nova convulsão social. Todavia, esta – diferentemente do que havia
ocorrido no pré-1964 – era agora apenas potencial e, portanto, poderia e deveria ser
controlada e evitada.
Sem discordar da atribuição de um caráter conservador que, sem dúvida, apresenta
o discurso de Hélio Jaguaribe, defendo a hipótese de que seu pensamento possui
originalidade. Embora permeado por ilusões, entre os intelectuais do seu tempo, ligados à
perspectiva do capital, Jaguaribe pode ser apontado como um dos que menos se iludiram e
até mesmo entre os mais arrojados. Isto porque, apesar do seu alinhamento com a
modernização industrial, não deixou de sustentar uma modernização dependente e de
caráter excludente, como forma de garantir o desenvolvimento brasileiro. Daí a facilidade de
incorporar medidas autocráticas e, portanto, o fato de que o autor não pode ser identificado
como um defensor explícito de uma propositura democrática. Ao mesmo tempo e,
paradoxalmente, também não pode ser, simplesmente, identificado como um dos ideólogos
do golpe de 1964 ou de regimes de terror. Jaguaribe constatava a debilidade da burguesia
brasileira e se afligia ao não vê-la assumir um papel político que deveria ser dela. O autor
tinha consciência disso, ou pelo menos, expressava objetivamente esta posição. Sua
produção teórica foi, desde sempre, a tentativa desesperada de ser o instrumento de
esclarecimento da burguesia brasileira no sentido de convencê-la a tomar parte no cenário
histórico e realizar o papel que era dela. Mas 1964 mostra objetivamente como esta

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burguesia brasileira optou por “delegar” o exercício do poder político, lançando mão dos
militares. Delegando o exercício político, a burguesia ficava inclusive mais livre para dedicar-
se exclusivamente à expansão de seus negócios.
A posição de Jaguaribe no que diz respeito ao golpe de 1964 – e a relação que esta
posição tem com sua produção teórica – é trabalhada aqui a partir de dois textos que
demarcam a finalização de um dado ciclo de suas propostas para o Brasil. São eles: o artigo
“Brasil: estabilidade social pelo colonial-fascismo?”, de janeiro de 1967, publicado em 1968,
e o livro, Brasil: crise e alternativas, publicado em 1974. Neste último há uma posição
bastante compreensiva e concordante com o ocorrido dez anos antes, com argumentações
que justificavam a ilegitimidade do golpe. Até porque, inicialmente (no texto publicado em
1968) este aspecto ilegal havia merecido de Jaguaribe algumas críticas.
Não há exatamente uma mudança de posição entre o texto de 1968 com o de 1974.
Há, ao contrário, uma continuidade da lógica na qual este acontecimento foi analisado pelo
autor. Jaguaribe talvez seja, dos pensadores com passado isebiano, o que com maior
realismo reconhece – e acaba diante das circunstâncias admitindo – a necessidade da
burguesia ter que lançar mão dos militares no exercício do poder em determinados
momentos de seu desenvolvimento. No primeiro texto, Jaguaribe falava do golpe em seu
primeiro momento, anterior ao chamado milagre econômico de 1973. No segundo texto, ele
faz suas análises já com os resultados do esgotamento do milagre.
São essas nuances entre os dois textos que ocupam agora minha análise do
discurso jaguaribeano sobre o golpe de 1964.

2. O pensamento político de Hélio Jaguaribe em 1968: o golpe de 1964 visto como um


regime colonial-fascista
Na medida em que um Estado forte e autoritário cabia perfeitamente nas propostas
de Hélio Jaguaribe para o Brasil, vamos aqui conhecer sua leitura inicial sobre o golpe de
1964. Para Jaguaribe, “o movimento militar que expulsou do poder o Presidente Goulart,
em abril de 1964, foi, originalmente, a expressão de uma oposição muito generalizada a seu
Governo, e que adquiriu feição militante contrarrevolucionária a contar do término de 1963”
(JAGUARIBE, 1968: p.39). Para o autor, teria havido uma facilidade inesperada para essa
intervenção. As primeiras tropas rebeldes tinham obtido adesão do resto das Forças
Armadas, que assumiram pleno controle do país. Isto teria levado “o golpe a uma rápida e
cumulativa radicalização pela direita”. Esta radicalização teria impelido o Exército, “na
qualidade de núcleo das Forças Armadas, a concentrar todo o poder nas mãos dos
militares, como corporação”. Estes fatos teriam reduzido “a termos nominais ou secundários
a participação dos políticos que haviam tomado parte na contrarrevolução anti-Goulart –

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uma contrarrevolução cônscia de seu significado e inconformada com ele, que sentiu a
necessidade vicária de se autodenominar ‘revolução’” (Ibid., p.40).
Como se vê, Jaguaribe reconhecia que a intervenção militar era uma
contrarrevolução que se fazia passar por “revolução” e que imprimia ao país um ritmo para
alcançar uma estabilidade social através do que denomina de colonial-fascismo. Para
chegar a esta caracterização, analisava Castelo Branco como um governo que teria
originalmente se reduzido aos termos “simples e simplistas de um normalismo conservador
de classe média e de anticomunismo”, mas tinha sido oportunamente reformulado, “e de
forma muito aperfeiçoada, pelo novo Ministro do Planejamento, Roberto Campos.
Simetricamente oposto a Celso Furtado, Campos preparou para o regime Castelo Branco e
conseguiu levar à execução o modelo para a estabilidade social, com forte propensão para
se tornar um Colonial-Fascismo” (Ibid., grifos meus). O próprio controle integral do Estado
pelos militares teria garantido amplamente a estabilidade social na medida em que sua
autolegitimação – assegurada pelos Atos Institucionais – teriam constituído “o mais
formidável reforço do poder público central jamais experimentado no Brasil, resultando em
haver equipado o Governo com meios coercitivos dificilmente igualados nos regimes mais
autoritários” (Ibid.).
Através destes meios coercitivos eliminava-se o incômodo da resistência popular a
quaisquer medidas que viessem a ser tomadas. Jaguaribe afirma que, a partir disso, as
diretrizes de Roberto Campos haviam se voltado para a obtenção da estabilidade financeira,
que pressuporia a estabilidade social para se efetivar com maior rapidez, pois o ministro “em
sua tentativa de controlar a inflação contava com a vantagem de não ser incomodado pelas
dificuldades mais comuns”, dado que “a severa ditadura militar eliminou a resistência da
classe operária, permitindo a redução dos salários reais dos trabalhadores” (Ibid., grifos
meus).
Mas o problema central que preocupava Jaguaribe era a situação em que se
encontrava a burguesia brasileira. Fora do exercício político, esta classe em verdade havia
se colocado nas mãos dos militares e aceitava as medidas desencadeadas pelo governo.
Assustava-se pela recessão causada pela política anti-inflacionária, mas preferia isso às
tendências temerosas do governo João Goulart, aceitando o “sacrifício de uma temporada
de maus negócios” (Ibid.), do que o risco iminente de hiperinflação. Enfim, a burguesia
brasileira, ao invés de estar presente no exercício político de um governo forte e autoritário,
como queria Jaguaribe, havia deixado esta função a cargo dos militares, o que fazia com
que este poder político tomasse rumos não necessariamente “controláveis”. Principalmente
porque, nas mãos da burguesia, um governo nos moldes propostos por Jaguaribe, de linha
neobismarckiana – mesmo atuando por via autoritária e forte – pressupunha a conquista da
legitimidade, que por sua vez, só poderia se efetivar com a classe social mais autêntica e

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representativa – a burguesia industrial. Portanto, o regime instaurado em 1964 não era o
“Estado dos sonhos” de Jaguaribe, muito mais por não estar a burguesia no exercício
político, do que por ser um Estado de caráter autoritário.
Embora dotado das características que o autor propunha para um estado funcional
em substituição ao estado cartorial, o estado montado em 1964 carecia da presença
burguesa mais direta. Nessa medida, os deslizes de ilegitimidade que começaram a ser
promovidos corriam por conta da classe média que, “embora satisfeita por ter recobrado sua
influência, ao fim de algum tempo tornou-se a menos paciente. Ao seu setor relevante, os
militares, foi entretanto, conferido um razoável aumento de poder aquisitivo e compensado
por numerosas outras vantagens resultantes de seu controle, agora completo e inconteste,
do aparelho governamental”. (Ibid., p.40-1, grifos meus).
O novo modelo econômico posto em andamento sob a batuta de Roberto Campos
tinha três pontas: a gradual desnacionalização da economia brasileira pela perda de sua
autonomia e endogenia; o completo engajamento do Brasil com os Estados Unidos; e a
ênfase atribuída ao capital privado e à livre empresa. Neste particular, “entretanto, em
virtude da resistência dos nacionalistas militares, a alienação de empresas de propriedade
estatal não pôde ser seriamente contemplada. O Governo foi mesmo obrigado a reafirmar
sua lealdade à Petrobrás e à política de monopólio estatal do petróleo” (Ibid., p.41). A
propósito da Petrobrás, Jaguaribe voltava a fazer considerações – em relação a seus textos
isebianos – sobre a situação em que o nacionalismo teria ficado sob o governo militar. Ele
achava que, mesmo com a manutenção do monopólio estatal do petróleo – baluarte
nacionalista desde sempre – não se impediria a gradual “desnacionalização da economia”,
dado que “a implementação tão bem sucedida do modelo para a estabilidade social,
entretanto, não foi capaz nem de impedir a formação de uma vigorosa oposição nacionalista
de extrema-direita, em alguns setores militares, nem tampouco de superar as contradições
intrínsecas daquele modelo” (Ibid., p.41-42).
Teriam se formado, então, duas vertentes militares: os nacionalistas de extrema-
direita ou “linha dura” e a tendência colonial-fascista. Porém, os nacionalistas de direita2
nem eram “capazes de prevalecer de forma duradoura sobre a tendência colonial-fascista
nem tampouco a ‘linha dura’” tinha possibilidades “de ser completamente liquidada enquanto

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A formação desta tendência é assim indicada por Jaguaribe: “Como o nacionalismo era identificado
com as tendências esquerdistas, antes do golpe militar, os nacionalistas de direita no Exército
puderam ser induzidos a aceitar as diretrizes antinacionalistas como um recurso necessário para
liquidar os esquerdistas. Entretanto, uma vez instalado no poder um regime militar de direita, esse
tipo de justificativa não mais poderia prevalecer e os nacionalistas de direita começaram a se fazer
ouvidos. Razões tácitas motivaram uma fusão de posições, na ‘linha dura’, entre os ultradireitistas
(que nem sempre são nacionalistas) e os nacionalistas de direita. Juntos tornaram-se ao mesmo
tempo ultradireitistas e nacionalistas. E quase conseguiram realizar um golpe dentro do golpe, nas
semanas que precederam o Ato Institucional nº2, de 27 de outubro de 1965” (JAGUARIBE, 1968,
p.42).

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o regime conservar seu caráter militar” (Ibid., p.42). A afirmação e vitória, portanto, teria sido
do colonial-fascismo, sem deixar de estar permeado pela tendência oposta.
Mas, afinal, por que a denominação de colonial-fascismo? O modelo para a
estabilidade social, “quer em sua forma benigna do regime Castelo Branco, quer em sua
pura forma arquétipa de Colonial-Fascismo”, teria conduzido à solução de alguns problemas
brasileiros, mesmo à custa de sua gradual desnacionalização. Isto não queria dizer, porém,
que a longo prazo não viesse a se inviabilizar. Para o autor, irremediáveis contradições
imanentes condenavam o regime e seriam de “dois gêneros: uma afeta seu mecanismo
interno, vítima dos resultados da superconcentração de renda e poder por ele gerada. A
outra atinge a relação do regime com seu centro metropolitano externo. Em outras palavras,
uma resulta de sua característica ou propensão ‘fascista’ e a outra de sua característica
‘colonial’” (Ibid., p.43). A indicação do esgotamento desse modelo era apontada por não ter
promovido a quebra dos laços “coloniais” que interceptavam o desenvolvimento brasileiro de
fato. De novo não era a utilização pura e simples do capital estrangeiro que emperrava,
segundo Jaguaribe, este desenvolvimento: “no que se refere à contradição externa ou
‘colonial’ do modelo, o âmago da questão” residia na “falácia da ‘complementaridade’ das
economias desenvolvidas e subdesenvolvidas e da presunção, dela derivada,” de que o
estímulo externo podia, “mecanicamente, compensar a falta de dinâmica interna de
crescimento causado pelo congelamento do status quo”. Isto porque, o modelo colonial-
fascista visava “precisamente a impedir as mudanças sociais que seriam exigidas para o
desenvolvimento de uma economia autônoma e endógena” (Ibid., p.44). É a crença de
Jaguaribe de que o capital nacional poderia vir a conquistar independência por meio do
capital estrangeiro.
Sem esquecer que Jaguaribe faz esta análise em janeiro de 1967 (e publica em
1968), portanto, antes do início do “milagre econômico”, percebemos que o autor tinha duas
tônicas: reconhecia que o colonial-fascismo tinha contradições irremediáveis que não
permitiriam sua manutenção a longo prazo; por outro lado, não deixava de constatar que,
mesmo à custa da gradual desnacionalização, promovia “a resolução de alguns problemas”,
como a inflação, pois teriam se registrado, “portanto, grandes avanços em direção à
estabilidade financeira, com a taxa de inflação reduzida, em fins de 1965, a cerca de 45%
por ano, apenas metade do índice em 1964, embora essa tendência sensivelmente tenha
declinado em 1966” (Ibid., p.41). E concluía sua análise enfatizando a inviabilidade do
regime se manter naqueles moldes, ao apontar que o setor industrial-urbano brasileiro havia
atingido uma complexidade não compatível com um regime militar colonial-fascista de longa
duração. Uma vez diluídos com o curso do tempo “os temores que impeliram os setores
mais progressistas da burguesia brasileira e a classe média a se associarem às forças
reacionárias, impor-se-á de novo, inevitavelmente, à transformação, assim no plano político

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como no socioeconômico. Nessas circunstâncias, ou os militares terão de restituir o poder
aos partidos políticos – ainda que muitos deles venham a se filiar aos mesmos – e às forças
sociais por eles marginalizadas, ou terão eles próprios de modificar, de maneira essencial, o
significado de seu regime” (Ibid., p.45-46).
Tudo indica que os tais temores referidos por Jaguaribe foram se diluindo
crescentemente ao longo dos anos seguintes, a partir do modelo traduzido pela alcunha de
“milagre econômico”, no período de 1968 a 1973. Os resultados provenientes desse modelo
trouxeram um crescimento industrial sem precedentes ao Brasil. Não é à toa que Jaguaribe,
dez anos depois do golpe, justamente no período de esgotamento do “milagre”, voltaria a
analisar os efeitos do regime militar instaurado em 1964, no texto já referido, Brasil: crise e
alternativas (1974), fazendo um conjunto de referências mais “elogiosas”, embora na mesma
base de análise, do que as dispensadas ao regime militar no texto de 1967. Passemos,
portanto, a apresentar a análise construída no texto de 1974.

3. Estado neobismarckiano e legitimidade: o pensamento de Hélio Jaguaribe dez anos


depois do golpe, com os resultados industrializantes do regime militar
A ênfase dada por Jaguaribe, assim como por vários setores presentes na vida
brasileira naquele momento pós-milagre, foi a da necessidade de autorreforma do regime,
pedida veementemente neste momento, e não antes, na medida em que somente a partir de
1973-74 o “milagre” passou a demonstrar objetivamente os problemas que desde sua
gestação indicavam seu esgotamento.
Mantendo sua posição de defesa de um estado neobismarckiano, portanto, forte e
autoritário, o autor manifestava concordância com o desfecho do Governo Goulart e o início
do regime militar, com muito maior ênfase do que aquela que havia caracterizado no texto
de 1968. As ressalvas que ali fazia – em relação ao fato de não ter sido a burguesia a
assumir o exercício político e as críticas feitas à ilegitimidade que os militares haviam
imposto naquele momento – foram reavaliados.
O dado novo que aparecerá neste texto é o de justificação da explícita ilegitimidade
do golpe militar como um “mal menor”, diante dos resultados promovidos pelo regime, vistos
dez anos após sua instauração. Jaguaribe vai fundamentar esta posição colocando que nos
últimos anos do Governo Goulart teria havido uma ampla violação dos preceitos
constitucionais, levada a cabo pela própria cúpula do Executivo. E diz que a economia, por
sua vez, achava-se à beira de um completo colapso, com uma inflação na casa dos 100%.
Ele descreve que estaria em curso a eclosão de uma ditadura de esquerda: “Conspirava-se
abertamente, nos círculos mais próximos ao Presidente da República, para a implantação
de uma ditadura de esquerda, de consequências imprevisíveis. Era evidente que o regime
constitucional não subsistia mais e que as Forças Armadas tinham de intervir

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imediatamente, enquanto ainda podiam fazê-lo, para a preservação da ordem pública, na
iminência de ser arrastada pelo colapso do regime ou derrocada pelas forças subversivas”
(JAGUARIBE, 1974, p.50, grifos meus).
Às “consequências imprevisíveis” de uma ditadura de esquerda, a opção por uma
ditadura de direita teria garantido – sem comprometer – o processo de “ocidentalização” do
Brasil, aspecto primordial em nome do qual, para Jaguaribe, todos os sacrifícios valiam a
pena.
Esta posição de Hélio Jaguaribe, que de imediato pode parecer estranha a um ex-
membro do ISEB – dado que o instituto foi extinto justamente pelo golpe de 1964 – na
verdade, é totalmente coerente com sua produção teórica e postura ideológica e, ao
contrário do que possa parecer, não é uma descontinuidade de seu discurso presente no
texto de 1968.
Deve-se atentar para o fato de que Jaguaribe constrói em sua teoria uma justificativa
extremamente lógica à manutenção de um regime despótico, porém legítimo,
neobismarckiano, como define. É nesta direção que acabará justificando a ditadura militar
de 1964 – mesmo nos períodos em que qualquer alegação de legitimidade pareceria
absolutamente fantástica – demonstrada pelo temor do retorno do chamado populismo do
Governo Goulart. Este último, com suas promessas demagógicas, teria criado uma
expectativa inatingível para as massas. Note-se que é em “defesa das massas” que o autor
construiu a justificação dos caminhos do golpe.
Dez anos após o golpe militar não aparece mais no discurso jaguaribeano a
designação de “golpe de 1964” ou “ditadura militar”, mas sempre que se refere ao
acontecimento, Jaguaribe o caracteriza como “o regime social que se instaurou no Brasil em
1964”. Neste texto, portanto, o autor chama a atenção para o fato o que teria ocorrido em
1964: “trata-se, no fundamental, de um regime que se apoia numa coligação entre a
burguesia e a classe média, que exprime os interesses e valores dessa coligação, sob a
direção de seus estratos superiores e que opera e se mantém através de um ajustamento
do Estado a suas conveniências” (Ibid., p.39). Continua aparecendo em seu pensamento o
papel da classe média em quaisquer que sejam os processos de transformações pelos
quais passasse a sociedade, no caso, uma espécie de “mal necessário”. Haveria, portanto,
uma coligação entre burguesia e classe média que, para cuidar e desenvolver a economia
brasileira, estava sob a direção de “estratos superiores”, isto é, não estava ela mesma
exercendo diretamente o poder, mas operava e se mantinha através de uma nova forma de
Estado ajustado às suas conveniências de classe.
Não escapava ao autor o fato deste tipo de regime estar claramente destinado a
“exprimir e preservar os interesses e valores de classes acentuadamente minoritárias, em
um país de grandes massas marginais, que se achavam precedentemente mobilizadas para

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reivindicar rápida e crescente participação no processo social brasileiro” (Ibid., p.39), mas
dizia isso para justificar que essas massas estariam equivocadamente mobilizadas, em
função de lhes ter sido apresentada – pelos setores populistas – uma irreal expectativa de
atendimento de suas reivindicações. Dentro desse quadro, punha-se o papel do novo
Estado montado a partir do regime de 1964 que fazia “com que o controle do Estado e o
exercício, em profundidade, de seu poder organizatório e regulatório da sociedade civil, se
tornassem a mais importante condição de preservação do regime e sua característica mais
evidente” (Ibid., p.39-40).
Jaguaribe caracterizava o regime como dotado por uma espécie de Poder Moderador
que tudo organizava, de tal modo que nada lhe escapasse ao controle. Haveria também um
implícito pacto de poder sobre o qual assentava o regime que consistia numa delegação, por
parte da coligação dirigente – burguesia/classe média – “de poderes políticos absolutos ao
Estado, sob a direção suprema do Poder Moderador, em troca da absoluta garantia, por
parte do Estado, da preservação do sistema produtivo baseado na empresa privada, sob a
direção do empresariado privado, no âmbito mais amplo das classes inversoras: a burguesia
e, em pequena escala, a classe média” (Ibid., p.45). É neste ponto que aparece, no discurso
do autor, a relação com a “função produtiva” que estaria na base dos objetivos do estado: a
empresa privada, sob a direção do empresariado privado. Jaguaribe aponta uma espécie de
mão dupla sobre a qual teria se organizado essa estrutura econômico-político-social do
regime, dizendo que o “relacionamento entre o empresariado e o Estado é complexo e
segue uma dupla linha: uma, correspondendo ao superordenamento pelo Estado, sob a
direção do Poder Moderador, da sociedade civil, inclusive o empresariado; outra,
correspondendo ao influenciamento (sic!), pelo empresariado, do Estado, inclusive o Poder
Moderador, em função dos interesses e valores da coligação burguesia-classe média”
(Ibid.). Em suma, ele está indicando como se punha o pacto de poder dentro desse Estado
e, na sequência, vai apresentar qual poderia ser o novo pacto de poder para o que chamava
de necessidade de autorreforma do regime.
Porém, há um fator ainda não apontado que também será decisivo para Jaguaribe
indicar por que a autorreforma devia ser empreendida naquela altura dos acontecimentos e
não antes:
É interessante observar que essa interpretação do pacto de poder se está tornando uma
das áreas de tensão entre a coligação burguesia-classe média e a cúpula do Estado.
Enquanto os riscos de subversão da nova ordem institucional, por ação das guerrilhas e
possível assistência de Governos estrangeiros de esquerda, constituíam uma ameaça
real, parecia inevitável a necessidade de aceitar-se, como mal menor, um irrestrito
arbítrio do Poder Moderador (Ibid., p.46, grifos meus).

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Portanto, o regime teria servido para afastar os riscos de subversão da ordem
institucional. Concluída esta etapa, urgia reformá-lo. Não podemos nos esquecer do clima
que perpassava todo o debate no país naquele momento da década de 1970: o início do
governo Geisel era o momento em que estava se exaurindo o “milagre brasileiro” e os
“riscos de subversão” por “ação de guerrilhas” já não mais se constituíam numa “ameaça
real” ao status quo. Portanto, na linha de análise de Jaguaribe, o “mal menor” – que teve
que ser aceito por todos, isto é, o irrestrito arbítrio do chamado Poder Moderador – já (dez
anos depois!) podia ser substituído, mas não sem cuidado, por um regime menos ilegítimo.
A reforma deste “mal menor”, para o autor, era também favorecida em função de um menor
risco de “possível assistência de Governos estrangeiros de esquerda” (Ibid.).
Com esse pano de fundo, Jaguaribe apontava os três problemas cruciais que o país
teria que enfrentar para dar ar renovado ao pacto que havia se instaurado em 1964: a
marginalidade da grande maioria de sua população; a dependência econômico-tecnológica
para com o capital estrangeiro, notadamente as grandes empresas multinacionais; e a falta
de legitimidade de seu regime político. Para o autor, não havia como enfrentar a discussão
dos destinos do país sem se defrontar com estes problemas críticos. E ressaltava que,
dentro e fora do governo, as discussões teriam sido travadas em termos dos méritos e dos
defeitos do regime, centrando-se em aspectos dicotômicos. O primeiro deles, centrava-se
nas questões em torno da redistribuição social da riqueza e da renda versus as vantagens
de sua concentração, para a promoção do desenvolvimento; o segundo, na concepção
nacionalista do desenvolvimento versus as vantagens de amplo aproveitamento do capital e
da tecnologia estrangeiros; e o terceiro, na “defesa do Estado de direito e de uma verdadeira
democracia política e social versus as vantagens de um regime de autoridade, determinado
por uma situação de emergência e presumidamente orientado para o oportuno
restabelecimento futuro de perfeita legitimidade” (Ibid., p.47, grifos meus). Registre-se que
esta sua última proposta significava, paradoxalmente, o caminho da ilegitimidade para a
conquista da legitimidade. Sendo assim, para enfrentar estas questões, Jaguaribe tomava
como pressuposto para sua análise o referencial teórico da marginalidade, da dependência
e da legitimidade.
Pautando-se sempre pelos prazos em que os fenômenos se processavam, a
marginalidade era caracterizada pelo autor nos seguintes termos: “A prazo curto e médio, a
marginalidade tem sido admitida como um inevitável legado do passado histórico do país,
cuja superação terá de se fazer a prazo longo e da qual, presentemente, já que não se pode
suprimi-la, cabe retirar a possível vantagem” (Ibid., p.48, grifos meus). Embora possa
parecer fantástica a admissão da ideia de se tirar vantagem da marginalidade, é exatamente
isso que o autor está propondo. Que vantagem seria essa? Dado que seria impossível
incorporar a população marginal brasileira em níveis mais altos de rendimento, “a única

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coisa a fazer é utilizar essa mão-de-obra barata para acelerar o esforço de desenvolvimento,
estimulando o pleno emprego” (Ibid.). Portanto, a aceitação da manutenção da
marginalidade, no tocante aos baixos rendimentos da população, dava o tom do
“desenvolvimento” proposto por Hélio Jaguaribe. Não havia uma preocupação veemente em
se ultrapassar as condições que desencadeavam a marginalidade, mas apenas tomá-la
como um fato dado, aproveitando o que ela tinha, paradoxalmente, a “oferecer” ao
desenvolvimento brasileiro.
Para Jaguaribe, um regime que via vantagem na marginalidade era melhor – por ser
realista – que o governo do período anterior, ou seja, o populismo de João Goulart. Esta
superioridade estaria no fato de que, no pós-1964, não se levavam as massas a
expectativas para além da realidade, tais como um aumento de salários sem a
correspondente produtividade, isto é, sem trazer os tão desastrosos efeitos inflacionários
que, para o autor, eram mais nocivos para os estratos de menor rendimento da população,
do que a exploração de sua mão-de-obra barata. Isso tinha que ser suportado pelas massas
até que se alcançassem “dias melhores”. Qualquer opção fora desse contexto, seria para o
autor um tratamento demagógico do problema:
A condição para o êxito final dessa política, entretanto, consiste, precisamente, em coibir
as formas demagógicas de tratamento do problema da marginalidade, ao estilo
populista, consistente em elevar os salários acima do nível da produtividade e em
mobilizar, social e politicamente, expectativas inatingíveis, que somente resultam na
elevação ao poder dos líderes populistas, conduzindo ao constante agravamento das
contradições do populismo, até seu final colapso (Ibid.).
Mas, afinal, para Jaguaribe quem seriam estes setores marginais no Brasil? Ele os
classificava em três categorias: “São marginais, os setores que, economicamente, recebem
baixíssimos rendimentos e contribuem, também, de forma insignificante, para o mercado;
culturalmente, os analfabetos ou que apenas sabem assinar o nome; politicamente, os que
ignoram quase tudo a respeito do sistema político, e não dispõem de meios de ação política,
não sabendo correlacionar o exercício de seu eventual direito de voto à defesa dos
interesses gerais de seu respectivo grupo social” (Ibid., p.52). Sempre preocupado com o
aspecto cultural do país no sentido de determinar como as massas acolhiam as informações
que tramitavam em sua esfera, Jaguaribe considerava que a gigantesca marginalidade
cultural na qual estava mergulhada a população brasileira, tornava-as vulneráveis aos meios
de difusão de massa, pois “são portadoras de formas primitivas e folclóricas de cultura
popular, são presas indefesas da cultura de massa, na medida em que passam a ficar
expostas aos meios de difusão”. Numa palavra, “alienação sócio-cultural, consumismo
irresponsável e irrealizável, desnacionalização, são alguns dos efeitos típicos produzidos,
em escala crescente, sobre um número crescente de gente, pela exposição da

14
marginalidade ao tipo de cultura de massa que ora se difunde no Brasil, predominantemente
por simples e mecânica tradução de modelos norte-americanos” (Ibid., p.63).
Isto levaria a uma outra consequência desastrosa: a implicação política de tal
marginalidade cultural. Às massas só restariam duas opções bastante dicotômicas, que o
autor chama de sujeição passiva versus reivindicação irrealista. Nenhuma delas levaria a
população para uma verdadeira participação dentro dos destinos da nação, ou seja, ambas
seriam “incompatíveis com o estável funcionamento de um regime democrático”. E, mais
uma vez, era o populismo que servia de exemplo: “As fases de sujeição passiva, como a
que prevaleceu durante o Estado Novo e a que atualmente ocorre, alimentam as formas
autoritárias e não-responsáveis de Governo, com todos os males que constituem a
inevitável sequela da supressão das liberdades públicas. As fases de reivindicação irrealista,
como a que se verificou no curso do Governo Goulart, conduzem à disrupção social e ao
colapso final do sistema” (Ibid., p.63-4).
É neste marco que surgiria o objetivo nacional que o país devia implementar diante
da alternativa sujeição passiva versus reivindicação irrealista, dado que “a única forma de
superação da marginalidade consiste em se erigir esse propósito em objetivo nacional de
alta prioridade e em se ajustar, programadamente, a política de desenvolvimento à
consecução de tal propósito” (Ibid., p.66). Ao Estado cumpriria planejar e pôr em prática este
tipo de política, através de medidas econômicas e administrativas, porém ressalvando-se
que a execução de partes deste plano deveria ser confiada à economia privada. Para tanto,
o Estado deveria fornecer, nem que fosse por via indireta, estímulos fiscais e subsídios. Esta
seria a condição para o investimento da iniciativa privada, nacional e estrangeira, caminho
necessário para levar o Brasil rumo ao desenvolvimento pleno. Mas este benefício tinha –
de novo – um problema de prazo, para Jaguaribe:
O fundamental consiste em determinar as condições necessárias para que, em prazos
socialmente toleráveis, digamos não mais de trinta anos, e de forma compatível com um
elevado crescimento social da economia, se convertam as populações marginais, tanto
rurais como urbanas, em populações participantes, plenamente ocupadas, cuja
contribuição produtiva lhes permita auferir salários que superem para todos a faixa de
marginalidade absoluta e, para quase todos, da marginalidade relativa” (Ibid.).
Dentro ainda da propositura da necessidade de autorreforma do regime, Jaguaribe
relacionava o problema da marginalidade com o problema da dependência e da utilização,
nesta medida, de capitais estrangeiros. A definição que ele dava ao caso brasileiro era a
mesma defendida nos textos isebianos:
A dependência de um país para com o capital e a tecnologia estrangeiros é, também,
uma situação objetiva, decorrente das precedentes condições históricas. Não é a
utilização do capital e da tecnologia estrangeiros que gera a dependência. Esta decorre
do fato de o país, num momento dado, não ter capacidade de acumular o capital de que

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necessite para seu crescimento nem dispor, para tal, da tecnologia adequada. A
utilização do capital e da tecnologia estrangeiros, ante a insuficiência dos recursos
internos, consiste, precisamente, num corretivo para tal carência. A deficiência de
investimento ou de tecnologia – por recusa doutrinária de utilização de recursos
internacionais – perpetua e agrava a brecha que separa os países subdesenvolvidos dos
desenvolvidos (Ibid., p.49, grifos meus).
Esta clássica distinção entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos perpassava
toda sua discussão sobre a dependência. Reaparecia aqui, de forma desdobrada, o que
Jaguaribe chamou no ISEB de nacionalismo de fins, cuja função era utilizar os meios que
fossem necessários, independentemente da origem de seus agentes – mesmo os
estrangeiros – para alcançar um fim: o desenvolvimento brasileiro. Neste texto, portanto, era
reiterada pelo autor a defesa da utilização do capital estrangeiro como corretivo eficiente
para a insuficiência de recursos internos do país.
Como referência desta positividade, o autor lançou mão dos “resultados
espetaculares” que teriam sido alcançados pelo regime militar após sua fase preparatória –
1964/1967, já indicados no texto anterior sobre o colonial-fascismo. Naquela fase, as
prioridades teriam sido o controle da inflação e a organização das novas bases da
economia. A partir de 1968 estaria preparado o terreno para a adoção das medidas
necessárias para o salto que o Brasil deveria dar em direção à superação de seu atraso. Era
este aspecto que não aparecia no texto anterior e que aparece neste de 1974, quando já era
possível vislumbrar os resultados do “milagre”. Para Jaguaribe, os frutos do que foi
implementado a partir de 1968 demonstravam “claramente o acerto da política econômica
adotada, baseada numa ampla mas judiciosa utilização do capital e da tecnologia
estrangeiros”, fato que o autor temia que não viesse a ocorrer quando escrevia no momento
anterior. Diz também que “a prazo longo, o desenvolvimento do país aumentará,
continuamente, a capacidade interna de formação de capital e de investimento, assim como
seu grau de autonomia tecnológica, reduzindo, correspondentemente, a dependência para
com o exterior e a decorrente necessidade de utilização de recursos externos” (BCA p.49,
grifos meus). Portanto, no entender de Jaguaribe o regime militar acabou realizando as
bases para o abandono da situação de subdesenvolvimento do país, através de uma “ampla
mas judiciosa” utilização do capital e da tecnologia estrangeiros. Era este aspecto que fazia
o autor apresentar concordância com aquele regime, o que não era incompatível com sua
produção teórica.
Jaguaribe estava mais uma vez convocando a burguesia brasileira a tomar seu lugar
na arena e a institucionalizar o regime, já que o período de “pôr ordem na casa” já tinha se
completado e os militares podiam ser “dispensados”, dado que já haviam cumprido o que
lhes cabia. Daí a necessidade da reconquista da legitimidade ser comodamente lembrada

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somente neste momento e não antes. Para Jaguaribe, era chegado o momento de a
ilegitimidade do “atual regime”, embora necessária e tratada como “mal menor” durante o
período precedente, conquistar a legitimidade necessária ao prosseguimento do
desenvolvimento da economia brasileira.
Como vimos até aqui, Jaguaribe tratava seus conceitos diferenciando sempre os
aspectos de curto e longo prazos. E não fez de forma diversa com o conceito de
legitimidade. No momento em que escreve este texto de 1974, o autor defendia que não
existiria nenhuma solução ideal que congregasse ao mesmo tempo os requisitos da
legitimidade com os “requisitos funcionais de estabilidade sociopolítica e de eficiência
administrativa” (Ibid., p.50), e que a “atual” situação que se configurava como ilegitimidade
era consequência direta da crise do regime constitucional que todos assistiram em 1964.
Daí que:
nas condições que se seguiram à intervenção das Forças Armadas, em 1964, resultou
claro o fato de que a reconstrução institucional do país não se podia realizar
simplesmente com a supressão dos abusos anteriores. A mobilização demagógica das
massas, nelas criando expectativas objetivamente inatendíveis a prazo curto ou médio,
tornava inviável, por um certo tempo, o puro e simples restabelecimento do sistema
político-eleitoral da Constituição de 1946. Fazê-lo seria, inevitavelmente, retornar ao
populismo (Ibid.).
Entre perder as franquias político-eleitorais ou promover o desenvolvimento
brasileiro, optou-se pelo segundo, pois, do contrário, segundo Jaguaribe, o país apenas e
tão somente assistiria – e sofreria diretamente – os efeitos de uma guerra civil infrutífera e
destruidora. O autor afirmava ainda que
o país passou, assim, a se defrontar com um incontornável dilema: ou se dava prioridade
à necessidade de promover seu desenvolvimento econômico e técnico-organizacional,
para o que necessitava de uma estabilidade social, política e econômica só alcançável
por intermédio de uma prolongada intervenção das Forças Armadas e que certamente
não seria compatível com o regime político-eleitoral da constituição de 1946, ou se dava
prioridade ao restabelecimento das franquias político-eleitorais, em condições que
inevitavelmente restabeleceriam um regime de tipo populista e tornariam a precipitar o
país, em termos provavelmente mais radicais, numa crise do tipo da de 1964, cuja
reiteração dificilmente o pouparia de uma guerra civil” (Ibid., grifos nossos).
Para Jaguaribe, a intervenção ocorrida em 1964 teria servido ao país porque o havia
poupado de precipitá-lo numa guerra civil, dado que preservar franquias político-eleitorais
seria um preço alto demais para o Brasil. Rifava-se a democracia em proveito da
estabilidade. Diante da impossibilidade de uma solução ideal para o problema da
legitimidade institucional do regime “a opção pelo desenvolvimento, embora à custa das
franquias político-eleitorais do antigo sistema constitucional, é entendida como conduzindo,

17
a longo prazo, a condições estáveis de legitimidade” (Ibid., p.51). O alto preço pago pelos
setores marginalizados pelo regime, sem contar a duríssima repressão – quando não da
tortura – empreendida contra todos seus opositores, aparecem no discurso do autor
simplesmente como um dado inalienável da situação para a garantia tanto do “processo de
ocidentalização” como da “estabilidade sócio-econômica”. Para Jaguaribe, esse preço
levava a resultados necessários, pois “na medida em que, com o desenvolvimento, se
reduza substancialmente, e ao cabo se elimine, a marginalidade das massas, e se
assegurem as bases para uma política redistributiva e mais igualitária, em condições que
não mais afetem a estabilidade sócio-econômica do país, nessa mesma medida as
franquias político-eleitorais deixam de ser socialmente disruptivas e passam, ao contrário, a
estabelecer uma sadia competição para a melhor administração do país” (Ibid.). A despeito
de no momento tratado por Jaguaribe as massas ainda estarem esperando a eliminação de
sua marginalidade, o preço pago por trilhar-se o caminho da ilegitimidade, para a conquista
da legitimidade, continuava como um absurdo paradoxo.
Dentro da necessidade da reconquista da legitimidade, Jaguaribe fazia uma análise
dos sistemas políticos, suas normas, agentes e atos. Considerava dois aspectos
fundamentais nesta discussão: o da vigência e o da validade. A vigência “é uma questão de
fato e decorre da medida em que o sistema político em apreço tenha ou não a capacidade
efetiva – em última instância dependente de seu poder de coerção física – de impor o
acatamento de tais normas, agentes e atos” (Ibid., p.74, grifos nossos). Para dizer o mínimo,
sabemos que o “regime”, em sua vigência, utilizou quantas vezes achou necessária esta
“última instância” de pôr em marcha o uso do poder de coerção física para impor suas
normas.
Mas o autor ainda pondera que a vigência, por sua vez, envolveria outros dois
aspectos: a legalidade – de caráter jurídico – e a legitimidade – de caráter político-cultural. A
validade como legalidade seria seu ajustamento às regras prescritas pela ordem jurídica em
vigor. A validade como legitimidade seria a dimensão axiológica dos sistemas políticos. Em
1964, os Atos Institucionais teriam tornado legais os procedimentos do regime, a despeito
de estarem se confrontando com a Constituição. Nessa lógica, teriam conquistado validade
através de uma legitimidade institucional: “A determinação da legitimidade de um sistema
político, de suas normas, seus agentes e seus atos, é algo que decorre da cultura política
vigente. Esta, por sua vez, é o aspecto político da cultura de uma sociedade.” (Ibid., p.75).
Uma vez que a legitimidade seria a “dimensão axiológica dos sistemas políticos”, ela devia
exprimir um ajustamento aos requisitos político-morais do exercício do poder, “que por sua
vez decorrem da cultura política de uma sociedade, num momento histórico dado” (Ibid.,
p.76).

18
Qual seria essa “cultura política” da nossa sociedade e ela ocorreria dentro de que
“momento histórico”? O caminho ilegítimo que o regime inaugurado em 1964 estava
trilhando era a condição necessária e inalienável para, segundo Jaguaribe, no espaço de
tempo mais curto possível, propiciar a reconquista da legitimidade. As condições para essa
reconquista estariam prontas. Segundo o autor, as condições vividas pelo Brasil desde a
implantação do regime teriam conduzido a “conflitos não-negociáveis” e isso vinha
“perpetuando o impasse das possibilidades formais de legitimidade no sistema político
brasileiro” (Ibid., p.77). Daí a necessidade da solução dos conflitos ter que começar a ser
resolvida fora do âmbito coercitivo, devendo ser substituída pelo caminho da negociação
segura, que, igualmente, manteria a ordem. Esta era a modificação proposta por Jaguaribe
para a construção de uma nova cultura política para o Brasil dez anos após o golpe.
Como já se apontou, todo esse itinerário da construção do discurso de Jaguaribe
estava servindo ao propósito de indicar a necessidade, naquela altura dos acontecimentos,
da auto-reforma do próprio regime. É por isso que, somente neste momento de sua
produção teórica, e não antes, ele pondera a injustificabilidade e insustentabilidade da
perpetuação da ilegitimidade do regime, uma vez que os requisitos mínimos da legitimidade
“se encontram, sistemática ou frequentemente, violados pela prática do regime”. E ainda:
“assinale-se, pela extrema gravidade de que se reveste, a adoção, como método rotineiro do
sistema de segurança, da prática da tortura. A instituição da tortura, eticamente mais
repelente do que a da escravidão, constituiu uma mancha intolerável do regime, que
nenhuma alegação de segurança nacional pode, em nenhum caso, justificar” (Ibid., p.80,
grifos nossos).
É com base nesse tipo de ressalva feita por Jaguaribe, que não podemos classificá-
lo jamais como um ideólogo do golpe de 1964. Porém, apesar de publicamente declarar não
desconhecer a prática da tortura, a ênfase nos aspectos que justificavam a adoção dos
princípios autoritários do regime ocupava um espaço demasiadamente importante dentro de
sua produção teórica. Sem esquecer ainda que, dentro do próprio ISEB – no texto de 1958 –
o autor não deixou de fazer recomendações com relação à política externa conveniente ao
Brasil, defendendo que a segurança nacional tornava “aconselhável um aumento da
vigilância sobre o comunismo interno e sua adequada contenção ou repressão” (Idem,
1958b, p.290), o que, no limite, não deixava de instigar, mesmo que indiretamente, a prática
da tortura.
Além disso, mesmo depois dessas objeções, Jaguaribe reafirma que o objetivo do
regime militar como um todo deveria ser valorizado pois “o atual regime brasileiro nem foi o
produto de uma conspiração pérfida nem alimenta propósitos inconfessáveis”. Mais uma vez
a ideia de “mal necessário” se manifestava: “Já se expôs (...) como a crise do populismo
tornara inevitável a emergência de um regime autoritário, ou populista, como tentaram

19
implantar círculos próximos ao Presidente Goulart, ou antipopulista, como acabou
acontecendo”. E continuava ressalvando que, “o atual regime, embora numa perspectiva
otimizadora para as classes e grupos dirigentes, está orientado para o desenvolvimento do
país” (Idem, 1974, p.81). É esta “orientação para o desenvolvimento do país” que acabou
por absolver o regime militar, no entender de Jaguaribe. Por isso, ficava amenizada sua
condenação à prática da tortura. Se, com essa condenação, não podemos dizer que o autor
fazia vistas grossas ao fato, não é menos verdade que a ênfase dada foi insuficiente diante
da monstruosidade da utilização de tal instrumento pela ditadura.
Jaguaribe colocava que eram três as consequências negativas causadas pela
prolongada ilegitimidade de um sistema político: abuso de poder; maximização das
oportunidades de ganho, inclusive as ilícitas; e a incapacidade que afetava o próprio regime
para enfrentar, nos momentos de severa crise, o desafio de uma confrontação. Esta, por sua
vez, seria o resultado da corrupção dos dirigentes e da perda, perante os dirigidos, da
respeitabilidade do regime. Portanto, para Jaguaribe, o perigo estava mais na perda de
confiabilidade do regime do que em qualquer preocupação objetiva com a ausência de
legitimidade, que, afinal, havia durado já tanto tempo.
Com relação ao abuso de poder, apontado como uma das principais consequências
negativas causadas pela ilegitimidade, o autor afirmava que “o que tem salvo, até agora, o
regime brasileiro, de maior deterioração de seus dirigentes, é o fato de os membros do
grupo dirigente, em sentido estrito, ou seja, os titulares do Poder Moderador, serem
recrutados, embora por cooptação, dentro de um círculo mais amplo, as Forças Armadas, e
não permanecerem, via de regra, mais de cinco anos no exercício de tal função” (Ibid.,
p.82). A rotatividade no exercício da presidência da república e o fato dos titulares do “Poder
Moderador” serem recrutados dentro de um “círculo amplo” das Forças Armadas seria
“lenitivo plenamente aceitável” (Ibid.) dentro do pensamento de Hélio Jaguaribe!
Ele afirmava, inclusive, que o país havia sido salvo por isso. Daí, neste texto de
1974, não aparecer mais a designação de “ditadura” militar, porque se admitia que tinha
havido uma alternância, nem que fosse só dos nomes que ocupavam o poder. Essa
concepção de Jaguaribe se justificava dentro da lógica do temor de que os regimes não-
ocidentais viessem a ter espaço no Brasil, diante do não cumprimento da burguesia de seu
verdadeiro papel. A chamada “análise crítica do regime” que ele intencionava realizar era
pautada por esse temor.
Quando se atenta novamente ao fato de que esta “análise crítica do regime” estava
sendo feita num livro de 1974, constatamos que Jaguaribe analisava o país no momento em
que estava entrando no poder o General Ernesto Geisel. Aparecia no texto a insatisfação
com a continuidade do regime naqueles moldes: mais um presidente militar alternando-se
no poder. A insatisfação era menos com a alternância pura e simples, e mais pelo

20
prolongamento demasiado de um regime que poderia trazer a oposição populista
novamente ao poder. E isso muito mais pela incompetência da burguesia do que por méritos
da oposição. Neste momento, aparecia no texto, com todos os contornos, a ideia e defesa
de autorreforma do regime, posição extremamente coerente com o projeto do próprio regime
militar de se modificar no plano político através de sua institucionalização, que teria que ser
marcada, por sua vez, por um processo de “abertura política”3.
A confluência do pensamento de Jaguaribe com esta tese era grande, uma vez que
em sua defesa de autorreforma do regime não estava embutida nenhuma crítica de fundo a
seus fundamentos, mas apontava-se apenas para o aperfeiçoamento de seu funcionamento
no plano institucional. A tese assim delineada correspondia coerentemente à lógica
tradicional de soluções políticas de conciliação entre os estratos das classes dominantes,
que marcava a história brasileira, quando reconhecia a necessidade do processo de
abertura política apenas para a manutenção e aprimoramento da ordem vigente sob nova
roupagem institucional compatível. A diferença que Jaguaribe apresentava em relação à
necessidade percebida e proposta pelo próprio regime de se autorreformar era – como já
afirmei – apenas no tocante à velocidade com que esse processo precisava se efetivar. Para
Jaguaribe a reforma tinha que ser segura, mas não necessariamente lenta e gradual.
A velocidade que Jaguaribe queria imprimir à reforma pautava-se pelo temor da
inadequada preparação do regime militar para um suposto momento de confrontação com
seus opositores e da eventual possibilidade de perda do controle sobre tal situação.
Sendo assim, os efeitos que Jaguaribe apontava como deletérios para o
desenvolvimento brasileiro diante do prolongamento da ilegitimidade deveriam ser
observados naquele momento histórico para que a possibilidade do regime se corrigir por
conta própria não fosse atropelada por agentes e situações alheios aos interesses da classe
dirigente da economia e do desenvolvimento brasileiros – a burguesia industrial, pois do
contrário tudo teria sido em vão. Se “decai a capacidade do regime, reduz-se a liberdade
dos dirigentes e aumenta o custo da solução dos problemas, o regime perde a capacidade
de se reformar e será conduzido à sua própria destruição, no devido tempo, por força de
agentes externos” (Ibid., p.84).
Portanto, a despeito de todas as positividades que o regime havia trazido para a
situação “atual” – depois do esgotamento do “milagre” – a situação era de desemprego
crescente das classes médias que, impotentes e descontentes, poderiam se jogar numa
aliança com setores que já se encontravam na miserabilidade social, dado que “a presente
política econômica do país, com efeitos fortemente agravados pela dependência econômico-
tecnológica – que atrofia o setor cultural, que é o de maior capacidade de criação de novos

3
Neste sentido, a teoria das sístoles e diástoles formulada pelo maior ideólogo do golpe, o General
Golbery do Couto e Silva, é o melhor indicativo desta questão.

21
empregos, nas sociedades industrializadas – não está gerando o número e o tipo de
empregos necessários para atender às necessidades da classe média” (Ibid., grifos meus).
O binômio classe média + miséria preocupava Jaguaribe. Ele temia que isso pudesse
conduzir o país a uma convulsão social pois “o acúmulo de um crescente contingente de
membros da classe média em regime de subemprego ou quase desemprego, entre os quais
se incluem os filhos e parentes dos militares que sustentam o atual regime, combinado com
o difuso estado de rebelião potencial das massas marginais”, era algo que a longo prazo
tendia, “inevitavelmente, a ter um desfecho revolucionário, do tipo das Revoluções
Francesas, Mexicana, Russa ou Chinesa” (Ibid., p.88). Eis aí desenhado o grande temor das
revoluções que ainda poderiam ser perpetradas no Brasil, organizadas – além do mais –
pela própria classe média, num sentido contrário ao qual ela deveria se alinhar, segundo
nosso autor.
Isso tudo levava Jaguaribe a propor uma cultura política de defesa da solução dos
conflitos por uma negociação segura que mantivesse a ordem e onde não se repusesse a
situação do pré-1964. Agora sim haveria uma alternativa, naquele momento não. O principal
passo seria a reconquista da legitimidade que, para Jaguaribe, com certeza não estava com
os “atuais dirigentes” pois “o status quo econômico, social e político, sancionado pelo atual
regime brasileiro, não tem condições de perduração a longo prazo” (Ibid., p.89). Mas a
intenção do regime não era se reformar com tanta pressa assim. O que vimos, na
sequência, foi a prolongação dos governos militares ainda por mais dez longos anos! E o
desejo expresso em todas as linhas da produção teórica de Hélio Jaguaribe, no sentido de
fazer a burguesia brasileira assumir o seu papel, viu-se de novo frustrado.

Referências:
JAGUARIBE, Hélio. O nacionalismo na atualidade brasileira. Rio de Janeiro: ISEB, 1958.
_________. Brasil: estabilidade social pelo colonial-fascismo? In: FURTADO, Celso. Brasil:
tempos modernos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968.
_________. Brasil: crise e alternativas. Rio de Janeiro: Zahar, 1974.
LOVATTO, Angélica. A utopia nacionalista de Helio Jaguaribe: os tempos do ISEB. São
Paulo: Xamã, 2010.
NEVES, Tancredo. NEVES, Tancredo. (1984). (Depoimento). Rio de Janeiro: FGV/CPDOC.

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